Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 608/2014-T
Data da decisão: 2015-05-18  IVA  
Valor do pedido: € 115.173,06
Tema: IVA – despesas em recursos comuns; dedutibilidade
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DECISÃO ARBITRAL

 

 

Acordam os Árbitros José Pedro Carvalho (Árbitro Presidente), António Nunes do Reis e Marta Gaudêncio, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem Tribunal Arbitral na seguinte

 

DECISÃO ARBITRAL[1]

 

I – RELATÓRIO

 

  1. No dia 5 de Agosto de 2014, o Município de A, pessoa colectiva de direito público local n.º …, com sede na Rua …, apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro (doravante, abreviadamente designado RJAT), visando a declaração de ilegalidade do indeferimento do pedido de revisão oficiosa que apresentou com referência dos actos de autoliquidação de IVA dos anos de 2009 e 2010 consubstanciado nas 8 declarações periódicas trimestrais submetidas, correspondente a um montante de imposto que entendeu pago a mais, no valor de €115.173,06.

  

  1. Para fundamentar o seu pedido alega o Requerente, em síntese, que verificou que, nos anos de 2009 e 2010, havia limitado indevidamente o exercício do seu direito à dedução relativo ao IVA incorrido nos recursos de utilização “mista”, também designados por “recursos comuns”, tendo por conseguinte suportado IVA que, de acordo com as regras deste imposto, seria recuperável, o que agora pretende ver corrigido.

 

  1. No dia 07 de Agosto, o pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite e automaticamente notificado à AT.

 

  1. O Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do tribunal arbitral colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

  1. Em 24 de Setembro de 2014, as partes foram notificadas dessas designações, não tendo manifestado vontade de recusar qualquer delas.

 

  1. Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral colectivo foi constituído em 04 de Novembro de 2014.

 

  1. No dia 01 de Dezembro de 2014, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua resposta defendendo-se por excepção e por impugnação.

 

  1. O Requerente, devidamente notificado para o efeito, pronunciou-se por escrito quanto às excepções deduzidas pela Requerida na sua resposta, pugnando pela respectiva improcedência.

 

  1. Posteriormente, notificadas para o efeito, ambas as partes vieram aos autos comunicar que prescindiam da realização da reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT, bem como de alegações escritas, pelo que a realização da primeira reunião do Tribunal Arbitral, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 18.º do RJAT, foi dispensada, atendendo a que, no caso, não se verificava qualquer das finalidades que legalmente lhe estão cometidas, e que o processo arbitral se rege pelos princípios da economia processual e proibição da prática de actos inúteis.

 

  1. Em 23-03-2015, o Tribunal, oficiosamente, tendo em conta o disposto no art.º 78.º/1 da LGT, colocou a questão da tempestividade do pedido de revisão oficiosa apresentado pelo Requerente a 12.11.2013, e consequentemente da presente lide, quanto às liquidações relativas aos períodos 1, 2 e, eventualmente 3, do ano de 2009, questão esta de conhecimento oficioso, tendo convidado as partes para, em 10 dias, se pronunciarem, querendo, sobre tal questão.

 

  1. O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5º. e 6.º, n.º 1, do RJAT.

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.

O processo não enferma de nulidades.

Assim, não há qualquer obstáculo à apreciação do mérito da causa.

 

Tudo visto, cumpre proferir

 

II. DECISÃO

A. MATÉRIA DE FACTO

A.1. Factos dados como provados

 

1-      O Requerente é uma pessoa colectiva de direito público local, cuja actividade consiste na prossecução das suas atribuições municipais nas mais diversas áreas de actividade, encontrando-se enquadrado, para efeitos de Imposto sobre o Valor Acrescentado (“IVA”), no regime normal mensal.

2-      Na prossecução das suas atribuições, o Requerente realiza um vasto conjunto de operações inseridas no âmbito dos seus poderes de autoridade, as quais são excluídas da sujeição a IVA ao abrigo do disposto no n.º 2 do artigo 2.º do Código do IVA.

3-      Realiza também o Requerente um conjunto de operações, quer sejam transmissões de bens, quer sejam prestações de serviços, que não se encontram enquadradas no âmbito dos seus poderes de autoridade, estando por isso sujeitas a IVA nos termos gerais do Código deste imposto.

4-      Ao longo dos períodos de 2009 e 2010, o Requerente submeteu 8 declarações periódicas trimestrais de IVA, nas quais não procedeu a qualquer dedução do montante de IVA respeitante a bens de utilização mista, que são indistintamente utilizados para a realização de operações que conferem e de operações que não conferem o direito à dedução do IVA.

5-      As três primeiras declarações do ano de 2009 foram apresentadas, respectivamente, a 17/04/2009, 05/08/2009 e 12/11/2009.

6-      Posteriormente, em 2013, após uma revisão aos procedimentos do IVA adoptados, verificou o Requerente que, em face da não dedução do IVA a respeito dos bens de utilização mista, havia entregue, no seu entender, imposto em excesso ao Estado, para os anos de 2009 e 2010, no montante de €50.092,58 e €65.080,48.

7-      Em 12 de Novembro de 2013 o Requerente apresentou dois Pedidos de Revisão Oficiosa referentes à entrega de prestação tributária em excesso, derivada da não dedução de IVA suportado na aquisição de bens e serviços de utilização mista, nos anos 2009 e 2010, que vieram a ser indeferidos na totalidade, tendo a respectiva decisão sido notificada ao Requerente, através dos Ofícios n.º …, ambos de 30 de Abril de 2014, em 7 de Maio de 2014.

8-      Nos ofícios n.º …supra referidos, a AT fundou a sua decisão essencialmente em duas razões, a saber: i) na especialidade do Código do IVA face à LGT, no sentido de não aceitar o pedido de dedução do IVA para os anos de 2009 e 2010, através de revisão oficiosa e ii) no entendimento de que a dedução, por parte do Requerente, do IVA que incidia sobre bens de utilização mista ao longo dos períodos de 2009 e 2010 está limitada a um prazo de dois anos, nos termos do n.º 6 do artigo 78.º do Código do IVA.

9-      Do referido despacho de indeferimento consta, para além do mais, o seguinte:

Estando, no caso em análise, já ultrapassados os prazos para o exercício do direito à dedução estabelecidos nos artigos 22º e 23º do CIVA, e confirmando-se que os documentos de suporte relativos às operações passivas em causa foram registados na contabilidade do Requerente em devido tempo, apenas se pode admitir a correção do imposto deduzido com base no nº 6 do art° 78° do CIVA.

149. O nº 6 do art° 78º do CIVA estabelece um prazo especial para o exercício do direito à dedução de dois anos para as regularizações a favor do sujeito passivo, que depois de ultrapassado conduz à preclusão desse direito.

150. Tendo o Requerente apresentado, em novembro de 2013, o pedido de revisão oficiosa onde solicita a dedução "adicional" de imposto suportado em 2010, mostra-se ultrapassado o prazo para o exercício desse direito.

151. Em face do exposto, deve o presente pedido, salvo melhor opinião, ser indeferido, uma vez que precludiu o direito à dedução do IVA em causa”.

10-  O pedido de constituição do presente Tribunal arbitral foi apresentado em 05 de Agosto de 2014.

 

A.2. Factos dados como não provados

Com relevo para a decisão, não existem factos que devam considerar-se como não provados.

 

A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada

Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao atual artigo 596.º, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, a prova documental e o PA juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.

 

 

B. DO DIREITO

 

            Previamente a tudo mais, haverá que decidir a questão, oficiosamente colocada pelo Tribunal, e relativamente à qual foi facultado, às partes, o contraditório, concernente à tempestividade do pedido de revisão oficiosa relativamente às três primeiras autoliquidações do exercício de 2008.

Tendo em conta que o objecto mediato do presente processo arbitral é integrado pelos actos de autoliquidação identificados pelo Requerente no seu requerimento inicial (artigo 2.º/1/a) do RJAT), constata-se ter expirado, há muito, o prazo de 90 dias a que se refere o artigo 10.º/1/a) do RJAT, contado desde o termo do prazo legal para o respectivo pagamento voluntário.

            Nesta situação, a tempestividade do pedido apenas se pode fundar na existência de um qualquer meio de impugnação gracioso do acto de autoliquidação onde tivesse sido proferida decisão a negar/indeferir, total ou parcialmente, as pretensões aí formuladas pelo sujeito passivo de imposto (acto de segundo grau).

            Como tal, torna-se relevante apurar se o pedido de revisão oficiosa (meio de impugnação gracioso) utilizado na situação sub iudice incidiu mesmo sobre os actos de autoliquidação impugnados, e respectiva legalidade, o que, no caso, não oferece dúvidas.

            Com efeito, e como melhor se verá de seguida, os pedidos de revisão oficiosa formulados pelo Requerente, não só incidiram sobre os actos de autoliquidação por si indicados, como apreciaram a respectiva legalidade.

            Deste modo, existindo um meio de impugnação gracioso do acto de autoliquidação, no caso os pedidos de revisão oficiosa, onde foram proferidas decisões a negar/indeferir, total ou parcialmente, as pretensões aí formuladas pelo sujeito passivo de imposto, terá aplicação, no caso, o prazo do artigo 10.º/1/a) do RJAT, reportado à decisão dos pedidos de revisão oficiosa apresentados.

Contudo, no que diz respeito às autoliquidações do primeiro e segundo períodos de 2009, os pedidos de revisão oficiosa foram extemporâneos. Com efeito, as correspondentes autoliquidações foram apresentadas, respectivamente, a 17/04/2009 e 05/08/2009, e o pedido de revisão oficiosa que as abrangeu, apenas deu entrada em 12/11/2013, ou seja, decorrido já o prazo a que alude o artigo 78.º/1 da LGT.

Sendo esse o caso, não poderá a apresentação do pedido de revisão oficiosa apresentado fora de prazo, servir de referente à contagem do prazo a que alude o artigo 10.º/1/a) do RJAT, relativamente a tais actos de autoliquidação.

Assim, sendo, e no que diz respeito aos actos de autoliquidação de IVA do Requerente, do primeiro e segundo trimestres de 2009, praticados, respectivamente, a 17/04/2009 e 05/08/2009, dever-se-á considerar extemporânea a presente lide, excepção dilatória de conhecimento oficioso que deverá determinar, nessa parte, a absolviação da Requerida da instância.

 

*

            Como questão prévia ao conhecimento do mérito do pedido formulado pelo Requerente, questiona ainda a AT a competência deste Tribunal arbitral em razão da matéria.

A este respeito, argumenta a ATA, em primeiro lugar, que, uma vez que “o fundamento do indeferimento” dos pedidos de revisão oficiosa “foi o da intempestividade da regularização de IVA peticionada pela Requerente”, tal gerará a incompetência do tribunal arbitral constituído, na medida em que não terá havido pronúncia, no acto de segundo grau, relativamente à legalidade do acto tributário de primeiro grau[2].

Ressalvado o respeito devido por outras opiniões, e concedendo-se, embora, que, prima facie, a realidade seria como a AT a descreve, entende-se que, vistas as coisas com a devida profundidade, se concluirá de outra forma.

Com efeito, entende-se que o acto de segundo grau não apreciará a legalidade do acto de primeiro grau, quando a decisão ali tomada seja uma mera decisão de forma, e, já não, quando tal decisão se reporte à relação material controvertida definida pelo acto primário. Dito de outro modo, o acto secundário dever-se-á considerar como não relacionado com a legalidade do acto primário, quando esta decisão seja, sob o ponto de vista daquele indiferente, o que se traduzirá, para além do mais, pela não formação de caso decidido em relação à matéria do acto primário. Será esse o caso, por exemplo, quando o acto secundário não conheça da pretensão do interessado, por o órgão que o profere considerar que lhe falece competência para o efeito, por considerar que o interessado não tem legitimidade para o que peticiona, ou por a pretensão lhe ter sido dirigida fora do prazo procedimentalmente facultado para o efeito. Em todas estas situações, a decisão do acto de segundo grau não contende com a legalidade do acto primário, não interfere com a relação material controvertida definida por este, e, como tal, não forma caso decidido em relação ao mesmo.

Embora no presente caso seja isso que, aparentemente, acontece, já que a AT considerou estarem “ultrapassados os prazos para o exercício do direito à dedução estabelecidos nos artigos 22º e 23º do CIVA”, entende-se que, bem vistas as coisas, estas serão diferentes.

Com efeito, o prazo em que a AT se sustenta nas decisões objecto dos presentes autos não é um prazo procedimental (ou processual), mas um prazo substantivo. O decurso de tal prazo não tem um efeito meramente circunscrito a uma relação procedimental ou processual entre a AT e o contribuinte, mas tem um efeito na relação material ou substantiva entre ambos, determinando a extinção de um direito tributário daquele, o que é evidenciado na decisão em crise, pela referência, repetida, à “preclusão” do direito à decisão.

Ou seja e, em suma: a AT, no caso dos autos, não profere uma decisão a dizer que não conhece do mérito da pretensão do requerente, porquanto falece um qualquer pressuposto que legitime aquele conhecimento, ou porquanto, uma qualquer outra questão prévia obsta a tal conhecimento. O que a AT, no fundo, diz, é que o acto de primeiro legal deve ver a sua legalidade confirmada, porquanto o direito do Requerente que o mesmo afirma contender com aquela, se extinguiu pelo decurso do tempo. Repare-se, e aqui é que residirá a pedra de toque da questão, que não é o direito de o Requerente reagir (procedimental ou processualmente) contra o acto tributário de primeiro grau, que a AT considera que se extinguiu, mas, antes, o direito (substantivo) no qual o Requerente funda a ilegalidade do acto primário (que a AT considerou ter um prazo de 2 anos para ser exercido).

No fundo, entende-se que a decisão proferida no acto secundário não é uma mera decisão de forma, mas uma autêntica decisão de fundo, que tem em conta um facto superveniente ao acto primário (o decurso de um prazo), entendido como tendo efeitos ao nível da relação jurídico-tributária definida por aquele acto, para afirmar a legalidade aquele.

Dito de outro modo, a questão conhecida e declarada no acto secundário – relativa à existência do direito à dedução – apenas é susceptível de o ser no âmbito do conhecimento do mérito da pretensão do Requerente que foi submetida a apreciação naquele acto (e não previamente àquela), sendo que esta era, justamente, a da ilegalidade do acto primário.

Conclui-se assim que, ao contrário do que entende a AT, os actos decisórios dos pedidos de revisão oficiosa apresentados integram uma pronúncia sobre a legalidade dos actos de liquidação cuja revisão foi pedida.

Para além do que vem de se abordar, entende a AT que sendo objecto (mediato) da presente lide processual um acto de autoliquidação, e tendo essa lide sido precedida de pedido de revisão oficiosa, e não de reclamação graciosa, não será este Tribunal Arbitral competente para o seu conhecimento.

            Fundamenta a AT o seu entendimento no disposto no artigo 2.º/a) da Portaria 112.º-A/2011, de 22 de Março, que exclui dos litígios cognoscíveis pelos tribunais arbitrais em funcionamento no CAAD, as “Pretensões relativas à declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário”.

            Considera a AT, face a este normativo, que o mesmo deve ser entendido na sua literalidade, proscrevendo do âmbito da jurisdição arbitral tributária as pretensões relativas à declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação que não tenham sido precedidas de reclamação nos termos das referidas normas do CPPT.

            Toda a argumentação da AT na matéria, contudo, acaba por se reconduzir a sustentar que foi intenção do legislador restringir a competência da jurisdição arbitral tributária, no que ao conhecimento de ilegalidades de actos de autoliquidação diz respeito, unicamente às situações em que exista uma reclamação apresentada nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário, porquanto é isso que diz no texto da norma interpretada.

            Sempre ressalvado o respeito devido, não se descortina, de entre as razões oferecidas pela AT, uma razão substancial que explique a racionalidade do entendimento que sustenta. Efetivamente, não se descortina qualquer razão substancial – e a AT nada apresenta nesse sentido – para que, atentos os condicionalismos e especificidades próprios de cada um dos meios graciosos em causa, nos mesmos termos em que os tribunais tributários estão vinculados, não seja cognoscível em sede arbitral a legalidade dos actos de autoliquidação.

            Por outro lado, mesmo uma leitura literalística da norma em questão, desde que devidamente contextualizada, não conduz inexoravelmente ao resultado defendido pela AT nos autos.

            Com efeito, a expressão empregue por tal norma é paralela à própria norma do artigo 131.º/1 do CPPT, o que deverá ser compreendido como uma concretização da assumida, e pacificamente reconhecida, intenção legislativa de que o processo arbitral tributário constitua um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial.

            A norma da alínea a) do artigo 2.º da Portaria 112.º-A/2011, de 22 de Março, deverá também ser entendida como explicando-se pela circunstância de, na sua ausência – e face ao teor do artigo 2.º do RJAT – se perfilar como possível a impugnação direta de actos de autoliquidação, sem precedência de pronúncia administrativa prévia. Ou seja: tendo em conta que face ao RJAT não se configurava como necessária qualquer intervenção administrativa prévia à impugnação arbitral de uma autoliquidação, o teor da portaria deve ser interpretado como equiparando – nesta matéria – o processo arbitral tributário ao processo de impugnação judicial e não, como decorreria da posição sustentada pela AT, passar do 80 para o 8, pegando numa impugnabilidade mais ampla do que a possível nos Tribunais Tributários, e transmutando-a numa mais restrita.

            Assim, razão alguma se vê – e, uma vez mais, nenhum subsídio a AT dá nesse sentido – para que se interprete de forma diferente uma e outra norma, tanto mais que a letra da norma da Portaria 112.º-A/2011, de 22 de Março, acaba por ser menos restritiva que a do CPPT, na medida em que não integra a expressão “obrigatoriamente”, nem se refere a “reclamação graciosa” mas a “via administrativa”. Daí que seja possível uma leitura da própria letra da lei que se contenha no sentido de que apenas está afastado do âmbito da jurisdição arbitral tributária o conhecimento de pretensões relativas à declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa em termos compatíveis com os artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário.

            E é esta a leitura que se subscreve, na sequência do Acórdão proferido no processo 42/2012T do CAAD, e jurisprudência arbitral subsequente.

            Deve, deste modo, e por tudo quanto se expôs, improceder a excepção da incompetência do Tribunal Arbitral, invocada pela AT.

 

***

Aqui chegados, torna-se possível, então, abordar a questão de fundo submetida a este Tribunal Arbitral, que se prende com aferir se assiste ou não razão ao decido pelo AT no pedido de revisão oficiosa apresentado pelo Requerente, com excepção da parte referente aos actos de autoliquidação do primeiro e segundo semestre de 2009, nos termos já acima apontados.

Relativamente às restantes autoliquidações em causa nos autos, cumpre então apurar se, efectivamente, como entende a AT, há uma norma especial fixando um limite genérico de dois anos para o exercício do direito à dedução, ou se, antes, aquele limite genérico se situa no prazo geral de 4 anos, ressalvados casos especiais.

A este propósito, dispõe o artigo 22.º do CIVA que:

“1 - O direito à dedução nasce no momento em que o imposto dedutível se torna exigível, de acordo com o estabelecido pelos artigos 7.º e 8.º, efetuando-se mediante subtracção ao montante global do imposto devido pelas operações tributáveis do sujeito passivo, durante um período de declaração, do montante do imposto dedutível, exigível durante o mesmo período.

2 - Sem prejuízo do disposto no artigo 78.º, a dedução deve ser efectuada na declaração do período ou de período posterior àquele em que se tiver verificado a recepção das facturas ou de recibo de pagamento do IVA que fizer parte das declarações de importação.

3 — Se a recepção dos documentos referidos no número anterior tiver lugar em período de declaração diferente do da respectiva emissão, pode a dedução efectuar-se, se ainda for possível, no período de declaração em que aquela emissão teve lugar.”.

            Já o artigo 98.º do CIVA refere que:

“1 — Quando, por motivos imputáveis aos serviços, tenha sido liquidado imposto superior ao devido, procede-se à revisão oficiosa nos termos do artigo 78.º da lei geral tributária.

2 — Sem prejuízo de disposições especiais, o direito à dedução ou ao reembolso do imposto entregue em excesso só pode ser exercido até ao decurso de quatro anos após o nascimento do direito à dedução ou pagamento em excesso do imposto, respectivamente.”.

Por sua vez, o artigo 76.º do mesmo Código refere, para além do mais, que:

“(...) 2 — Se, depois de efectuado o registo referido no artigo 45.º, for anulada a operação ou reduzido o seu valor tributável em consequência de invalidade, resolução, rescisão ou redução do contrato, pela devolução de mercadorias ou pela concessão de abatimentos ou descontos, o fornecedor do bem ou prestador do serviço pode efectuar a dedução do correspondente imposto até ao final do período de imposto seguinte àquele em que se verificarem as circunstâncias que determinaram a anulação da liquidação ou a redução do seu valor tributável.

(...) 6 — A correcção de erros materiais ou de cálculo no registo a que se referem os artigos 44.º a 51.º e 65.º, nas declarações mencionadas no artigo 41.º e nas guias ou declarações mencionadas nas alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 67.º é facultativa quando resultar imposto a favor do sujeito passivo, mas só pode ser efectuada no prazo de dois anos, que, no caso do exercício do direito à dedução, é contado a partir do nascimento do respectivo direito nos termos do n.º 1 do artigo 22.º, sendo obrigatória quando resulte imposto a favor do Estado.”

            Como decorre das normas transcritas, em regra a dedução do imposto deve ser efectuada, em conformidade com o previsto no artigo 22.º do CIVA, na “declaração do período em que se tiver verificado a recepção das facturas. Contudo, poderá ser exercido o direito à dedução em momentos posteriores”, estabelecendo o artigo 98.º/2, do CIVA, um limite máximo de quatro anos quanto ao exercício do direito à dedução, prazo este que se configura como um prazo geral, só aplicável quando não esteja previsto um prazo especial como é o caso do previsto no respectivo artigo 78.º/6. Neste contexto importa aferir, nos casos em que, nos termos de disposições que especialmente o prevejam, a dedução não é efectuada na declaração do período em que se tiver verificado a recepção das facturas, se se verificam ou não os pressupostos de aplicação dos referidos prazos, podendo, nesse caso, aceitar-se como legítimo o exercício do direito à dedução.

            Ou seja, em suma, a regra é a de que a dedução do IVA tem de ser feita na declaração periódica correspondente ao período em que o IVA a deduzir foi suportado, e não, livremente, em qualquer outra declaração periódica subsequente, já que tal é a forma adequada a assegurar que o IVA é deduzido no mesmo período em que é suportado.

Não se deve, em qualquer caso, perder de vista que o exercício do direito à dedução do IVA é um direito fundamental que assegura a neutralidade do IVA, só devendo ser restringido em situações excepcionais.

Com efeito, tal como o Tribunal de Justiça da União Europeia tem vindo sucessivamente a salientar, e conforme resulta da redacção dos artigos 167.° e 179.°/1, da Directiva IVA, o direito à dedução é exercido, em princípio, durante o mesmo período em que se constituiu, ou seja, no momento em que o imposto se torna exigível. Contudo, nos termos do disposto nos respectivos artigos 180.° e 182.°, o sujeito passivo pode ser autorizado a proceder à dedução do IVA, mesmo que não tenha exercido o seu direito durante o período em que esse direito se constituiu, sem prejuízo da observância de determinadas condições e regras fixadas pelas regulamentações nacionais (v., neste sentido, Acórdão de  8 de Maio de 2008, Proc. C-95/07, Caso Ecotrade, Colect., p. I 03457, n.os 42 e 43).

Isto é, os sujeitos passivos podem, em situações que o justifiquem, ser autorizados a proceder à dedução, mesmo que não tenham exercido o seu direito durante o período em que esse direito surgiu. Contudo, nesse caso, o seu direito à dedução fica dependente de determinadas condições e modalidades fixadas pelos Estados membros.

Neste contexto, o TJUE tem vindo a notar que a possibilidade de exercer o direito à dedução sem limites temporais contraria o princípio da segurança jurídica, que exige que a situação fiscal do sujeito passivo, atentos os seus direitos e obrigações face à Administração Fiscal, não seja indefinidamente susceptível de ser posta em causa, pelo que não colhe a tese segundo a qual o direito à dedução, tal como o direito à liquidação, não pode ser associado a um prazo de caducidade. A este propósito, o TJUE invoca os princípios da eficácia e da equivalência. No tocante ao primeiro, nota que o prazo de caducidade previsto não pode, por si só, tornar praticamente impossível ou excessivamente difícil o exercício do direito à dedução, quanto ao segundo, tem vindo a analisar se nas situações submetidas à sua apreciação há uma equivalência entre o prazo de caducidade concedido aos sujeitos passivos e o prazo concedido à Administração Fiscal para proceder a correcções, tendo concluído, inclusive que, este princípio não é contrariado pelo facto de, em conformidade com a regulamentação nacional, a Administração Fiscal dispor, para exigir a cobrança do IVA devido, de um prazo mais longo do que aquele que é concedido aos sujeitos passivos para solicitarem a sua dedução (cfr., Caso Ecotrade, já cit., n.ºs 43 a 49).

Como nota, embora os Estados membros tenham a faculdade de adoptar, ao abrigo do disposto no artigo 273.º da Diretiva IVA, medidas para assegurar a cobrança exacta do imposto e evitar a fraude, estas não devem, contudo, ir além do que é necessário para atingir tais objectivos e não devem pôr em causa a neutralidade do IVA (veja-se, nomeadamente, Acórdão de 21 de Outubro de 2010, Caso Nidera, Proc. C‑385/09, Colet., p. I‑10385, n.° 49).

É este o contexto em que, na legislação nacional, se permite que, nomeadamente, ocorrendo um erro material ou de cálculo, que tenha ocorrido em prejuízo do sujeito passivo, o mesmo possa ser corrigido no prazo fixado no artigo 78.º/6 do CIVA.

            Outros tipos de erros poderão ser corrigidos mediante a apresentação de declaração de substituição[3], caso tal ainda seja, nos termos legais, possível, ou, não o sendo, mediante pedido de revisão oficiosa, nos termos do artigo 78.º da LGT, desde que verificados, igualmente, os correspondentes pressupostos, o que, de resto, decorre directamente do disposto no artigo 98.º do CIVA, acima transcrito.

Não se subscreve, assim, a tese, sustentada pela AT, de que o pedido de revisão oficiosa, nos termos do artigo 78.º da LGT, relativamente a erro de direito relacionado com o direito à dedução em autoliquidações de IVA, apenas se poderá efectuar no prazo fixado no n.º 6 do artigo 78.º do CIVA[4]. Com efeito, na situação regulada por tal norma – correcção de erros materiais ou de cálculo – não será, de todo, necessário formular qualquer pedido de revisão oficiosa, já que aquela norma do artigo 78.º/6 do CIVA integra uma previsão própria de correcção do erro, motivador do correspondente procedimento, inexistindo qualquer relação entre este e o pedido de revisão oficiosa regulado no artigo 78.º da LGT, para o qual o artigo 98.º do CIVA expressamente remete.

Para além da correcção de erros materiais ou de cálculo, também serão atendíveis factos supervenientes, nos termos regulados pelo n.º 2 do artigo 78.º do CIVA. Cumpre, contudo, ter bem presente a todo o tempo, que uma coisa será um erro (um desfasamento entre a realidade representada na declaração periódica e a realidade – erro de facto – ou o direito) e outra coisa é a ocorrência superveniente de um facto (uma alteração na realidade), que acarreta uma alteração no imposto a suportar ou deduzir, sendo que é a estas últimas situações que a referida norma do artigo 78.º/2 do CIVA se reporta.

Este, de resto, foi já o entendimento subjacente às decisões proferidas nos processos 185/2014T, e 277/2014T, do CAAD[5].

            No presente caso, manifestamente, o que ocorreu foi, não a superveniência de qualquer facto, mas, antes, um erro – não material ou de cálculo, como o qualifica a AT – mas de direito, que se terá traduzido na qualificação como não dedutível de imposto que, a posteriori, o Requerente se terá vindo a aperceber que, afinal, o seria.

            Assim, e como é bom de ver, entre a apresentação das declarações periódicas correspondentes ao momento em que as despesas, entretanto entendidas como dedutíveis, foram suportadas, e a apresentação das declarações onde aquelas mesmas despesas foram deduzidas, não ocorreu qualquer alteração na realidade (muito menos alguma das descritas no n.º 2 do artigo 78.º do CIVA). O que ocorreu foi que o Requerente se consciencializou, entretanto, que o enquadramento jurídico que fez das despesas por si incorridas – no que à sua dedutibilidade diz respeito – não teria sido o correcto, ou seja, que havia laborado em erro.

            Deste modo, não será o erro em causa corrigível nos termos do n.º 2 do artigo 78.º do CIVA, desde logo porquanto tal norma não se destina à correcção de erros, assim, como não será corrigível nos termos do n.º 6 do mesmo artigo, uma vez que não se trata de erro de cálculo (não se traduz na incorrecta articulação de parcelas integrantes de operações aritméticas), nem de um erro material no registo (uma divergência entre o que foi escrito e o que, manifestamente, se queria ter escrito no momento em que se escreveu).

            A correcção da situação em causa nos autos (erro de direito na autoliquidação), face a todo o acima exposto, sempre teria de ocorrer por referência à declaração periódica em que o imposto a deduzir foi suportado, se, e nas condições em que legalmente a alteração desta – por iniciativa do contribuinte ou, oficiosamente, pela AT, ainda que a pedido daquele – se possa legalmente dar.

            E foi precisamente isso que aconteceu, relativamente às autoliquidações dos dois últimos trimestres de 2009, e de 2010, relativamente às quais ocorreu um pedido de revisão oficiosa, nas condições legalmente admitidas, como se viu atrás

            Assim, não se corroborando o entendimento de que, in casu, há uma norma especial fixando genericamente o limite de dois anos para o exercício do direito à dedução, mas, antes, que aquele limite se situa no prazo geral de 4 anos prescrito pela norma do n.º 2 do artigo 98.º do CIVA, sendo que no caso não se verifica qualquer situação de especialidade (designadamente erro de cálculo ou material no registo), deverá o acto de decisão do pedido de revisão oficiosa impugnado ser anulado, com todas as devidas e legais consequências.

            Não poderá, contudo, o pedido arbitral proceder na íntegra.

            Com efeito, compulsada a matéria de facto, não se descortinam elementos que permitam aferir a aceitabilidade do pro rata apresentado pela Requerente.

            Deste modo, a anulação da decisão dos pedidos de revisão oficiosa não poderá ser acompanhada pela anulação das autoliquidações, nos termos pretendidos pelo A., apenas podendo conter, a vinculação decorrente do caso julgado que se forme sobre a presente decisão, impeditiva de a AT considerar como precludido o direito à dedução do Requerente, relativamente aos períodos em causa, nos termos em que o fez nas decisões ora anuladas.

*

C. DECISÃO

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral:

a)      Julgar parcialmente procedente o pedido de pronúncia arbitral relativamente às decisões do pedido de revisão oficiosa das autoliquidações de IVA do Requerente dos terceiro e quarto trimestres de 2009, e dos 4 trimestres de 2010, e, em consequência, anulá-las nessa parte;

b)      Julgar improcedente os restantes pedidos de pronúncia arbitral;

c)      Condenar o Requerente e a AT nas custas do processo, no montante, respectivamente, de €665,55 e de €2.394.45, tendo-se em conta o já pago.

 

D. Valor do processo

Fixa-se o valor do processo em €115.173,06, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

E. Custas

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em €3.060.00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pelo Requerente e AT, na medida dos respectivos decaimentos acima fixado, uma vez que o pedido foi apenas parcialmente procedente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.

 

 

Notifique-se.

 

Lisboa

 

18 de Maio de 2015

 

O Árbitro Presidente

 

 

 

(José Pedro Carvalho - Relator)

 

 

 

 

O Árbitro Vogal

 

 

 

(António Nunes do Reis)

 

 

 

 

O Árbitro Vogal

 

 

 

(Marta Gaudêncio)

 



[1] Decisão elaborada de acordo com a grafia antiga.

[2] Tendo subjacente o entendimento, que se tem consolidado, da equiparação tendencial entre a acção arbitral tributária e o processo de impugnação judicial.

[3] Cfr. neste sentido o Ac. do STA de 02-10-2010, proferido no processo 0256/10, disponível em www.dgsi.pt.

[4] Neste sentido, cfr. o Ac. proferido no processo 117/2013T do CAAD, disponível em www.caad.org.pt.

[5] Ainda não disponibilizadas.