Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 529/2024-T
Data da decisão: 2025-02-24   Outros 
Valor do pedido: € 5.090.269,48
Tema: Adicional de solidariedade sobre o sector bancário. Inconstitucionalidade
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SUMÁRIO:

Tendo o Tribunal Constitucional julgado inconstitucionais as normas contidas nos artigos 1.º, n.º 2, 2.º e 3.º, n.º 1, alínea a) do Regime que cria o ASSB, e – não obstante tal juízo não ter força obrigatória geral – tendo a maioria da jurisprudência desse e dos demais Tribunais seguido tal juízo, cabe aplicar o princípio do n.º 3 do artigo 8.º do Código Civil para obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito.

 

DECISÃO ARBITRAL

  1. RELATÓRIO

 

  1. No dia 9 de Abril de 2024, A..., S.A., titular do número de identificação de pessoa coletiva ..., com sede social na ..., n.º ..., ...-..., Lisboa (Requerente), apresentou requerimento de constituição de tribunal arbitral, nos termos do disposto nos artigos 2.º e 10.º, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária - RJAT).
  2. Pretendia que fosse anulado o indeferimento expresso da reclamação graciosa que tinha apresentado e, em consequência, fosse anulado o acto de autoliquidação do Adicional de Solidariedade sobre o Sector Bancário (ASSB) relativo ao ano de 2021, no valor global de € 5.090.269,48 (cinco milhões, noventa mil, duzentos e sessenta e nove euros e quarenta e oito cêntimos).
  3. Nomeados os presentes árbitros, que aceitaram a designação no prazo aplicável, e não tendo a Requerente, nem a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT ou Requerida), suscitado qualquer objecção, o Tribunal Arbitral ficou constituído em 24 de Junho de 2024.
  4. Seguindo-se os normais trâmites, em 12 de Setembro a AT apresentou resposta e juntou o processo administrativo (PA).
  5. Em 17 de Setembro foi proferido despacho a, entre o mais, dispensar a realização da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT e também das alegações, ainda que, neste caso, sujeita a não oposição.
  6. Em 1 de Outubro a Requerente opôs-se à dispensa de alegações e solicitou a fixação de prazo para o efeito, o que foi feito por despacho de 16 de Dezembro, e em consequência, prorrogou por dois meses o prazo para proferir a decisão, nos termos do n.º 2 do artigo 21.º do RJAT.
  7. Em 16 de Janeiro, Requerente e Requerida apresentaram alegações, juntando esta nas suas os votos de vencido apostos às decisões dos processos n.os 548/2024-T e 18/2024-T.

 

 

 

  1. PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS

 

  1. O tribunal arbitral foi regularmente constituído e o pedido de pronúncia contém-se no âmbito das suas atribuições.
  2. Requerente e Requerida gozam de personalidade e de capacidade judiciárias, são legítimas, e encontram-se regularmente representadas.
  3. O pedido foi tempestivo e não foram invocadas excepções, nem o Tribunal as divisou.

 

III. MATÉRIA DE FACTO

III.1. FACTOS PROVADOS

  1. O Requerente é uma instituição de crédito sujeita à supervisão do Banco de Portugal que se rege pelo Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (“RGICSF”);
  2. Por se tratar de instituição de crédito com sede em Portugal, o Requerente encontra-se sujeito ao pagamento do ASSB, tributo que é auto-liquidado anualmente através da submissão da Declaração Modelo 57;
  3. Na Declaração Modelo 57 apresentada no dia 13 de Dezembro de 2021, referente a esse ano, o Requerente apurou um valor de ASSB de € 5.090.269,48 (cinco milhões, noventa mil, duzentos e sessenta e nove euros e quarenta e oito cêntimos), que deu origem ao documento de liquidação n.º ... (Doc. 2 junto ao PPA) e que foi pago (Doc. 3 junto ao PPA);
  4. Em 28 de Novembro de 2023, o Requerente apresentou reclamação graciosa, que foi tramitada com o n.º ... e indeferida por despacho de 29 de Dezembro seguinte da Directora-Adjunta da Unidade dos Grandes Contribuintes (Doc. 1 junto ao PPA);
  5. Segundo o sistema de rastreamento de correspondência dos CTT, a notificação da AT foi entregue ao Requerente em 10 de Janeiro de 2024 (Doc. 1 junto ao PPA);
  6. Em 9 de Abril de 2024, o Requerente interpôs no CAAD pedido de constituição de Tribunal Arbitral para obter a anulação do referido acto de auto-liquidação.

 

III.2. FACTOS NÃO PROVADOS

Tendo em conta as posições de Requerente e Requerida e, consequentemente, a matéria relevante para a decisão da presente causa, não há factos considerados não provados.

 

III.3. FUNDAMENTAÇÃO DA DECISÃO EM MATÉRIA DE FACTO

Os factos dados como provados resultam dos documentos disponíveis nos autos e, ou, do acordo das posições de Requerente e Requerida, não tendo sido, aliás, controvertidos.

 

  1. DIREITO

IV.1. Questões a decidir

Às questões suscitadas pela Requerente, essencialmente de desconformidade constitucional (mas também de ilegalidade por violação de lei de valor reforçado) do ASSB, a Requerida não somou outras. Quer dizer que se dá como assente que o ASSB tem natureza de imposto[1], que a Requerente percorreu adequadamente a via administrativa – e, portanto, que a competência do Tribunal Arbitral não está em discussão[2] –, que o montante auto-liquidado de ASSB foi efectivamente pago e que o preenchimento dos pressupostos do processo arbitral não é controvertido.

O que o Requerente entendeu como uma questão adicional suscitada pela AT – e sobre a qual se pronunciou nas alegações – continha-se ainda na avaliação da conformidade constitucional do ASSB, na medida em que intendia demonstrar que o sector financeiro/bancário não é prejudicado pelas isenções simples ou incompletas de Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA) a que está sujeito.

Numa fase subsequente, caso proceda a pretensão da Requerente, haverá que determinar as consequências, quer em termos de devolução do montante pago, quer em termos de juros.

 

IV.2. Posição da Requerente

No que diz respeito às matérias que estão em discussão perante este Tribunal Arbitral Colectivo, depois de historiar o surgimento do ASSB (como um tributo de carácter extraordinário) na Lei n.º 27-A/2020, de 24 de Julho – que procedeu à segunda alteração à Lei do Orçamento do Estado para o ano de 2020 para materializar o Programa de Estabilização Económica e Social, aprovado em Conselho de Ministros a 4 de Junho de 2020, como resposta ao contexto da crise pandémica do COVID-19 – o Requerente invocou, essencialmente, que:

  1. O legislador apresentou dois tipos de justificação para a criação do ASSB: por um lado, suprir as debilidades financeiras do sistema de segurança social – e daí a sua consignação ao Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social (FEFSS); por outro lado, a sua incidência selectiva sobre o sector bancário como forma de compensar a isenção de IVA aplicável à generalidade dos serviços e operações financeiras (levando ao n.º 2 do artigo 1.º do regime do ASSB a declarada intenção de aproximar a carga fiscal incidente sobre o sector financeiro da carga fiscal incidente sobre os demais sectores);
  2. O segundo fundamento, porém, seria, por vários motivos, falacioso: “estas isenções decorrem diretamente da Diretiva 2006/112/CE (“Diretiva do IVA”) e a sua transposição para o direito interno pelo artigo 9.º do Código do IVA é de carácter obrigatório.”; “o encargo económico do IVA incide sobre os adquirentes dos serviços (por regra os clientes dos Bancos) e não sobre os prestadores de serviços (os Bancos), por via do mecanismo da repercussão legal.”; a razão de tal isenção prende-se com razões de ordem técnica (a dificuldade “de identificar o valor acrescentado nas atividades de intermediação financeira”)[3]; a isenção não representa um verdadeiro benefício para o sujeito passivo por ser incompleta (“se por um lado determinam a ausência de liquidação de IVA nas prestações de serviços financeiros, por outro, não permitem a dedução do IVA suportado a montante nas aquisições de bens e serviços necessários à realização da atividade financeira”)[4]; “a verba 17 da Tabela Geral do Imposto do Selo (TGIS), sob a epígrafe de “operações financeiras”, tributa diversas operações e serviços financeiros apenas e só porque existe uma isenção de IVA que legitima essa tributação.[5];
  3. O Tribunal Constitucional já se pronunciou sobre a inconstitucionalidade das normas contidas nos artigos 1.º, n.º 2, 2.º e 3.º, n.º 1, alínea a) do Regime que cria o ASSB, contido no Anexo VI da Lei 27-A/2020, de 24 de Julho (Acórdãos n.os 149/2024, 469/2024 e 529/2024), quer por violação do princípio da igualdade tributária (nas dimensões de proibição de arbítrio, de proibição da criação de impostos desproporcionais e não genéricos e de obrigatoriedade de criação de impostos que tenham como pressuposto a existência de capacidade contributiva);
  4. O mesmo tem sido entendido na jurisdição arbitral (decisões proferidas nos processos n.os 582/2022-T, 598/2022-T, 599/2022-T, 21/2023-T, 104/2023-T, 326/2023-T, 327/2023-T, 379/2023-T, 215/2024-T, 216/2024-T, 492/2024-T, 530/2024-T, 531/2024-T, 532/2024-T e 640/2024-T);
  5. Para além do que a afectação das receitas do ASSB violou os princípios da não consignação e da discriminação que são fixados na Lei de Enquadramento Orçamental enquanto Lei de valor reforçado.

Nas alegações, o Requerente retomou a sua anterior argumentação detendo-se especialmente na discussão do impacto da isenção incompleta no sector bancário, em resultado da questão da estrutura de custos do sector bancário que tinha sido introduzida pela AT na sua resposta (alínea e) da secção seguinte). A isso se voltará adiante (IV.3.).

 

IV.2. Posição da Requerida

No que diz respeito às matérias que estão em discussão perante este Tribunal Arbitral Colectivo, a AT também começou por historiar o surgimento do ASSB, passando depois a rebater as inconstitucionalidades que lhe tinham sido imputadas pelo Requerente, argumentando, essencialmente, que:

  1. Quanto à dimensão de proibição do arbítrio e, ou, de discriminação, o que está em causa no princípio da igualdade é a sua dimensão negativa, tendo esta sido assim delimitada no Acórdão n.º 569/2008 do Tribunal Constitucional: “na proibição do arbítrio, tal censura ocorre sempre que (e só quando) se provar que a diferença de tratamento não tem a justificá-la um qualquer fundamento racional bastante, na proibição de discriminação a censura ocorre sempre que as diferenças de tratamento introduzidas pelo legislador tiverem por fundamento algumas das características pessoais a que alude – em elenco não fechado – o n.º 2 do artigo 13.º.”; ora, como ensinado por Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, 4.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2007, p. 339, “a vinculação jurídico-material do legislador ao princípio da igualdade não elimina a liberdade de conformação legislativa” pois “Só quando os limites externos da «discricionariedade legislativa» são violados, isto é, quando a medida legislativa não tem adequado suporte material, é que existe uma «infração» do princípio da igualdade enquanto proibição do arbítrio.”; o mesmo tem entendido o Tribunal Constitucional (vg, no Acórdão n.º 545/2019): “o princípio da igualdade, entendido como limite objetivo da discricionariedade legislativa, não veda à lei a adoção de medidas que estabeleçam distinções. Todavia, proíbe a criação de medidas que estabeleçam distinções discriminatórias, isto é, desigualdades de tratamento materialmente não fundadas ou sem qualquer fundamentação razoável, objetiva e racional. O princípio da igualdade, enquanto princípio vinculativo da lei, traduz-se numa ideia geral de proibição do arbítrio (cfr. por todos Acórdão n.º 232/2003”;
  2. Assim, entende a AT que “opção do legislador de sujeitar as instituições de crédito ao ASSB assenta (…) num critério distintivo objetivo, razoável e materialmente justificado.”, uma vez que “a consignação do IVA à realização da despesa com prestações sociais está expressamente prevista no artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 367/2007, de 2 de novembro, que estabelece o quadro do financiamento do sistema de segurança social.[6]. E se a introdução de um imposto como o ASSB já constituiria “uma opção natural e, certamente, coerente do legislador” (destaques no original) perante a irresponsabilização do sector financeiro no que concerne a este tipo de contribuições para a segurança social, isso mais se justificava por, desde 2011, “todos os trabalhadores do setor bancário terem passado a integrar o regime geral de segurança social, incluindo-se aqui os trabalhadores de sucursais nacionais de bancos estrangeiros”;
  3. Demais, como afirmado por vários acórdãos do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), a isenção de IVA “não se limita a minimizar as dificuldades de determinação da base tributável, tendo ainda o efeito de beneficiar, em termos de carga fiscal, o exercício de atividades financeiras, de modo a evitar um aumento do custo do crédito ao consumo” (processos n.os C 455/05, Velvet & Steel Immobilien, n.º 24; C 242/08, Swiss Re Germany Holding, n.º 49; C 540/09, Skandinaviska Enskilda Banken, n.º 21; C 607/14, Bookit, n.º 55; C 250/21, O. Fundusz Inwestycyjny Zamkniety reprezentowany przez O, n.º 41);
  4. Sendo que tal disparidade de tratamento ainda mais se acentua quando há “serviços e operações financeiras que, apesar de também estarem isentas de IVA, proporcionam o direito a dedução do imposto suportado a montante, em conformidade com o disposto na subalínea v), da alínea b) do n.º 1 do artigo 20.º do CIVA, por transposição da norma prevista na alínea c) do artigo 169.º da Diretiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de novembro de 2006, relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado (“Diretiva do IVA”).”; e mesmo que, em todo o caso, a aquisição de inputs sujeitos a IVA – que poderia ser deduzido no caso de a isenção ser incompleta – ser reduzida:
  5. como ressalta dos dados incluídos no Documento 1 que ora se junta (separador “GGA e Pessoal”), no período de 2016 a 2022, os “outros gastos gerais administrativos” corresponderam em média a apenas 19,7% do produto bancário (oscilando entre um valor máximo de 24,0% em 2016 e um mínimo de 16,1% em 2022) enquanto que a soma das rubricas relativas a custos com pessoal, amortizações, provisões, perdas por imparidade, impostos sobre os lucros e resultado líquido representaram, em média, 83,9% do mesmo produto bancário (variando entre um valor mínimo de 82,3%, em 2016 e um valor máximo de 85,6% em 2021).”;
  6. E, como “a alínea a) do n.º 1 do artigo 137.º da Diretiva do IVA faculta aos Estados-Membros a possibilidade de concederem aos seus sujeitos passivos o direito de optar pela tributação dos serviços e operações financeiras.”, a aplicação de IVA aos serviços financeiros seria uma alternativa para o legislador nacional, como acontece em vários países da OCDE[7] (e rediticiamente muito mais vantajosa do que a tributação existente já que “somente uma parte diminuta da atividade financeira das instituições de crédito está sujeita a tributação indireta, mais concretamente em sede de Imposto do Selo[8] (IS) e ainda que tal imposto mantenha o alheamento do sistema financeiro em relação ao contributo adicional para o sistema de Segurança Social de que os seus trabalhadores são beneficiários, já que “a receita do Imposto do Selo não está, nem mesmo parcialmente, consignada à Segurança Social, diversamente do que sucede com o IVA e o ASSB.” - destaques no original);
  7. Alheamento que o ASSB corrigia, ainda que forma residual, já que “a receita da ASSB nos anos de 2020 a 2022 corresponde, em média, a somente

- 0,5% da margem financeira,

- 0,3% do produto bancário e

- 0,4% do produto bancário líquido de outros gastos gerais administrativos,”;

  1. E como “as isenções de IVA representam justamente exceções, ou até mesmo entorses, ao princípio da igualdade.[9]quando o legislador decide atenuar ou eliminar uma delas – em particular quando tal isenção tem a sua razão de ser em limitações intrínsecas à própria mecânica do imposto, como é o caso da isenção de IVA nos serviços e operações financeiras – está-se, na verdade, a repor a igualdade, ao invés de a constringir.”;
  2. Tributação específica essa que é recomendada a nível internacional e que a própria Comissão Europeia defendeu em comunicação de 2010, como a AT recordou:

Independentemente do instrumento fiscal considerado, importa saber se se justifica uma adaptação do sistema fiscal para que o sector financeiro contribua de uma forma justa e substancial para os orçamentos públicos. A Comissão vê três grandes argumentos em favor desta tese.

Em primeiro lugar, para completar as profundas reformas em curso no sector financeiro, a introdução de novos impostos poderia contribuir para o reforço da eficiência e da estabilidade dos mercados financeiros e para reduzira sua volatilidade, bem como os efeitos nocivos de uma excessiva tomada de riscos.

(…)

Em segundo lugar, o sector financeiro é tido por grande responsável pela ocorrência e a envergadura da crise e os seus efeitos negativos nos níveis de endividamento público à escala mundial. A introdução de novos impostos poderia também justificar-se pelo facto de alguns governos terem dado um apoio substancial ao sector financeiro durante a crise, esperando-se agora uma contrapartida da sua parte. Ao contribuir para a consolidação orçamental e para a geração de recursos adicionais, bem como para a eficiência económica, novos impostos no sector financeiro poderiam criar condições para um crescimento mais sustentável, conforme preconiza a estratégia Europa 2020.

Em terceiro lugar, a maioria dos serviços financeiros está isenta de tributação em sede de IVA na UE. Esta situação explica-se pelo facto de grande parte das receitas dos serviços financeiros decorrer de margens, pelo que não são facilmente tributáveis no âmbito do IVA atual.

Há assim razões para crer que o sector financeiro poderia dar um contributo mais justo e mais substancial para as finanças públicas

(…)

O mundo enfrenta importantes desafios num momento em que os orçamentos públicos estão sob forte pressão em toda a UE. Estes desafios são muitos e variados.

(...)

Para fazer face a estes desafios, há argumentos em favor da revisão da tributação das atividades do setor financeiro. O setor deve dar um contributo justo e substancial para os orçamentos públicos, sendo lícito afirmar que essa contribuição deve ser superior à atual. As razões decorrem da posição particular que o setor ocupa no conjunto da economia, que se tornou tão evidente durante a crise financeira, e do facto de que alguns dos seus serviços estão isentos de IVA” (negritos no original);

  1. Concluía assim a AT que

A justificação aduzida pelo legislador para sujeitar as instituições de crédito ao ASSB tem como fundamento material a ideia de justiça fiscal, mais concretamente de reposição da igualdade através da distribuição do esforço tributário entre os diversos operadores económicos, reduzindo-se assim a discrepância entre a carga fiscal suportada pelo setor financeiro e aquela, mais penosa, que onera os demais setores de atividade, atenta a isenção de IVA de que os serviços e operações financeiras beneficiam e que é apenas parcialmente colmatada, em matéria de fiscalidade indireta, pela tributação em sede de Imposto do Selo.”. E que “a criação do ASSB apenas violaria o princípio da igualdade se os setores não financeiros não estivessem sujeitos a uma tributação indireta equivalente ou, pelo menos, comparável.” (destaques no original);

  1. Quanto à dimensão da alegada violação do princípio da capacidade contributiva, enquanto decorrência do princípio da igualdade tributária, por os elementos objectivos da sua incidência alegadamente não terem relação com algum dos indicadores demonstrativos dessa capacidade – rendimento, consumo ou património – a AT faz notar, invocando doutrina e jurisprudência constitucional, que o ASSB é um imposto indirecto, “assumindo um recorte idêntico ao da CSB, no que toca à incidência objetiva - abarca operações registadas no passivo e instrumentos financeiros derivados fora do balanço.”. E que “Ao fazer coincidir a base de incidência do ASSB com a da CSB, logrou o legislador alcançar significativos ganhos de eficiência, desde logo ao mitigar custos de implementação e contexto, que se afiguram como sendo, desde logo, uma das principais dificuldades na criação de impostos de consumo nos serviços financeiros.”;
  2. De resto, como já estabelecido pelo Tribunal Constitucional[10], “O que releva é que exista uma conexão entre a prestação tributária, o pressuposto económico visado pelo tributo, e a capacidade do sujeito passivo para suportar o peso desse encargo.”; ora, a mais de compreendidas na liberdade de conformação do legislador[11], as duas componentes usadas evidenciam a específica capacidade contributiva do sistema financeiro:

- “os derivados constituem a componente principal da receita do FTT proposto pela Comissão Europeia em 2011 (cerca de dois terços da receita global) e o mesmo sucede na proposta atualmente em negociação, no âmbito da cooperação reforçada dos dez Estados-Membros.”;

- “o passivo das instituições de crédito (…) mostra-se particularmente revelador da dimensão da sua presença no mercado, inclusivamente em termos que permitem correlacioná-lo com o valor acrescentado que gera e com o montante de operações realizadas no estádio do retalho.”;

  1. Como, aliás, o Tribunal Constitucional já tinha estabelecido:

o princípio da capacidade contributiva tem necessariamente que ser analisado numa ótica de conjugação com outros princípios:

“É claro que o princípio da capacidade contributiva tem de ser compatibilizado com outros princípios com            dignidade constitucional, como o princípio do Estado Social, a liberdade de conformação do legislador, e certas exigências de praticabilidade e cognoscibilidade do facto tributário, indispensáveis também para o cumprimento  das finalidades do sistema fiscal.

…averiguar, porém, da existência de um particularismo suficientemente distinto para justificar uma desigualdade de regime jurídico, e decidir das circunstâncias e fatores a ter como relevantes nessa            averiguação, é tarefa que primariamente cabe ao legislador, que detém o primado da concretização dos princípios constitucionais e a correspondente liberdade de conformação” (acórdão do Tribunal Constitucional n.º 711/2006, destaques nossos)”.” (a que a AT acrescentava referências do Acórdão n.º 105/2019, de 19 de Fevereiro de 2019);

  • Ainda a propósito da violação do princípio da igualdade, a AT transcrevia o voto de vencido do Prof. Doutor Tomás Cantista Tavares, exarado no processo n.º 325/2023-T, que se reproduz na parte relevante (com os destaques da AT):

“12. Não acompanho igualmente a Sentença arbitral, quanto à violação do princípio do princípio constitucional da Igualdade e da Capacidade Contributiva, nas suas diversas dimensões, a saber:

13.Quanto à dimensão da generalidade e universalidade dos impostos: Na minha opinião, consentem-se compressões desse princípio, na necessária liberdade política do legislador, se adequadas e proporcionais a outros propósitos com igual valor – e, no caso concreto, havendo isenção geral de IVA para o setor financeiro, o ASSB, enquanto imposto setorial sobre o consumo pode servir de contrabalanço para assegurar uma igualdade final e global de todos os agentes económicos (art. 1.º, n.º 2, do Anexo VI à Lei 27-A/2020).

14.Quanto à dimensão de igualdade comparativa: não releva o facto de a incidência da ASSB não abranger outros setores de atividade também isentos de IVA. A Constituição não exige um igualitarismo absoluto e confere ao legislador ordinário a liberdade política de prever discrepâncias tributárias justificadas, como sucede com o ASSB; e isso basta para o não juízo de inconstitucionalidade do ASSB. Aliás, em geral, todo o benefício fiscal provoca uma distorção da igualdade comparativa – e são todos legitimados constitucionalmente, na análise da força da razão extrafiscal associada, superior à da tributação que impedem.

15.Quanto à dimensão de tributação de riqueza económica efetiva: os impostos têm de incidir sobre manifestações de riqueza reveladas num rendimento, património ou consumo (art. 4.º, n.º 1, da LGT)

. O ASSB é um imposto indireto, sobre o consumo, que visa tributar as manifestações de capacidade contributiva impulsionada pelos fundos obtidos pelas instituições de crédito e instrumentos financeiros derivados e tipificadas, na incidência sobre os saldos dessas rubricas contabilísticas. Vejo uma relação causal suficiente entre a tipificação legal e a manifestação de capacidade contributiva a tributar, legitimada, também, por razões de eficiência e simplificação na circunscrição do facto tributário. É certo que a lei poderia ter desenhado uma base tributável mais perfeita sobre o consumo; porém, e é isso que importa, o recorte legal ainda se conexiona com o iter tributário (os saldos contabilísticos em causa relacionam-se com a atividade e consumo dos sujeitos passivos) e razões de simplicidade determinam, outrossim, a construção da incidência objetiva (a análise dos saldos é um dado externo e objetivo que torna fácil o cumprimento da obrigação fiscal) – e isso basta para assegurar a adesão ao valor constitucional da capacidade contributiva, temperado ou moldado por razões de eficiência e simplicidade.”.

  • Finalmente, quanto à invocada violação das normas sobre a não consignação de receitas, defendeu a AT que a consignação das receitas do ASSB é permitida pelos “n.º 1 e n.º 5 do artigo 90.º da Lei de Bases da Segurança Social, Lei n.º 4/2007, de

16 de janeiro, [que] sob a epigrafe “Formas de financiamento”, dispõe que:

“1 - A protecção garantida no âmbito do sistema de protecção social de cidadania é financiada por transferências do Orçamento do Estado e por consignação de receitas fiscais.” e “está em consonância com o disposto na alínea c) do n.º 2 do artigo 16.º da Lei n.º 151/2015, de 11 de setembro (Lei de Enquadramento Orçamental), que integra nas exceções à regra de não consignação “as receitas afetas ao financiamento da segurança social e dos seus diferentes sistemas e subsistemas nos termos legais”.[12]”.

 

IV.3. Quanto à questão da estrutura de custos

No PPA, o Requerente invocou que

Em termos genéricos, apenas é liquidado IVA sobre uma percentagem entre 5% a 6% dos serviços prestados pelos Bancos, o que significa que entre 94% a 95% do IVA suportado por tais entidades nos inputs (i.e., na aquisição de bens e serviços necessários à realização da sua atividade) não é dedutível/recuperável, representando, portanto, um custo na sua esfera, ao passo que, se os serviços financeiros fossem tributados em sede de IVA, os Bancos portugueses poderiam recuperar a totalidade do IVA suportado nos seus inputs, pelo que os custos de IVA na sua esfera seriam residuais.”.

Na sua Resposta a AT pôs directamente em causa a alegação de que “o setor financeiro é, afinal, prejudicado com as isenções simples ou incompletas de IVA[13], escrevendo:

como ressalta dos dados incluídos no Documento 1 que ora se junta (separador “GGA e Pessoal”) , no período de 2016 a 2022, os “outros gastos gerais administrativos” corresponderam em média a apenas 19,7% do produto bancário (oscilando entre um valor máximo de 24,0% em 2016 e um mínimo de 16,1% em 2022) enquanto que a soma das rubricas relativas a custos com pessoal, amortizações, provisões, perdas por imparidade, impostos sobre os lucros e resultado líquido representaram, em média, 83,9% do mesmo produto bancário (variando entre um valor mínimo de 82,3%, em 2016 e um valor máximo de 85,6% em 2021).”.

Como se referiu, o Requerente solicitou a produção de alegações para se pronunciar sobre tal documento, que considerou ser “um mero documento interno da AT”, solicitando nelas o seu desentranhamento dos autos. Acontece que o juízo sobre a desconformidade constitucional que o Venerando Tribunal Constitucional proferiu, e que este Tribunal entende dever seguir, em nada depende do maior ou menor impacto que um sistema de tributação alternativo (baseado na possibilidade de se fazer incidir IVA sobre o sector financeiro) teria nos sujeitos passivos do ASSB. Assim, por tal questão ser inócua para a decisão a tomar e, portanto, ser igualmente inócuo tal documento, nem sequer se equaciona discutir esse pedido da Requerente – excepto para notar que não tem qualquer fundamento legal.

 

IV.4. Quanto às questões de constitucionalidade

Ainda que nenhum Tribunal possa, na ordem jurídica nacional, “aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados” (artigo 204.º da Constituição - CRP), é ao Tribunal Constitucional que cabe a última palavra sobre quais são essas normas (artigo 221.º da CRP). Assim sendo, devem os demais Tribunais, no que estritamente diz respeito a juízos de (des)conformidade constitucional, seguir a sua jurisprudência. É certo que há uma distinção entre juízos e declarações de inconstitucionalidade, e que só estas têm força obrigatória geral (artigo 281.º, n.º 1, da CRP). Em todo o caso, desde que haja uma corrente jurisprudencial estabelecida – mesmo que apenas de uma Secção (a 1.ª, de que emanaram os Acórdãos n.os 469/2024, de 19 de Junho; 592/2024, de 24 de Setembro; e 737/2024, de 22 de Outubro; mas que teve seguimento nas Decisões Sumárias n.os 436/2024, de 15 de Julho; 458/2024, de 29 de Julho; 460/2024, de 30 de Julho; 549/2024 e 551/2024, de 20 de Setembro; 618/2024, de 17 de Outubro; 625/2024, de 22 de Outubro; 688/2024, de 28 de Novembro; 694/2024, de 29 de Novembro; 714/2024, de 10 de Dezembro; e 1/25, de 2 de Janeiro) e mesmo que obtida nessa secção apenas pela margem mínima (a maioria foi de 3 para 2) – não caberá aos demais Tribunais, salvo nova argumentação, afastar-se dela. Assim, quanto às questões de constitucionalidade suscitadas pela Requerente reproduz-se o núcleo da argumentação do Acórdão n.º 469/2024[14], de 19 de Junho de 2024, que, nas questões aqui relevantes, tem sido seguido nos restantes arestos do Tribunal Constitucional:


os artigos 1.º, n.º 2, 2.º e 3.º, n.º 1, alínea a), do Regime que cria o Adicional de Solidariedade sobre o Setor Bancário, contido no Anexo VI da Lei n.º 27-A/2020, de 24 de julho, estabelecem o seguinte:

 

Artigo 1.º

Objeto

1 – ------------------------------------------------------------------------------------------------.

2 – O adicional de solidariedade sobre o setor bancário tem por objetivo reforçar os mecanismos de financiamento do sistema de segurança social, como forma de compensação pela isenção de imposto sobre o valor acrescentado (IVA) aplicável à generalidade dos serviços e operações financeiras, aproximando a carga fiscal suportada pelo setor financeiro à que onera os demais setores.

 

Artigo 2.º

Incidência subjetiva

1 – São sujeitos passivos do adicional de solidariedade sobre o setor bancário:

a) As instituições de crédito com sede principal e efetiva da administração situada em território português;

   (…)

2 – Para efeitos do disposto no número anterior, consideram-se instituições de crédito, filiais e sucursais as definidas, respetivamente, nas alíneas u), w) e ll) do artigo 2.º-A do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado em anexo ao Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de dezembro.

 

Artigo 3.º

Incidência objetiva

O adicional de solidariedade sobre o setor bancário incide sobre:

a) O passivo apurado e aprovado pelos sujeitos passivos deduzido, quando aplicável, dos elementos do passivo que integram os fundos próprios, dos depósitos abrangidos pela garantia do Fundo de Garantia de Depósitos, pelo Fundo de Garantia do Crédito Agrícola Mútuo ou por um sistema de garantia de depósitos oficialmente reconhecido nos termos do artigo 4.º da Diretiva 2014/49/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de abril de 2014, relativa aos sistemas de garantia de depósitos ou considerado equivalente nos termos do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 156.º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, dentro dos limites previstos nas legislações aplicáveis, e dos depósitos na Caixa Central constituídos por caixas de crédito agrícola mútuo pertencentes ao sistema integrado do crédito agrícola mútuo, ao abrigo do artigo 72.º do Regime Jurídico do Crédito Agrícola Mútuo e das Cooperativas de Crédito Agrícola, aprovado em anexo ao Decreto-Lei n.º 24/91, de 11 de janeiro;

b) ----------------------------------------------------------------------------------------------------.

(…)

 

2.4. Relativamente às normas contidas nos artigos 1.º, n.º 2, 2.º e 3.º, n.º 1, alínea a), do Regime que cria o ASSB, contido no Anexo VI da Lei n.º 27-A/2020, de 24 de julho, o entendimento da decisão recorrida pode sintetizar-se nos seguintes pontos.

 

Quanto à violação do princípio da igualdade tributária: i) o ASSB tem por objetivo reforçar os mecanismos de financiamento do sistema de segurança social, como forma de compensação pela isenção de IVA aplicável à generalidade dos serviços e operações financeiras e incide sobre instituições de crédito sediadas em território português e filiais ou sucursais em Portugal de instituições de crédito com sede principal e efetiva fora do território português; ii) não obstante a similitude de incidência com a CSB, “[…] o ASSB não pode ser entendido como uma tributação acessória ou adicional do CSB, nem constitui uma contribuição de estabilidade financeira”; iii) a justificação apresentada não colhe, tendo em conta a natureza e efeitos da isenção de IVA nas operações financeiras; iv) não é possível “[…] determinar objetivamente o critério de diferenciação que conduziu o legislador a sujeitar as instituições de crédito a um imposto especial sobre o setor bancário, nem é possível discernir qual a sua real fundamentação”; v) não tem justificação “[…] que, simultaneamente, sejam excluídas outras categorias de atividades que se encontram igualmente isentas e que poderão revelar idêntica ou superior capacidade contributiva e desconsidera-se o caráter obrigatório de várias deduções, que a isenção simples não confere o direito à dedução do imposto a montante, e não representa, por isso, uma efetiva vantagem para o sujeito passivo, bem que essa isenção já é contrabalançada pelo imposto do selo”; assim, vi) “[…] a criação do ASSB como um imposto especial incidente sobre o setor bancário, como forma de compensar a isenção de IVA, configura-se como uma diferenciação arbitrária na medida em que o critério utilizado não apresenta um mínimo de coerência nem se encontra materialmente justificado”.

 

Quanto à violação do princípio da capacidade contributivai) não está em causa qualquer modalidade de tributação do rendimento, “[…] mas tão só a sujeição a imposto de uma parte das componentes do passivo […]”; iia ausência de correspondência entre o ASSB “[…] e um concreto índice de valoração de capacidade contributiva coloca em causa a viabilidade constitucional do imposto, na medida em que impossibilita o estabelecimento de qualquer tipo de relação causal entre o objeto da tributação que é imposto aos sujeitos passivos e um efetivo incremento de capacidade contributiva, sobretudo quando não está em causa uma contrapartida pela prevenção de riscos sistémicos em que as instituições de crédito possam estar envolvidas (como sucedia com a CSB), mas uma exclusiva medida de angariação de receita”; e, por fim, iii) não se encontra “[…] qualquer relação entre a incidência real do imposto e os fatores que possam revelar uma maior capacidade contributiva, quando é certo, como se deixou dito, que o critério de repartição do imposto, na hipótese, corresponde a uma lógica de solidariedade assente no falso pressuposto de que as instituições de crédito poderão suportar um agravamento da carga fiscal porque se encontram isentas de IVA relativamente aos serviços financeiros que prestam”.

Analisemos, pois, cada um dos referidos parâmetros, pela ordem indicada (a que foi seguida no acórdão recorrido e nas alegações), tendo presente que o recorrente (o Ministério Público) diverge da decisão recorrida quanto à violação do princípio da igualdade tributária e com ela converge quanto à violação do princípio da capacidade contributiva.

 

2.4.1. Antes de mais, deve sublinhar-se que, embora os apontados parâmetros não se confundam, encontram-se profundamente interligados – a ideia de igualdade tributária, enquanto manifestação, no âmbito tributário, do princípio da igualdade previsto no artigo 13.º da Constituição, aponta para a proibição de discriminações ou igualizações arbitrárias, sem fundamento; o princípio da capacidade contributiva, que é por si próprio um critério tendente a assegurar a igualdade tributária, exige que os factos tributários sejam suscetíveis de revelar a capacidade do sujeito passivo para suportar economicamente o tributo. Como se sintetiza no Acórdão n.º 344/2019:

 

      “[…]

A conformação legal das várias categorias de tributos está sujeita ao princípio da igualdade tributária, enquanto expressão do princípio geral da igualdade, consagrado no artigo 13.º da CRP. A igualdade na repartição dos encargos tributários obriga o legislador a não fazer discriminações ou igualizações arbitrárias, usando critérios distintivos manifestamente irracionais ou “sem fundamento material bastante” – proibição do arbítrio –, e a socorrer-se de critérios que sejam materialmente adequados à repartição das categorias tributárias que cria.

No tocante aos tributos unilaterais, o critério que se afigura constitucionalmente mais adequado é o da capacidade contributiva, pois, tratando-se de exigir que os membros de uma comunidade custeiem os respetivos encargos, a solução justa é que sejam pagos na medida da força económica de cada um; já quanto aos tributos comutativos e paracomutativos, o critério distintivo da repartição é o da equivalência, pois, tratando de remunerar uma prestação administrativa, a solução justa é que seja paga na medida dos benefícios que cada um recebe ou dos encargos que lhe imputa.

De facto, o Tribunal Constitucional, de forma reiterada e uniforme, considera que em matéria de impostos o legislador está jurídico-constitucionalmente vinculado pelo princípio da capacidade contributiva decorrente do princípio da igualdade tributária consagrado no artigo 13.º e/ou nos artigos 103.º e 104.º da CRP. Consistindo a igualdade em tratar por igual o que é essencialmente igual e diferente o que é essencialmente diferente, não é suficiente estabelecer distinções que não sejam arbitrárias ou sem fundamento material bastante; exige-se ainda que os factos tributáveis sejam reveladores de capacidade contributiva e que a distinção das pessoas ou das situações a tratar pela lei seja feita com base na capacidade contributiva dos respetivos destinatários (Acórdãos n.ºs 57/95, 497/97, 348/97, 84/2013, 142/2004, 306/2010, 695/2014, 42/2014, 590/2015, 620/2015 e 275/16).

      […]”.

 

Ou, na formulação do Acórdão n.º 268/2021 (adotada também, por remissão, no Acórdão n.º 505/2021):

“[…]

A igualdade na repartição dos encargos tributários obriga o legislador a não fazer discriminações ou igualizações arbitrárias, usando critérios distintivos manifestamente irracionais ou “sem fundamento material bastante» – proibição do arbítrio.

A conceção puramente negativa da igualdade tributária, excluindo os casos de discriminação absurda, não garante, porém, a justiça material ou a coerência interna do sistema tributário. Impõe-se a definição de critérios materialmente adequados à repartição dos diversos tributos públicos. No caso dos tributos unilaterais, o critério que se afigura constitucionalmente mais adequado é o da capacidade contributiva, na medida em que, exigindo-se aos membros de uma comunidade que custeiem os respetivos encargos, a solução justa é que sejam pagos na medida da força económica de cada um (cfr., entre muitos, o Acórdão n.º 590/2015, n.º 12).

[…]”.

 

Não se afigura, todavia, que a isenção de IVA constitua “fundamento racional e material suficiente que permite afastar o arbítrio na opção legislativa”, desde logo pelas razões que se consignaram no Acórdão n.º 149/2024, às quais aqui regressamos:

 “[…]

O estabelecimento da necessária conexão entre uma realidade e outra não é possível, desde logo, porque não há uma relação de contornos suficientemente definidos entre o regime do IVA no setor financeiro e o sistema de financiamento da Segurança Social.

Ainda que essa conexão pudesse ser estabelecida – e não se vê como –, seria impossível presumir uma qualquer prestação administrativa (ainda que presumida) que suportasse a bilateralidade do tributo.

Assim é, em primeiro lugar, porque muitas das operações financeiras não sujeitas a IVA são sujeitas a Imposto do Selo, existindo, inclusivamente, uma regra de incidência alternativa no artigo 1.º, n.º 2, do Código do Imposto do Selo. Assim, o “benefício” da isenção em sede de IVA não corresponde linearmente a uma isenção de tributação.

Em segundo lugar, e independentemente da incidência de Imposto do Selo, a “isenção de IVA aplicável à generalidade dos serviços e operações financeiras” dificilmente pode ser vista como um benefício para as entidades do setor financeiro, uma vez que, na generalidade das hipóteses contempladas, se trata de uma isenção incompleta, que, como tal, não confere direito à dedução (“[…] no caso das isenções incompletas (que limitam o direito à dedução), a despesa fiscal apenas se traduz no valor acrescentado da última operação da cadeia de valor, por contraposição às isenções completas (que conferem o direito à dedução), em que a despesa contempla todo o valor acrescentado gerado ao longo da respetiva cadeia” – cfr. o relatório do Grupo de Trabalho para o Estudo dos Benefícios Fiscais, Os Benefícios Fiscais em Portugal, 2019, disponível em https://www.portugal.gov.pt/, p. 51). Como refere Raquel Machado Lopes Moreira da Costa, Tributação indireta dos serviços e operações financeiras – a Reforma da Diretiva do IVA, disponível em https://www.isg.pt/, p. 1:

      “[…]

Atualmente assiste-se, a nível europeu, a uma grande necessidade de definição do regime de tributação indireta dos serviços financeiros, o qual tem sido objeto de diversas e sucessivas propostas de alteração, sem que se tenha alcançado uma versão verdadeiramente satisfatória para todos os interessados.

A nível nacional, estes serviços sofrem de uma “síndrome multilateral” – são objeto de Imposto sobre o Valor Acrescentado, sendo, no entanto, em grande parte, deste isentos. Esta isenção, sendo incompleta, não possibilita a dedução do IVA pago a montante. Assim, verifica-se o pagamento de imposto oculto que, acrescido ao Imposto do Selo a que é sujeito pela não tributação em sede de IVA, se revela um custo. Dado o caráter complementar que o primeiro tem face ao segundo, gera um aumento significativo dos custos para o operador económico e naturalmente do preço do serviço para o consumidor.

[…]”.

Acresce que o regime fiscal das operações financeiras é complexo e cobre um conjunto heterogéneo de atos dificilmente reconduzíveis a características comuns que permitam o reconhecimento da tal prestação presumida.

Por fim, a modelação de isenções de operações financeiras não está na total disponibilidade do legislador nacional (cfr., designadamente, os artigos 135.º e ss. da Diretiva 2006/112/CE do Conselho de 28 de novembro de 2006 relativa ao sistema comum do Imposto sobre o Valor Acrescentado).

[…]”.

 

Não se trata, assim, de um juízo que careça de verdadeira ponderação entre a razão justificativa que sustenta o tributo e as características desse mesmo tributo, porque essa razão justificativa é manifestamente carecida de sentido, assentando em ligações não verificadas. As entidades do setor financeiro não têm um benefício que justifique o imposto pela circunstância de algumas operações serem isentas de IVA. Desde logo, tratar-se de uma isenção incompleta não é algo secundário nesta análise, uma vez que, ao não ser possível a dedução do IVA suportado a montante, aquelas entidades vê-lo-ão economicamente repercutido sobre si por quem lhes vendeu bens e prestou serviços necessários à sua atividade, sem que por sua vez o possam repercutir sobre os sujeitos a quem prestam serviços e sem que possam compensar esse efeito adverso pela dedução do imposto suportado, o que ocorreria no caso de uma isenção completa. Acresce que a isenção de IVA é, como vimos, tendencialmente alternativa da sujeição a imposto do selo.

Neste contexto, pode questionar-se em que medida as instituições de crédito com sede principal e efetiva da administração situada em território português, as filiais, em Portugal, de instituições de crédito que não tenham a sua sede principal e efetiva da administração em território português e as sucursais em Portugal de instituições de crédito com sede principal e efetiva fora do território português (artigo 2.º, n.º 1, do Regime que cria o Adicional de Solidariedade sobre o Setor Bancário, contido no Anexo VI da Lei n.º 27-A/2020, de 24 de julho, que delimita a incidência subjetiva do imposto) – que já são sujeitas a IRC e à CSB – se encontram numa posição particular, face a outros sujeitos isentos de IVA (alguns com isenções completas) que torne justificada a sujeição a um segundo imposto, sem que se encontre uma resposta minimamente satisfatória, muito menos quando a justificação do legislador passa por “reforçar os mecanismos de financiamento do sistema de segurança social”, que nenhuma relação aparente tem com a isenção de IVA, que, só por si, insiste-se, também não se afiguraria justificação bastante para tributar, ou melhor, para diferenciar tributando.

Com o que terá de se concluir, com a decisão recorrida, que “[…] a criação do ASSB como um imposto especial incidente sobre o setor bancário, como forma de compensar a isenção de IVA, configura-se como uma diferenciação arbitrária na medida em que o critério utilizado não apresenta um mínimo de coerência nem se encontra materialmente justificado”.

Verifica-se, em consequência, a violação do princípio da proibição do arbítrio, enquanto exigência de igualdade tributária.

 

2.4.3. As considerações precedentes conduzem, sem dificuldade, à análise da violação do princípio da capacidade contributiva.

 (…)

Nos presentes autos, foi recusada a norma contida na alínea a) do referido artigo 3.º.

Trata-se de norma de incidência objetiva dirigida ao passivo das instituições de crédito, o que suscita algumas dificuldades de caracterização do tributo. Na verdade, ao contrário da CSB, que é uma contrapartida da prevenção de riscos sistémicos no sistema financeiro – o que torna justificada e aceitável a incidência sobre o passivo dos sujeitos passivos – o ASSB não encontra, como vimos, uma correspondência com qualquer prestação pública, ou seja, prefigura-se como um tributo puramente destinado à angariação de receita, apresentando-se como problemática a suscetibilidade de, neste contexto, o passivo, só por si, revelar a capacidade de suportar economicamente o imposto. A possível interferência com o princípio da capacidade contributiva compreende-se sem dificuldade, neste contexto, entendido tal princípio nos termos assim resumidos no Acórdão n.º 178/2023:

 “[…]

A igualdade fiscal a que apela a recorrente pode ser entendida como dimanação do princípio da igualdade quando colocado no domínio tributário, impondo por isso não apenas uma proibição absoluta de discriminação negativa (artigo 13.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa), mas também um tratamento legal-fiscal uniforme de situações substancialmente iguais e diferenciador quanto a situações dissemelhantes. Resulta assim impedido um primado universalista que se reduzisse a uma paridade de mero cunho formal entre sujeitos dotados de personalidade tributária, antes se impondo um padrão de critério que alcance uma situação de equilíbrio funcional conforme com a substancialidade assimétrica das situações reguladas (cfr. artigos 13.º e 103.º, n.º 1, parte final, da Constituição da República Portuguesa).

Afirmada assim a igualdade material em sede tributária, o princípio da capacidade contributiva a que também alude a recorrente assinala-se como limite e fundamento da tributação, constituindo-se como seu pressuposto (ou substrato) e critério (ou parâmetro): na dimensão limitativa, por aqui se postula a isenção fiscal do mínimo de subsistência e, ao mesmo passo, a proibição de máximo confiscatório; de outra parte, a constituição fiscal impõe que o imposto seja construído, no patamar infra constitucional, em consideração de indicadores efetivos de aptidão para suportar a prestação tributária, que se arvoram assim como a fonte da incidência do imposto; finalmente e enquanto princípio de parametrização da incidência, por ele se impõe que a carga económica inerente ao imposto seja regulada de modo a acompanhar as variações de poder económico, garantindo uma situação de igualdade material entre sujeitos e entre categorias de rendimentos (v., sobre o assunto, Casalta Nabais, Direito Fiscal, 2.ª ed., Almedina, 2004, pp. 148-153 e, de forma mais desenvolvida, Casalta Nabais, O Dever Fundamental de Pagar Impostos, Col. Teses, Almedina, 2004, pp. 435-524).

[…]”.

 

Não surpreende, pois, que o artigo 4.º, n.º 1, da Lei Geral Tributária preveja que os impostos “assentam essencialmente na capacidade contributiva, revelada, nos termos da lei, através do rendimento ou da sua utilização e do património”.

Como faz notar Filipe de Vasconcelos Fernandes (O (imposto) adicional de solidariedade sobre o setor bancário, Lisboa, 2020, pp. 106/109), no ASSB não está em causa, manifestamente, a tributação do rendimento, “[…] mas tão só a sujeição a imposto de uma parte das componentes do balanço (e fora dele). […] [E] uma vez que os sujeitos passivos do ASSB são igualmente sujeitos passivos de IRC, esta circunstância acaba por suscitar uma compressão do rendimento que, sob a forma de lucro, acabará sujeito a este último imposto, cenário especialmente agravado pela não dedutibilidade do encargo suportado com o pagamento do ASSB ao lucro tributável dos respetivos sujeitos passivos”, nem a tributação de atos de despesa, verificando-se, aliás, “[…] a impossibilidade de reconduzir o ASSB ao arquétipo dos impostos sobre atividades financeiras (‘financial activities taxes’) e, bem assim, dos impostos sobre transações financeiras (‘financial transaction taxes’), em qualquer uma das suas modalidades […]”, nem , por fim, a tributação do património, já que não basta para qualificar o passivo como património a sua inclusão no balanço, nem – acrescente-se – a respetiva natureza autoriza à partida essa qualificação.

Afastada a integração do passivo num dos clássicos indicadores da capacidade contributiva (neste caso apenas o rendimento e o património), a verdade é que as indicações do legislador são, pelas razões atrás explicitadas, inaproveitáveis. Não sobeja, deste modo, qualquer indicador razoável e objetivo da capacidade contributiva dos sujeitos passivos. Assinala, a este propósito, Filipe de Vasconcelos Fernandes (ob. cit., pp. 111/113):

“[…]

[Ao] mesmo tempo que o ASSB se reveste claramente da natureza de imposto, não se antevê de que forma a respetiva base de incidência objetiva – composta pelo passivo apurado e aprovado (feitas algumas deduções) e ainda pelo valor nocional dos instrumentos financeiros derivados fora do balanço – possa, em alguma medida, refletir ou permitir valorar qualquer tipo de capacidade contributiva inerente à condição dos respetivos sujeitos passivos.

Se, no caso da CSB, a tributação com base neste elemento pode admitir-se à luz da respetiva conexão ao risco sistémico bancário e, sobretudo, a uma responsabilidade pelo risco típica desta modalidade de contribuições de estabilidade financeira, no caso do ASSB não pode antever-se de que forma a consideração deste elemento pode relevar para uma hipotética responsabilidade dos respetivos sujeitos passivos ao nível do financiamento do FEFSS.

[…]

Esta circunstância, que no essencial resulta da transposição, sem as necessárias adaptações, da estrutura de incidência da CSB para a estrutura de incidência do ASSB faz com que, em relação aos sujeitos passivo deste último imposto, não exista qualquer correspondência entre o montante de imposto a pagar e a real capacidade contributiva dos respetivos sujeitos passivos, prefigurando assim um tributo de perfil anómalo e atípico, que assume inclusive contornos próximos dos antigos impostos de capitação, agora numa reformulação original enquanto ‘impostos de grupo’.

Todavia, a proliferação deste tipo de impostos especiais ou de grupo – que são uma realidade completamente distinta das contribuições financeiras onde, apesar de tudo, continua a subsistir uma expressão de bilateralidade, ainda que difusa – levanta problemas aos quais os tribunais e, em especial, o TC, não podem ficar indiferentes.

Efetivamente, com o precedente agora levantado com a criação do ASSB, está em causa a aparente possibilidade de o legislador poder replicar num novo tributo a estrutura de incidência de um outro (neste caso, a CSB) e designar aquele primeiro como adicional do segundo sem qualquer preocupação de coerência creditícia ou material entre ambos. Tal redundaria, em nosso entender, numa sobreposição dos argumentos de base creditícia aos argumentos de cariz normativo, onde naturalmente se incluem os princípios constitucionais estruturantes e os princípios fiscais constitucionais, como é o caso da capacidade contributiva.

[…]”.

Em suma, como se afirma na decisão recorrida, “[no] caso do ASSB, não se denota qualquer relação entre a incidência real do imposto e os fatores que possam revelar uma maior capacidade contributiva, quando é certo, como se deixou dito, que o critério de repartição do imposto, na hipótese, corresponde a uma lógica de solidariedade assente no falso pressuposto de que as instituições de crédito poderão suportar um agravamento da carga fiscal porque se encontram isentas de IVA relativamente aos serviços financeiros que prestam”.

 

Mostra-se, enfim, bem fundado o juízo de censura jurídico-constitucional do acórdão recorrido referido à violação do princípio da capacidade contributiva.

 […].”.

 

            Este discurso desembocou no juízo de inconstitucionalidade das “normas contidas nos artigos 1.º, n.º 2, 2.º e 3.º, n.º 1, alínea a), do Regime que cria o Adicional de Solidariedade sobre o Setor Bancário, contido no Anexo VI da Lei n.º 27-A/2020, de 24 de julho, por violação do princípio da igualdade, na dimensão de proibição do arbítrio, e por violação do princípio da capacidade contributiva, enquanto decorrência do princípio da igualdade tributária;”. Consequentemente, também aqui se adopta esse juízo.

 De resto, o entendimento de que as várias dimensões do ASSB são constitucionalmente desconformes é praticamente unânime na jurisdição arbitral[15]: cfr. decisões nos processos n.os 582/2022-T, 598/2022-T, 599/2022-T, 609/2022-T, 674/2022-T 21/2023-T, 104/2023-T, 105/2023-T, 324/2023-T, 325/2023-T, 326/2023-T, 327/2023-T, 328/2023-T, 329/2023-T, 367/2023-T, 379/2023-T, 735/2023-T, 12/2024-T, 13/2024-T, 14/2024-T, 15/2024-T, 17/2024-T, 19/2024-T, 21/2024-T, 215/2024-T, 216/2024-T, 258/2024-T, 269/2024-T, 319/2024-T, 322/2024-T, 347/2024-T, 380/2024-T, 384/2024-T, 410/2024-T, 490/2024-T, 492/2024-T, 515/2024-T, 522/2024-T, 530/2024-T, 531/2024-T, 532/2024-T, 548/2024-T, 552/2024-T, 567/2024-T, 568/2024-T, 626/2024-T, 640/2024-T, 647/2024-T, 761/2024-T,  842/2024-T, 845/2024-T e 879/2024-T.

 

IV.5. Questão de conhecimento prejudicado

 

Resultando do exposto a necessária anulação do acto de auto-liquidação por obrigação de desaplicação, por inconstitucionalidade, das normas legais de suporte, fica prejudicado, por ser inútil, o conhecimento do vício de ilegalidade que lhe foi igualmente imputada pelo Requerente (artigos 130.º e 608.º, n.º 2, do Código de Processo Civil).

 Na verdade, não apenas o artigo 124.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) – subsidiariamente aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, do RJAT – ao estabelecer uma ordem de conhecimento de vícios, pressupõe que, julgado procedente um vício que assegura a eficaz tutela dos direitos dos impugnantes, não é necessário conhecer dos restantes, como, no caso, o vício de inconstitucionalidade que o Tribunal Constitucional diagnosticou no regime do ASSB consome o eventual vício de ilegalidade que lhe foi imputado.

 

 

 

IV.6. Reembolso de quantia paga   

A Requerente pede reembolso do montante indevidamente pago.

É consequência da anulação da auto-liquidação o reembolso da quantia paga indevidamente, o que se insere no dever de plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, como previsto no artigo 100.º da LGT e no artigo 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT.

 

 

IV.7. Juros indemnizatórios

O reconhecimento do direito a juros indemnizatórios no processo arbitral resulta do disposto no artigo 24º, n.º 5, do RJAT, que estipula ser “devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na lei geral tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”. Tal direito está consagrado no artigo 43.º da LGT, tendo como pressuposto que se apure, em reclamação graciosa ou impugnação judicial – ou em arbitragem tributária – que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida em montante superior ao legalmente devido.

A Autoridade Tributária e Aduaneira pronuncia-se na sua Resposta sobre a responsabilidade por juros indemnizatórios invocando, com razão, que estava estritamente obrigada a cumprir a lei e – como fez na decisão da reclamação graciosa – obrigada a eximir-se de avaliar, do ponto de vista da conformidade constitucional, as leis que lhe incumbe fazer cumprir[16]. Em conformidade, não lhe pode ser imputado qualquer erro que justifique, nos termos do n.º 1 do artigo 43.º da LGT, o pagamento de juros. E, assim sendo, tem de se aplicar o entendimento fixado no Acórdão do Pleno do STA de 30-01-2019 – Proc. 0564/18.2BALSB que refere que

para efeitos de pagamento de juros indemnizatórios ao contribuinte, nos termos do disposto no artigo 43.º da LGT, não pode ser assacado aos serviços da AT qualquer erro que, por si, tenha determinado o pagamento de dívida tributária em montante superior ao legalmente devido, se não estava na disponibilidade da AT decidir de modo diferente daquele que decidiu por estar sujeita ao princípio da legalidade (cfr. art. 266.º, n.º 2, da CRP e art. 55.º da LGT) e não poder deixar de aplicar uma norma com fundamento em inconstitucionalidade, a menos que o TC já tenha declarado a inconstitucionalidade da mesma com força obrigatória geral (cfr. art. 281.º da CRP) ou se esteja perante violação de normas constitucionais directamente aplicáveis e vinculativas, como as que se referem a direitos, liberdades e garantias (cfr. art. 18.º, n.º 1, da CRP”.

 

Nestes termos, tem de se admitir que a estatuição que o legislador introduziu, em 2019, na nova alínea d) do n.º 3 do artigo 43.º da LGT, tem de valer para estes casos (supondo que tal transferência da responsabilidade do legislador para a AT é constitucionalmente conforme face, desde logo, à separação de poderes - artigo 111.º da Constituição). Essa nova norma determina que são também devidos juros

Em caso de decisão judicial transitada em julgado que declare ou julgue a inconstitucionalidade ou ilegalidade da norma legislativa ou regulamentar em que se fundou a liquidação da prestação tributária e que determine a respetiva devolução.”.

 

O entendimento que o STA tem feito desta norma (Acórdãos de 10 de Abril de 2024, Processo n.º 0845/17.2BELRS, e de 11 de Julho de 2024, Processo n.º 0697/14.4BELRS, esteados em decisões anteriores) é o de que “a norma em apreço exige que exista uma decisão do Tribunal Constitucional que julgue a inconstitucionalidade ou ilegalidade da norma legislativa ou regulamentar em que se fundou a liquidação da prestação tributária”, se bem que não necessariamente no caso em que se determina o pagamento de juros ao seu abrigo. Com isso, porém, cria alguma ambiguidade quanto ao momento a partir do qual são devidos os juros quando não tenha havido declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral. Ao presente tribunal afigura-se que, em tais casos, deve ser a partir do trânsito em julgado a que a norma faz referência (e, portanto, da presente decisão – ainda que esta, invocando como ratio decidendi a inconstitucionalidade da norma em que se baseou a auto-liquidação, esteja sujeita a recurso obrigatório por parte do Ministério Público [n.º 3 do artigo 72.º da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional - LOTC], e, portanto, só transite depois de um juízo desse Tribunal [17]).

 

 

            V. DECISÃO       

            De harmonia com o exposto acordam neste Tribunal Arbitral em:

  1. Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral com fundamento na inconstitucionalidade das normas que determinaram o acto de auto-liquidação do Adicional de Solidariedade sobre o Sector Bancário referente ao período de tributação de 2021, no valor global de € 5.090.269,48 (cinco milhões, noventa mil, duzentos e sessenta e nove euros e quarenta e oito cêntimos), e, em consequência, determinar a sua anulação, bem como da decisão de indeferimento da reclamação graciosa tramitada com o n.º...;
  2. Condenar a Administração Tributária a devolver à Requerente a quantia paga;
  3. Julgar procedente o pedido de pagamento de juros indemnizatórios nos termos do disposto na alínea d) do n.º 3 do artigo 43.º da LGT, ie, a partir do trânsito em julgado da presente decisão;
  4. Condenar a Requerida nas custas do processo.

 

 

VI. VALOR DO PROCESSO

 

De harmonia com o disposto nos artigos 296.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 5.090.269,48, indicado pela Requerente e sem oposição da Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

VII. CUSTAS

Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 63.954,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

VIII. Notificação ao Ministério Público

Nos termos do disposto no artigo 17.º, n.º 3, do RJAT, notifique-se o representante do Ministério Público junto do Tribunal Central Administrativo Sul, para efeito do recurso previsto no n.º 3 do artigo 72.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional.

           

Notifique.

 

Lisboa,24 de Fevereiro de 2025

 

O Árbitro presidente e relator

 

 

(Victor Calvete)

 

 

 

A Árbitra adjunta

 

(Raquel Franco)

O Árbitro adjunto

 

 

(José Luís Ferreira)

 

 

 

Declaração de voto

 

Com o devido respeito pela decisão alcançada por este coletivo, teria decidido de forma diferente a questão dos juros indemnizatórios, no que toca ao momento a partir do qual os mesmos devem ser contados.

Entendo, a esse respeito, que a decisão a partir da qual se deve iniciar a contagem dos juros indemnizatórios é aquela em que o Tribunal Constitucional declara ou julga a inconstitucionalidade da norma em que se fundou a liquidação da prestação tributária, e não a decisão, como a presente, que, por partilhar o mesmo entendimento quanto à inconstitucionalidade daquela norma, decide atribuir o direito aos juros indemnizatórios.

Julgo que deve ser esse o momento inicial da contagem de juros, ao abrigo do disposto na alínea d) do n.º 3 do artigo 43.º da LGT, por entender que é a partir dessa decisão que a AT passa a ter conhecimento de que o Tribunal Constitucional considerou inconstitucional a norma em que a AT se baseia para efetuar a liquidação do imposto em causa. Não considero que esse juízo de inconstitucionalidade deva ser totalmente desprovido de consequências; pelo contrário, considero que, a partir desse momento, existe um dever da AT de ponderar se deve, ou não, continuar a aplicar a norma em questão, liquidando impostos com base nela, e que essa ponderação deve ser feita no quadro de uma análise custo-benefício em que seja ponderado o benefício da continuação da aplicação da norma e da liquidação do tributo em consonância, contra o custo de uma eventual decisão judicial de inconstitucionalidade que determine a devolução do montante que tenha sido cobrado, bem como o pagamento de juros indemnizatórios. Em consonância com esse entendimento, parece-me que o momento a partir do qual deve ter início a contagem dos juros, em casos como este que agora se decide, deve ser o do trânsito em julgado da decisão do Tribunal Constitucional que declara ou julga a inconstitucionalidade ou ilegalidade da norma legislativa ou regulamentar em que se fundou a prestação tributária cuja devolução é determinada.

 

Lisboa, 24 de fevereiro de 2025

 

 

(Raquel Franco)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 



[1] Embora a decisão da Reclamação Graciosa tenha evitado assumir uma classificação do ASSB, referindo-se-lhe como “tributo” ou “esta espécie tributária”, a Resposta da AT tomou posição sobre a sua natureza: “Conceptualmente, o ASSB apresenta-se como um tributo que assume natureza de imposto indireto, na medida em que visa compensar a não tributação em IVA da generalidade das operações financeiras.”, lembrando que o próprio legislador o justificou com a intenção de aproximar “a carga fiscal suportada pelo setor financeiro à que onera os demais setores”. Assim, como se escreveu, mutatis mutandis, na decisão do processo n.º 434/2024-T, “Dada a posição assumida pela AT na sua Resposta, fica claro que deixou de haver dissídio entre Requerente e Requerida nesta matéria, nada havendo, portanto, para o Tribunal decidir.

 

[2] Ainda que, preventivamente, a Requerente tenha argumentado no PPA a favor da natureza de imposto do ASSB e, dada o prévio indeferimento expresso do pedido de reclamação graciosa, a favor da possibilidade de os Tribunais Arbitrais do CAAD se poderem pronunciar sobre actos de 2.º grau (artigos 7.º a 11.º e 33.º a 137.º do PPA), a AT não pôs em causa nem uma coisa, nem outra.

Também não foi posta em causa a possibilidade – na verdade: a obrigação – de o Tribunal Arbitral se pronunciar sobre as questões de constitucionalidade (e ilegalidade) suscitadas.

[3] Um ponto em que Requerente e Requerida estão de acordo: na sua Resposta, escreveu esta que

 “De acordo com o estudo que acompanhou a comunicação da Comissão Europeia sobre a tributação do setor financeiro, apresentada em 07.10.2010, cerca de dois terços dos serviços financeiros não têm IVA associado porque operam com base num sistema de margem, o que torna muito difícil aplicar-lhes o método subtrativo indireto que caracteriza esse imposto”.

 

[4] Acrescenta o Requerente que isso não seria assim se o sector bancário estivesse sujeito a taxas reduzidas ou intermédias de IVA (“aí sim, estamos perante uma redução da tributação com impacto no cliente final, sem que o vendedor dos bens ou o prestador dos serviços sofra qualquer limitação na dedução do imposto suportado a montante, o que resulta num benefício efetivo, mas, uma vez mais, materializado na esfera dos clientes finais.”) e que “é prática estabelecida no mercado bancário utilizar o mecanismo de renúncia à isenção de IVA em todas as operações em que tal seja legalmente possível, vg. em determinadas operações inerentes ao leasing imobiliário, de forma a tornar os financiamentos mais competitivos.”.

 

[5] Em abono, o Requerente sublinha que a própria “Unidade Técnica de Apoio Orçamental (“UTAO”) no seu Relatório de Apreciação à Proposta de Orçamento Suplementar […] denotou expressamente que “não se entende a necessidade de justificar publicamente a criação do imposto como sendo uma compensação por o setor das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras estar isento de IVA nas transmissões efetuadas” uma vez que “em abono do rigor, deveria também dizer-se que as operações deste setor são tributadas por uma miríade de taxas do Imposto do Selo”.”.

[6] Recordando a AT que “o “IVA social” foi inicialmente introduzido pela Lei n.º 39-B/94, de 27 de dezembro, que aprovou o Orçamento de Estado para 1995, cujo n.º 8 do artigo 32.º estabelecia que era

“(…) consignada à segurança social a receita fiscal obtida com o aumento de 1% da taxa normal do IVA”.”.

[7] Refere a AT que “Por exemplo, na Austrália, 10% das receitas de IVA provêm de serviços financeiros, no Canadá essa percentagem corresponde a 6,5%, e no México a 7%.”. Valores que estariam em linha com a parcela de rendimento imputável ao sector financeiro já que, em Portugal, “Segundo dados estatísticos da PORDATA, a riqueza produzida pelo setor financeiro e de seguros nos anos de 2021 e 2022 correspondeu, respetivamente, a 9,4% e 10,2% do total do valor acrescentado bruto de todos os setores da atividade económica nacional”.

 

[8] Incluindo no acesso a financiamento no mercado interbancário, graças à “bastante ampla” isenção prevista na alínea e) do n.º 1 do artigo 7.º do Código do IS.

 

[9] Uma opinião endossada por uma citação de Sérgio Vasques, O Imposto sobre o Valor Acrescentado, Almedina, Coimbra, 2015, p. 307: “Cada vez que se dispensam do pagamento do imposto bens ou serviços determinados, logo se introduz uma discriminação entre os contribuintes e uma distorção no curso normal da oferta e da procura, encaminhando produtores e consumidores no sentido dos bens agraciados com isenção em detrimento dos demais”.

[10] A Resposta da AT cita aqui o Acórdão n.º 348/97, de 29 de Abril de 1997.

 

[11] A Resposta da AT cita aqui o Acórdão n.º 100/2022, de 3 de Fevereiro de 2022:

(…) Neste domínio e levando em conta a complexidade de interesses jurídicos sinalizados, o legislador ordinário beneficia de larga margem na adoção de soluções de política legislativa e não cabe aos órgãos jurisdicionais de fiscalização constitucional sindicar opções ou impor alternativas que melhor promovessem o princípio da igualdade ou, bem assim, outros valores coevos à Constituição fiscal, mas antes localizar os espaços onde se romperam limites e se perdeu a conexão com esses princípios e valores, seja o caso da capacidade contributiva enquanto fundamento e critério de parametrização do sistema tributário (v., sobre o assunto, acórdão do Tribunal Constitucional n.º 197/2013). Apenas aí será possível escorar juízo de inconstitucionalidade (…)”. (destaques nossos)”.

[12] Sobre este ponto, é relevante a última parte da passagem transcrita do voto de vencido referido na alínea anterior, com os destaques da AT:

“16.Entendo, por fim, que a liquidação impugnada não viola o princípio da não consignação, na medida em o caso presente subsume-se na exceção consentida pelo art. 16.º, n.º 2, al. c) e n.º 3, da Lei n.º 151/2015; nem viola, tão pouco, o princípio da especificação orçamental, porquanto o ASSB foi aprovado no seio de um orçamento de Estado retificativo, com o cumprimento de todas as exigências indicadas por esse princípio orçamental.»””

 

[13] Destaques no original.

[14] O acórdão do TC indica 21 de Março como data da decisão do CAAD que deu origem ao recurso de constitucionalidade, o que – em combinação com os extractos que dela transcreve – permite identificar aquela: a decisão do processo n.º 598/2022-T.  

[15] A única excepção é a decisão (singular) no processo n.º 3/2024-T.

[16] Invocando Vieira de Andrade, Direito Constitucional, Almedina, Coimbra, 1977, p. 270:

“Por um lado, a Administração não é um órgão de fiscalização da constitucionalidade; por outro lado, a submissão da Administração à lei não visa apenas a protecção dos direitos dos particulares, mas também a defesa e prossecução de interesses públicos. A concessão ao poder administrativo de ilimitados poderes para controlo da inconstitucionalidade das leis a aplicar levaria a uma anarquia administrativa, inverteria a relação Lei-Administração e atentaria frontalmente contra o princípio da divisão dos poderes, tal como está consagrado na nossa Constituição”,

e João Caupers, Os Direitos Fundamentais dos Trabalhadores e a Constituição, Almedina, 1985, p. 157:

“a Administração não tem, em princípio, competência para decidir a não aplicação de normas cuja constitucionalidade lhe ofereça dúvidas, contrariamente aos tribunais, a quem incumbe a fiscalização difusa e concreta da conformidade constitucional, demonstram-no as diferenças entre os artigos 207° [hoje, 204.°] e 266°, n° 2, da Constituição. Enquanto o primeiro impede os tribunais de aplicar normas inconstitucionais, o segundo estipula a subordinação dos órgãos e agentes administrativos à Constituição e à lei. Afígura-se claro que a diferença essencial entre os dois preceitos decorre exactamente da circunstância de se não ter pretendido cometer à Administração a tarefa da fiscalização da constitucionalidade das leis.”.

[17] Em princípio: a eventual excepção lícita decorre do n.º 4 do artigo 72.º da LOTC, “O Ministério Público pode abster-se de interpor recurso de decisões conformes com a orientação que se encontre já estabelecida, a respeito da questão em causa, em jurisprudência constante do Tribunal Constitucional.”. A excepção ilícita decorreria de o Ministério Público incumprir o seu dever legal, ou cumpri-lo de forma tão defeituosa que originasse a sua inadmissão. Só nesse(s) caso(s) pode haver um juízo jurisdicional de inconstitucionalidade de normas legais (não declaradas inconstitucionais entretanto) sem intervenção do Tribunal Constitucional.