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SUMÁRIO:
I - A norma transitória do artigo 21.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 27-A/2020, de 24 de julho, é inconstitucional, na parte em que se refere ao cálculo do imposto relativo ao primeiro semestre de 2020, por violação do princípio da proibição da retroatividade dos impostos, consagrado no artigo 103.º, n.º 3, da Constituição.
II - As normas conjugadas dos artigos 1.º, n.º 2, 2.º e 3.º, n.º 1, alínea a), Lei n.º 27-A/2020, de 24 de julho, são inconstitucionais, por violação do princípio da igualdade, na dimensão da proibição do arbítrio, e por violação do princípio da capacidade contributiva, enquanto decorrência do princípio da igualdade tributária.
Acórdão Arbitral
Os árbitros, Juiz Conselheiro Jorge Lopes de Sousa (árbitro presidente), Prof. Doutora Maria do Rosário Anjos e Dr. Pedro Miguel Bastos Rosado (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, acordam no seguinte:
I - RELATÓRIO
O A..., S.A., com o número único de pessoa coletiva..., com sede na ..., n.º ..., ..., ..., ... ... Lisboa (doravante “Requerente”), tendo sido notificada das decisões de indeferimento dos pedidos de revisão oficiosa e de reclamação graciosa deduzidos contra os atos tributários de autoliquidação do Adicional de Solidariedade sobre o Setor Bancário (“ASSB”), relativos aos períodos de tributação de 2020 e 2021, e de 2022 e 2023, apresentou, nos termos do disposto nos artigos 95.º, n.º 1 e 2 da Lei Geral Tributária («LGT»), e ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e dos artigos 10.º e seguintes do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, pedido arbitral para impugnação dos referidos indeferimentos e dos atos tributários de autoliquidação do ASSB subjacentes.
O pedido de constituição do tribunal arbitral, apresentado em 31-08-2024, foi aceite pelo Presidente do CAAD e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira nos termos regulamentares.
Em 21-10-2024, o Conselho Deontológico designou os árbitros do Tribunal Arbitral Coletivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável, e notificou as partes dessa designação. O Tribunal Arbitral Coletivo ficou regularmente constituído em 11-11-2024 e na mesma data foi proferido despacho arbitral a notificar a Requerida para responder.
Em 10-12-2024, a AT juntou aos autos o respetivo processo administrativo e apresentou a sua Resposta, em defesa da legalidade dos atos impugnados, concluindo pela improcedência do pedido arbitral, pela legalidade e manutenção dos mesmos na ordem jurídica. Na resposta alega que a impugnação não é o meio próprio para a pretensão da Requerente, uma vez que as decisões em causa são de indeferimento liminar e invocou a exceção de inimpugnabilidade dos atos de autoliquidação em causa.
Em 11-12-2024 foi proferido despacho arbitral no qual o Tribunal decide dispensar a realização da reunião prevista no artigo 18º do RJAT, com os fundamentos que constam do despacho e se dão por reproduzidos, e notificada a Requerente para responder às exceções. Em 06-01-2025 esta juntou aos autos a sua resposta às exceções.
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O Requerente fundamenta o seu pedido, sumariamente, nos termos seguintes:
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As normas que preveem a cobrança do ASSB violam a Constituição da República Portuguesa (CRP) porquanto os termos da Proposta de Lei n.º 33/XIV, diploma onde o Governo apresentou à Assembleia da República a proposta de alteração à Lei do Orçamento do Estado para 2020 indica-se que a receita do ASSB será “(…) adstrita a contribuir para suportar os custos da resposta pública à atual crise, através da sua consignação ao Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social”. Foi neste contexto que foi aprovada a Lei n.º 27-A/2020, de 24 de julho, que veio introduzir alterações à Lei do Orçamento de Estado para 2020, criando, através do seu artigo 18.º, o ASSB, cujo regime se encontra exposto no Anexo VI daquela Lei. Nos termos do n.º 2 do artigo 1.º do regime jurídico do ASSB, este adicional tem como objetivo reforçar os mecanismos de financiamento do sistema de segurança social onerando especificamente o setor bancário, na alegada tentativa de compensar “(…) pela isenção de imposto sobre o valor acrescentado (IVA) aplicável à generalidade dos serviços e operações financeiras, aproximando a carga fiscal suportada pelo setor financeiro à que onera os demais setores (…)».
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Alega que o artigo 2.º do regime jurídico do ASSB, são sujeitos passivos daquele adicional “a) [a]s instituições de crédito com sede principal e efetiva da administração situada em território português”, e que a base tributável do ASSB corresponde “[ao] passivo apurado e aprovado dos sujeitos passivos, deduzido dos elementos do passivo que integram os fundos próprios, dos depósitos abrangidos pela garantia do Fundo de Garantia de Depósitos, pelo Fundo de Garantia do Crédito Agrícola Mútuo ou por um sistema de garantia de depósitos oficialmente reconhecido nos termos do artigo 4.º da Diretiva 2014/49/UE do Parlamento Europeu e do Conselho” e ainda sobre “[o] valor nocional dos instrumentos financeiros derivados fora do balanço apurado pelos sujeitos passivos” (veja-se, a este respeito, o disposto no artigo 3.º do regime jurídico do ASSB). Alega, ainda, que o Anexo VI da Lei n.º 27-A/2020 define ainda as taxas aplicáveis àquele tributo, e os procedimentos de liquidação e cobrança, cuja periodicidade é anual. Por forma a prosseguir o objetivo de reforço dos mecanismos de financiamento do sistema de segurança social referido supra, a receita do ASSB é integralmente consignada ao Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social (em diante “FEFSS”), tal como se encontra previsto no artigo 9.º do Anexo VI da Lei n.º 27-A/2020, de 24 de julho.
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Concretamente, no que releva para o pedido o Requerente invoca a norma transitória de que dispunha o n.º 1 do artigo 21.º da Lei n.º 27-A/2020, de 24 de julho, a qual estabelece regras para as liquidações relativas aos anos de 2020 e 2021 que se afiguram inconstitucionais por violação do princípio da não retroatividade
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Alega, ainda, que as normas do regime do ASSB são violadoras do princípio da igualdade quer seja qualificado como uma contribuição, quer seja qualificado como imposto, porquanto viola o princípio legal e constitucional da igualdade na vertente da capacidade contributiva, uma vez que a base de incidência objetiva do ASSB não se coaduna com as exigências constitucionais de adequação à capacidade contributiva dos sujeitos passivos pelo que todas as autoliquidações se encontram feridas de inconstitucionalidade.
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Conclui que o ASSB é inconstitucional por violação da proibição da retroatividade da lei fiscal, do princípio da igualdade, do princípio da capacidade contributiva, da proibição do arbítrio e, bem assim, do princípio da proporcionalidade legislativa, pela procedência da ação e formula o seguinte pedido:
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Que seja declarada a ilegalidade e consequente anulação do ato tributário de liquidação do ASSB no montante de € 13.104,41, do ano de 2020 e no montante de € 15.073,07, do ano de 2021;
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Que seja declarada a ilegalidade e consequente anulação do ato tributário de liquidação do ASSB no montante de € 17.157,72, do ano de 2022 e no montante de € 28.720,99, do ano de 2023;
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Que seja determinada, em consequência, a restituição em favor do Requerente, do montante de € 74.056,19, a título de ASSB indevidamente suportada, acrescido de juros indemnizatórios.
Quanto à posição da Requerida, em síntese, invoca que o meio processual utilizado não é o adequado uma vez que o indeferimento liminar é um ato administrativo em matéria tributária apenas impugnável pela via da ação administrativa e não por impugnação tributária. Adicionalmente, invoca ainda a exceção de inimpugnabilidade dos atos tributários em causa, porquanto as autoliquidações que pretende anular não foram precedidas de reclamação graciosa, obrigatória nos termos do artigo 131º do CPPT.
Por último, no que se refere ao mérito da causa, entende que não ocorre qualquer violação da Constituição da República. Considera a AT que a incidência do ASSB sobre o setor financeiro, foi introduzida no sistema fiscal português com o intuito de compensar a isenção de IVA de que este atualmente aproveita, permitindo enquadrá-lo no contexto das atuais dinâmicas políticas e legislativas no sentido de reforçar a tributação indireta do setor bancário. Acresce que, como já antes foi assinalado, a tributação indireta que em Portugal incide sobre o setor financeiro, através do Imposto do Selo, deixa de fora elementos relevantes da atividade das instituições de crédito, como as transações financeiras, sendo que as operações de financiamento das instituições de crédito no mercado interbancário estão também isentas do Imposto do Selo, nos termos da alínea e) do n.º 1 do artigo 7.º do CIS.
Quanto à alegada violação do princípio da capacidade contributiva, a AT contrapõe que o ASSB se enquadra na tipologia de imposto sobre atividades financeiras, assumindo assim a natureza de imposto indireto, sendo que a argumentação da Requerente não pode proceder. O ASSB tem como objetivo constituir um sucedâneo do IVA no setor financeiro, logo, a sua incidência dar-se-á sobre uma “manifestação mediata” de capacidade contributiva, que revela, indiretamente, a capacidade contributiva no estádio do consumo final. Alega, ainda, que o ASSB tem como objetivo compensar uma vantagem aferida em termos de carga fiscal global incidente sobre o setor das instituições de crédito associada à aplicação da isenção de IVA sobre um conjunto vasto de operações financeiras, que, como se viu, também são em, em certos casos, desoneradas do imposto do selo. E, também por esta razão, entende não se verificar violação do princípio da igualdade. Quanto à questão da retroatividade, a AT entende que deve improceder esta alegação, porquanto a base de incidência do ASSB para o primeiro semestre de 2020, coincide com o passivo apurado e aprovado pelos sujeitos passivos deduzido, quando aplicável, dos elementos do passivo que integram os fundos próprios. Assim, o que releva na formação do facto tributário sujeito a ASSB é o momento do apuramento e aprovação das contas. Entende que a formação do facto tributário no ASSB só se verifica com o apuramento e aprovação das contas, confirma-o o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 19-06-2019, proferido no Processo n.º 02340/13/0BELRS (0683/17), que embora tenha como objeto a Contribuição sobre o Setor Bancário, é inteiramente transponível para o ASSB. Sendo assim conclui que, quando entrou em vigor o regime do ASSB, ainda não tinha ocorrido facto que determina o pagamento do imposto. Pelo que não se verifica a violação do princípio proibição da retroatividade da lei fiscal, nem do princípio da proteção da confiança, não se podendo assacar ao ato impugnado o vício de inconstitucionalidade do ASSB.
Em suma, do ponto de vista da Requerida, não só não houve qualquer arbitrariedade na criação do ASSB, como a sua configuração permite atingir adequadamente as formas de expressão da capacidade contributiva que se propõe. Pugna pela legalidade dos atos impugnados e pela sua manutenção na ordem jurídica.
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Posto isto, considerando a formulação da causa de pedir e do pedido apresentados pela Requerente, e as questões suscitadas pela Requerida na sua resposta, as questões fundamentais a decidir pelo Tribunal arbitral são as seguintes:
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Das exceções alegadas pela Requerida, a saber: (1) do indeferimento liminar do pedido e inadequação do meio processual e incompetência do Tribunal arbitral; (2) da inimpugnabilidade dos atos de autoliquidação;
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Da natureza jurídica do ASSB e alegada inconstitucionalidade.
II- SANEADOR
O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente face ao disposto no artigo 2.º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
O processo não enferma de nulidades e não foram invocadas exceções.
Cumpre decidir.
III- DECISÃO E FUNDAMENTOS
§1- Decisão da Matéria de facto
§1.1 Factos Provados
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Com relevo para a decisão da causa, consideram-se provados os seguintes factos:
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O Requerente A..., SA é um sujeito passivo de IRC constituído em agosto de 2015 que, enquanto instituição de crédito, tem por objeto social o exercício da atividade bancária, incluindo a obtenção de recursos de terceiros, sob a forma de depósitos ou outros, os quais aplica, juntamente com os seus recursos próprios, em diversos sectores da economia, nomeadamente na concessão de crédito a clientes ou títulos de dívida, prestando adicionalmente outros serviços bancários.
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No cumprimento das suas obrigações declarativas, a 15 de dezembro de 2020, o Requerente procedeu à entrega da sua declaração sobre o ASSB, conforme “Declaração Modelo 57”, relativa ao Adicional de Solidariedade sobre o Sector Bancário – do ano de 2020, cujo total liquidado ascendeu a € 13.104,41, facto que resulta provado pelo documento n.º 1 junto em anexo ao pedido arbitral.
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No ano seguinte, a 14 de dezembro de 2021, o A... submeteu a Declaração Modelo 57 do ano de 2021, tendo liquidado o montante total de € 15.073,07, facto que resulta provado pelo documento n.º 2 junto em anexo ao pedido arbitral.
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A 28 de junho de 2022, o Requerente procedeu à entrega Declaração Modelo 57 do ano de 2022, cujo total liquidado ascendeu a € 17.157.72, facto que resulta provado pelo documento n.º 3 junto em anexo ao pedido arbitral.
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A 29 de junho de 2023, o A... submeteu a Declaração Modelo 57 do ano de 2023, tendo liquidado o montante total de € 28.720,99, facto que resulta provado pelo documento n.º 4 junto em anexo ao pedido arbitral.
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Assim, considerando cada um dos anos mencionados e respetivos montantes de ASSB, o Requerente suportou um valor global de € 74.056,19 (em 2020 o valor de € 13.104,41; em 2021 o valor de € 15.073,07: em 2022 o valor de € 17.157,72 e em 2023 o valor de € 28.720,99).
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O Requerente deduziu, a 14 de março de 2024, pedido de revisão oficiosa e pedido de reclamação graciosa sobre a autoliquidação da Contribuição sobre o Setor Bancário (“CSB”) e do ASSB referente, respetivamente, aos períodos de tributação de 2020 e 2021, e 2022 e 2023, factos que resultam provados pelos documentos n.ºs 5 e 6 junto em anexo ao pedido arbitral.
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O Requerente foi notificado dos projetos de decisão de indeferimento de ambos os procedimentos administrativos, sendo que não exerceu o direito de audição.
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Em 4-06-2024 o Requerente foi notificado das decisões finais de indeferimento do pedido de revisão oficiosa e de reclamação graciosa, factos que resultam provados pelos documentos n.ºs 7 e 8 juntos em anexo ao pedido arbitral.
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Em 30-08-2024, a Requerente apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral para impugnação dos atos tributários de indeferimento e das autoliquidações subjacentes.
§1.2 Factos não Provados
Não existem quaisquer factos não provados relevantes para a decisão da causa.
§1.3 Fundamentação da Decisão de Facto
A fundamentação da decisão sobre a matéria de facto assenta na prova documental junta aos autos pelas partes, as quais, aliás, não revelam qualquer divergência quanto aos factos, pacificamente reconhecidos por ambas. Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram selecionados e conformados em função da sua relevância jurídica, determinada com base nas posições assumidas pelas partes e nas várias soluções plausíveis das questões de direito para o objeto do litígio, conforme decorre do artigo 596.º, n.º 1 do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.
O Tribunal formou a sua convicção, quanto à factualidade dada como provada, com base nos documentos juntos ao Pedido e no processo administrativo junto pela Autoridade tributária com a Resposta. Ao Tribunal Arbitral incumbe o dever de selecionar os factos que interessam à decisão da causa e discriminar os factos provados e não provados, não existindo um dever de pronúncia quanto a todos os elementos da matéria de facto alegados pelas partes, tal como decorre da aplicação conjugada do artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e do artigo 607.º, n.º 3, do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.
Os factos dados como provados e não provados resultaram da análise da prova produzida no presente processo, designadamente da prova documental junta aos autos pela Requerente e do processo administrativo junto aos autos pela Requerida, que foram apreciados pelo Tribunal Arbitral conforme decorre do artigo 16.º, alínea e), do RJAT, e do artigo 607.º, n.ºs 4 e 5, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.
§2. Decisão da matéria de Direito: questões a decidir
Nos presentes autos está em causa o regime jurídico do adicional de solidariedade sobre o setor bancário (ASSB), criado pelo artigo 18.º da Lei n.º 27-A/ 2020, de 29 de julho, que altera a Lei do Orçamento do Estado para 2020 (Lei n.º 2/2020, de 31 de março) e cujo regime jurídico consta do Anexo VI a essa Lei. Considerando as questões a decidir, tal como resultam da causa de pedir e do pedido, constata-se que a Requerente fundamenta o seu pedido em violação de princípios consagrados em normas constitucionais. Cabe ao Tribunal conduzir o percurso lógico subjacente à decisão do litígio, apreciando os vícios pela ordem indicada no pedido, após conhecer das exceções invocadas que possam obstar ao conhecimento do mérito. Há que atender, assim, ao disposto nos artigos 124º do CPPT e 678º do Código de Processo Civil (CPC). aplicáveis ex vi artigo 29º nº 1 do RJAT.
Assim, dispõe o artigo 124º do CPPT:
Artigo 124.º
Ordem de conhecimento dos vícios na sentença
1 - Na sentença, o tribunal apreciará prioritariamente os vícios que conduzam à declaração de inexistência ou nulidade do ato impugnado e, depois, os vícios arguidos que conduzam à sua anulação.
2 - Nos referidos grupos a apreciação dos vícios é feita pela ordem seguinte:
a) No primeiro grupo, o dos vícios cuja procedência determine, segundo o prudente critério do julgador, mais estável ou eficaz tutela dos interesses ofendidos;
b) No segundo grupo, a indicada pelo impugnante, sempre que este estabeleça entre eles uma relação de subsidiariedade e não sejam arguidos outros vícios pelo Ministério Público ou, nos demais casos, a fixada na alínea anterior.
Por sua vez dispõe o artigo 608º do CPC:
«Artigo 608.º
Questões a resolver – Ordem do julgamento
1 – Sem prejuízo do disposto no n.º 3 do artigo 278.º, a sentença conhece, em primeiro lugar, das questões processuais que possam determinar a absolvição da instância, segundo a ordem imposta pela sua precedência lógica.
2 – O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.
Posto isto, retornando ao caso concreto, a Requerida invocou duas exceções que se assumem como questões prejudiciais, pelo que se impõe o seu tratamento prévio.
§2.1. Das exceções invocadas pela Requerida:
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Do indeferimento liminar do Pedido de Revisão oficiosa, da inadequação do meio processual e consequente incompetência do Tribunal Arbitral
Alega a Requerida que o pedido de revisão oficiosa foi alvo de decisão de indeferimento liminar, pelo que, na verdade não tomou conhecimento da ilegalidade das autoliquidações. Sendo assim, entende que o meio processual utilizado não é o adequado, porquanto os despachos de indeferimento liminar não são impugnáveis via impugnação tributária, antes configuram atos administrativos em matéria tributária, que apenas podem ser postas em causa pela via da ação administrativa. Invoca a favor deste entendimento alguma doutrina, nomeadamente a anotação ao artigo 131º do CPPT pelo Sr. Conselheiro Jorge Lopes de Sousa, aqui árbitro presidente.
Ora, não assiste razão à Requerida nesta alegação, resultando que extrai da suprarreferida anotação uma conclusão indevida quando aplicada ao caso dos presentes autos. Isto porque, ao contrário do que alega, a decisão de indeferimento liminar convoca como fundamento a não verificação dos pressupostos ou requisitos legais para fazer operar a revisão, e ao fazer este percurso não há dúvida que, efetivamente, conhece dos pressupostos de direito e de facto dos quais depende o deferimento ou indeferimento do pedido. Dito de outro modo, basta analisar a fundamentação do indeferimento liminar para concluir que este não ocorre por ineptidão do articulado ou por qualquer outro fundamento suscetível de gerar um indeferimento liminar, tanto mais que, se assim fosse, sempre devia ter sido dada a oportunidade do Requerente corrigir os erros, lapsos ou incongruências do pedido. O que verdadeiramente sucedeu no caso dos autos foi que a Requerida conheceu dos pressupostos de facto e de direito de que depende a requerida revisão, mas optou por designar este indeferimento por «indeferimento liminar» quiçá com a intenção de vedar o acesso do Requerente à via impugnatória junto dos tribunais tributários, incluindo o arbitral, para o conhecimento da legalidade ou ilegalidade do tributo em causa.
Nesta matéria, de resto e sem mais delongas, este Tribunal segue a jurisprudência do STA, firme e unânime, que desde 2020 entende que «a Impugnação Judicial é o meio processual adequado quando se pretende discutir a legalidade da liquidação, ainda que seja interposta na sequência do indeferimento do meio gracioso e independentemente dos fundamentos (formais ou de mérito) que a sustentem, desde que na Impugnação Judicial essa ampla pretensão seja requerida, ou seja, desde que tal pedido seja formulado ao Tribunal» [1]
Acresce que, como bem resulta do entendimento jurisprudencial invocado, outro entendimento resultaria na violação do princípio da tutela jurisdicional efetiva, porquanto seria uma via de impedir o contribuinte de atacar os atos tributários que lhe são desfavoráveis.
Sem necessidade de mais fundamentação, nos termos que vem expostos, improcede a exceção da inadequação do meio processual que resultaria na incompetência do Tribunal arbitral.
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Da inimpugnabilidade das autoliquidações em causa nos autos
Passando agora à segunda exceção invocada, também nesta matéria tem de improceder a alegação da AT. O argumento alegado em defesa desta exceção assenta no disposto no artigo 131º do CPPT, na medida em que este faz depender a impugnação das autoliquidações de imposto sem prévia impugnação administrativa. Ora, uma breve análise deste dispositivo legal permite concluir sem dificuldade que tal óbice existe apenas quando a autoliquidação esteja inquinada de erro resultante do desconhecimento ou erro do próprio sujeito passivo relativamente aos termos corretos em que devia ter apresentado tal autoliquidação. Tanto assim é que o mesmo dispositivo legal, no seu nº 3é claro quando determina que:
«Nº3 Quando estiver exclusivamente em causa matéria de direito e a autoliquidação tiver sido efetuada de acordo com orientações genéricas emitidas pela administração tributária não há lugar à reclamação prevista no nº1.»
Posto isto, atendendo à factualidade dos autos, não subsiste dúvida sobre a natureza das autoliquidações em causa: trata-se de autoliquidações efetuadas em conformidade com instruções genéricas da AT, às quais o sujeito passivo está obrigado sob pena de incumprir as suas obrigações declarativas, sujeitando-se às consequências daí resultantes. Por outro lado, uma instituição bancária não pode deixar de cumprir com estas obrigações sob pena de pôr em risco a sua própria atividade. Dito de outro modo, no caso dos autos a Requerente não estava obrigada a reclamação graciosa prévia. Efetivamente, é unânime a jurisprudência do Tribunal Central Administrativo sobre a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD para apreciar a legalidade de atos de autoliquidação na sequência da apresentação de pedidos de revisão oficiosa.[2] A não inconstitucionalidade desta interpretação foi já afirmada pelo TC: Acórdão n.º 244/18, de 11-05-2018, processo n.º 636/17.
A competência dos Tribunais arbitrais para se pronunciarem sobre o indeferimento de pedido de revisão de autoliquidação, sem prévia apresentação de reclamação graciosa, há muito está esclarecida por jurisprudência dos nossos tribunais superiores. A este propósito, vide, decisão contida no Acórdão do Tribunal Administrativo de 26-05-2022, no processo nº 96/17.6BCLSB:
«O que cumpre aqui aferir é se estão ou não abrangidas, na competência material dos tribunais arbitrais tributários, as situações de reação a indeferimento de pedido de revisão de autoliquidação, em relação à qual não foi apresentada reclamação graciosa.
Adiantemos, desde já, que a resposta é afirmativa, como, aliás, tem vindo a ser decidido por este TCAS – v. os acórdãos de 11.03.2021 (Processo: 7608/14.5BCLSB), de 13.12.2019 (Processo: 111/18.6BCLSB), de 11.07.2019 (Processo: 147/17.4BCLSB), de 25.06.2019 (Processo: 44/18.6BCLSB) e de 27.04.2017 (Processo: 08599/15).
Desde logo, o art.º 2.º do RJAT não exclui casos como o dos autos, devendo considerar-se que são abrangidas as situações em que a liquidação seja o objeto imediato ou mediato da impugnação arbitral. Portanto, por esta via, não há que restringir o alcance desta norma de competência.
Por outro lado, a exclusão constante da al. a) do seu art.º 2.º da Portaria de vinculação não tem o alcance que lhe é dado pela Impugnante, porquanto visa salvaguardar as situações em que o legislador consagrou a reclamação administrativa necessária prévia – sendo certo que a nossa jurisprudência admite a possibilidade de se formularem pedidos de revisão de autoliquidações, ao abrigo do art.º 78.º da LGT, ainda que não tenha sido apresentada reclamação graciosa [cfr., v.g., o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 29.05.2012 (Processo: 0140/13)].
A este respeito, chama-se à colação o já citado Acórdão deste TCAS, de 27.04.2017 (Processo: 08599/15):
““(…) No caso em apreço, é pedida a anulação do acto de autoliquidação de IRC respeitante ao exercício de 2010, bem como a anulação do acto de indeferimento dos pedidos de revisão oficiosa.
(…) [N]este art. 2.º [do RJAT] não se faz qualquer referência expressa a estes actos, ao contrário do que sucede com a autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT (…).
No entanto, a fórmula «declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta», utilizada na alínea a) do n.º 1 do art. 2.º do RJAT não restringe, numa mera interpretação declarativa, o âmbito da jurisdição arbitral aos casos em que é impugnado directamente um acto de um daqueles tipos. Na verdade, a ilegalidade de actos de liquidação pode ser declarada jurisdicionalmente como corolário da ilegalidade de um acto de segundo grau, que confirme um acto de liquidação, incorporando a sua ilegalidade.
A inclusão nas competências dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD dos casos em que a declaração de ilegalidade dos actos aí indicados é efectuada através da declaração de ilegalidade de actos de segundo grau, que são o objecto imediato da pretensão impugnatória, resulta com segurança da referência que naquela norma é feita aos actos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta, que expressamente se referem como incluídos entre as competências dos tribunais arbitrais. Com efeito, relativamente a estes actos é imposta, como regra, a reclamação graciosa necessária, nos arts. 131.º a 133.º do CPPT, pelo que, nestes casos, o objecto imediato do processo impugnatório é, em regra, o acto de segundo grau que aprecia a legalidade do acto de liquidação, acto aquele que, se o confirma, tem de ser anulado para se obter a declaração de ilegalidade do acto de liquidação. A referência que na alínea a) do n.º 1 do art. 10.º do RJAT se faz ao n.º 2 do art. 102.º do CPPT, em que se prevê a impugnação de actos de indeferimento de reclamações graciosas, desfaz quaisquer dúvidas de que se abrangem nas competências dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD os casos em que a declaração de ilegalidade dos actos referidos na alínea a) daquele art. 2.º do RJAT tem de ser obtida na sequência da declaração da ilegalidade de actos de segundo grau.
Aliás, foi precisamente neste sentido que o Governo, na Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, interpretou estas competências dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, ao afastar do âmbito dessas competências as «pretensões relativas à declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário», o que tem como alcance restringir a sua vinculação os casos em que esse recurso à via administrativa foi utilizado.
Obtida a conclusão de que a fórmula utilizada na alínea a) do n.º 1 do art. 2.º do RJAT não exclui os casos em que a declaração de ilegalidade resulta da ilegalidade de um acto de segundo grau (…)»
Seguindo, ainda, o mesmo Acórdão releva para ajuizar a questão da obrigatoriedade de precedência de reclamação graciosa no caso de autoliquidações, o seguinte:
«A referência expressa ao artigo 131.º do CPPT que se faz no artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011 não pode ter o alcance decisivo de afastar a possibilidade de apreciação de pedidos de ilegalidade de actos de indeferimento de pedidos de revisão oficiosa de actos de autoliquidação.
Na verdade, a interpretação exclusivamente baseada no teor literal que defende a Autoridade Tributária e Aduaneira no presente processo não pode ser aceite, pois na interpretação das normas fiscais são observadas as regras e princípios gerais de interpretação e aplicação das leis (artigo 11.º, n.º 1, da LGT) e o artigo 9.º n.º 1, proíbe expressamente as interpretações exclusivamente baseadas no teor literal das normas ao estatuir que «a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, devendo, antes, «reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada».
Acresce que o argumento de inexistir erro imputável à AT e, por via disso, ser aplicável o prazo previsto no artigo 78º, nº1 e não o prazo mais alargado previsto no nº 4 do mesmo normativo legal, também não colhe. A Jurisprudência tem vindo a considerar que para a questão se subsumir no “erro imputável aos serviços”, constante no artigo 78.º, nº 1, da LGT importa, desde logo, que o contribuinte não tenha contribuído, por qualquer forma, para a emissão do ato de liquidação, ou seja, não pode existir uma conduta, seja ela ativa ou omissiva, que tenha determinado a emissão do ato de liquidação, nos moldes em que o foi.[3]
Neste sentido, há erro imputável aos serviços quando estes intervêm com qualquer ação determinante para a liquidação do imposto, incluindo tarefas de interpretação e aplicação de normas legais, omissão ou emissão de instruções genéricas impondo aos sujeitos passivos determinada ação (autoliquidação) não conforme com a lei ou com a Constituição. Como bem sabemos, na maioria dos casos, a conclusão do tribunal pela ilegalidade da liquidação implica, como mera decorrência, a anulação do ato confirmativo proferido em sede de recurso gracioso (ou, o que é substancialmente o mesmo, segundo cremos, a decisão de recusa de pedido de revisão). Com efeito, conforme é dito no acórdão do STA, de 19-11-2014, no âmbito do processo 0886: “qualquer ilegalidade não resultante de uma atuação do sujeito passivo será imputável à própria Administração, sendo que esta imputabilidade aos serviços é independente da demonstração da culpa de qualquer um dos funcionários envolvidos na emissão do ato afetado pelo erro”.[4]
O que não pode é servir de fundamento para o pedido de revisão do ato uma ilegalidade imputável a inércia ou erro ou incumprimento de alguma obrigação do próprio sujeito passivo.
Assim, por tudo o que vem exposto, há que concluir que no caso dos presentes autos não subsiste erro imputável ao Requerente, pelo que, em conformidade com o disposto no nº2 do artigo 131º do CPPT, não estava obrigado a prévia reclamação graciosa para poder impugnar a autoliquidação. Nestes termos improcede a alegada exceção de inimpugnabilidade dos atos tributários impugnados nos presentes autos.
§2.2 Do conhecimento das questões de mérito com fundamento na inconstitucionalidade do ASSB
§2.2.1. Enquadramento jurídico e constitucional
O adicional de solidariedade sobre o setor bancário (ASSB) foi introduzido na ordem jurídica portuguesa pela Lei n.º 27-A/ 2020, de 29 de julho, concretamente, pelo seu artigo 18.º, que altera a Lei n.º 2/2020, de 31 de março, ou seja, a Lei do Orçamento do Estado para 2020 (doravante designada por LOE 2020). O regime jurídico do ASSB consta do Anexo VI à supramencionada Lei, donde se podem extrair os objetivos a alcançar e, assim, de forma mais clara, a «ratio legis» subjacente.
Assim, é clara a menção do legislador ao principal objetivo do ASSB, ou seja, o reforço dos mecanismos de financiamento do sistema de segurança social, fundamentado a partir da ideia de «compensação pela isenção de imposto sobre o valor acrescentado (IVA) aplicável à generalidade dos serviços e operações financeiras», aproximando a carga fiscal suportada pelo setor financeiro à que onera os demais setores (artigo 1.º, n.º 2) e tendo como sujeitos passivos as instituições de crédito com sede principal e efetiva da administração situada em território português, as filiais, em Portugal, de instituições de crédito que não tenham a sua sede principal e efetiva em território português e as sucursais em Portugal de instituições de crédito com sede principal e efetiva fora do território português (artigo 2.º, n.º 1). Ora, no caso dos presentes autos a Requerente preenche, precisamente, a qualidade de instituição de crédito com sede em território português.
Posto isto, resulta do regime jurídico do ASSB, que este tem como âmbito de incidência objetiva «o passivo apurado e aprovado pelos sujeitos passivos e o valor nocional dos instrumentos financeiros derivados fora do balanço apurado pelos sujeitos passivos, com as especificações constantes do artigo 3.º». Pelo que vem exposto, resulta que a base de incidência do ASSB não se aproxima da que é tipicamente a base de incidência do IVA (consumo ou despesa) mas antes se assemelha ao conceito de rendimento, subjacente aos impostos diretos sobre o rendimento. Veja-se que, o artigo 4.º do Anexo VI da Lei n.º 27-A/2020 esclarece sobre a quantificação da base de incidência, e, no seu n.º 1, define como passivo o «conjunto dos elementos reconhecidos em balanço que, independentemente da sua forma ou modalidade, representem uma dívida para com terceiros”. O mesmo normativo prevê, ainda as exceções constantes nas suas diversas alíneas, e, como instrumento financeiro derivado, o que seja qualificado como tal pelas normas de contabilidade aplicáveis, com exceção dos instrumentos financeiros derivados de cobertura ou cujas posições em risco se compensem mutuamente (artigo 4.º, n.ºs 1, 2 e 3). Segundo o n.º 4, deste normativo «a base de incidência apurada nos termos do artigo 3.º e dos números anteriores é calculada por referência à média anual dos saldos finais de cada mês, que tenham correspondência nas contas anuais do próprio ano a que respeita o adicional, tal como aprovadas no ano seguinte.»
A lei define, ainda as taxas aplicáveis e os procedimentos de liquidação e cobrança (vd. artigos 5.º a 8º) e o destino da receita do ASSB, quando estabelece, no seu artigo 9.º (sob a epígrafe «Consignação da Receita»), que a receita do adicional de solidariedade sobre o setor bancário constitui receita geral do Estado, sendo integralmente consignada ao Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social. (sublinhado nosso)
Assim, é este, em suma, o regime jurídico do ASSB, que se qualifica como um verdadeiro imposto, e cuja (i)legalidade cabe apreciar.
§2.2.2 Quanto ao vício de inconstitucionalidade por violação do princípio da não retroatividade fiscal e do princípio da igualdade, na vertente de violação do princípio da capacidade contributiva
Começando pela análise jurídica do Adicional de Solidariedade sobre o Sector Bancário (ASSB) vimos já que a própria AT não questiona a sua natureza de imposto. Esta questão foi desenvolvidamente tratada em diversas decisões arbitrais.[5] O imposto constitui, como sabemos, uma “prestação pecuniária, coativa e unilateral, exigida por uma entidade pública com o propósito de angariação de receita”, ao passo que a taxa se caracteriza como “prestação pecuniária e coativa, exigida por uma entidade pública, em contrapartida de prestação administrativa efetivamente provocada ou aproveitada pelo sujeito passivo”, distinguindo-se essas duas espécies de tributos pelo seu carácter de unilateralidade ou bilateralidade[6].
Este entendimento é pacífico, bem assim como, no que releva para a decisão dos presentes autos, a questão não é, sequer, divergente para as partes. Importará, contudo, ter em conta que a constitucionalização das contribuições financeiras resultou da alteração introduzida no artigo 165.º, n.º 1, alínea i), da Lei Fundamental, pela revisão constitucional de 1997, que autonomizou as contribuições financeiras a favor das entidades públicas como uma terceira categoria de tributos. Assim, a doutrina tem caracterizado as contribuições financeiras como um tertium genus de receitas fiscais, que poderão ser qualificadas como taxas coletivas, na medida em que visam retribuir os serviços prestados por uma entidade púbica a um certo conjunto ou categoria de pessoas. A diferença essencial entre os impostos e estas contribuições bilaterais é que «aqueles visam financiar as despesas públicas em geral, não podendo, em princípio, ser consignados a certos serviços públicos ou a certas despesas, enquanto as segundas, tal como as taxas em sentido estrito, visam financiar certos serviços públicos e certas despesas públicas aos quais ficam consignadas, não podendo, portanto, ser desviadas para outros serviços ou despesas».[7]
Ora, como já se referiu já (vd. enquadramento jurídico) o ASSB tem por objetivo reforçar os mecanismos de financiamento do sistema de segurança social, como forma de compensação pela isenção de imposto sobre o valor acrescentado (IVA) aplicável à generalidade dos serviços e operações financeiras e constitui receita geral do Estado que é integralmente consignada ao Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social. E, sendo assim, o seu propósito difere do que caracteriza a Contribuição sobre o Sector Bancário (CSB), que foi consensualmente caracterizada como uma contribuição financeira.[8] No caso « … não pode ser atribuída essa mesma natureza ao ASSB, na medida em que não existe conexão entre os objetivos que presidem à sua criação e uma qualquer responsabilidade acrescida do setor bancário, como também não há uma relação específica de proximidade entre o grupo de sujeitos passivos e ónus de custear o serviço público de segurança social, nem subsiste qualquer benefício para o grupo por efeito da carga fiscal com que é diferenciadamente onerado. E, nesses termos, não se verificam os requisitos típicos de homogeneidade, responsabilidade e utilidade de grupo que possam justificar a caracterização do ASSB como contribuição financeira.
E, por maioria de razão, está excluído que o ASSB possa integrar o conceito de taxa, uma vez que não estão em causa qualquer dos pressupostos enumerados no artigo 4.º, n.º 2, da LGT que permitam evidenciar o carácter de bilateralidade do tributo. Em face a todo o exposto, o ASSB constitui um imposto especial sobre o sector bancário, que, não obstante apresentar um âmbito de incidência semelhante à Contribuição sobre o Sector Bancário (CSB), «não se limita a estabelecer uma nova taxa sobre a matéria coletável dessa contribuição, nem um novo imposto sobre a coleta, e, nesse sentido, não corresponde a um adicional ou a um adicionamento, mas a um imposto autónomo.»[9].
De resto, a própria AT na Resposta considera o ASSB como um imposto indireto que visa compensar o IVA, como vimos.
*
Posto isto, e passando à análise da questão da inconstitucionalidade por violação do princípio da proibição da retroatividade da lei fiscal, considerando o regime jurídico supra explanado, e a norma transitória do artigo 21º da Lei n.º 27-A/2020, de 24 de julho, que dispõe nos seguintes termos:
«Artigo 21.º
Disposição transitória
1 — Em 2020 e 2021, a liquidação e o pagamento do adicional de solidariedade sobre o setor bancário previsto no regime que consta do anexo VI à presente lei efetua-se de acordo com as seguintes regras:
a) A base de incidência apurada nos termos dos artigos 3.º e 4.º do regime é calculada por referência à média semestral dos saldos finais de cada mês, que tenham correspondência nas contas relativas ao primeiro semestre de 2020, no caso do adicional de solidariedade devido em 2020, e nas contas relativas ao segundo semestre de 2020, no caso do adicional de solidariedade devido em 2021, publicadas em cumprimento da obrigação estabelecida no Aviso do Banco de Portugal n.º 1/2019, de 31 de janeiro, que atualiza o enquadramento normativo do Banco de Portugal sobre os elementos de prestação de contas;
b) A liquidação é efetuada pelo próprio sujeito passivo, através de declaração de modelo oficial aprovada por portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças, que deve ser enviada até ao dia 15 de dezembro de 2020 e 2021, respetivamente; (…)»
Retornando ao caso dos autos, está em causa a violação do princípio da proibição da retroatividade da lei fiscal, em relação ao imposto que se torna devido em 2020, uma vez que por efeito da norma transitória do artigo 21.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 27-A/2020, de 24 de julho, o adicional é calculado, nesse caso, por referência à média semestral dos saldos finais de cada mês que tenham correspondência nas contas relativas ao primeiro semestre de 2020, e, sendo assim, o facto gerador do pagamento do imposto verifica-se em momento anterior à entrada em vigor da lei, que ocorreu no dia seguinte à sua publicação. A Autoridade Tributária contrapõe que, nos termos dos artigos 3.º e 4.º do Anexo VI da Lei n.º 27-A/2020, a base de incidência do ASSB respeitante ao primeiro semestre de 2020 corresponde ao “passivo apurado e aprovado” pelo que o facto tributário ocorre, verdadeiramente, com o apuramento e aprovação das contas, e necessariamente em momento posterior à entrada em vigor da Lei n.º 27-A/2020, de 24 de julho, não se verificando a alegada violação do princípio proibição da retroatividade da lei fiscal. Certo é que não tem razão nesta alegação como se demonstrará de seguida.
A este propósito pronunciou-se o Tribunal arbitral por Acórdão proferido no âmbito do processo nº 528/2022-T, de 21-03-2023, ao qual se adere integralmente e que passamos a citar:
«7. A Requerente começa por assacar ao regime do Adicional de Solidariedade sobre o Sector Bancário a inconstitucionalidade por violação do princípio da proibição da retroatividade da lei fiscal, em relação ao imposto que se torna devido em 2020, por considerar que, por efeito da norma transitória do artigo 21.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 27-A/2020, de 24 de julho, o adicional é calculado, nesse caso, por referência à média semestral dos saldos finais de cada mês que tenham correspondência nas contas relativas ao primeiro semestre de 2020, e, sendo assim, o facto gerador do pagamento do imposto verifica-se em momento anterior à entrada em vigor da lei, que ocorreu no dia seguinte à sua publicação.
A Autoridade Tributária contrapõe que, nos termos dos artigos 3.º e 4.º do Anexo VI da Lei n.º 27-A/2020, a base de incidência do ASSB respeitante ao primeiro semestre de 2020 corresponde ao “passivo apurado e aprovado” pelo que o facto tributário se objetiva na ordem jurídica com o apuramento e aprovação das contas, e necessariamente em momento posterior à entrada em vigor da Lei n.º 27-A/2020, de 24 de julho, não se verificando a alegada violação do princípio proibição da retroatividade da lei fiscal. É esta a questão que cabe primeiramente apreciar.
Na revisão constitucional de 1997, o legislador constituinte consagrou, no artigo 103.º, n.º 3, a regra da proibição da retroatividade da lei fiscal desfavorável, que já poderia considerar-se como uma decorrência do princípio da proteção da confiança dos cidadãos inscrito no Estado de Direito. Com essa alteração, a Lei Fundamental pretendeu expressar uma regra absoluta de definição do âmbito de validade temporal das leis que criem ou agravem impostos, tornando constitucionalmente ilícito o imposto que produza efeitos retroativos.
O Tribunal Constitucional tem vindo a seguir o entendimento de que esta proibição da retroatividade, no domínio da lei fiscal, apenas se dirige à retroatividade autêntica, abrangendo apenas os casos em que o facto tributário que a lei nova pretende regular já tenha produzido todos os seus efeitos ao abrigo da lei antiga, excluindo do seu âmbito aplicativo as situações de retrospetividade ou de retroatividade imprópria, ou seja, aquelas situações em que a lei é aplicada a factos passados mas cujos efeitos ainda perduram no presente, como sucede quando as normas fiscais que produziram um agravamento da posição fiscal dos contribuintes em relação a factos tributários que não ocorreram totalmente no domínio da lei antiga e continuam a formar-se, ainda no decurso do mesmo ano fiscal, na vigência da nova lei (cfr, por exemplo, os acórdãos n.ºs 128/2009, 85/2010 e 399/2010).
Revertendo à situação do caso, deve começar por dizer-se que a CSB e o ASSB, embora possuam uma estrutura de incidência similar, não são coincidentes quanto ao método de quantificação da base de incidência quando esteja em causa a liquidação do ASSB devido em 2020.
Tal como prevê para a CSB o artigo 3.º, alínea a), da Lei n.º 55-A/2010, de 31 de dezembro, o ASSB, nos termos da disposição homóloga do Anexo VI à Lei n.º 27-A/2020, igualmente incide sobre o “passivo apurado e aprovado pelos sujeitos passivos”, estatuindo o artigo 4.º, n.º 4, quanto à quantificação da base de incidência, que “a base de incidência apurada nos termos do artigo 3.º e dos números anteriores é calculada por referência à média anual dos saldos finais de cada mês, que tenham correspondência nas contas anuais do próprio ano a que respeita o adicional, tal como aprovadas no ano seguinte”.
No entanto, a norma transitória do artigo 21.º da mesma Lei, determina, na sua alínea a), que, no caso do adicional de solidariedade devido em 2020, “a base de incidência apurada nos termos dos artigos 3.º e 4.º do regime é calculada por referência à média semestral dos saldos finais de cada mês, que tenham correspondência nas contas relativas ao primeiro semestre de 2020”.
O acórdão do STA de 19 de junho de 2019 (Processo n.º 023/40/13), analisando a CSB aplicada ao ano de 2011, à luz da referida disposição do artigo 3.º, alínea a), da Lei n.º 55-A/2010, afastou a violação do princípio da proibição da retroatividade dos impostos, com base na seguinte argumentação: O facto tributário correspondente à CSB do ano de 2011 (-) é constituído pelos passivos apurados e aprovados pelo sujeito passivo (deduzidos dos fundos próprios de base (Tier 1), dos complementares (Tier 2) e dos depósitos abrangidos do Fundo de Garantia de Depósitos) no próprio ano em que é devida a contribuição (artigo 3° do regime da CSB, e artigo 6.° da Portaria n° 121/2011, de 30 de março). Ou seja, em 2011. Daí que (…) o facto tributário só tenha emergido na ordem jurídica com a aprovação do passivo e no ano em que a mesma ocorreu (embora respeitando ao ano económico anterior ao ano da aprovação), sendo que, para além de não se configurar, nesses termos, tributação assente em facto sucessivo, também a própria contribuição se objetiva apenas com o apuramento e aprovação do respetivo passivo e na medida deste (-).
O facto tributário assim configurado verificou-se após o início da vigência do regime da CSB (1 de janeiro de 2011). E como se salienta na sentença, o momento relevante a considerar é o da aprovação das contas e não o do encerramento do exercício, sendo que nas instruções constantes da declaração modelo 26 (cfr. o anexo à Portaria) constava igualmente a indicação de que «[a] base de incidência apurada é sempre calculada por referência à média anual dos saldos finais de cada mês, que tenham correspondência nas contas aprovadas no próprio ano em que é devida a contribuição.
Conclui o acórdão, neste condicionalismo, que não há aplicação da lei nova a factos tributários integralmente verificados ou cujos efeitos estivessem integralmente produzidos e verificados no domínio da lei antiga, ou seja, antes da entrada em vigor da lei nova.
Todavia, um tal entendimento não é transponível para o adicional de solidariedade devido em 2020, segundo a regulamentação que consta da citada norma transitória do artigo 21.º da Lei n.º 27-A/2020, que, como se viu, prevê que a base de incidência seja calculada por referência à média semestral dos saldos finais de cada mês, que tenham correspondência nas contas relativas ao primeiro semestre de 2020. O adicional é calculado com base numa média relativa ao primeiro semestre de 2020, e embora deva haver correspondência entre os saldos de cada mês, nesse semestre, e os saldos que constem das contas anuais relativas ao mesmo semestre, o certo é que a eventual divergência entre o saldo médio que serviu de base à liquidação do imposto e os saldos mensais aprovados nas contas anuais, apenas poderá justificar a correção aritmética, por parte da Autoridade Tributária, com base na verificação de erros ou omissões que determinem a exigência de um valor do adicional superior ao liquidado, tal como prevê o artigo 6.º, n.º 2, do Anexo VI à Lei n.º 27-A/2020.
Ou seja, a exigida correspondência entre o saldo médio relativo ao primeiro semestre e os saldos finais de cada mês considerados nas contas anuais não salvaguarda a retroatividade do imposto, visto que a aprovação das contas referentes a 2020, incluindo as do primeiro semestre, em atenção ao disposto no artigo 65.º, n.ºs 1 e 5, do Código das Sociedades Comerciais, só pode ocorrer após o encerramento de cada exercício anual, e, portanto, após o período de tributação a que respeita o imposto (cfr. Pinto Furtado, Curso de Direito das Sociedades, 4.ª edição, Coimbra, pág. 481).
Tendo em consideração que, no que se refere ao adicional devido em 2020, o sujeito passivo deve efetuar a liquidação do imposto até 15 de dezembro de 2020, não será possível ao contribuinte certificar, através das contas anuais, a média de saldo que serviu de base à liquidação, e, sendo assim, não há qualquer dúvida que o facto tributário que origina o imposto é o mero apuramento contabilístico da média dos saldos do passivo relativamente ao primeiro semestre.
Como explicita, a citada decisão arbitral n.º 504/2021-T, à data da liquidação do imposto relativo ao primeiro semestre de 2020, ainda se não encontra encerrado o exercício nem aprovadas as contas, pelo que o facto tributário que a norma erige para efeito de liquidação não é a aprovação das contas, mas o facto material da verificação de existência do passivo através dos dados inscritos na contabilidade, e que necessariamente ocorre ainda antes da entrada em vigor da Lei n.º 27-A/2020.
A questão suscitada no presente processo não tem, pois, qualquer correspondência com a que foi analisada no citado acórdão do STA de 19 de junho de 2019 relativamente à CSB, em que se considerou como momento relevante para a exigência do tributo o da aprovação das contas, tendo em consideração que, nesse caso, a base de incidência apurada é sempre calculada por referência à média anual dos saldos finais de cada mês, que tenham correspondência nas contas aprovadas no próprio ano em que é devida a contribuição.
Por conseguinte, a norma transitória do artigo 21.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 27-A/2020, de 24 de julho, é inconstitucional, por violação do princípio da proibição da retroatividade dos impostos, consagrado no artigo 103.º, n.º 3, da Constituição, pelo que a liquidação do adicional de solidariedade sobre o sector bancário, relativa ao ano de 2020, enferma de ilegalidade. (…)». [10]
Ora face ao que vem exposto nesta jurisprudência, à qual se adere integralmente, conclui-se que assiste razão ao Requerente quando invoca a violação do princípio da não retroatividade, nomeadamente, no que toca às autoliquidações de 2020 e 2021.
Quanto às restantes autoliquidações há que aferir se, como alega o Requerente, se verificam as inconstitucionalidades invocadas.
A este propósito, considera, ainda, o Requerente haver violação do princípio da igualdade tributária na vertente da capacidade contributiva, já que o ASSB se assume como um imposto discriminatório incidente sobre o setor bancário com clara discriminação deste setor em relação aos restantes setores da sociedade e, por isso, violador do princípio da igualdade, nas suas vertentes de proibição do arbítrio e do respeito pela capacidade contributiva. Também sobre esta questão acompanhamos a jurisprudência que antecede, a qual, citando Casalta Nabais afirma, em suma, que «o princípio da igualdade fiscal tem ínsita sobretudo «a ideia de generalidade ou universalidade, nos termos da qual todos os cidadãos se encontram adstritos ao cumprimento do dever de pagar impostos, e da uniformidade, a exigir que semelhante dever seja aferido por um mesmo critério - o critério da capacidade contributiva. Este implica assim igual imposto para os que dispõem de igual capacidade contributiva (igualdade horizontal) e diferente imposto (em termos qualitativos ou quantitativos) para os que dispõem de diferente capacidade contributiva na proporção desta diferença (igualdade vertical)» [11]
O princípio da capacidade contributiva como critério destinado a aferir da (in)admissibilidade constitucional de certa ou certas soluções adotadas pelo legislador fiscal, tem expressão na ideia, afirmada, entre outros, no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 348/97, da necessária «a existência e a manutenção de uma efetiva conexão entre a prestação tributária e o pressuposto económico selecionado para objeto do imposto, exigindo-se, por isso, um mínimo de coerência lógica das diversas hipóteses concretas de imposto previstas na lei com o correspondente objeto do mesmo». O Tribunal Constitucional tem vindo a adotar o princípio da capacidade contributiva como critério adequado à repartição dos impostos, sem descurara a proibição do arbítrio como um elemento relevante para aferir da validade constitucional das soluções normativas de âmbito fiscal, mormente quando estas sejam ditadas por considerações de política legislativa relacionadas com a racionalização do sistema. Seguindo este raciocínio, o princípio da igualdade tributária concretiza-se pela generalidade e uniformidade da lei que crie qualquer imposto (destinada a ser aplicada a todos sem exceção), tratando de modo igual os contribuintes que se encontrem em situações iguais e de modo diferente aqueles que se encontrem em situações diferentes, na medida da diferença, a aferir pela capacidade contributiva. Por último, o princípio da igualdade exprime a proibição do arbítrio, e nesse sentido proíbe qualquer discriminação entre contribuintes que sejam desprovidas de fundamento racional.
A este propósito decidiu-se no Acórdão arbitral proferido no processo 599/2022–T, de 25-04-2023, pela violação do princípio da igualdade, com a fundamentação que a seguir se transcreve e à qual se adere: «Da leitura da norma de incidência pessoal (subjetiva) deste imposto, resulta claro que apenas as instituições de crédito, ou seja, apenas um sector das empresas (pessoas coletivas) com fins lucrativos, são sujeitos passivos deste imposto. Mais, o carácter sectorial da incidência subjetiva deste imposto não oferece dúvidas, pois é expressamente afirmado pelo legislador: O adicional de solidariedade sobre o setor bancário tem por objetivo reforçar os mecanismos de financiamento do sistema de segurança social, como forma de compensação pela isenção de imposto sobre o valor acrescentado (IVA) aplicável à generalidade dos serviços e operações financeiras, aproximando a carga fiscal suportada pelo setor financeiro à que onera os demais setores (artº 2 do Anexo VI da Lei n.º 27-A/2020, de 24 de Julho). Em nosso entender, a expressa previsão, pela revisão constitucional de 1987, da figura das contribuições financeiras decorreu do reconhecimento da necessidade da existência de tributos sectoriais que, antes, estariam feridos de inconstitucionalidade, pois este tipo de tributos não preenche nem as caraterísticas próprias das taxas nem as dos impostos. O mesmo é dizer que entendemos que, à luz da nossa Constituição, os únicos tributos sectoriais admissíveis são as contribuições financeiras. O certo é que a caraterística generalidade é, pacificamente, aceite pela jurisprudência, e pela doutrina, como essencial a um imposto: O dever de os cidadãos pagarem impostos constitui uma obrigação pública com assento constitucional. Como tal, está sujeito a algumas regras equivalentes às dos direitos fundamentais, designadamente os princípios da generalidade e da igualdade, ou seja, de que devem estar sujeitos ao seu pagamento os cidadãos em geral (artigo 12º, n.º 1), e devem estar sujeitos a ele em idêntica medida, sem qualquer discriminação indevida (artigo 13º, n.º 2), isto constituído o princípio da igualdade tributária.” (acórdão TC n.º 348/97, de 29-04-1997) [sublinhados nossos].
No caso do ASSB, a idêntica medida que este imposto visa tributar são as “realidades” enumeradas no art. 3º do anexo VI da Lei n.º 27-A/2020. Ora, podemos assumir - cremos que incontestavelmente - que existem outros contribuintes detentores dos mesmos índices de capacidade contributiva (assumindo, por mera disciplina de raciocínio, que as “realidades “que constituem a base de incidência do ASSB podem ser entendidas como constituindo índices de capacidade contributiva), os quais não resultam tributados neste imposto. Com o TC, no acórdão nº 695/2014, de 15 de outubro, diremos: Em suma, o princípio da igualdade tributária pode ser concretizado através de vertentes diversas: uma primeira, está na generalidade da lei de imposto, na sua aplicação a todos sem exceção; uma segunda, na uniformidade da lei de imposto, no tratar de modo igual os contribuintes que se encontrem em situações iguais e de modo diferente aqueles que se encontrem em situações diferentes, na medida da diferença, a aferir pela capacidade contributiva; uma última, está na proibição do arbítrio, no vedar a introdução de discriminações entre contribuintes que sejam desprovidas de fundamento racional (nestes precisos termos, o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 306/2010) [sublinhados nossos].
Parece-nos manifesto que, em razão do que antes ficou dito, a definição legal da incidência subjetiva do ASSB não cumpre com a exigência de constitucional de generalidade, o mesmo é dizer, viola o princípio constitucional da igualdade tributária. Da incidência subjetiva deste imposto resulta que o sector bancário é vítima de uma discriminação negativa face aos restantes sectores de atividade económica, o que é patente e não tem a menor justificação ou fundamento que o possa sustentar. Exige-se mais um imposto ao sector bancário para o financiamento da Segurança Social, mediante a consignação da receita do ASSB ao FEFSS, como se este sector da atividade económica estivesse em alguma situação de vantagem em sede das contribuições (contribuições das entidades bancárias e cotizações dos seus trabalhadores) ou tivesse algum especial dever de financiar a Segurança Social.»
Na verdade, a motivação legislativa constante dos diplomas que regularam a contribuição para o sector bancário legitima a ilação de que a contribuição visou atenuar as consequências resultantes das intervenções públicas no sector financeiro, face à situação de crise financeira então desencadeada no âmbito desse mesmo sector, reconduzindo-se a um instrumento de apoio na prevenção dos inerentes riscos do sistema, não se destinando a colmatar necessidades genéricas de financiamento do Estado. Já o ASSB é um verdadeiro imposto que constitui receita geral do Estado e se encontra consignada ao Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social, e, embora destinado a fazer face de modo indistinto às necessidades de financiamento da segurança social, carateriza-se como um imposto sectorial na medida em que incide exclusivamente sobre o sector financeiro, e, nessa medida, discriminatório e atentatório do princípio da igualdade, nas vertentes já referidas.
Na verdade, no caso do ASSB, não se denota qualquer relação entre a incidência real do imposto e os fatores que possam revelar uma maior capacidade contributiva, quando é certo, como se deixou dito, que o critério de repartição do imposto, na hipótese, corresponde a uma lógica de solidariedade assente no falso pressuposto de que as instituições de crédito poderão suportar um agravamento da carga fiscal porque se encontram isentas de IVA relativamente aos serviços financeiros que prestam. A criação do ASSB como um imposto especial incidente sobre o sector bancário, como forma de compensar a isenção de IVA, configura-se como uma diferenciação arbitrária na medida em que o critério utilizado não apresenta um mínimo de coerência nem se encontra materialmente justificado. E, como vimos, este entendimento tem vindo a ser reafirmado, não só pela jurisprudência dos tribunais arbitrais, mas notavelmente, pela jurisprudência dos nossos tribunais superiores e do próprio Tribunal Constitucional.
Pelo que, face a tudo o que vem exposto se conclui pela inconstitucionalidade nos termos alegados pelo Requerente, a qual inquina as autoliquidações e os atos de indeferimento que motivam o presente pedido arbitral. Em consequência, terão as mesmas de ser anuladas, com todas as consequências legais.
§2.3.2 – Vícios de conhecimento prejudicado
Face ao que vem exposto, fica prejudicado o conhecimento de qualquer outro vicio invocado.
§2.3.3 - Juros indemnizatórios
O Requerente pede ainda a condenação da Autoridade Tributária no pagamento de juros indemnizatórios, à taxa legal, calculados sobre o imposto, até ao reembolso integral da quantia devida. De acordo com o disposto na alínea b) do artigo 24.º do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a Administração Tributária, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo, cabendo-lhe “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito”. Ainda nos termos do n.º 5 do artigo 24.º do RJAT “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previstos na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”.
Tal regime está em sintonia com o resultante do artigo 100.º da LGT, aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT, o que, por sua vez, remete para o disposto nos artigos 43.º, n.º 1, e 61.º, n.º 5, de um e outro desses diplomas, implicando o pagamento de juros indemnizatórios desde a data do pagamento indevido do imposto até à data do processamento da respetiva nota de crédito.
Neste caso, foram seguidas pelo Requerente instruções genéricas sobre a aplicação ASSB (instruções de preenchimento da declaração modelo 57 que constam da Portaria n.º 191/2020, de 10 de Agosto e Oficio Circulado nº 55003/2022) pelo que se está perante uma situação de erro imputável aos serviços, por força do n.º 2 do artigo 43.º da LGT.
Face ao exposto, na sequência de declaração de ilegalidade dos atos de indeferimento da Reclamação Graciosa e de autoliquidação do ASSB, há lugar ao pagamento de juros indemnizatórios, nos termos das citadas disposições dos artigos 43.º, n.º 1, da LGT e 61.º, n.º 5, do CPPT, calculados sobre a quantia que a Requerente pagou indevidamente, à taxa dos juros legais (artigos 35.º, n.º 10, e 43.º, n.º 4, da LGT).
IV – DECISÃO
Termos em que se julga neste tribunal coletivo:
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Considerar totalmente improcedentes as exceções invocadas pela Requerida;
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Considerar integralmente procedente o pedido arbitral e julgar inconstitucional a norma transitória do artigo 21.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 27-A/2020, de 24 de julho, na parte em que se refere ao cálculo do imposto relativo ao primeiro semestre de 2020, por violação do princípio da proibição da retroatividade dos impostos, consagrado no artigo 103.º, n.º 3, da Constituição;
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E, ainda, julgar inconstitucionais as normas conjugadas dos artigos 1.º, n.º 2, 2.º e 3.º, n.º 1, alínea a), Lei n.º 27-A/2020, de 24 de julho, por violação do princípio da igualdade, na dimensão da proibição do arbítrio, e por violação do princípio da capacidade contributiva;
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Declarar ilegal e anular os atos tributários impugnados, incluindo as autoliquidações de ASSB dos anos de 2020, 2021, 2022 e 2023.
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Condenar a Requerida a reembolsar à Requerente o valor de €74.056,19, acrescidos de pagamento de juros indemnizatórios desde a data do pagamento indevido do imposto até à data do processamento da respetiva nota de crédito.
V – Valor da Causa
Fixa-se o valor do processo em €74.056,19, de harmonia com o disposto nos artigos 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT), artigo 97.º-A, n.º 1, al. a) do CPPT e artigo 306.º do Código de Processo Civil (CPC).
VI - CUSTAS
O valor das custas é fixado em € 2.448,00, ao abrigo do artigo 22.º, n.º 4 do RJAT e da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT), a cargo da Requerida, de acordo com o disposto no artigo 12.º, n.º 2 do RJAT e no artigo 4.º, n.º 5 do RCPAT.
VII. NOTIFICAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO
Nos termos do disposto no artigo 17.º, n.º 3, do RJAT, notifique-se o representante do Ministério Público junto do Tribunal competente para o julgamento da impugnação, para efeitos do recurso previsto no n.º 3 do artigo 72.º da Lei do Tribunal Constitucional.
Notifique-se.
Lisboa, 15 de janeiro de 2025
O Tribunal Coletivo,
Jorge Lopes de Sousa (Árbitro presidente)
Maria do Rosário Anjos (Árbitro vogal)
Pedro Miguel Bastos Rosado (Árbitro vogal)
[1] Neste sentido vide fundamentação da jurisprudência do STA, contida nos Acórdão de 13-09-2023, processo n.º 294/12.9BEPRT 0326, na linha dos anteriores de 18-11-2020, processo n.º 0608/13.4BEALM. de 13-10-2021, processo n.º 0129/18.9BEAVR. de 02-02-2022, processo n.º 0848/14.9BEAVR. de 13-09-2023, processo n.º 0294/12.9BEPRT 0326/18. de 06-03-2024, processo n.º 0946/18.0BELRA.
[2] Neste sentido vide Acórdãos do Tribunal Central Administrativo Sul de 27-04-2017, processo n.º 8599/15; de 25-06-2019, processo n.º 44/18.6BCLSB; de 11-07-2019, processo 147/17.4BCLSB; de 13-12-2019, processo n.º 111/18.6BCLSB; de 11-03-2021, processo n.º 7608/14.5BCLSB; de 26-05-2022, processo n.º 97/16.6BCLS; de 12-05-2022, processo n.º 96/17.6BCLSB.
[3] Neste sentido vd. Acórdão do TCAS de 28-10-21, proferido no proc. nº 328/05.3BEALM.
[4] Cfr.: Acórdão do STA 2 Sec. de 19-11-2014, Proc. 0886/14. No mesmo sentido: Ac. TCA-N 2 Sec. de 12-01-2023, proc. 02408/16.0BEPRT; Ac. TCA-S CT de 25-11-2009, proc. 02842/09.
[5] Vd., entre outras: Decisão arbitral proferida no processo 156/2018 - T, de 10-05-2019; Decisão arbitral proferida no processo nº 21/2023-T de 29-06-2023; e Acórdão arbitral proferido no processo nº 599/2023-T de 25-04-2023.
[6] Vd., entre outros, Sérgio Vasques, Manual de Direito Fiscal, Coimbra, 2015, págs. 214 e 240.
[7] Gomes Canotilho e Vital Moreira. Constituição da República Portuguesa Anotada, I vol., 4ª edição, Coimbra, pág. 1095.
[8] Cfr., entre outros, Acórdão do STA de 25 de janeiro de 2023, Processo n.º 01622/20, in www.dgsi.pt.
[9] Sobre o conceito de adicional e de adicionamento, vide Casalta Nabais, Direito Fiscal, 11.ª edição, Coimbra, pág. 79. No sentido da qualificação do ASSB como imposto, vide decisão arbitral proferida no Processo n.º 504/2021-T de 16-05-2022.
[10] Muitas outras decisões arbitrais têm vindo a firmar este entendimento, como sucede, a titulo meramente exemplificativo, com a decisão proferida no Acórdão CAAD, de 26-02-2024, no processo nº 325/2023-T.
[11] Cfr.: Casalta Nabais, Direito Fiscal, 11ª edição, Coimbra, 2021, págs. 154-155.