Consultar versão completa em PDF
SUMÁRIO
-
A Derrama Municipal é um imposto que incide sobre os rendimentos tributáveis e não isentos de IRC, na proporção do rendimento gerado na área geográfica do município por sujeitos passivos residentes, bem como não residentes com estabelecimento estável em Portugal, que aí exerçam atividade comercial, industrial ou agrícola.
-
Os rendimentos gerados fora do território nacional, designadamente os relativos a dividendos distribuídos e juros pagos por sociedades estrangeiras, não residentes em território nacional e sem estabelecimento estável em Portugal ao qual aqueles sejam imputáveis, devem ser excluídos da base de cálculo da Derrama Municipal lançada pelo município.
DECISÃO ARBITRAL
O Tribunal Arbitral, composto pelos árbitros Dra. Alexandra Coelho Martins (Presidente), Dr. António Pragal Colaço (adjunto) e Prof. Doutor Luís Baptista (adjunto relator), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD), e constituído em 25 de outubro de 2024, acorda no seguinte:
-
RELATÓRIO
1. A..., S.A., sociedade anónima com sede na ..., n.º ..., ...-... Lisboa, titular do número único de identificação de pessoa coletiva e de matrícula ... (doravante “Requerente”), veio requerer a constituição de Tribunal Arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 95.º, n.ºs 1 e 2, alíneas a) e d) da Lei Geral Tributária (“LGT”), 99.º, alínea a) do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”), 137.º, n.ºs 1 e 2 do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (“IRC”) e 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a) e 10.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2 do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”). É demandada a Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante identificada por “AT” ou Requerida.
2. A Requerente apresentou um pedido de pronúncia arbitral com vista à declaração de ilegalidade e anulação parcial da autoliquidação de IRC constante da sua declaração periódica de rendimentos Modelo 22 n.º ... (doravante “Modelo 22”), referente ao exercício de 2021, da qual resultou o montante global a pagar de € 10.719.928,02, bem como a anulação da decisão de indeferimento da reclamação graciosa deduzida contra aquela autoliquidação. Pretende ainda a restituição do valor de € 522.104,74, acrescido de juros indemnizatórios, nos termos dos artigos 43.º, n.º 1 da LGT e artigo 61.º, n.º 5 do CPPT.
3. Entende a Requerente que, embora tenha liquidado e pago € 1.189.681,20 a título de derrama municipal, esta foi calculada considerando € 36.253.017,37 de rendimentos obtidos no estrangeiro a título de rendimentos de capitais e mais-valias mobiliárias, os quais pretende agora ver desconsiderados da base de incidência deste imposto.
4. Em consequência, a Requerente alega ter suportado um excesso de derrama no valor de € 522.104,75, sendo este fixado como o valor em litígio.
5. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite em 19 de agosto de 2024, em conformidade com o disposto no artigo 11.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, do que foi, de seguida, notificada a AT.
6. O Conselho Deontológico do CAAD, em 7 de outubro de 2024, procedeu à nomeação dos árbitros ao abrigo do disposto no artigo 5.º, n.º 3, alínea a), e no artigo 11.º, n.º 1, alínea b), do RJAT, tendo estes árbitros comunicado, no prazo legalmente estipulado, a aceitação dos respetivos encargos.
7. As partes foram devidamente notificadas dessa designação e não manifestaram vontade de a recusar, nos termos do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
8. O Tribunal Arbitral ficou regularmente constituído em 25 de outubro de 2024, ao abrigo do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1 do RJAT, para apreciar e decidir o objeto do presente litígio, tendo sido subsequentemente notificada a Requerida para, querendo, apresentar resposta.
9. A Requerida apresentou a sua resposta em 25 de novembro de 2024, com defesa por impugnação, sustentando não haver razão para qualquer invalidação dos atos tributário e decisório praticados. A Requerente apresentou alegações em 16 de dezembro de 2024, nas quais manteve a posição expressa no pedido de pronúncia arbitral. A AT não apresentou alegações.
-
SANEAMENTO
10. O Tribunal Arbitral foi devidamente constituído em 25 de outubro de 2024, em conformidade com o estabelecido na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, e é competente em razão da matéria, atenta a conformação do objeto do processo, dirigido à anulação (parcial) do ato tributário de autoliquidação de IRC (Derrama Municipal) – v. artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 5.º do RJAT.
11. As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente patrocinadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e do artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.
12. O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, porque apresentado no prazo de 90 dias, previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT, conjugado com o artigo 102.º, n.º 1, alínea e) do CPPT, contado da notificação à Requerente da decisão de indeferimento (expresso) da reclamação graciosa deduzida, em 22 de maio de 2024, tendo a ação arbitral dado entrada em 16 de agosto de 2024.
13. O processo não padece de vícios que o invalidem. Cumpre apreciar e decidir.
-
DOS FACTOS
14. A matéria factual relevante para a compreensão e decisão desta causa, após exame crítico da prova documental existente nos respetivos autos, fixa-se como segue:
-
Factos Provados
15. A..., S.A. é uma sociedade comercial anónima que exerce, a título principal, a atividade seguradora e resseguradora, de todos os ramos e operações, com exceção dos seguros de crédito com garantia do Estado, podendo ainda exercer atividades conexas ou complementares das de seguro ou resseguro – cf. PA (provado por acordo).
16. A Requerente, no exercício da sua atividade, aufere rendimentos de fonte portuguesa e, bem assim, rendimentos de fonte estrangeira decorrentes da aplicação de capital em instrumentos financeiros e outros investimentos – cf. Documentos 1 e 3 (Modelo 22 e IES do período de tributação de 2021).
17. A Requerente procedeu em 25 de maio de 2022 à entrega da sua declaração Modelo 22 relativa ao período de tributação de 2021 – à qual foi atribuído o n.º ... –, resultando na autoliquidação com o valor de € 10.719.928,02, pago dois dias depois, em 27 de maio de 2022 – cf. Documentos 1 e 4 (Modelo 22 do período de tributação de 2021 e pagamento efetuado pelo Novo Banco).
18. Na referida Declaração Modelo 22, a Requerente reportou no respetivo campo 364 do quadro 10 o montante de € 1.189.681,20, a título de derrama municipal. Esta importância foi computada considerando a totalidade dos rendimentos obtidos em território nacional e no estrangeiro – cf. Documentos 1 e 3 (Modelo 22 e IES do período de tributação de 2021).
19. Ainda por referência ao período de 2021, a Requerente procedeu, em 11 de julho de 2022, à entrega da sua declaração anual de informação empresarial simplificada (“IES”) – à qual foi atribuído o n.º...–, reportando no quadro 4 do anexo H daquela declaração os rendimentos auferidos no estrangeiro, que se cifraram no montante total de € 36.253.017,37, conforme discriminado no quadro seguinte – cf. Documento 3 (IES do período de tributação de 2021):
Natureza
|
Rendimentos
|
Montante (EUR)
|
3
|
Dividendos ou lucros derivados de participações sociais
|
4.361.742,66
|
5
|
Rendimentos de outras aplicações de capital
|
26.033.998,75
|
9
|
Mais-valias derivadas da alienação de bens mobiliários, navios, aeronaves ou quaisquer outros bens
|
5.857.275,96
|
TOTAL
|
36.253.017,37
|
20. Subsequentemente a Requerente, considerando que tinha submetido indevidamente à base de incidência da derrama municipal os rendimentos obtidos no estrangeiro, e por não se conformar com o ato tributário, deduziu reclamação graciosa da autoliquidação, em 5 de março de 2024, autuada sob o n.º ...2024.. – cf. Documento 5 e PA.
21. Em sede da reclamação graciosa peticionou a anulação (parcial) da autoliquidação de IRC relativa ao período de 2021, na parte referente à derrama municipal incidente sobre rendimentos de fonte estrangeira – cf. Documento 5 e PA.
22. Em concreto, alegou que embora o seu lucro tributável no período de 2021 tenha ascendido a € 82.607.050,49 e a derrama municipal sobre este liquidada e paga a €1.189.681,20, deveria esse lucro ser expurgado dos rendimentos obtidos no estrangeiro, na importância de € 36.253.017,37. Assim, a derrama devida é apenas a incidente sobre rendimentos obtidos em território português, cujo lucro tributável corresponde a € 46.354.033,12 (€ 82.607.050,49 – € 36.253.017,37), pelo que se deve cifrar em € 667.576,46 e não em € 1.189.681,20, tendo, por conseguinte, sido liquidado e pago em excesso o valor de € 522.104,74 (€1.189.681,20 - €667.576,46), a título de derrama municipal referente ao exercício de 2021 – cf. Documento 5 e PA.
23. Após análise do alegado, a Requerida elaborou a Informação n.º 70-AIR3/2024, no sentido do indeferimento da pretensão da Requerente com os fundamentos que se sintetizam – cf. Documento 2 e PA:
-
A base de incidência da Derrama Municipal coincide com a do IRC para o qual remete (artigo 18.º, n.º 1 do Regime Financeiro das Autarquias Locais e das Entidades Intermunicipais – “RFALEI” – e artigo 3.º, n.º 1, alíneas a) e c) do Código do IRC;
-
O regime da Derrama é omisso quanto a regras próprias de determinação do lucro tributável que constitui a sua base de incidência;
-
A coincidência entre as bases de incidência do IRC e da Derrama apenas está afastada quanto aos lucros sujeitos mas isentos de IRC;
-
Os artigos 14.º e 18.º do RFALEI não contêm qualquer exclusão de tributação relativamente ao lucro tributável obtido fora do território nacional;
-
Pelo que o lançamento da Derrama Municipal deve incidir sobre a totalidade do lucro tributável sujeito e não isento de IRC, recaindo, também, sobre os rendimentos provenientes de fonte estrangeira.
24. Nessa sequência foi a Requerente notificada em 22 de março de 2024 para, querendo, exercer o direito de audição, previsto no artigo 60.º da LGT – cf. PA.
25. No prazo concedido, a Requerente não se pronunciou, pelo que foi convertida em definitiva a decisão de indeferimento, por despacho datado de 6 de maio de 2024, exarado na informação n.º 97-AIR/2024, do que foi a Requerente notificada, por meios eletrónicos – Via CTT – através de ofício da Unidade dos Grandes Contribuintes (“UGC”) da mesma data – cf. Documento 2 junto pela Requerente.
-
Factos não provados
26. Não existem factos com interesse para a decisão da causa que devam considerar-se como não provados.
-
Fundamentação da matéria de facto provada e não provada
27. Relativamente à matéria de facto, o Tribunal não tem de se pronunciar sobre tudo o que foi invocado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada.
28. Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito [cf. o artigo 596.º do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, al. e), do RJAT].
29. Os factos dados como provados resultaram da análise crítica dos documentos juntos aos autos.
-
DO DIREITO
30. O entendimento da Requerente suporta-se, fundamentalmente, no acórdão do Supremo Tribunal Administrativo (doravante “STA”), de 13 de janeiro de 2021, relativo ao processo n.º 0924/17. Este acórdão pronuncia-se também sobre a posição fundamental da Requerida neste processo.
31. Salientamos as seguintes passagens de tal acórdão, com relevância para a decisão:
“- Numa formulação sintética, a discórdia reside na questão de saber se, para efeitos de autoliquidação de derrama municipal (…), há (ou não) lugar, no respetivo cálculo/apuramento, à destrinça entre rendimentos tributáveis com (e sem) origem em atividades exercidas nos municípios/freguesias portuguesas.
- de acordo com a actual redacção da LFL de 2007, [a derrama municipal] se trata claramente de um imposto autónomo em relação ao IRC, pois todos os seus elementos estruturantes ora resultam da lei (sujeito activo, margem de taxas) ou obedecem à intervenção da autarquia local (tributação ou não, taxas concretas), apenas comungando, para efeitos do seu cálculo e por simplicidade de gestão, de uma incidência objectiva comum (…)”;
- sempre (nas Leis n.ºs 42/98, 2/2007 e (73/2013)) esteve (e está) presente a previsão e exigência, de o IRC sobre que recai a percentagem de derrama seja a proporção correspondente “ao rendimento gerado na sua (do município) área geográfica”;
- o legislador, parece-nos, não terá querido ser inconsequente, anódino, na previsão, desde sempre, imutável, de que o percentual da derrama municipal incida sobre o lucro tributável correspondente à proporção do rendimento gerado na área geográfica do município coletor. E, na mesma linha, está a preocupação, constante, de, nos casos de necessidade de repartição de derrama entre vários municípios, ser obrigatório tributar “o lucro tributável imputável à circunscrição de cada município” envolvido e/ou, ainda, quando não haja diversos estabelecimentos estáveis ou representações locais, ter de considerar-se “o rendimento (que) é gerado no município”, em que se situa a sede;
- Numa outra formulação, em função destes concretos e objetivos ditames legais, no pressuposto, ainda, de que o legislador não desconhecida a realidade de que muitos dos sujeitos passivos de IRC exercem atividades comerciais ou industriais em diversos pontos do País e do globo, o reporte e ligação da incidência, específica, da derrama municipal, à “proporção”, à parte de um total, do rendimento gerado num determinado município, só pode significar isso mesmo; o cálculo, o apuramento da derrama, quando ocorrer e na medida do possível (permitida pela contabilidade), tem de implicar as operações aritméticas necessárias ao isolamento, relativamente a outros auferidos, do rendimento gerado no município beneficiário e, posterior, aplicação da percentagem (até ao máximo de 1,5%) pelos seus órgãos deliberada.
- ademais e em situações, como a que nos ocupa, de, isoláveis, parcelas de rendimentos auferidos no estrangeiro, só esta forma de entender e operar, permite alcançar um resultado equitativo e materialmente justo; por um lado, assegura os desígnios tributários do município da sede do sujeito passivo, com a incidência sobre a parcela de lucro tributável gerado no seu território e por outro, liberta o obrigado tributário de pagar sobre rendimentos que, objetiva e comprovadamente, não foram auferidos pelo exercício de qualquer atividade (produtiva) dentro dos limites territoriais do concelho, onde se encontra sediado, com a inerente não utilização das respetivas infraestruturas... Igualmente, só desta forma se consegue algum tratamento igualitário entre as situações de tributação de rendimentos auferidos na área de mais do que um município nacional, através de estabelecimentos estáveis ou representações locais, em que a coleta não pertence, apenas, àquele em que se situa a sede (ou direção efetiva) e os casos de atividades exercidas, simultaneamente, em Portugal e no estrangeiro (Nas primeiras, tenha-se em conta que, no estabelecimento da proporção que determina o lucro tributável a imputar à circunscrição de cada município, se opera com a “massa salarial”, ou seja, com um fator ligado à relação de trabalho, estabelecida entre o sujeito passivo e as pessoas que exercem a sua atividade sob as suas ordens e direção, o que constitui mais um indício da vontade do legislador de ligar e condicionar o pagamento de derrama municipal à atuação concreta, efetiva, com utilização da força de trabalho, geradora de rendimentos, no território municipal respetivo.).
- Ora, neste cenário, compete ao juiz aplicar, sempre, a lei de forma geral e abstrata, mas sem deixar de atentar, casuisticamente, em particularidades justificativas de, pela via jurisprudencial, se ir completando o puzzle, assumidamente, incompleto, da tributação, dos sujeitos passivos de IRC, em derramas municipais. Deste modo, assumimos que o lançamento de derrama devendo, por regra, imperativa, incidir sobre o lucro tributável sujeito e não isento de IRC, tem de, quando possível a destrinça, comprovada, por não se tratarem de rendimentos gerados na área geográfica do município lançador, retirar, da competente base de incidência, aqueles que, num determinado exercício, forem obtidos fora do nosso território (e, consequentemente, dos municípios portugueses, os beneficiários, exclusivos, daquela).”
32. Subscrevemos esta fundamentação, coincidente com diversas decisões arbitrais, de que se enumeram, a título exemplificativo, as proferidas nos processos nºs 554/2021-T, de 15 de março de 2022; 720/2021-T, de 27 de maio de 2022; n.º 234/2022-T, de 28 de novembro de 2022; 211/2023-T, de 17 de julho de 2023; 170/2023-T, de 22 de novembro de 2023; 958/2023-T, de 23 de abril de 2024; 29/2024-T, de 3 de julho de 2024; 31/2024-T, de 9 de setembro de 2024; e 315/2024-T, de 29 de outubro de 2024.
33. Os impostos municipais surgem como resposta aos encargos municipais, apresentando-se como fontes de financiamento adicionais ao Orçamento Geral do Estado.
34. Estes encargos variam de acordo com uma multitude de fatores, tais como as caraterísticas territoriais e a dimensão dos municípios, mas entre estes também se encontram as condições estruturais dadas às unidades empresariais para nestes se implementarem e prosperarem.
35. Não é assim possível deixar de considerar o imposto municipal como um suporte financeiro prestado pelas unidades empresariais, ao impacto que provocam nas estruturas económicas municipais. Sem essa presença económica no município, um tributo, como a derrama municipal, deixa de fazer sentido.
36. Tal pensamento alinha-se com a melhor doutrina.
37. Adicionalmente, alega a Requerida “(…) que os elementos constantes do processo não permitem qualquer validação do cálculo do diferencial da derrama municipal cuja anulação é pretendida”.
38. Concretizando que: “E tal não se basta com uma simples operação aritmética de subtração, nomeadamente, e apenas, do valor dos rendimentos obtidos no estrangeiro, como defende a Requerente”.
39. Concluindo, portanto: “ (…) entendemos que a Requerente não cumpriu o ónus da prova que lhe compete, uma vez que junta somente a declaração de rendimentos Modelo 22 IRC (DM22) Informação Empresaria Simplificada (IES) do exercício de 2021, já na posse da AT, não juntando quaisquer documentos probatórios dos montantes em análise.”
40. E terminando com uma sugestão: “Na verdade, a Requerente, para comprovar o lucro tributável apurado em resultado dos rendimentos obtidos com origem no estrangeiro, deveria ter apresentado documentos externos, os quais, não obstante poderem ser em número avultado, deveriam ser verificados, aleatoriamente, mediante amostragem, a definir pela AT, uma vez que só esses poderiam comprovar a bondade dos registos.”
41. Quanto ao ónus da prova, nos termos do artigo 75.º, n.º 1 da LGT “[p]resumem-se verdadeiras e de boa-fé as declarações dos contribuintes apresentadas nos termos previstos na lei, bem como os dados e apuramentos inscritos na sua contabilidade ou escrita, quando estas estiverem organizadas de acordo com a legislação comercial e fiscal”. Ou seja, a documentação fiscal e contabilística da Requerente goza da presunção de veracidade consagrada na citada norma.
42. Na situação vertente, a Requerente quantifica os rendimentos obtidos no estrangeiro com base nos registos contabilísticos de que dispõe, informação que aliás partilhou com a Requerida através da declaração anual de informação simplificada (n.º...) relativa ao período de 2021. Com efeito, a IES contém de forma segregada os rendimentos obtidos no estrangeiro, permitindo de forma clara a sua quantificação.
43. Nos casos em que a AT disponha de indícios que possam abalar a presunção de veracidade da escrita e das declarações do contribuinte, nomeadamente os elencados no n.º 2 do artigo 75.º da LGT, cabe efetivamente ao sujeito passivo demonstrar os pressupostos que o levaram a conferir um dado tratamento contabilístico e fiscal às suas operações.
44. No entanto, não é essa a situação em presença. Quer a declaração Modelo 22, quer a declaração IES foram preparadas com base na contabilidade da Requerente. E a Requerida, em momento algum, colocou em crise a referida contabilidade e as declarações fiscais com base na mesma apresentadas, ou apresentou elementos que em relação àquelas pudessem suscitar dúvidas fundadas. Nem tão-pouco solicitou elementos ou informações sobre alguma(s) rubrica(s) de rendimentos da Requerente, ou sobre qualquer outra matéria.
45. Isto, apesar de ter decorrido um procedimento administrativo impulsionado pela Requerente, no âmbito do qual a AT, que dirigiu esse procedimento, poderia, se assim o entendesse, suscitar ou invocar as questões de facto que entendesse pertinentes. Não o fez, decidindo singelamente o indeferimento da pretensão da Requerente com base no entendimento jurídico, que a jurisprudência do STA e este Tribunal consideram erróneo, de que os rendimentos gerados no estrangeiro devem ser incluídos na base de cálculo da Derrama Municipal.
46. Concretamente, na resposta à reclamação graciosa não existe qualquer questão relacionada com a produção de prova, mesmo quando se decompõem os valores dos rendimentos gerados pela Requerente. A justificação para o indeferimento fundamenta-se exclusivamente em razões de direito.
47. Afigura-se, além do mais, censurável que no procedimento administrativo que lhe compete a AT não desenvolva atividade instrutória relevante para a decisão fundamentada da situação tributária do contribuinte e depois invoque que não validou o cálculo do diferencial da Derrama, quando lhe cabia, se tivesse dúvidas, fazê-lo nessa sede e, se necessário, solicitar os elementos de suporte da contabilidade. Tal argumento deve ser votado ao insucesso.
48. Em síntese, a veracidade da documentação fiscal e contabilística da Requerente nunca foi questionada, nem se verifica nenhuma das situações previstas no artigo 75.º, n.º 2 da LGT suscetíveis de afastar tal presunção de veracidade. Por conseguinte, os factos refletidos na informação fiscal e contabilística da Requerente devem ser tomados por assentes, fidedignos e verdadeiros.
49. Consequentemente, terá também a Requerida que aceitar os dados constantes da contabilidade do sujeito passivo e as correspondentes declarações elaboradas com base nestes, nomeadamente a IES junta a este processo, a menos que, através de procedimento administrativo/inspetivo lograsse questionar validamente a sua veracidade. Algo que não fez.
50. Adicionalmente, argumenta a Requerida que, retirando apenas os rendimentos obtidos no estrangeiro, não se respeita o balanceamento contabilístico (matching principle) entre esses rendimentos e os gastos necessários para a sua geração, o que provoca, do ponto de vista de tributação, uma dupla subtração à base de incidência do imposto.
51. No entanto, importa ter em conta que se trata de rendimentos de capitais e mais-valias mobiliárias cuja obtenção é passiva, sendo que no caso das mais-valias já estamos perante um rendimento com natureza “líquida”, pois resulta da diferença entre o valor de aquisição dos ativos financeiros e o valor da sua venda, com os ajustamentos devidos (nomeadamente, correção monetária). Deste modo, tais rendimentos não têm associados gastos ou, no limite, apenas o teriam de forma muito residual. Em qualquer caso, novamente importa salientar que esta questão não foi suscitada no procedimento, nem constituiu fundamento do indeferimento da reclamação graciosa pela Requerida, pelo que improcede a sua arguição,
52. À face do exposto, deve a presente ação ser julgada procedente e anulada a (auto)liquidação de IRC referente ao período de tributação de 2021, na parte referente à derrama municipal, por erro de direito na determinação da base de incidência deste imposto, da qual têm de ser excluídos os rendimentos gerados fora do território nacional, não o tendo sido (v. artigo 163.º do Código do Procedimento Administrativo).
-
JUROS INDEMNIZATÓRIOS
53. Nesta matéria, importa considerar a redação dos n.ºs 1 e 2 do artigo 43.º, da LGT, que de seguida se transcreve:
“Artigo 43.º
Pagamento indevido da prestação tributária
1 - São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.
2 - Considera-se também haver erro imputável aos serviços nos casos em que, apesar de a liquidação ser efectuada com base na declaração do contribuinte, este ter seguido, no seu preenchimento, as orientações genéricas da administração tributária, devidamente publicadas”.
54. No presente caso, a Requerente alega, e não é contestado pela Requerida, que no preenchimento informático da sua Modelo 22 relativa ao período de 2021 não lhe foi possível indicar o lucro tributável desconsiderando a componente estrangeira.
55. Embora, de facto, a Requerida não tenha intervenção direta, pois estamos perante uma autoliquidação, foi o seu sistema que não permitiu liquidar o imposto de acordo com o entendimento da Requerente, ou seja, o sistema e o erro são ambos da responsabilidade dos Serviços da Requerida, situação agravada posteriormente pelo indeferimento da reclamação graciosa apresentada pela Requerente.
56. Tal bloqueio do sistema informático da AT não pode deixar de ser qualificado como erro imputável aos serviços. Nestes termos, deve a Requerente ser reembolsada do imposto indevidamente pago, acrescido do pagamento de juros indemnizatórios, contados a partir da data em que o erro imputável aos serviços se materializou, ou seja, desde a data em que a Requerente efetuou o pagamento da derrama municipal contestada (27 de maio de 2022), nos moldes partilhados por decisão arbitral anterior (v. processo 315/2024-T, de 29 de outubro de 2024).
-
DECISÃO
57. Termos em que o Tribunal Arbitral decide:
-
Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral, anulando-se parcialmente a autoliquidação de IRC impugnada, referente ao período de tributação de 2021, no relativo à derrama municipal, devendo esta ser recalculada excluindo da sua base os rendimentos obtidos no estrangeiro;
-
Condenar a Requerida no reembolso do imposto indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios contados desde 27 de maio de 2022;
-
Condenar a Requerida no pagamento das custas do processo.
-
VALOR DO PROCESSO
58. De harmonia com o estabelecido no artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT, por remissão do artigo 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”), e no artigo 306.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, este último ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT, fixa-se ao processo o valor de € 522.104,74 (quinhentos e vinte e dois mil cento e quatro euros, setenta e quatro cêntimos).
-
CUSTAS
59. A taxa de arbitragem, de € 7.956,00 (sete mil novecentos e cinquenta e seis euros), constitui encargo da Requerida, por sucumbência, nos termos do disposto nos artigos 4.º do RCPAT e Tabela I a este anexa, 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4 do RJAT.
Notifique-se.
Lisboa, 16 de janeiro de 2025
Os Árbitros,
Alexandra Coelho Martins
(Presidente)
António Pragal Colaço
(adjunto)
Luís Baptista
(adjunto relator)