Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 961/2024-T
Data da decisão: 2025-01-14  IRS  
Valor do pedido: € 32.136,32
Tema: Arts. 5.º, 1, h), e 6.º, 4, CIRS — Rendimento de capitais — Lançamento em conta corrente do sócio — Retenção na fonte.
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Sumário:

            I — O art. 6.º, 4, CIRS, consagra uma presunção relativa a rendimentos de capitais, de que as quantias escrituradas em quaisquer contas de sócios de sociedades comerciais ou civis sob forma comercial, quantias essas que não resultem de mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais, presumem-se feitos a título de lucros ou adiantamento dos lucros;

            II — A presunção de que os montantes transferidos para as contas dos sócios devem ser considerados como adiantamento de lucros, é uma presunção legal e não uma presunção simples, apenas natural ou judicial, e como tal, vale a regra constante do art. 350.°, 2, CCiv., própria para as presunções legais, as quais, para serem destruídas (nos casos em que a lei o permite) têm de ser ilididas mediante prova em contrário;

            III — Estando em causa a pretensa elisão de uma presunção legal relativa, impende sobre a Requerente o ónus de produzir prova do contrário (art. 6º, 5, CIRS), ou seja, de desenvolver atuação probatória dirigida contra o casuístico facto presumido, com o objetivo e de molde a convencer o julgador de que, não obstante a ocorrência do facto que serve de base ao funcionamento da presunção invocada, o facto presumido não se verificou e/ou o direito presumido não existe.

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

            O árbitro Ricardo Marques Candeias, designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formar o presente Tribunal Arbitral, decide nos termos que se seguem:

 

            I — RELATÓRIO

 

            A. Dinâmica processual

  1. A..., UNIPESSOAL LDA, titular do NIPC..., com sede na ..., ... ... ... Lisboa, apresentou pedido de pronúncia arbitral ao abrigo das disposições conjugadas dos arts. 2.º e 10.º do DL n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, com a redação introduzida pelo art. 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro (doravante, abreviadamente designado RJAT), para que seja anulada a liquidação n.º 2023 ... e demonstração de liquidação de retenções na fonte n.º 2023 ..., relativa ao Rendimento das Pessoas Singulares (‘IRS’) do período tributário de 2020, no montante de €32.136,32, e efetuada a restituição do imposto indevidamente pago acrescido dos juros indemnizatórios.
  2. No dia 12 de agosto de 2024 o pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite e automaticamente notificado à Requerentes e à AT.
  3. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no art. 6.º, 1, e art. 11.º, 1, b), RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou o signatário como árbitro do tribunal arbitral singular, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.
  4. Em 1 de outubro de 2024 as partes foram notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar.
  5. Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do art, 11.º, RJAT, o Tribunal Arbitral Singular foi constituído a 21 de outubro de 2024.
  6. A 25 de novembro de 2024, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua resposta, impugnando.
  7. A 3 de dezembro de 2024 foi proferido despacho arbitral no sentido de se pretender dispensar a realização da reunião a que se refere o art. 18.º, RJAT, facultando prazo de 5 dias para as partes se pronunciarem, querendo, sendo que a ausência de pronúncia seria tomada como concordando com a dispensa proposta, o que se verificou.
  8. A 5 de dezembro de 2024 a Requerente veio apresentar algumas considerações sobre a prova constante dos autos sendo que a 10 de dezembro de 2024 a AT juntou aos autos o PA.
  9. A 17 de dezembro de 2024, ao abrigo do disposto nas als. c) e e) do art. 16.º, e n.º 2 do art. 29.º, RJAT, foi dispensada a realização da reunião a que alude o art. 18.º, idem, bem como fixado o prazo de 15 dias para, em simultâneo, querendo, as partes apresentarem alegações escritas. Mais foi indicado que a decisão final ocorrerá até à data limite prevista no art. 21.º, n.º 1, RJAT.
  10. A 2 e a 8 de janeiro 2025, vieram, respetivamente, Requerente e Requerida, juntar aos autos as suas alegações.

 

            B. Posição das partes

            Para fundamentar o seu pedido alega a Requerente, em síntese, que as duas transferências bancárias de €50.000,00 cada, debitadas sobre o saldo da sua conta bancária, nos dias 9 e 13 de janeiro de 2020, a favor de conta bancária titulada pelo sócio desta, B..., não estão sujeitas a retenção na fonte em sede de IRS, contrariamente ao que concluiu o RIT, pois estamos perante um reembolso de uma dívida resultante da venda de quota e da totalidade das prestações suplementares detidas por este junto da C..., Lda., da qual também era sócio, e não por uma distribuição de dividendos.

            Considerando o referido não resulta qualquer facto tributário que permita concluir por se verificar a existência de rendimentos de capitais sujeito a retenção na fonte em sede de IRS como se de uma distribuição de dividendos se tratasse.

            Consequentemente, bate-se pela ilegalidade do ato de liquidação bem como solicita a restituição do valor pago e ainda os respetivos juros indemnizatórios.

            Para a AT, pelo contrário, o crédito constituído a favor de B... na contabilidade do SP não foi devida e inequivocamente comprovado pelo que não ocorreu qualquer reembolso de dívida seja a que título fosse, logo, os montantes transferidos a favor deste constituem rendimento dele próprio, sujeitos a retenção na fonte a título definitivo, no momento do seu pagamento, à taxa liberatória de 28%.

            Posto este enquadramento, pelas razões sobreditas, conclui a AT pela manutenção do ato impugnado.

 

            C. Thema decidendum

 

            A questão que constitui o thema decidendum centra-se em saber se devemos qualificar o pagamento efetuado pelo SP a favor de B..., no montante de €100.000,00, como sendo a título de distribuição de dividendos ou antes como o reembolso de uma dívida proveniente da compra de quota e de prestações suplementares por aquele detidas junto da C... Lda. Tudo passa por uma questão de prova, de ónus da prova e de presunções.

           

            II — SANEAMENTO

 

            O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído, nos termos dos arts. 2.º, 1, a), 5.º, 6.º, 1, e 10.º, 1, RJAT.

            O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, porque apresentado no prazo previsto no arts. 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAT.

            As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas (cf. arts. 4.º e 10.º, 2, RJAT, e art. 1.º, Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

            O processo não enferma de nulidades, não tendo sido invocadas quaisquer exceções ou questões prévias que obstem ao conhecimento de mérito e de que cumpra conhecer.

 

            III — FUNDAMENTAÇÃO

            A. MATÉRIA DE FACTO

            A.1. Factos dados como provados

A) A Requerente é uma sociedade unipessoal por quotas estando registada na atividade principal de “Outras atividades de consultoria para os negócios e a gestão (CAE 70220)”, desde 20 de julho de 2011, estando, para efeitos de IRC, enquadrada no regime geral de tributação desde 1 de janeiro de 2011.

B) Desde a sua constituição o seu único sócio e gerente é B..., titular do NIF ... .

C) C..., Lda, foi constituída em 2016 e tinha por objeto a "compra, venda e investimentos de imóveis e revenda dos adquiridos para esse fim. Construção e remodelação de imóveis. Promoção imobiliária no âmbito dos imóveis adquiridos com essa finalidade", com o capital social de €1.000,00, dividida em duas quotas de €500,00, cada uma, sendo uma detida por B... e outra por D... .

D) Resulta da nota de lançamento n.º .../..., com data valor de 22 de dezembro 2016, emitida pela Caixa Central de Crédito Agrícola Mútuo, sobre a conta ..., lançamento a crédito, na sequência de ordem de transferência tendo como ordenante B... e como destinatário C..., Lda., no valor de €238.000,00, com a informação "Transferência Recebida".

E) Na sequência de um aumento do capital social para €50.000,00, B... passou a ser titular de uma quota com o valor nominal de €4.167,00.

F) Por ata de 9 de janeiro de 2019, B... apresentou uma proposta visando a cessão da sua quota com o valor nominal de €4.167,00 da C..., Lda., a favor da ora Requerente, tendo sido prestado o adequado consentimento pela sociedade bem como os sócios prescindido do direito de preferência estatutariamente estabelecido.

G) Também da mesma ata resultam várias deliberações de divisão, cessão e unificação de quotas, tendo passado, a final, a ora Requerente a ser titular de uma quota com o valor nominal de €9.375,00.

H) Por contrato intitulado de "compra e venda de prestações suplementares", celebrado entre B..., com primeiro outorgante, e a Requerente, como segunda outorgante, datado de 9 de janeiro de 2019, declara aquele vender a esta, e esta comprar àquele, as prestações suplementares por aquele detidas no valor total de €245.833,00, pelo seu valor nominal.

I) Ainda resulta do contrato citado o seguinte:

 

J) Com data de 20 de dezembro de 2019 foi efetuada transferência bancária com movimento a débito sobre a conta titulada por C..., Lda., sedeada no Banco Montepio, e movimento a crédito sobre a conta titulada a favor da Requerente, com a referência "... REFUND", na importância de €150.000,00.

K) Nos dias 9 e 13 de janeiro de 2020 ocorreram duas transferências bancárias, de €50.000,00 cada uma, num total de €100.000,00, cujos movimentos foram levados a débito sobre o saldo de conta bancária da Requerente e levados a crédito sobre conta bancária titulada por B... .

L) Da contabilidade da C..., Lda., relativa ao período de 2015 a 2019 resulta:

 

M) Quanto ao exercício de 2017 constam os seguintes registos:

 

 

N) Relativamente ao exercício de 2019, constam os seguintes registos:

 

O) Da contabilidade da Requerente constam os seguintes registos:

 

 

 

 

 

 

 

P) A Requerente foi objeto de um procedimento de inspeção externa com âmbito parcial (IRC) relativo ao ano de 2020, credenciada pela ordem de serviço externa n.º OI2022..., de 9 de maio de 2022, tendo sido alargado para geral, por despacho de 29 de março de 2023, do Diretor de Finanças de Viana do Castelo, tendo o SP sido notificado do alargamento do âmbito da ação inspetiva através do ofício n.º ..., em 18 de abril de 2023.

Q) Após exercício do direito de audição prévia por parte da Requerente, do RIT resulta o seguinte:

 

 

 

 

 

 

(...)

 

 

 

 

R) Consequentemente, a Requerente foi notificada da liquidação n.º 2023 ... e demonstração de liquidação de retenções na fonte n.º 2023..., relativa ao IRS, do período tributário de 2020, no montante de €32.136,32.

S) Com data de 24 de janeiro de 2024 a Requerente efetuou o pagamento do imposto que agora impugna, no montante de €32.136,32.

T) A Requerente apresentou a devida reclamação graciosa, não tendo obtido qualquer resposta , verificando-se o indeferimento tácito a 27 de maio de 2024.

 

            A.2. Factos dados como não provados

            Com relevo para a decisão, não foram identificados factos que devam considerar-se como não provados.

 

            A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada

            Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem de se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. art. 123.º, 2, CPPT, e art. 607.º, 3, CPC, aplicáveis ex vi art. 29.º, 1, a) e e), RJAT).

            Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de direito (cfr. anterior art. 511.º, 1, CPC, correspondente ao atual art. 596.º, aplicável ex vi art. 29.º, 1, e), RJAT).

            Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do art. 110.º, 7, CPPT, e a prova documental aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.

            Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada.

            Na verdade, segundo o princípio da livre apreciação da prova, o Tribunal baseia a decisão, em relação às provas produzidas, na íntima convicção, formada a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo e de acordo com a experiência de vida e conhecimento das pessoas, conforme o n.º 5 do art. 607.º do CPC.

            Somente quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (v.g., força probatória plena dos documentos autênticos, conforme artigo 371.º, CCiv.) é que não domina na apreciação das provas produzidas o princípio da livre apreciação.

           

 

            B — DE DIREITO

           

            Resulta da matéria dada como provada que em janeiro de 2020 a Requerente transferiu €100.000,00 para B..., seu sócio e gerente.

           

            A AT presume tal transferência como sendo a título de lucros ou adiantamento dos lucros, nos termos do art. 5.º, 1, 2, h), e art. 6.º, CIRS.

            Por sua vez, a Requerente alega que a mencionada transferência tem subjacente o pagamento de parte do preço resultante da compra por ela efetuada da quota e de prestações suplementares detidas pelo referido B... no valor total de €245.833,00 junto da C..., Lda., pelo seu valor nominal.

            Assim, o thema decidendum submetido à apreciação deste Tribunal exige, essencialmente, a aplicação ao caso concreto da presunção resultante do art. 6.º, 4, CIRS, tendo em vista aquilatar se o ato tributário controvertido padece de vício de violação de lei, por erro sobre os pressupostos de facto e de direito.

 

            B.1. A presunção estabelecida pelo artigo 6.º, 4, CIRS

           

            Importa, primeiramente, colher o quadro normativo a aplicar ao presente caso.

            O art. 5.º, 1, CIRS determina que se consideram "rendimentos de capitais os frutos e demais vantagens económicas, qualquer que seja a sua natureza ou denominação, sejam pecuniários ou em espécie, procedentes, direta ou indiretamente, de elementos patrimoniais, bens, direitos ou situações jurídicas, de natureza mobiliária, bem como da respetiva modificação, transmissão ou cessação, com exceção dos ganhos e outros rendimentos tributados noutras categorias."

            Por sua vez, o n.º 2, idem, positiva compreenderem "Os frutos e vantagens económicas referidos no número anterior (...), designadamente (...) os lucros e reservas colocados à disposição dos associados ou titulares e adiantamentos por conta de lucros, com exclusão daqueles a que se refere o artigo 20.º" (al. h)).

            O art. 6.º, CIRS, prescreve o regime das presunções relativas a rendimentos da categoria E, do qual resulta que "os lançamentos a seu favor, em quaisquer contas correntes dos sócios, escrituradas nas sociedades comerciais ou civis sob forma comercial, quando não resultem de mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais, presumem-se feitos a título de lucros ou adiantamento dos lucros." (n.º 4).

            O n.º 5, idem, por sua vez, postula que "As presunções estabelecidas no presente artigo podem ser ilididas com base em decisão judicial, ato administrativo, declaração do Banco de Portugal ou reconhecimento pela Autoridade Tributária e Aduaneira."

            Além dos dispositivos citados, importa ainda considerar, para efeitos de enquadramento, os preceitos seguintes, todos do CIRS:

            ­— art. 7.º, 1 (“Os rendimentos referidos no artigo 5.º ficam sujeitos a tributação desde o momento em que se vencem, se presume o vencimento, são colocados à disposição do seu titular, são liquidados ou desde a data do apuramento do respetivo quantitativo, conforme os casos”) e 3, a), 2) (“Para efeitos do disposto no n.º 1, atende-se: a) quanto ao n.º 2 do artigo 5.º: (…) 2) A colocação à disposição, para os rendimentos referidos nas alíneas h), i), j), l) e r), assim como dos certificados de consignação”);

            — art. 71.º, 1, a) (“Estão sujeitos a retenção na fonte a título definitivo, à taxa liberatória de 28%: a) Os rendimentos de capitais obtidos em território português, por residentes ou não residentes, pagos por ou através de entidades que aqui tenham sede, direção efetiva ou estabelecimento estável a que deva imputar-se o pagamento e que disponham ou devam dispor de contabilidade organizada”);

            — artigo 98.º, 1 (“Nos casos previstos nos artigos 99.º a 101.º e noutros estabelecidos na lei, a entidade devedora dos rendimentos sujeitos a retenção na fonte, as entidades registadoras ou depositárias, consoante o caso, são obrigadas, no ato do pagamento, do vencimento, ainda que presumido, da sua colocação à disposição, da sua liquidação ou do apuramento do respetivo quantitativo, consoante os casos, a deduzir-lhes as importâncias correspondentes à aplicação das taxas neles previstas por conta do imposto respeitante ao ano em que esses atos ocorrem”);

            ­— art. 101.º, 2, a) (“Tratando-se de rendimentos referidos no art. 71.º, a retenção na fonte nele prevista cabe: a) Às entidades devedoras dos rendimentos referidos nos números 1 e 4 e na alínea c) do n.º 12 do artigo 71.º”).

            No campo doutrinal importa considerar o estudo de alguns autores, com relação ao normativo em causa.

            Assim, José Guilherme Xavier de Bastos, IRS: Incidência real e determinação dos rendimentos líquidos, Coimbra, Coimbra Editora, 2007, pp. 338 a 340, considera “A previsão de presunções deriva da própria natureza dos rendimentos de capitais, alguns deles de relativamente fácil sonegação. Assim, em certos casos, a lei presume a existência desses rendimentos, (…).

            De qualquer modo, destinadas a prevenir fraudes, estas presunções, além de poderem ser ilididas, são um conjunto limitado, como é próprio de um imposto que visa a tributar o rendimento real e efetivo.

            Estão restritas aos casos, muito contados, em que há risco de ocultação de rendimentos. (…)

            Finalmente, no n.º 4, presume-se que as quantias escrituradas em quaisquer contas de sócios de sociedades comerciais ou civis em forma comercial, que não resultem de mútuos, de prestação de trabalho ou de exercício de cargo social, correspondem a lucros ou adiantamentos por conta de lucros. (…) Com esta presunção, procede-se a uma qualificação supletiva de quantias, cuja causa não esteja expressa nas contas correntes em causa. (…) O que a lei, com aquela presunção, quis resolver foi a qualificação das quantias escrituradas cuja “causa” jurídica não foi expressamente declarada.”

            Por sua vez, Paula Rosado Pereira, Manual de IRS, 2.ª edição, Almedina, Coimbra, 2019, pp. 136-137, "o legislador fiscal considerou não ser possível abdicar da adoção de algumas presunções relativamente aos rendimentos de capitais. Entre as razões subjacentes ao recurso a tais presunções, conta-se a dificuldade sentida pela AT, face à natureza específica dos rendimentos desta categoria, em assegurar a eficiência da tributação. As presunções desempenham a função de facilitar a prova da AT relativamente à existência de certos rendimentos e à respetiva quantificação.

(…)

            Para que se verifique a ilisão da presunção, é necessário que, por qualquer das formas (…) referidas [no art. 6.º, 5, C IRS], se provem factos, condições ou taxas de juro distintas dos que resultariam da aplicação da presunção."

            Nos nossos tribunais superiores encontramos algumas decisões cujas conclusões nos parecem relevantes para o presente caso, para efeitos de enquadramento.

            Vg., resulta do acórdão de 15 de dezembro de 2004, proferido pelo STA, processo n.º 01187/04, que "(...) não se prevendo, no regime anterior, qualquer limitação quanto aos meios de prova de que o interessado pudesse lançar mão para o efeito, não se vê, face ao atual quadro legal, que o processo de formação da dita decisão judicial não se possa apoiar, (…), em prova testemunhal e/ou documental.”

            Por sua vez, o acórdão de 13 de outubro de 2009, do TCASul, processo n.º 03221/09, conclui o seguinte: “I) Só os lançamentos feitos em conta de sócio (e que não se prova que respeitem a alegados mútuos) se presumem, face ao disposto no n.º 4 do art. 7.º do CIRS, feitos a título de lucros ou adiantamento de lucros. II) Concluindo-se que os lançamentos feitos em conta corrente de sócios não resultam de mútuos, de prestação de trabalhos ou do exercício de cargos sociais, têm os mesmos que ter-se, presumidamente, como feitos a título de lucros ou de adiantamento dos lucros (n.º 4, in fine, do art. 7.º do CIRS). III) As presunções estabelecidas nesse preceito legal podem ser ilididas com base em decisão judicial, ato administrativo, declaração do Banco de Portugal ou reconhecimento pela Direção - Geral das Contribuições e Impostos.”

            Também com interesse, cf. o acórdão de 4 de junho de 2015, também do TCASul, processo n.º 07246/13: “1- Para que a presunção constante do n.º 4 do art. 7.º do CIRS (em vigor em 2000) possa funcionar é necessário que se mostre provada a base da presunção (…), sob pena de a mesma não poder operar e a causa ter de ser decidida contra a parte onerada com esse ónus da prova, ou seja, que a importância em causa tenha sido escriturada como lançamento na respetiva conta corrente do sócio e que não resultava de mútuo, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais. 2- Tal prova que cabe à Administração Fiscal.”

            O acórdão de 18 de fevereiro de 2016, ainda do TCASul, processo n.º 08760/15, por sua vez, decreta " 5. O art. 5.º, n.º 2, al. h), do C.I.R.S., sistematicamente inserido na categoria de incrementos patrimoniais (normas de incidência real), consagra como rendimentos de capitais sujeitos a incidência de IRS os lucros, incluindo o adiantamento por conta de lucros, colocados à disposição dos respetivos associados. 6. O art. 6.º, 4, do C.I.R.S., consagra uma presunção relativa a rendimentos de capitais, de que as quantias escrituradas em quaisquer contas de sócios de sociedades comerciais ou civis sob forma comercial, quantias essas que não resultem de mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais, presumem-se feitos a título de lucros ou adiantamento dos lucros. Com esta presunção o legislador quis resolver a qualificação das quantias escrituradas nas contas correntes dos sócios, cuja "causa" jurídica não tenha sido expressamente declarada, assim conduzindo a que tais montantes tenham o tratamento dos lucros distribuídos. Estamos, portanto, perante presunção legal (estabelecida expressa e diretamente na lei), sendo incidente sobre o facto gerador do imposto.

7. Estando em causa a pretensa ilisão de uma presunção legal relativa (iuris tantum), impendia sobre o impugnante e ora recorrente, o ónus de produzir prova do contrário (cfr. art. 350.º, n.º 2, do CCivil), ou seja, de desenvolver atuação probatória dirigida contra o casuístico facto presumido, com o objetivo e de molde a convencer o julgador de que, não obstante a ocorrência do facto (lançamentos em contas correntes dos sócios, escrituradas em sociedades comerciais) que serve de base ao funcionamento da presunção invocada, o facto presumido não se verificou

e/ou o direito presumido não existe. Acresce, tratando-se da presunção prevista no art. 6.º, n.º 4, do C.I.R.S., por força do disposto, de forma expressa, no n.º 5 do mesmo normativo, a necessidade incontornável de a mesma só poder ser ilidida pelos quatro meios de prova aí, taxativamente, previstos, decisão judicial, ato administrativo, declaração do Banco de Portugal ou reconhecimento pela Direcção-Geral dos Impostos, consagrando a lei procedimento probatório específico para o efeito no art. 64.º do C.P.P.T.”

            O CAAD também tem produzido inúmera jurisprudência arbitral sobre o assunto.

            Cfr., por todos, a decisão proferida no proc. 385/2022-T, que conclui da seguinte forma: "I) O art. 6.º, n.º 4, do C.I.R.S., consagra uma presunção relativa a rendimentos de capitais, de que as quantias escrituradas em quaisquer contas de sócios de sociedades comerciais ou civis sob forma comercial, quantias essas que não resultem de mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais, presumem-se feitos a título de lucros ou adiantamento dos lucros. II) Estando em causa a pretensa elisão de uma presunção legal relativa, impendia sobre a Requerente, o ónus de produzir prova do contrário (art. 6º, n.º 5 do CIRS), ou seja, de desenvolver atuação probatória dirigida contra o casuístico facto presumido, com o objetivo e de molde a convencer o julgador de que, não obstante a ocorrência do facto que serve de base ao funcionamento da presunção invocada, o facto presumido não se verificou e/ou o direito presumido não existe."

            Isto posto, vejamos então o caso concreto.

            Determina o 349.º, CCivil, serem as presunções “as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido".

            De acordo com Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume I, 4.ª edição revista e atualizada, Coimbra, Coimbra Editora, 1987, p. 312, nas presunções “supõe-se a prova dum facto conhecido (base da presunção), do qual, depois, se infere o facto desconhecido.

            As presunções podem ser legais, se estabelecidas pela lei, ou judiciais, simples ou de experiência, quando assentam no simples raciocínio de quem julga. Estas últimas inspiram-se nas máximas de experiência, nos juízos correntes de probabilidade, nos princípios da lógica ou nos próprios dados da intuição humana.”

            Como resulta da doutrina e da jurisprudência citadas, a presunção resultante do art. 6.º, 4, CIRS, é uma presunção legal e não uma presunção simples, natural ou judicial, que tenha por base os dados da experiência comum.

            Por outro lado, como verificamos, é uma presunção iuris tantum na medida em que, nos termos do n.º 5, do citado preceito, pode ser ilidida mediante prova em contrário.

            Cabe à Requerida o ónus de provar que se verificam os pressupostos legais vinculativos que permitam beneficiar da presunção da lei e à Requerente o ónus de realizar prova em contrário da qual resulte o inverso do que o legislador pretendeu com a presunção.

            Resulta do probatório, assente especialmente nos documentos relativos às transferências bancárias e aos extratos de conta da Requerente e da C..., bem como dos contratos celebrados:

            i) Transferência bancária datada de 22 de dezembro 2016, no montante de €238.000,00 por B... a favor da C...;

            ii) Extrato de conta 2685000001, da C..., emitida a 31 de maio de 2017, resulta a existência de dívida desta entidade no montante de €245.833,00 favor de B...;

            iii) Dessa mesma conta, em nome de B..., resulta demonstrada contabilisticamente conforme descritivo serem prestações suplementares deste a favor da referida sociedade;

            iv) A 9 de janeiro de 2019, a venda por B... a favor da Requerente da participação social que detinha na C... bem como a totalidade das prestações suplementares que detinha sobre esta;

            v) A 20 de dezembro de 2019, devolução parcial das prestações suplementares pela C... a favor da Requerente no montante de €150.000,00;

            vi) Duas transferências bancárias, de €50.000,00 cada uma, num total de €100.000,00, ordenadas pela Requerente a favor de B... .

            A Requerida, aquando da elaboração do RIT, embora  reconheça a transferência bancária efetuada, no ano de 2016, por B... para a sociedade C..., no valor de €238.000,00, e a transferência bancária efetuada pela C... para a A..., no ano de 2019, no valor de €150.000,00, assenta a sua posição no facto de não terem sido remetidos pela Requerente os registos contabilísticos de suporte aos alegados movimentos bancários bem como de não terem sido apresentadas evidências do registo efetuado na contabilidade da Requerente relativo ao reconhecimento do alegado crédito a favor do sócio B..., no ano de 2019, relativo à compra por aquela da quota e prestações suplementares da sociedade C... ao mencionado sócio.

            Portante, considerava a Requerida que a causa jurídica do recebimento por parte de B... dos €100.000,00 por parte da Requerente não se encontrava inequivocamente demonstrava, daí ter lançado mão da presunção do art. 6.º, 4, CIRS, e, consequentemente, ter concluído estar perante a distribuição de lucros a favor daquele, logo, rendimentos da categoria E, sujeitos a retenção na fonte.

            Ora, à Requerente competia ilidir a presunção em apreço, mediante prova em contrário a efetuar por um dos meios que expressamente estão previstos no art. 6.º, 5, CIRS.

             Nesse ponto, acompanhamos o que foi vertido no acórdão proferido no proc. n.º 395/2017-T do CAAD, no sentido de que “é possível essa ilisão no próprio processo de impugnação judicial e/ou arbitral, que, consabidamente, foi legalmente configurado como uma alternativa directa àquele. Face ao decidido no Acórdão do STA de 15-12-2004, proferido no processo 01187/04, (…), não haverá dúvidas que a resposta a tal questão deverá ser afirmativa, concluindo-se que nada impede que a decisão judicial a que alude o art. 6.º, n.º 5 do CIRS aplicável seja proferida em processo de impugnação judicial ou em processo arbitral tributário, e que, não se prevendo qualquer limitação quanto aos meios de prova de que o interessado possa lançar mão para o efeito, o processo de formação da decisão judicial de tais processos se possa apoiar em prova testemunhal e/ou documental.”

            Ora, verificamos ter a Requerente juntado aos autos os registos contabilísticos de suporte aos alegados movimentos bancários bem como o registo efetuado na contabilidade da Requerente relativo ao reconhecimento do alegado crédito a favor do sócio B... .

            Isto é, para nós resulta indubitável, face à prova produzida, que o recebimento de €100.000,00, por parte de B... é o pagamento de parte do preço acordado entre a Requerente e aquele em resultado da venda da quota que detinha na C... e dos créditos resultantes da realização de prestações suplementares e não, como pretende a Requerida, uma distribuição de lucros.

            Neste cenário e face aos factos dados por provados, impõe-se concluir que a Requerente ilidiu a presunção positivada pelo art. 6.º, 4, CIRS, como lhe estava legalmente imposto, uma vez que produziu prova suficiente – “prova em contrário” – que permita concluir pela não verificação do facto presumido.

            Com efeito, uma vez que o facto presumido consiste em considerar que o mencionado lançamento na conta corrente do dito sócio da Requerente, escriturada na sociedade, foi feito a título de adiantamento por conta de lucros, impende então sobre a Requerente o ónus de produzir prova em contrário, ou seja, de desenvolver uma atuação probatória dirigida contra o facto presumido, visando convencer o julgador de que, apesar da ocorrência do facto que serve de base à invocada presunção (lançamento a seu favor, em conta corrente do sócio, escriturada na sociedade), o facto presumido não se verificou.

            Tendo a Requerente invocado a existência de um contrato de venda de quota e de prestações suplementares, ele existir, assim como ter juntado os comprovativos das transferências bancárias bem como dos extratos de contas que suportam o alegado, não restam dúvidas que o valor recebido pelo sócio o foi a título de pagamento de parte do preço do negócio melhor identificado, acrescentando-se ainda o disposto no art. 75.º, LGT, ao presumir "como verdadeiras e de boa-fé as declarações dos contribuintes apresentadas nos termos previstos na lei, bem como os dados e apuramentos inscritos na sua contabilidade ou escrita, quando estas estiverem organizadas de acordo com a legislação comercial e fiscal".

            Consequentemente, o referido lançamento feito na conta corrente do dito sócio da Requerente, escriturada na sociedade, no valor de €100.000,00, não foi colocada à disposição daquele sócio da Requerente a título de adiantamento por conta de lucros, pelo que não constitui um rendimento de capitais logo não se encontra sujeito a retenção na fonte, contrariamente aos termos legais enunciados no RIT.

            Sendo assim, sem mais considerandos, porque desnecessários, importa julgar procedente a presente ação, anulando-se a liquidações já melhor identificadas, por erro nos pressupostos de facto.

 

             B.2. O pedido de reembolso de quantia indevidamente paga e juros indemnizatórios

            A Requerente formula um pedido de reembolso do valor indevidamente pago bem como o pagamento dos juros indemnizatórios.

            É jurisprudência uniforme — maxime, cf. Ac. 630/2014-T, CAAD — que de acordo com disposto no art. 24.º, 1, b), RJAT "a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a administração tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, «restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito».

            E continua o citado Ac.: "Com efeito, apesar de o processo de impugnação judicial ser essencialmente um processo de mera anulação (arts. 99.º e 124.º do CPPT), pode nele ser proferida condenação da administração tributária no pagamento de juros indemnizatórios e de indemnização por garantia indevida.

            Sendo processualmente viável apreciar o pedido de juros indemnizatórios será necessariamente também possível apreciar o pedido de reembolso da quantia indevidamente paga, cujo montante é factor de determinação do montante dos juros indemnizatórios.

            Assim, à semelhança do que sucede com os tribunais tributários em processo de impugnação judicial, este Tribunal Arbitral é competente para apreciar os pedidos de reembolso da quantia paga e de pagamento de juros indemnizatórios.

            Ficou dado como provado (art. 110.º, 7, CPPT, ex vi, art. 29.º, RJAT, e art 16.º, e), RJAT) que a Requerente pagou a quantia liquidada acima identificada.

            Consequentemente, determino que a AT reembolse a Requerente do valor de liquidação indevidamente pago, porque não devido, conforme fundamentação já expedida supra.

 

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            Quanto aos juros indemnizatórios.

     Determina o art. 24.º, 5, RJAT que "“é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na lei geral tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”.

     Nos processos arbitrais tributários pode haver lugar ao pagamento de juros indemnizatórios, nos termos do disposto nos artigos 43.º, e 100.º, LGT, quando se determine que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.

     Este “erro imputável aos serviços” é uma responsabilidade objetiva, independente de culpa, e corresponde a qualquer ilegalidade, não imputável ao SP mas à AT, com ressalva do erro na autoliquidação — cf. acórdão STA, proc. n.º 0886/14, proferido em 19 de novembro de 2014, e acórdão STA, proc. n.º 0771/08, proferido em 21 de janeiro de 2009.

     Posto isto, são devidos juros indemnizatórios à Requerente desde a data do pagamento do imposto indevido até à data da emissão da respetiva nota de crédito, à taxa de 4% (cf. arts. 43.º, 4, e 35.º, 10, ambos da LGT, e artigo 1.º da Portaria 291/2003, de 8 de abril), tudo nos termos do disposto art. 61.º, 3, CPPT.

 

 

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            IV — DECISÃO

 

            Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral:

            a) julgar procedente o pedido arbitral formulado e, em consequência, anular as liquidações já melhor identificadas, com as legais consequências;

            b) condenar a Requerida na restituição do total do montante indevidamente pago pela Requerente, acrescido de juros indemnizatórios à taxa legal, desde a data do pagamento até integral reembolso;

b) Condenar a Requerida no pagamento integral das custas do presente processo.

 

            V — Valor do processo

            Fixa-se o valor do processo em € 32.136,32, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 3 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

            VI — Custas

 

            Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em €1.836,00 nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, conforme o disposto no artigo 22.º, 4, RJAT.

 

Notifique-se.

Lisboa, 14 de janeiro de 2025

 

O Árbitro Singular

 

(Ricardo Marques Candeias)