Sumário
A anulação administrativa do ato tributário impugnado na ação arbitral implica a destruição dos respetivos efeitos jurídicos constitutivos com eficácia retroativa, retirando à lide arbitral o seu objeto. Ocorre, assim, uma situação de impossibilidade superveniente da lide, por não poder anular-se juridicamente o que não existe, com a consequente extinção da instância arbitral.
DECISÃO ARBITRAL
Os árbitros Alexandra Coelho Martins (presidente), Ana Catarina Guerra Rodrigues Breia e António Cipriano da Silva, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 29 de outubro de 2024, acordam no seguinte:
I. Relatório
a..., S.A., doravante “Requerente”, com o número único de matrícula e de pessoa coletiva ..., com sede na ..., n.º ..., ...-... ..., veio requerer a constituição de Tribunal Arbitral e deduzir pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 10.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2 do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, conjugados com o disposto no artigo 99.º, alínea a) e 102.º, n.º 1, alínea e) do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”) e do artigo 137.º, n.º 1 do Código do IRC.
É demandada a Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante referida por “AT” ou “Requerida”.
A Requerente pretende que seja declarada a ilegalidade, e consequente anulação, da liquidação adicional de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (“IRC”) referente ao período de tributação de 2020, com o n.º 2024 ..., emitida em 3 de abril de 2024, no valor a reembolsar de € 152.132,32, e da respetiva demonstração de acerto de contas com o n.º 2024..., que resultou no valor a pagar de € 103.598,45, incluindo juros compensatórios (de € 9.963,75).
Para tanto, invoca erro sobre os pressupostos de facto imputável à AT e consequente vício de violação de lei, com o consequente reembolso do imposto pago acrescido de juros indemnizatórios à taxa legal em vigor. Contesta a desconsideração do disposto no artigo 51.º do Código do IRC, relativamente aos lucros distribuídos pela sociedade B..., Lda., sediada na Zona Franca da Madeira.
Em 26 de agosto de 2024, o pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite e, de seguida, notificado à AT.
Em conformidade com o disposto nos artigos 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a) e 11.º, n.º 1, alínea a), todos do RJAT, o Exmo. Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os árbitros do Tribunal Arbitral Coletivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável. As Partes, notificadas dessa designação, não manifestaram vontade de a recusar (v. artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e c) do RJAT e artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD).
O Tribunal Arbitral Coletivo ficou constituído em 29 de outubro de 2024.
Na mesma data, o Tribunal Arbitral proferiu despacho de notificação da Requerida para apresentação de resposta no prazo de 30 dias.
Por requerimento de 2 de dezembro de 2024, a Requerida veio aos autos:
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Comunicar a anulação total, e consequente revogação, do ato tributário impugnado, por despacho de 11 de novembro de 2024 (Processo ...2024...) da Subdiretora-Geral do IRC, que determinou:
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A remessa desta informação à DSCJC;
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A comunicação da decisão à Direção de Finanças do Porto para efeitos da execução do Despacho; e
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A notificação do sujeito passivo e do seu mandatário, nos termos do artigo 13.º, n.º 2 do RJAT; e
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Requerer a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide.
Notificada a Requerente para se pronunciar, esta manifestou-se, por requerimento de 19 de dezembro de 2024, no sentido de não se opor à inutilidade superveniente da lide promovida pela Requerida, requerendo a condenação desta última em custas, por lhe ser imputável a constituição deste Tribunal Arbitral.
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Fundamentação
1. Anulação Administrativa do Ato Tributário Impugnado - Impossibilidade Superveniente da Lide
O ato tributário sindicado, que constitui o objeto principal desta ação, foi anulado administrativamente.
Nestas circunstâncias, o pedido de anulação da liquidação adicional de IRC (incluindo juros compensatórios) n.º 2024..., emitida em 3 de abril de 2024, relativa ao exercício económico de 2020, ficou sem objeto, pois, com a anulação administrativa, os respetivos efeitos jurídicos foram destruídos com eficácia retroativa, de acordo com o preceituado no artigo 171.º, n.º 3 do Código do Procedimento Administrativo (“CPA”), verificando-se uma impossibilidade superveniente da lide. Como refere a Decisão Arbitral no processo n.º 31/2013-T, do CAAD, de 4 de novembro de 2013, “torna-se impossível juridicamente anular o que já não existe”.
Importa ter em conta que o conceito de “revogação” até à entrada em vigor do novo CPA, em 8 de abril de 2015, na sequência da aprovação do Decreto-Lei n.º 4/2015, de 7 de janeiro, abrangia quer a revogação anulatória com fundamento em ilegalidade, quer a revogação por razões de oportunidade e mérito.
Com o novo CPA, o conceito de revogação administrativa ficou restrito a esta segunda modalidade. Conforme prevê o atual artigo 165.º do CPA, sob a epígrafe “Revogação e anulação administrativas”, a revogação é o ato administrativo que determina a cessação dos efeitos de outro ato, por razões de mérito, conveniência ou oportunidade (n.º 1), e a anulação administrativa é o ato administrativo que determina a destruição dos efeitos de outro ato, com fundamento em invalidade (n.º 2). É neste último segmento que se insere o ato que eliminou a liquidação adicional de IRC referente ao período de tributação de 2020, em discussão nos autos.
Deste modo, a revogação a que se reporta o artigo 79.º da LGT corresponde ao que hoje, à luz do CPA, se denomina de “anulação administrativa”, cujo regime consta dos artigos 163.º “Atos anuláveis e regime da anulabilidade” (anteriores artigos 135.º e 136.º); 166.º “Atos insuscetíveis de revogação ou anulação administrativas” (anterior artigo 139.º) e 168.º “Condicionalismos aplicáveis à anulação administrativa” (cujo n.º 2 corresponde ao anterior artigo 141.º), todos do CPA.
À face do exposto, conclui-se que a anulação administrativa comunicada pela Requerida ao processo, em 2 de dezembro de 2024, dá satisfação à pretensão anulatória do ato tributário de IRC em crise, no valor de € 152.132,32, retirando à lide arbitral o seu objeto.
Termos em que se julga extinta a instância processual, com a absolvição da AT da instância, ao abrigo do disposto nos artigos 277.º, alínea e) e 611.º do CPC, aplicáveis por remissão do artigo 29.º, n.º 1 alínea e) do RJAT.
2. Responsabilidade para Efeitos de Custas
De acordo com o regime geral em matéria de custas, a impossibilidade ou inutilidade da lide é imputável à Requerida, que anulou o ato tributário ilegal após a apresentação do pedido de pronúncia arbitral pela Requerente, tendo a respetiva comunicação aos autos ocorrido após o decurso do prazo de 30 dias previsto no artigo 13.º, n.º 1 do RJAT, solução que se extrai do cotejo dos artigos 4.º, n.º 5 do RCPAT, 12.º, n.º 2 do RJAT, e 527.º e 536.º, n.º 3 do CPC, neste último caso por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.
Assim, vai a Requerida condenada nas custas do processo.
III. Decisão
À face do exposto, acordam os árbitros deste Tribunal Arbitral em:
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Julgar extinta a instância, por impossibilidade superveniente da lide;
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Condenar a Requerida nas custas do processo, por ter dado azo à ação.
IV. Valor do Processo
Fixa-se ao processo o valor de € 152.132,32, correspondente ao valor constante da liquidação adicional de IRC objeto da ação arbitral, incluindo juros compensatórios, e não impugnado pela Requerida – v. artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT, aplicável por remissão do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”).
Assinala-se, como referido na decisão arbitral n.º 178/2019-T, de 20 de abril de 2020, que a determinação do valor da causa atende ao momento em que a ação é proposta (v. artigo 299.º, n.º 1, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT), sendo irrelevantes, como afirma Jorge Lopes de Sousa, “as modificações de valor que possam advir da revogação, ratificação, reforma ou conversão do ato tributário cuja ilegalidade foi suscitada ou de desistência ou redução de pedidos” – v. Guia da Arbitragem Tributária, Coord.: Nuno Villa-Lobos e Mónica Brito Vieira, 2013, Almedina, p. 153.
V. Custas
Custas no montante de € 3.672,00, de acordo com a Tabela I anexa ao RCPAT e com o disposto nos artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4 do RJAT, 4.º, n.º 5 do RCPAT e 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT, a cargo da Requerida, uma vez que lhe é imputável a causa de extinção da instância.
Notifique-se.
Lisboa, 23 de dezembro de 2024
Os árbitros,
Alexandra Coelho Martins, relatora
Ana Catarina Guerra Rodrigues Breia
António Cipriano da Silva