Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 184/2024-T
Data da decisão: 2025-01-08  IRS  
Valor do pedido: € 64.992,27
Tema: IRS - Residência fiscal; regime fiscal dos ex-residentes; caducidade do direito de acção.
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SUMÁRIO

  1. A qualificação como residente para efeitos fiscais em Portugal é determinada pela correcta subsunção nos critérios constantes do art.º 16.º do Código do IRS.
  2. O artigo 12.º-A do Código do IRS estabelece uma medida excepcional de carácter automático, não estando a sua aplicação dependente de qualquer acto de reconhecimento por parte da AT, mas apenas do preenchimento dos respectivos pressupostos.
  3. O conhecimento da excepção dilatória de intempestividade ou de caducidade do direito de acção é oficioso, além de poder ser alegado em qualquer fase do processo, e pode conduzir à absolvição da instância, impedindo a decisão sobre o mérito, mas não impedindo a propositura de outra acção sobre o mesmo objecto.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

I – Relatório

 

  1. A..., NIF ... (doravante “primeiro Requerente”), e B..., NIF ..., (doravante “a Requerente”) (doravante, conjuntamente “os Requerentes”) apresentaram, no dia 8 de Fevereiro de 2024, um pedido de constituição de Tribunal Arbitral Colectivo, nos termos dos artigos 5.º, 2, 6.º, 1 e 10.º, 2 do Decreto-Lei nº 10/2011, de 20 de Janeiro, com as alterações por último introduzidas pela Lei nº 7/2021, de 26 de Fevereiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante “RJAT”), e dos arts. 1º e 2º da Portaria nº 112-A/2011, de 22 de Março, em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante “AT” ou “Requerida”).
  2. Os Requerentes pediram a pronúncia arbitral sobre a ilegalidade da liquidação adicional de IRS dos anos de 2020, 2021 e 2022, por se considerarem com direito a serem abrangidos pelo Regime Fiscal aplicável a Ex-Residentes, previsto pelo art. 12.º-A do Código do IRS (doravante, “CIRS”).
  3. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT.
  4. O Conselho Deontológico designou os árbitros do Tribunal Arbitral Colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável, e notificou as partes dessa designação.
  5. As partes não se opuseram, para efeitos dos termos conjugados dos arts. 11º, 1, b) e c), e 8º do RJAT, e arts. 6º e 7º do Código Deontológico do CAAD.
  6. O Tribunal Arbitral Colectivo ficou constituído em 19 de Abril de 2024; foi-o regularmente, e é materialmente competente.
  7. Por Despacho de 22 de Abril de 2024, foi a AT notificada para, nos termos do art. 17º do RJAT, apresentar resposta.
  8. A AT apresentou a sua Resposta em 27 de Maio de 2024, juntamente com o Processo Administrativo.
  9. No dia 29 de Maio de 2024 a Requerida apresentou um Requerimento informando da revogação parcial dos actos impugnados, mantendo contudo as liquidações de IRS referentes à Requerente B...:
  • do ano de 2021, nº 2022..., de 24-10-2022, com valor a pagar de €48.919,40.
  • do ano de 2022, nº 2023..., de 03-02-2023, com valor a pagar de €14.891,15.
  1. Por Despacho de 31 de Maio de 2024, foi solicitado dos Requerentes que informassem se tinham notificados da revogação, e foi-lhe concedido exercerem o contraditório, querendo.
  2. Por requerimento de 11 de Junho de 2024, os Requerentes informaram que mantinham o interesse na continuação do processo, na parte respeitante às liquidações mantidas, relativamente à Requerente. B... .
  3. Por Despacho de 18 de Junho de 2024, foi a Requerente notificada para se pronunciar sobre a matéria de excepção suscitada pela Requerida na sua resposta de 27 de Maio de 2024; o que a Requerente fez, por requerimento de 1 de Julho de 2024.
  4. Por Despacho de 9 de Julho de 2024, foi dispensada a realização da reunião prevista no art. 18º do RJAT, e convidadas as partes a apresentar alegações escritas.
  5. A Requerente apresentou alegações em 22 de Julho de 2024.
  6. A Requerida não apresentou alegações.
  7. Por Despacho de 10 de Dezembro de 2024, o Tribunal convidou as partes a tomarem posição sobre a excepção de intempestividade do Pedido de Pronúncia, suscitada pelo próprio Tribunal; o que ambas as partes fizeram, a Requerida em requerimento de 3 de Janeiro de 2025, a Requerente em requerimento de 6 de Janeiro de 2025.
  8. As Partes têm personalidade e capacidade judiciárias, e têm legitimidade.
  9. A AT procedeu à designação dos seus representantes nos autos e a Requerente juntou procuração, encontrando-se assim as Partes devidamente representadas.
  10. O processo não enferma de nulidades.

 

II – Matéria de Facto

 

II. A. Factos provados

 

Com relevo para a decisão, consideram-se provados os seguintes factos:

  1. A Requerente B... residiu no Reino Unido, de 9 de Dezembro de 2013 (como o comprova o certificado de residência fiscal do HM Revenue and Customs, de 4 de Setembro de 2020) até 22 de Dezembro de 2020.
  2. A Requerente foi, portanto, residente fiscal em Portugal antes do final de 2015, e voltou a sê-lo antes do final de 2020. Não foi residente fiscal em Portugal nos anos de 2017, 2018 e 2019.
  3. Do Sistema de Gestão e Registo de Contribuintes consta, relativamente à sua “Situação Cadastral Anterior”, que o seu país de Residência era o Reino Unido:
  • Em 2015-12-31
  • Em 2016-12-31
  • Em 2017-12-31
  • Em 2018-12-31
  • Em 2019-12-31
  • Em 2020-12-31
  1. E que o seu país de Residência era Portugal:
  • Em 2021-12-31
  • Em 2022-12-31
  1. A Requerente obteve da AT, em 9 de Novembro de 2020, o deferimento de retroactividade / regularização de morada para efeitos de cadastro fiscal como não-residente, de 9/12/2013 a 26/6/2018.
  2. E assim, do Registo Central de Contribuinte (Doc. nº ..., 9/11/2022), passou a constar que a Requerente foi residente no Reino Unido desde 2013-12-09.
  3. A Requerente foi admitida como trabalhadora numa empresa portuguesa (C... CRL), com efeitos a partir de 1 de Novembro de 2020.
  4. A Requerente submeteu, para o ano de 2020, duas declarações modelo 3 de IRS: uma de 01-01-2020 a 21-12-2020 como “não residente” (nº ... - 2020 - ... - ... de 21-06-2021), e outra para o período de 22-12-2020 a 31-12-2020, como “parcialmente residente” (nº ... - 2020 - ... - ... de 21-06-2021). De ambas resultaram as liquidações nºs 2021..., de 22-06-2021, e 2021..., de 22-06-2021, ambas com valor nulo.
  5. Para o ano de 2021, a Requerente submeteu a declaração modelo 3 de IRS, como “residente” (nº ... - 2021 - ...– ..., de 30-06-2022, e nº ... - 2021 - ...– ..., de 26-01-2023), na qual foi mencionado ter a Requerente auferido rendimentos de trabalho dependente, pretendendo ser tributada no âmbito do regime fiscal dos ex-residentes previsto no art.º 12º-A do CIRS (assinalando a opção no QE do anexo A).
  6. Para o ano de 2021, foi emitida a liquidação nº 2022..., com valor a pagar de € 48.91940 – paga em processo de execução fiscal, entretanto extinto.
  7. Dos registos da AT consta que, em 31-12-2017, a Requerente ainda tinha residência em Portugal (na Rua ... nº ..., na localidade de ..., distrito de Leiria) – o que implicaria que ela não cumprisse os requisitos cumulativos contantes no nº 1 do art.º 12º-A do CIRS desde o ano de 2020.
  8. Em 22-10-2022 e 02-02-2023, foram criados procedimentos de divergências (ID nº ... e...) com o código de erro B88, J88 e Z10 “Regime fiscal de ex-residente não permitido – residente em PT últimos 3A”, tendo sido corrigido o quadro 4E do anexo A da modelo 3 de IRS, retirando a opção pelo regime fiscal aplicável aos ex-residentes.
  9. Desses procedimentos de divergências resultaram as liquidações n.º 2022..., de 24-10-2022, com valor a pagar de €48.919,40, e n.º 2023..., de 03-02-2023, com valor a pagar de €14.891,15.
  10. Para o ano de 2022, os Requerentes submeteram conjuntamente a declaração de rendimentos modelo 3 de IRS (nº ... - 2022 - ...– ..., de 14-06-2023), pretendendo ser tributados, a partir de 2020, no âmbito do regime fiscal dos ex-residentes previsto no art.º 12º-A do CIRS, vulgo “Programa Regressar”, que exclui de tributação 50% dos rendimentos do trabalho dependente e dos rendimentos empresariais e profissionais dos sujeitos passivos que, tornando-se fiscalmente residentes nos termos dos n. 1 e 2 do artigo 16.º do CIRS, em 2019 e 2020, observem os requisitos previstos naquele artigo – por considerarem que reúnem todos os pressupostos legais (terem-se tornado, de novo, residentes fiscais em Portugal em 2020; não terem sido considerados residentes em território português em qualquer dos três anos anteriores; terem sido residentes em território português antes de 31 de Dezembro de 2015; e terem a sua situação tributária regularizada).
  11. Em 14-06-2023 foi criado um procedimento de divergências (ID nº ...) com o código de erro Z11 e Z12 “Regime fiscal de ex-residente não permitido – não reside PT antes N3”, e “Regime fiscal de ex-residente não permitido – residente e não habitual”, tendo sido corrigido o quadro 4E do anexo A da modelo 3 de IRS, retirando a opção pelo regime fiscal aplicável aos ex-residentes.
  12. Desse procedimento de divergências resultou a liquidação n.º 2023..., de 03-11-2023, com valor a reembolsar de €788,72 – pago por transferência bancária em 16-11-2023.
  13. Em pedido de informações relativo ao IRS de 2021, a AT informou a Requerente, em 3/10/2022, de que não poderia beneficiar do estatuto de ex-residente, por residir em Portugal nos últimos 3 anos, aconselhando-a a, após correcção da declaração, apresentar reclamação graciosa, ou a efectuar um pedido de informação vinculativa.
  14. A Requerente foi advertida, por email da AT de 12 de Julho de 2023, que deveria corrigir a declaração conjunta referente a 2022.
  15. Todavia, enquanto o Requerente A... instaurou um processo de reclamação graciosa para o período de tributação de 2021 (que veio a ser indeferido por Despacho de 3 de Fevereiro de 2023), a Requerente B... não instaurou nenhum processo de reclamação graciosa ou revisão oficiosa para os períodos de tributação e para os factos tributários em causa.
  16. A Requerente tem a sua situação tributária integralmente regularizada.
  17. A Requerente não solicitou a sua inscrição como residente não habitual.
  18. No dia 8 de Fevereiro de 2024 os Requerentes apresentaram o pedido de pronúncia que deu origem ao presente processo.

 

II. B. Matéria não-provada

 

Com relevância para a questão a decidir, nada ficou por provar.

 

II. C. Fundamentação da matéria de facto

 

  1. Os factos elencados supra foram dados como provados com base nas posições assumidas pelas partes nos presentes autos, nos documentos juntos ao PPA e no Processo Administrativo junto pela Requerida.
  2. Cabe ao Tribunal Arbitral seleccionar os factos relevantes para a decisão, em função da sua relevância jurídica, considerando as várias soluções plausíveis das questões de Direito, bem como discriminar a matéria provada e não provada (cfr. art. 123º, 2, do CPPT e arts. 596º, 1 e 607º, 3 e 4, do CPC, aplicáveis ex vi art. 29º, 1, a) e e), do RJAT), abrangendo os seus poderes de cognição factos instrumentais e factos que sejam complemento ou concretização dos que as Partes alegaram (cfr. arts. 13.º do CPPT, 99º da LGT, 90º do CPTA e arts. 5º, 2, e 411.º do CPC).
  3. Segundo o princípio da livre apreciação dos factos, o Tribunal baseia a sua decisão, em relação aos factos alegados pelas partes, na sua íntima e prudente convicção formada a partir do exame e avaliação dos meios de prova trazidos ao processo, e de acordo com as regras da experiência (cfr. art. 16º, e) do RJAT, e art. 607º, 4, do CPC, aplicável ex vi art. 29º, 1, e), do RJAT).
  4. Somente relativamente a factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, a factos que só possam ser provados por documentos, a factos que estejam plenamente provados por documentos, acordo ou confissão, ou quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (por exemplo, quanto aos documentos autênticos, por força do artigo 371.º do Código Civil), é que não domina, na apreciação das provas produzidas, o referido princípio da livre apreciação (cfr. art. 607º, 5, do CPC, ex vi art. 29º, 1, e), do RJAT).
  5. Além disso, não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insusceptíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada, nem os factos incompatíveis ou contrários aos dados como provados.

 

III. Sobre o Mérito da Causa

 

III. A. Posição da Requerente

 

  1. Lembremos que, depois de corrigidas, por revogação parcial, as liquidações de IRS relativas ao Requerente A..., o processo, nos termos do requerido em 11 de Junho de 2024, prossegue unicamente no que respeita às liquidações de IRS relativas à Requerente B... .
  2. A Requerente alega que estão em causa rendimentos auferidos e declarados por ela, relativos a trabalho dependente, e que se aplica o regime do “Programa Regressar” por estarem verificadas, cumulativamente, todas as condições para se efectivar o benefício fiscal aplicável aos ex-residentes, ficando apenas 50% do valor desses rendimentos sujeito a tributação em sede de IRS, nos anos de 2021, 2022, 2023 e 2024, nos termos do n.º 1 do artigo 12.º-A do CIRS.
  3. Entende assim que não têm cabimento as “correcções” sugeridas pela AT nas suas comunicações com a Requerente, não obstante os esclarecimentos e documentos apresentados pela própria Requerente, via e-balcão; não se conformando com a injustiça resultante da errada interpretação e subsunção das disposições legais aplicáveis ao caso sub judice.
  4. Pelo contrário, a Requerente entende que reúne todos os pressupostos mencionados no artigo 12.º-A do Código do IRS (na redacção então em vigor, anterior à da Lei n.º 12/2022, de 27/06), tendo o direito a beneficiar do regime fiscal para ex-residentes legalmente previsto, a partir de 2020, nomeadamente, por:
  • se ter tornado, de novo, residente fiscal em Portugal em 2020,
  • não ter sido considerada residente em território português em qualquer dos três anos anteriores;
  • ter sido residente em território português antes de 31 de dezembro de 2015; e
  • ter a sua situação tributária regularizada.
  1. A Requerente faz notar que o artigo 12.º-A do CIRS estabelece uma medida excepcional de caráter automático, pois os seus efeitos resultam directa e imediatamente da lei pela simples verificação dos respectivos pressupostos e condições, não estando a sua aplicação dependente de qualquer acto de reconhecimento por parte da AT – estando somente condicionado à declaração do sujeito passivo de que pretende beneficiar do regime, o que deve ser feito aquando do preenchimento do modelo 3 da declaração de IRS do ano seguinte ao ano de regresso a Portugal, como sucedeu.
  2. Trata-se, assim, no entendimento da Requerente, de um benefício fiscal, que preenche os pressupostos do art. 2º, 1 do EBF, com o objectivo extrafiscal declarado de incentivar o regresso de cidadãos emigrantes que abandonaram o país em consequência da crise financeira de 2008, e de, por essa via, promover o aumento da população activa.
  3. Estabelece-se, assim, um regime excepcional, e é por isso que se enumeram requisitos cumulativos, que a Requerente preenche integralmente.
  4. Conclui a Requerente que a AT dá ao artigo 12.º-A do CIRS uma interpretação errada, em violação da lei, devendo ser anulados os actos tributários que resultam dessa interpretação, nomeadamente as liquidações de IRS impugnadas.
  5. Peticiona a Requerente, por isso, a restituição do imposto indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios.
  6. Em alegações, a Requerente reitera e recapitula factos e argumentos já contidos no pedido de pronúncia, sublinhando que devem entender-se removidas quaisquer dúvidas sobre as circunstâncias de ter sido residente em território português antes de 31 de Dezembro de 2015, de ter a sua situação tributária regularizada, e de não ter sido residente em território português em qualquer dos três anos anteriores ao ano de regresso a Portugal, não tendo solicitado a sua inscrição como residente não habitual. Sublinhando ainda que demonstrou serem rendimentos de trabalho dependente os auferidos a partir do ano em que se tornou, de novo, residente em Portugal, e que, aquando do preenchimento do modelo 3 da declaração de IRS do ano seguinte ao ano de regresso a Portugal, bem como nos seguintes, a Requerente declarou pretender beneficiar do regime fiscal dos ex-residentes, no âmbito do “Programa Regressar”.
  7. Encontrando-se preenchidos, pois, todos os requisitos de que depende a aplicação do referido regime fiscal.

 

III. B. Posição da Requerida

 

  1. Na sua resposta, a Requerida começa por colocar uma questão prévia, relativa ao valor do processo, que considera ter sido mal calculado – porque manifestamente a Requerente somou os valores de duas liquidações, quando uma substituiu a outra:

a) liquidação nº 2022... no montante de € 48.919,40 e

b) liquidação nº 2023... (que resultou da entrega de uma declaração de substituição) no montante de € 14.891,15.

  1. Pelo que o valor da causa deveria ser de €16.072,87, e não de € 64.992,27.
  2. Por impugnação, alega que a Requerente não preenche o pressuposto previsto na al. a) do art.º 12-A do CIRS, por ter sido fiscalmente residente em território português em 2020, nos termos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 16.º do CIRS – pois, no seu entender, a Requerente só se tornou residente em Portugal em 2021, mais propriamente a 18/06/2021.
  3. Não constando como residente em Portugal em 2020, e apenas em 2021, a Requerente não preencheria os pressupostos previstos no art. 12º-A do CIRS
  4. E invoca, em apoio do seu entendimento, o Ofício-Circulado nº 20206, de 2019/02/28, (e posteriormente o Ofício-Circulado nº 20243/2022, de 30/06), no ponto em que refere:

4. A situação de o sujeito passivo voltar a ser fiscalmente residente em território português deve ser aferida a 31 de dezembro do ano em causa, nos termos do n.º 8 do artigo 13.º do Código do IRS, bem como dos n.ºs 1 e 2 do artigo 16.º do mesmo Código, sendo que o ano civil em que se verifica a data do regresso, e em que vem a ser considerado fiscalmente residente, releva como primeiro ano para efeitos de usufruição do regime, independentemente da data em que o sujeito passivo se tornou fiscalmente residente em território português.

  1. Contra a alegação da Requerente, de que teria regressado em 2020, contrapõe a Requerida que a Requerente não cumpriu as suas obrigações declarativas, sendo que o seu cumprimento releva, seja face ao disposto no art.º 16 do CIRS (residência), seja porque não pode ser exigido aos serviços tributários um qualquer conhecimento omnisciente da situação pessoal dos contribuintes senão a partir da informação que lhes seja comunicada (invocando ainda as regras de ónus da prova, art. 74º, 1, da LGT).

 

III. C. Fundamentação da decisão

 

III. C.1. O Despacho do Tribunal de 10 de Dezembro de 2024, e a tomada de posição das partes

 

  1. Em 10 de Dezembro de 2024, o Tribunal lavrou o seguinte Despacho:

Com a revogação parcial dos actos que eram inicialmente objecto do Pedido de Pronúncia Arbitral, subsistem as liquidações de IRS referentes à Requerente B..., relativas ao ano de 2021: a liquidação nº 2022.... (de 24-10-2022, com valor a pagar de 48.919,40€) e a nº 2023... (de 03-02-2023, com valor a pagar de 14.891,15€), esta última resultante da declaração de substituição apresentada em 26-01-2023.

O Pedido de Pronúncia Arbitral foi apresentado em 08-02-2024.

Entre Fevereiro de 2023 e Fevereiro de 2024, a Requerente B... não instaurou nenhum processo de reclamação graciosa, ou revisão oficiosa, para o período de tributação e para os factos tributários em causa.

Suscita-se, assim, um problema de intempestividade quanto à apresentação do Pedido de Pronúncia Arbitral, por ultrapassagem do prazo de 90 dias previsto no art. 10.º, 1, a), do RJAT.

Trata-se de matéria de excepção, de conhecimento oficioso (art. 89.º, 2 e 4, k) do CPTA e art. 578.º do CPC), implicando a caducidade do direito de acção e acarretando, como excepção dilatória, a absolvição de instância da Requerida.

Estabelece o art. 3.º, 3 do Código de Processo Civil que

O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.

O que implica que, se este Tribunal pretende basear a sua decisão em questões não suscitadas pelas partes, mas oficiosamente levantadas por si, “ex novo”, seja através de conhecimento do mérito da causa, seja no plano meramente processual, deve, previamente, convidar ambas as partes a tomarem posição sobre elas – com a única ressalva de casos de manifesta desnecessidade.

Assim, o Tribunal decide notificar as partes para se pronunciarem, querendo, no prazo simultâneo de dez dias, sobre a questão suscitada oficiosamente, consistente na excepção dilatória de intempestividade do pedido de constituição do Tribunal Arbitral, que determina a caducidade do direito de acção, nos termos dos art. 89.º, 2 e 4, k) do CPTA (aplicável ex vi art. 29.º, 1, c) do RJAT, e art. 2.º, c) do CPPT), e conduz à absolvição da instância da Requerida. (…)”.

  1. Em 3 de Janeiro de 2025, a Requerida tomou posição sobre o tema, essencialmente assinalando que a liquidação de IRS e de juros compensatórios contestada nos presentes autos tinha como termo do prazo para pagamento voluntário o dia 15/12/2022, pelo que, na data de apresentação do Pedido de Pronúncia Arbitral, estava há muito esgotado o prazo previsto no art. 10.º, 1, a) do RJAT – entendendo, por isso, verificar-se a excepção dilatória da caducidade do direito de acção.
  2. Em 6 de Janeiro de 2025, a Requerente tomou posição sobre o tema, essencialmente sustentando a tempestividade do Pedido de Constituição do Tribunal.
  3. A posição da Requerente não procede porque, por manifesto lapso, se refere explicitamente à liquidação adicional de IRS relativa ao ano de 2022, quando a questão que subsiste nos presentes autos é exclusivamente relativa ao ano de 2021, pois é apenas quanto a esse ano de 2021 que existem liquidações não-revogadas.
  4. O Despacho de 10 de Dezembro de 2024 visou evitar que as partes fossem confrontadas com uma “decisão-surpresa”, dada a relevância atribuída pelo Tribunal a uma excepção que é suscitada oficiosamente, ou seja, não foi suscitada antes por qualquer das partes.
  5. Cumprida essa formalidade, tendo as partes aproveitado para se pronunciarem efectivamente sobre o tema, está o Tribunal em condições de tomar uma decisão fundamentada, e que não constitui surpresa para as partes.
  6. O que faz de seguida.

 

III. C.2. A excepção dilatória de caducidade do direito de acção

 

  1. Na sua resposta, a Requerida suscita a excepção dilatória de caducidade do direito de acção relativamente à liquidação nº 2022... . Todavia, essa liquidação seria objecto de posterior revogação em 26-05-2024, prejudicando o seu conhecimento.
  2. Subsiste, no entanto, matéria de excepção relativamente às liquidações não revogadas, relativas ao ano de 2021: a liquidação nº 2022... (de 24-10-2022, com valor a pagar de 48.919,40€) e a nº 2023... (de 03-02-2023, com valor a pagar de 14.891,15€), a qual, resultando de uma declaração de substituição (de 26-01-2023), é a única a ser considerada – tanto assim que a Requerida, reconhecendo que a segunda demonstração de liquidação substitui a primeira, entende que isso repercute no valor da presente causa, o qual deveria ser revisto (reduzindo-se de €64.992,27 para €16.072,87).
  3. E essa excepção resulta do facto de o pedido de pronúncia ter sido apresentado em 8 de Fevereiro de 2024, quando a demonstração de liquidação tem a data de 3 de Fevereiro de 2023 – e ainda do facto de a Requerente não ter instaurado, entre essas duas datas, qualquer processo de reclamação graciosa ou de revisão oficiosa reportado a esse período de tributação, ou aos factos tributários em causa.
  4. Não obstante essa circunstância não ter sido referida pelas partes, nomeadamente para efeitos de defesa por excepção da Requerida, o conhecimento da excepção dilatória de intempestividade ou de caducidade do direito de acção é oficioso, nos termos do disposto no art. 89.º, 2 e 4, k) do CPTA (aplicável ex vi art. 29.º, 1, c), do RJAT, e art. 2.º, c), do CPPT).
  5. Em termos gerais, o prazo fixado para a dedução da acção, porque aparece como extintivo do respectivo direito potestativo de pedir judicialmente o reconhecimento de uma certa pretensão, é um prazo de caducidade, sendo essa caducidade de conhecimento oficioso, além de poder ser alegada em qualquer fase do processo até ao trânsito em julgado da respectiva decisão final (nos termos do art. 333.º, 1 do Código Civil), porque estabelecida em matéria que se encontra excluída da disponibilidade das partes – como o é, no caso, a matéria de prazos para o exercício do direito de sindicar judicialmente a legalidade do acto tributário.
  6. Assim sendo, a declaração de intempestividade determinará a absolvição da instância da Requerida, mesmo quando ela não tenha suscitado, na sua resposta, a excepção dilatória que impõe aquela consequência.
  7. Ora o pedido de pronúncia arbitral, no presente caso, apenas foi deduzido quando se mostrava largamente ultrapassado o prazo de 90 dias previsto no art. 10.º, 1, a), do RJAT.
  8. Nos termos desta norma do RJAT, quando esteja em causa a impugnação de actos tributários, o acesso à jurisdição arbitral tributária deve fazer-se no prazo de 90 dias a contar de qualquer um dos factos previstos no art. 102.º, 1, do CPPT; prazo que, por não se estar ainda no âmbito de um procedimento arbitral, se conta nos termos gerais dos prazos tributários de natureza substantiva[1].
  9. Por seu turno, no referido art. 102.º, n.º 1, do CPPT prevêem-se, como factos determinantes do início da contagem do referido prazo de 90 dias, os seguintes factos:

a) Termo do prazo para pagamento voluntário das prestações tributárias legalmente notificadas ao contribuinte;

b) Notificação dos restantes atos tributários, mesmo quando não deem origem a qualquer liquidação;

c) Citação dos responsáveis subsidiários em processo de execução fiscal;

d) Formação da presunção de indeferimento tácito;

e) Notificação dos restantes atos que possam ser objeto de impugnação autónoma nos termos deste Código;

f) Conhecimento dos atos lesivos dos interesses legalmente protegidos não abrangidos nas alíneas anteriores

  1. Ora, em face da aplicação conjugada daqueles dois preceitos legais, é possível asseverar com segurança que a Requerente dispunha, para a propositura da presente acção arbitral, de um prazo de 90 dias a contar do termo do prazo para pagamento voluntário – já que, não tendo apresentado reclamação graciosa ou pedido de revisão (nem tendo de fazê-lo, já que vigora aqui um simples regime facultativo de impugnação administrativa prévia), nenhum outro prazo que pudesse aproveitar à Requerente poderá ser aqui considerado. E isso torna manifesta a intempestividade do exercício do direito de acção relativamente às liquidações não revogadas, e correspondentes ao ano de 2021.
  2. Nada indica, por seu lado, que a Requerente tenha sido induzida em erro quanto aos meios de que dispunha para fazer valer os seus direitos face às liquidações correspondentes ao ano de 2021. Não só a Requerente não o alega, como, pelo contrário, nos contactos entre ela e a AT, documentados nos autos, resulta a referência expressa a tais meios: pelo que é de excluir que algum comportamento da Requerida tivesse criado uma falsa expectativa quanto a meios e a prazos, ou tivesse frustrado a confiança que os administrados devem depositar nas informações emanadas da própria Administração, em termos de afrontar a boa fé devida nas relações entre ambos (em termos que pudessem convocar a aplicação do art. 58.º, 3, b), do CPTA).
  3. E por outro lado, não se afigura – nem isso foi invocado – que o quadro normativo fosse ambíguo ou indecifrável, ou que os actos a impugnar fossem de difícil identificação ou qualificação (em termos que, por sua vez, pudessem convocar a aplicação do art. 58.º, 3, c), do CPTA).
  4. O prazo de 90 dias para apresentação do pedido de pronúncia arbitral inicia-se com o final do prazo de pagamento voluntário da liquidação do IRS, e é contado em dias sucessivos, nos termos do referido artigo 279.º do Código Civil, por força do estabelecido no art. 20.º, 1 do CPPT (não se aplicando as regras do art. 3º-A do RJAT, que se cingem aos prazos relativos aos actos que tiverem de praticar-se posteriormente à abertura do processo, não abrangendo, portanto, nem a fase procedimental, nem a impugnação judicial ou arbitral).
  5. Terá de proceder, consequentemente, a excepção de caducidade do direito de acção, uma excepção dilatória que determina que a Requerida seja absolvida da presente instância arbitral, com a consequente extinção da mesma; ficando, deste modo, por força do disposto no artigo 89.º, 2 do CPTA, prejudicada a apreciação das restantes questões levantadas, quer pela Requerente, quer pela Requerida.
  6. Nos termos do art. 279.º, 1 do CPC, “A absolvição da instância não obsta a que se proponha outra ação sobre o mesmo objeto”; e, não tendo havido pronúncia sobre o mérito, pode a Requerente apresentar ainda reclamação graciosa ou pedido de revisão sobre os actos que procurou impugnar através da presente acção, se isso couber dentro dos correspondentes prazos, que são diversos do prazo para apresentação do pedido de pronúncia arbitral; ou seja, se, não se tendo esgotado esses prazos de reclamação graciosa ou pedido de revisão, não houver já “caso decidido ou caso resolvido” susceptíveis de consolidar definitivamente os actos na ordem jurídica, tornando-os inimpugnáveis.
  7. Em suma, estando os seus poderes de cognição limitados pelo pedido, não pode este Tribunal conhecer do mérito da causa, o que implicaria pronunciar-se sobre a verificação, ou não, relativamente à Requerente B..., de todos os requisitos de que depende a concessão automática do benefício fiscal aplicável aos ex-residentes nos termos do art. 12º- A do CIRS.
  8. Nem pode o Tribunal, pelas mesmas razões, pronunciar-se sobre a consequente legalidade, ou ilegalidade, dos actos de liquidação impugnados pela Requerente.
  9. Foram conhecidas e apreciadas as questões relevantes submetidas à apreciação deste Tribunal, não o tendo sido aquelas cuja decisão ficou prejudicada pela solução dada a outras, ou cuja apreciação seria inútil – art. 608.º do CPC, ex vi art. 29º, 1, e), do RJAT.

 

IV. Decisão

 

Nos termos expostos, acordam neste Tribunal Arbitral em:

  1. Julgar verificada a excepção dilatória de intempestividade do pedido de constituição do tribunal arbitral, que determina a caducidade do direito de acção, decidindo-se, em consequência, não conhecer do pedido de pronúncia arbitral, e absolver a Requerida da instância.
  2. Condenar a Requerente ao pagamento da taxa de arbitragem, por ter sido ela a dar causa à extinção da presente instância arbitral — art. 12.º, n.º 2, do RJAT e arts. 4.º, 5, e 6.º, a), do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).

 

V. Valor do processo

 

  1. Na sua resposta, a Requerida começa por colocar uma questão prévia, relativa ao valor do processo, que considera ter sido mal calculado – porque manifestamente a Requerente somou os valores de duas liquidações, quando uma substituiu a outra:
    1. liquidação n.º 2022... no montante de € 48.919,40 e
    2. liquidação n.º 2023... (que resultou da entrega de uma declaração de substituição) no montante de € 14.891,15.
  2. Pelo que o valor da causa deveria ser inferior ao valor indicado, de € 64.992,27.
  3. A posterior revogação parcial das liquidações respeitantes ao Requerente A... tem, por sua vez, implicações sobre o valor remanescente.
  4. Chegados aqui, porém, temos de distinguir dois valores:
    1. aquele que, divergindo da indicação no Pedido de Pronúncia Arbitral, veio a revelar-se ser o valor do litígio subsistente;
    2. aquele que, tendo sido indicado naquele Pedido de Pronúncia Arbitral, levou à formação deste tribunal arbitral colectivo.
  5. Não obstante este tribunal reconhecer a razão da Requerida quando invoca um lapso de cálculo da Requerente, o funcionamento deste tribunal envolve custas que devem ser suportadas pelas partes – e daí que o Regulamento de Custas da Arbitragem Tributária estabeleça regras próprias para cálculo do valor do processo, mais próximas do princípio de que o valor da acção é aquele que existe no momento em que ela é proposta (art. 299.º do CPC).
  6. Por outro lado, se fixássemos à causa um valor inferior ao indicado pela Requerente, exercendo os poderes que nos são conferidos pelo art. 306.º do CPC, isso não determinaria a incompetência do Tribunal, por força do disposto no art. 310.º, 3 do mesmo CPC, aplicável ex vi art. 29º, 1, e), do RJAT.
  7. Assim, não obstante o Tribunal reconhecer que o valor da causa poderá ser inferior àquele inicialmente atribuído a ela pela Requerente, é este último que terá de servir de referência ao cálculo da taxa de arbitragem.
  8. Vale aqui o entendimento fixado na decisão proferida no Proc. 151/2013-T: "O facto de o valor do litígio, para efeitos de determinação da competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, ser o que resulta da aplicação subsidiária do CPPT, não obsta a que seja outro o valor para efeitos de custas, pois trata-se de matéria que tem a ver exclusivamente com as receitas do CAAD, que é uma entidade privada, e, como se disse, a regulamentação do regime de custas foi deixada pelo artigo 12.º do RJAT, na sua exclusiva disponibilidade, ao estabelecer que «é devida taxa de arbitragem, cujo valor, fórmula de cálculo, base de incidência objetiva e montantes mínimo e máximo são definidos nos termos de Regulamento de Custas a aprovar, para o efeito, pelo Centro de Arbitragem Administrativa»".
  9. Fixa-se, assim, o valor do processo em € 64.992,27 (sessenta e quatro mil, novecentos e noventa e dois euros e vinte e sete cêntimos), nos termos do disposto no art.º 97.º-A do CPPT e do art. 299º do CPC, aplicáveis ex vi art.º 29.º, n.º 1, alínea a) e e), do RJAT e art.º 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).

 

VI. Custas

 

Custas no montante de € 2.448,00 (dois mil, quatrocentos e quarenta e oito euros) a cargo da Requerente (cfr. Tabela I, do RCPAT e artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4, do RJAT).

 

Lisboa, 8 de Janeiro de 2025

Os Árbitros

 

 

 

Fernando Araújo

 

 

 

João Santos Pinto

 

 

 

Francisco Nicolau Domingos

 



[1] O prazo é de 90 dias no art. 10.º, 1, a), do RJAT; sendo lei especial, prevalece sobre o prazo de três meses do art. 102º, 1, do CPPT. Podia o legislador ter harmonizado os dois prazos, mas não o fez.