Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 420/2014-T
Data da decisão: 2014-12-31  IRS  
Valor do pedido: € 280.404,56
Tema: IRS - Mais-valias; Cláusula Geral Antiabuso; Caducidade do procedimento
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DECISÃO ARBITRAL

 

 

Acordam os Árbitros José Pedro Carvalho (Árbitro Presidente), Suzana Costa e Carla Castelo Trindade, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem Tribunal Arbitral na seguinte

 

DECISÃO ARBITRAL

 

I – RELATÓRIO

 

  1. Em 11-06-2014, A, contribuinte n.º …, e B, contribuinte n.º …, ambos residentes na Rua … Estoril, submeteram ao Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) o pedido de constituição de tribunal arbitral com vista à declaração de ilegalidade e consequente anulação da liquidação de IRS e juros compensatórios n.º 2013 …, datada de 22 de Novembro de 2013, relativa ao ano de 2009, no valor de €280.404,56.

  

  1. Os Requerentes pedem a declaração de ilegalidade e consequente anulação da liquidação de IRS, tal como, a condenação da Autoridade Tributária no pagamento de indemnização de garantia indevida, com fundamento:
  2. Na caducidade do direito à liquidação;
  3. Na errónea interpretação do disposto no artigo 38.º da LGT;
  4. No erro na quantificação do facto tributário.
  5. Violação do princípio do inquisitório.

 

  1. No dia 11 de Junho, o pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite e notificado à Autoridade Tributária.

 

  1. O Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do tribunal arbitral colectivo, os quais comunicaram a aceitação da designação em prazo.

 

  1. Em 29 de Julho de 2014, as partes foram notificadas da designação dos árbitros não tendo arguido qualquer impedimento.

 

  1. Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral colectivo foi constituído em 29 de Agosto de 2014.

 

  1. No dia 29 de Setembro de 2014, a Requerida apresentou a sua resposta defendendo-se por impugnação e sustentando, em suma, que não se verifica a caducidade do direito à liquidação, «que a transformação operada e acima identificada foi abusiva, mesmo à luz das várias considerações jurisprudenciais que têm incidido sobre aplicação da cláusula geral antiabuso», e que a não inquirição da testemunha arrolada pelos Requerentes, em sede de procedimento, foi justificada.

 

  1. Notificados para o efeito, os Requerentes, que haviam arrolado prova testemunhal, vieram indicar quais os concretos pontos do seu Requerimento inicial, tendo sido entendido pelo Tribunal que «os pontos sobre os quais os Requerentes querem fazer incidir a prova testemunhal que arrolaram são insusceptíveis de prova, porquanto ambos se tratam de matéria estritamente conclusiva e relativa ao foro interno/psicológico dos requerentes, pelo que se tratam de conclusões se terão de retirar de outros factos que, eventualmente, se provem.

Assim, por inútil e, como tal, proibida nos termos do art.º 130.º do CPC, não se procederá à inquirição da prova testemunhal arrolada pelos Requerentes.». Em consequência, considerando-se «inútil e, como tal, proibida nos termos do art.º 130.º do CPC”, não se procedeu “à inquirição da prova testemunhal arrolada pelos Requerentes.».

 

  1. Posteriormente, notificadas para o efeito, ambas as partes vieram aos autos comunicar que prescindiam da apresentação de alegações, pelo que a primeira reunião do Tribunal Arbitral, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 18.º do RJAT, foi dispensada, atendendo a que, no caso, não se verificava qualquer das finalidades que legalmente lhe estão cometidas, e a que o processo arbitral se rege pelos princípios da economia processual e da proibição da prática de actos inúteis.

 

  1. O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, n.º 1, do RJAT.

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.

 

O processo não enferma de nulidades.

 

Assim, não há qualquer obstáculo à apreciação do mérito da causa.

 

Tudo visto, cumpre proferir

 

II. DECISÃO

A. MATÉRIA DE FACTO

A.1. Factos dados como provados

 

1-      Os Requerentes viviam, no ano de 2009, em união de facto assumindo a qualidade de sujeitos passivos de IRS, enquanto agregado.

 

2-      No ano de 2013, e em cumprimento do da Ordem de Serviço n.º OI2013…, datada de 23 de Abril de 2013, foram os Requerentes sujeitos a uma acção de inspecção de âmbito externo que incidiu sobre o IRS do ano de 2009.

 

3-      O referido procedimento inspectivo teve início no dia 20 de Maio de 2013 e término em 18 de Julho do mesmo ano.

 

4-      No âmbito daquela inspecção, procedeu a Autoridade Tributária a uma correcção à matéria colectável dos Requerentes no valor de €2.493.600 Euros.

 

5-      Para fundamentar a referida correcção, invoca a Autoridade Tributária a cláusula geral antiabuso prevista no artigo 38.º da Lei Geral Tributária referindo, em suma, que os Requerentes, em 13 de Novembro de 2008, promoveram a transformação da sociedade “C” de sociedade por quotas em sociedade anónima, unicamente por motivos de natureza fiscal, nomeadamente, tendo em vista garantir a alienação da sociedade sem tributação das mais-valias.

 

6-      Consequentemente, desconsiderou a Autoridade Tributária aquela transformação, e procedeu ao apuramento do imposto como se os contribuintes tivessem alienado quotas e não acções, tendo, em Janeiro de 2014, emitido a liquidação de imposto em apreço da qual resulta um imposto a pagar de €247.351,14, acrescidos de €33.053,42 a título de juros compensatórios.

 

7-      No âmbito do procedimento de inspecção os Requerentes pediram a inquirição dos vendedores.

 

8-      A Autoridade Tributária notificou, através do oficio nº … de 2013-09-11, os Requerente para que apresentassem as referidas testemunhas para inquirição, no dia 20 de Novembro de 2013, pelas 10.00 horas.

 

9-      No dia 20 de Setembro de 2013, às 10,00 horas, as testemunhas não compareceram, tendo sido elaborada a correspondente certidão de diligência.

 

10-  Os Requerentes apresentaram, em 22 de Julho de 2013, uma declaração de substituição modelo 3, incluindo o anexo G 1 - Mais-Valias Não Tributadas, referente a acções detidas há mais de 12 meses.

 

11-  Na declaração referida no número anterior, os Requerentes como valor de aquisição considerado pela Requerente (atendendo à percentagem da sua participação no capital social) no quadro 4 do referido anexo, fizeram constar o montante de €498 720,00.

 

12-  Os Requerentes apresentaram, em 21 de Janeiro de 2014, Reclamação Graciosa do mencionado acto tributário.

 

13-  Uma vez que os Requerentes não procederam ao pagamento da referida liquidação, instaurou a Administração Fiscal o processo executivo n.º …, com vista à cobrança coerciva do montante liquidado, acrescido de juros de mora e custas processuais.

 

14-  Tendo em vista sustar o referido processo executivo, apresentou a Requerente, em 17 de Março de 2014, a garantia bancária n.º … emitida pelo D AG – Sucursal em Portugal, no valor de €358.988,10, a favor do Serviço de Finanças de Cascais – 1.

 

15-  Em 12 de Maio de 2014 foram os Requerentes notificados da decisão final de indeferimento na qual mantém a Autoridade Tributária a posição assumida pelos Serviços de Inspecção Tributária.

 

16-  Em 01 de Agosto de 2003 foi constituida a sociedade unipessoal por quotas “C, Lda”, NIF …, com o capital social de €156.000,00, representado por uma única quota de igual valor pertencente à sócia E, NIF ….

 

17-  Em 30 de Janeiro de 2004 a referida E cedeu a sua quota à Requerente, tendo sido declarado na respectiva escritura pública de cessão de quotas, o preço €500.000,00.

 

18-  Num contrato de abertura de crédito celebrado em 7 de Novembro de 2003, pela Requerente refere-se que o valor do financiamento, no valor de €360.000,00, se destina “a ser utilizado pelo Cliente para pagamento inerente ao sinal do contrato promessa de compra de quota da sociedade C, Unipessoal, Lda.”.

 

19-  Num outro contrato de financiamento, celebrado pelas mesmas partes em 30 de Janeiro de 2004, no valor de €1.900.000,00 Euros, refere-se que o mesmo se destina à aquisição daquela sociedade.

 

20-  A Requerente emitiu a favor da vendedora da sociedade C, E, os seguintes cheques:

a.       Dois cheques, em 02 de Dezembro de 2003, no montante de €175.000,00;

b.      Cinco cheques, em 31 de Janeiro de 2004, nos valores de:

                                                              i.            €175.000,00;

                                                            ii.            €375.000,00;

                                                          iii.            €200.000,00;

                                                          iv.            €325.000,00; e

                                                            v.            €350.000,00.

 

21-  Desde 2007 que os resultados operacionais da sociedade C se vinham agravando, reduzindo-se, entre 2007 e 2008 em quase 50% passando a um resultado negativo em 2009.

 

22-  Em 13 de Novembro de 2008, por contrato de divisão e cessão de quotas e transformação em sociedade anónima, a Requerente, dividiu a sua quota, representativa do capital social, em cinco quotas sendo a primeira do valor nominal de €155.600,00 e as quatro remanescentes do valor nominal de €100,00 cada, passando a sociedade unipessoal por quotas para sociedade por quotas, ficando o capital social assim distribuído:

 

...

H

G

B

F

A

 

 

23-  Na mesma data, a mesma sociedade foi transformada em sociedade anónima, tendo-se mantido o capital social no valor €156.000,00, representado por 31200 ações de natureza nominativa e de valor nominal de € 5,00, tituladas pelos seguintes acionistas:

 

F

...

H

G

B

A

 

 

24-  A ora reclamante, em 6 de Fevereiro de 2009, vendeu 31120 acções de que era titular na sociedade C, pelo preço de €2.992.320,00 à sociedade “I, Unipessoal Ld.ª”.

 

A.2. Factos dados como não provados

 

1-      A transformação da sociedade “C” de sociedade por quotas em anónima, teve apenas em vista facilitar uma futura entrada de novos sócios no capital da sociedade, tendo os Requerentes sido informados pela sua contabilista que a estrutura societária que melhor permitiria dispersar o capital e acolher novos sócios, seria a de sociedade anónima.

 

2-      A venda da sociedade em 2009 surge, pois, como um acontecimento imprevisível e que só se materializou porque os Requerentes consideraram a proposta recebida extremamente generosa face às condições do mercado à data.

 

3-      A diferença entre o crédito contratado no valor €1.900.000,00 e o valor de €1.775.000,00, foi destinado pelos Requerentes à cobertura de necessidades de tesouraria do período inicial de actividade.

 

4-      A sociedade C manteve-se como sociedade anónima até 31 de Março de 2011, data em que se deu um aumento de capital, no valor de € 100,00 e transformação da mesma, novamente em sociedade por quotas.

 

A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada

Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao atual artigo 596.º, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, a prova documental e o processo administrativo juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados, de resto não contestados pelas partes.

Quanto aos factos não provados, devem-se, essencialmente, à insuficiência da prova apresentada a seu respeito. Com efeito, os documentos apresentados pelos Requerentes não são, só por si, susceptíveis de fundar, para lá de qualquer dúvida razoável, a prova dos factos a que se referem os pontos 1 a 3, tal como foram por aqueles alegados.

Também a Autoridade Tributária, no 80 da Resposta, alega o facto elencado sob o ponto 4 dos factos não provados, remetendo para a certidão permanente da sociedade em causa, que, todavia, não foi junta aos autos.

 

 

B. DO DIREITO

 

            Os Requerentes expressamente colocam à apreciação deste Tribunal as seguintes questões:

  1. Na caducidade do direito à liquidação;
  2. Na errónea interpretação do disposto no artigo 38.º da LGT;
  3. No erro na quantificação do facto tributário.
  4. Violação do princípio do inquisitório.

Vejamos cada uma delas.

 

*

a.

            Alegam, em primeiro lugar, os Requerentes, que o procedimento de aplicação da cláusula anti-abuso, ocorreu para lá do prazo fixado no artigo 63.º, n.º 3 do CPPT, na redacção vigente até 31 de Dezembro de 2011.

            Concluem, os mesmos Requerentes, que dali decorrerá a caducidade do direito da Autoridade Tributária à liquidação.

            Salvo o respeito devido por outra opinião, a alegação em causa não se enquadra na caducidade do direito à liquidação, regulado nos artigos 45.º e ss. da LGT. Sendo o prazo em causa – fixado na anterior redacção do artigo 63.º, n.º 3 do CPPT – um prazo de caducidade, não é o direito a liquidar o tributo que caduca, mas antes o direito da Autoridade Tributária levar a cabo o procedimento específico de aplicação da cláusula geral antiabuso.

            Com relevo, ainda, para o caso, note-se que, como bem aponta a Autoridade Tributária na sua Resposta, a 1 de Janeiro de 2012, entrou em vigor a actual redacção do referido artigo 63.º do CPPT, introduzida pela Lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro, que eliminou o prazo de caducidade em questão.

            A questão que se coloca, então, é a de saber se aquela alteração legislativa, que retirou a limitação temporal específica para a instauração do procedimento de aplicação da cláusula geral anti-abuso pela Autoridade Tributária, valida, ou não, a instauração de tal procedimento, a 20 de Maio de 2013.

            A resposta a esta questão, como bem aponta a Autoridade Tributária, passará por saber se “o n.º 3, do artigo 63.º foi alterado no decorrer da contagem do prazo de caducidade”, como sustenta aquela Autoridade, ou não.

            Para obter esta resposta, torna-se, então, necessário fixar o dia em que o prazo em causa tem o seu início, o que se obterá por aplicação daquela mesma norma da redacção anterior do artigo 63.º, n.º 3 do CPPT, que dispunha que “O procedimento referido no n.º 1 pode ser aberto no prazo de três anos a contar do início do ano civil seguinte ao da realização do negócio jurídico objecto das disposições anti-abuso.”[1].

            Aqui chegados, torna-se necessário apurar a que é que se referirá a lei, quando se reporta ao “negócio jurídico objecto das disposições anti-abuso”.

            A resposta a esta nova questão, dever-se-á encontrar, pensa-se, no texto da própria cláusula anti-abuso aplicanda, que reza que “São ineficazes no âmbito tributário os atos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, atos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios, efetuando-se então a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as vantagens fiscais referidas.”.

            Como se vê no texto legal transcrito, a cláusula geral anti-abuso visa a ineficácia, no âmbito tributário, de “atos ou negócios jurídicos”. Assim sendo, não se vê que seja sustentável outra interpretação, face à presunção de razoabilidade do legislador e aos imperativos de coerência sistemática, que não passe por considerar como termo inicial do prazo em questão, o início do ano civil seguinte ao da realização do último acto ou negócio jurídico cuja ineficácia é visada com a aplicação da cláusula anti-abuso cujo procedimento específico se pretende instaurar.

            Efectivamente, e designadamente, ao contrário do que parece estar subjacente ao entendimento sustentado pela Autoridade Tributária de que o prazo em questão só se iniciaria a 1 de Janeiro de 2010, considera-se que se o legislador, mantendo-se na terminologia do artigo 38.º, n.º 2 da LGT, pretendesse que o prazo em questão tivesse como referência a consumação da vantagem fiscal almejada com o acto ou negócio jurídico cuja ineficácia é visada pela aplicação da cláusula antiabuso, tê-lo-ia dito. A referir-se ao negócio jurídico, e não à vantagem fiscal, fica claro, crê-se, que o legislador pretendeu – bem ou mal – reportar-se àquele, e não a esta, para determinar o início do prazo que consagrou no artigo 63.º, n.º 3 do CPPT, através da Lei nº 64-A/2008, de 31 de Dezembro.

            Esta terá sido, de resto, a motivação da alteração legislativa introduzida nesta matéria pela Lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro, objecto de crítica, por exemplo, de Gustavo Lopes Courinha[2]. Com efeito, e como explica João Paulo Simões[3]:

“Na realidade, a anterior redação remetia a abertura do procedimento para os "(...) três anos a contar do início do ano civil seguinte à realização do negócio jurídico objeto das disposições anti-abuso" condicionando, desta forma, a determinação daquele prazo em razão do momento da realização do negócio jurídico. Ora, esta realidade, não raras vezes, terá sido motivo suficiente para que o início do procedimento próprio se afigurasse como extemporâneo, tendo como consequência a invocação da respetiva caducidade por parte dos contribuintes.”.

            Compulsada a matéria de facto, verifica-se então que o negócio jurídico da transformação da sociedade C de sociedade por quotas em sociedade anónima, ocorreu em 13 Novembro de 2008.

            Daí que, o procedimento para aplicação da cláusula geral anti-abuso, tendo em vista a sua ineficácia para efeitos tributários, por força do disposto, à data, no artigo 63.º, n.º 3 do CPPT, se devesse obrigatoriamente iniciar no prazo de 3 anos contados do início do ano seguinte, ou seja, e no caso, de 1 de Janeiro de 2009.

            Desta forma, o prazo em questão, findou a 31 de Dezembro de 2011, pelo que a 1 de Janeiro de 2012, quando entrou em vigor a Lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro, se encontrava já extinto, por caducidade, o direito da Autoridade Tributária abrir o procedimento tendo em vista a ineficácia no âmbito tributário do negócio jurídico celebrado em 2008, através da aplicação da cláusula geral anti-abuso.

            A referida ilegalidade, cognoscível nos termos do artigo 54.º do CPPT, tornará anuláveis os actos subsequentes praticados com base no acto ilegal, designadamente, e para o que ora interessa, o acto de aplicação da cláusula anti-abuso ao negócio jurídico em questão, bem como o acto de liquidação assente na ineficácia no âmbito tributário daquele negócio jurídico.

 

*

b.

            Seguidamente, alegam os Requerentes que a Autoridade Tributária terá procedido a uma errónea interpretação do disposto no artigo 38.º da LGT. Admitindo que o procedimento de aplicação da cláusula geral anti-abuso não tivesse, como se considerou, caducado, cumpriria, então, apurar se, em concreto, se verificam, ou não, os pressupostos para a aplicação desta cláusula geral anti-abuso, conforme foi levada a cabo pela Autoridade Tributária .

            Da análise estrutural da norma do artigo 38.º, n.º 2 da LGT, já atrás transcrita e de cuja aplicação decorre a ineficácia, no âmbito tributário, de actos ou negócios jurídicos, verifica-se, para lá da maior ou menor elaboração doutrinal que sobre ela incida, que a sua aplicação pressupõe a ocorrência dos seguintes elementos:

è que os atos ou negócios jurídicos sejam essencial ou principalmente dirigidos à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, atos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais;

è que a redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, atos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, resulte de meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas ou que as vantagens fiscais não fossem alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios.

No caso dos autos, o negócio jurídico que a Autoridade Tributária pretende cobrir com o manto da ineficácia é a transformação da sociedade (então por quotas) C em sociedade anónima. É este, para lá de qualquer dúvida, o negócio que, de forma causalmente adequada, obsta à tributação que a Autoridade Tributária entende devida, sobre as mais-valias realizadas com a subsequente venda das participações sociais detidas pelos Requerentes na sociedade transformada.

Afigura-se claro, desde logo, que não se encontra provado que o negócio jurídico em causa – transformação das sociedades por quotas em sociedade anónima – se deu, senão essencialmente, pelo menos principalmente (o que seria quanto baste, face à norma aplicanda) tendo em vista a obtenção de vantagens fiscais[4].

            Efectivamente, os factos, tal como resultam provados, não demonstram que a operação de transformação societária operada, se tenha preordenado à obtenção da vantagem fiscal obtida, ulteriormente, com a venda das participações sociais na sociedade tranformada.

            Com efeito, a proximidade temporal de cerca de 2 meses e meio, verificada entre o momento da tranformação da sociedade e a venda pelos requerentes das participações que naquela detinham, único facto relevante que nesta matéria se provou, é claramente insuficiente para que se conclua, com a necessária segurança, que quando assentiu naquela transformação, a Requerente tivesse já em vista a venda da sua participação, e, menos ainda, que os restantes sócios o tivessem.

            É certo que os Requerentes sustentam que a transformação das sociedades por quotas por si levada a cabo se deveu, principalmente, não à vantagem fiscal que a mesma, a jusante, lhes veio a proporcionar, mas a uma tentantiva de facilitar uma futura entrada de novos sócios no capital da sociedade, tendo os Requerentes sido informados pela sua contabilista que a estrutura societária que melhor permitiria dispersar o capital e acolher novos sócios, seria a de sociedade anónima, o que, contudo, não se provou.

            Todavia, a sobredita proximidade temporal, conjugada com um vazio de prova, tem-se por insuficiente para que se demonstre a preordenação pretendida pela Autoridade Tributária, sendo certo que nada acrescenta a este respeito, a formulaica asserção de que “a substituiçao do caso concreto à norma foi realizada tendo por base uma análise critica e conjugada, segundo juízos de experiência comum e de normalidade social dos factos e elementos recolhidos que, com razoável segurança, patenteiam a natureza abusiva do planeamento fiscal do contribuinte.

            Não se provando, assim, quais as concretas motivações que, no caso, determinaram a realização do acto cuja ineficácia a Autoridade Tributária pretende, naturalmente que não se poderá entender que aquele foi realizado por motivações exclusiva ou principalmente ligadas a um ganho fiscal que, posteriormente, se verificou, já que tal demonstração era um ónus que aquela autoridade, enquanto pretendente à aplicação do artigo 38.º, n.º 2 da LGT, deveria cumprir, de acordo com o disposto no artigo 74.º, n.º 1, também da LGT.

            Não obstaria ao que vem de se dizer a circunstância, não provada e apenas alegada em sede processo arbitral de, que a criação da sociedade anónima manteve-se como realidade económica até 31 de Março de 2011, data em que se deu um aumento de capital, no valor de € 100,00 e a transformação da mesma, novamente, em sociedade por quotas, não só porquanto se verifica um lapso temporável considerável – mais de 2 anos – entre a data da alienação e a da nova transformação, como nada se alega – e muito menos demonstrar – que relacione os Requerentes e essa (re)transformação da sociedade em sociedade por quotas, sendo certo que a ocorrência de um facto que os mesmos não dominem, não poderá ser indiciadora, nem, muito menos, decisiva, da ocorrência de uma abuso por eles perpretado.

Isto tendo sempre em consideração que o sistema tributário nacional reconhece a livre conformação fiscal dos contribuintes “traduzida na liberdade destes para planificarem a sua vida económica sem consideração das necessidades financeiras da respectiva comunidade estadual e para actuarem de molde a obter o melhor planeamento fiscal (…) da sua vida, designadamente vertendo a sua acção económica em actos jurídicos ou em actos não jurídicos de acordo com a sua autonomia privada, e guiando-se mesmo por critérios de evitação de impostos ou de aforro fiscal, conquanto que, por uma tal via, se não viole a lei do imposto, nem se abuse da configuração jurídica dos factos tributários, provocando evasão fiscal ou fuga aos impostos através de puras manobras ou disfarces da realidade económica. [5].

Além do mais, “o planeamento fiscal como actividade lícita e juridicamente tutelada constitui não só um direito subjectivo do sujeito passivo das obrigações fiscais, mas também uma condição necessária para a segurança jurídica das relações tributárias [6].

Em conclusão, o princípio da autonomia privada, consagrado constitucionalmente, e o direito subjectivo/potestativo ao planeamento/poupança fiscal têm forçosamente que ser tidos em conta na aplicação da cláusula geral anti-abuso.

Considera-se, deste modo, que, face aos factos dados como provados, não é possível concluir para lá de qualquer dúvida razoável, que o negócio jurídico em causa – transformação da sociedade por quotas em sociedade anónima – se deu, senão essencialmente, pelo menos principalmente tendo em vista a obtenção de vantagens fiscais de modo artificioso e em abuso de formas jurídicas.

 

*

Mesmo que assim não fosse, e que se tivesse concluído que o negócio jurídico em causa se deu, senão essencialmente, pelo menos principalmente tendo em vista a obtenção de vantagens fiscais, sempre se dirá que, tal não bastaria para legitimar a aplicação da cláusula anti-abuso.

Subscrevem-se, assim, mais uma vez as considerações do Prof. Saldanha Sanches, segundo as quais “mesmo que a transformação de uma sociedade por quotas em sociedade anónima fosse motivada por razões exclusivamente fiscais, não se estaria perante um acto condenável face ao ordenamento jurídico tributário, uma vez que o próprio legislador fiscal optou expressamente por tributar em sede de IRS os ganhos decorrentes da venda das quotas e por não tributar em sede daquele imposto os ganhos resultantes da venda de acções naquele contexto.[7].

De facto, e deixa-se tal bem claro, entende-se que a mera realização de um acto ou negócio jurídico por razões estritamente fiscais, e ainda que não tenha qualquer outra justificação material, que não aquelas, não licenciará, de per si, a Autoridade Tributária a retirar-lhe eficácia.

Para que seja legalmente possível a privação da eficácia do acto ou negócio jurídico realizado essencial ou principalmente por razões fiscais, incluindo a transformação de uma sociedade por quotas em sociedade anónima, torna-se, ainda, indispensável que tenha havido uma utilização de modo causalmente relevante, de meios artificiosos ou fraudulentos e de abuso das formas jurídicas.

            A expressão legal do requisito de aplicação da cláusula geral anti-abuso que ora nos ocupa não é particularmente feliz, sendo eminentemente conceptualista e, pensa-se, redundante.

            Seja qual for, contudo, a construção doutrinal a que se adira na matéria em questão, estar-se-á em todo o caso de acordo que a expressão legal se reporta a um uso anormal das formas jurídicas, em termos de haver uma contradição entre a finalidade da tutela normativa concedida por meio das normas ou estruturas jurídicas utilizadas, e a utilização que delas, em concreto é feita.

            Ora, esta demonstração de que a vantagem fiscal que haja comprovadamente  motivado a prática do acto cuja ineficácia a Autoridade Tributária pretenda, tenha ocorrido no quadro da utilização de meios fraudulentos e abusivos, que é, igualmente, ónus a cumprir por quem o invoca (ou seja: a Autoridade Tributária), também não foi feita, minimamente, nos autos, sendo que se afigura meridianamente evidente que para tanto não bastaria:

è que a Autoridade Tributária identificasse o negócio jurídico realizado e qual seria o negócio jurídico lícito alternativo, bem como as normas aplicáveis;

è que era totalmente dispensável a transformação de sociedade por quotas em sociedade anónima, para a concretização dos objectivos dos sócios em termos de expansão da actividade da sociedade, naquele momento, imediatamente anterior à venda das acções;

sendo que nada mais – a não ser de forma estritamente conclusiva – é alegado pela Autoridade Tributária nos autos, nesta matéria.

            Deste modo, e em síntese, considerando-se que à Autoridade Tributária, em ordem a assegurar a legalidade da sua actuação de aplicação da cláusula geral anti-abuso, competia demonstrar que:

è O negócio jurídico relativo à transformação da sociedade por quotas em sociedade anónima foi, pelo menos, principalmente dirigido à obtenção de vantagens fiscais;

è Que esse negócio foi efectuado apor recurso a meios artificiosos ou fraudulentos;

è Que as vantagens fiscais referidas, não seriam alcançáveis sem a utilização desses meios artificiosos ou fraudulentos; e que

è As referidas vantagens foram, ainda, obtidas com abuso das formas jurídicas;

o que, relativamente a qualquer dessas elencadas circunstâncias não ocorreu, não se encontrando, como tal, verificados os pressupostos legais de aplicação da cláusula anti-abuso, deverá, consequentemente e também por esta via, a presente acção arbitral proceder.

 

*

c.

            Alegam também os Requerentes a ocorrência de erro na quantificação do “facto tributário” entendendo, em suma, que o valor de aquisição da sociedade cuja posterior venda gerou as mais-valias que a Autoridade Tributária pretende tributar terá sido de €1.775.000,00 e não de €500.000,00, conforme constou na respectiva escritura de cessão de quotas.

            Relativamente a esta matéria, diga-se desde logo que não se reputa aceitável a contundência com que a Autoridade Tributária se acoita na alegada “prova plena” da escritura pública referida, para irredutivelmente se recusar a ponderar qualquer outro argumento nesta matéria.

            A este propósito, dispõe o artigo 371.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, que:

“Os documentos autênticos fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas percepções da entidade documentadora; os meros juízos pessoais do documentador só valem como elementos sujeitos à livre apreciação do julgador.”.

            Deste modo, e relativamente à escritura pública de cessão de quotas, a mesma apenas faria prova plena “dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas percepções da entidade documentadora”, e já não dos que não se situarem em tal âmbito. Assim, a escritura em causa, apenas fará prova de que ao oficial público (no caso, o notário) foram prestadas as declarações corporizadas na escritura, e já não de tais declarações correspondem à realidade, dado que esta não foi praticada ou percepcionada pela entidade registante. Dito de outro modo, e para o que aqui interessa, a escritura pública faz prova plena de que perante o notário as partes declararam determinado preço, mas já não que esse foi o preço real que acordaram entre si.

            Com interesse nesta matéria, poder-se-á consultar o Acórdão do STJ de 09-02-1999, em cujo sumário se lê: “O documento autêntico só faz prova plena quanto à materialidade (prática, efectivação) das declarações/atestações nele exaradas, mas não quanto á sua sinceridade, à sua veracidade ou à falta de qualquer outro vício ou anomalia.[8].

            Posto isto, resta então aferir se a prova produzida é suficiente para se concluir que o valor de aquisição das participações sociais geradoras da mais-valia que a Autoridade Tributária pretende tributar, é o indicado pelos Requerentes, sendo certo que, face ao princípio de prova fornecido pela escritura pública – que não fazendo prova plena, não deixa de fazer prova – esse era um ónus que lhe assistia.

            Face ao teor dos factos dados como provados e não provados, entende-se que tal não ocorre. De facto, embora seja evidentemente relevante a apresentação dos cheques entregues à vendedora, o certo é que face aos restantes elementos disponíveis, não é aquela apresentação suficiente para ultrapassar o limiar da dúvida razoável.

            Com efeito, para além dos dois contratos de financiamento, que acabam, na prática, por se anular um ao outro, o facto é que, ainda em Julho de 2013, os próprios Requerente declaravam à Autoridade Tributária, como valor relevante de aquisição, o valor de €500.000,00.

            Assim, nesta matéria, entende-se não assistir razão aos Requerentes.

 

*

d.

            Alegam, por fim, os Requerentes que solicitaram à Autoridade Tributária, quer no âmbito da instrução do processo de inspecção, quer do processo de reclamação graciosa, que ouvisse a alienante das quotas adquiridas pela Requerente, o que teria sido negado pela Autoridade Tributária.

            Ressalvado o respeito devido, não terá sido isso que aconteceu.

            Com efeito, a Autoridade Tributária proporcionou aos Requerentes a possibilidade de apresentarem as testemunhas que reputavam pertinente ouvir, em termos, de resto, análogos, ao que seria exequível em sede de processo arbitral tributário.

            Assim, deu cumprimento a Autoridade Tributária aos deveres que em matéria de participação na decisão e inquisitório lhe cabiam, nada havendo a censurar nesta matéria.

 

*

            Face a tudo o que vem de expor, entendendo-se que caducou o direito da Autoridade Tributária instaurar o procedimento para aplicação da cláusula anti-abuso e que, mesmo que tal procedimento não tivesse sido instaurado fora do prazo de caducidade, não estão demonstrados nos autos os pressupostos legalmente necessários à aplicação da cláusula anti-abuso, pelo que deverá o presente pedido arbitral proceder, anulando-se o acto tributário objecto dos presentes autos.

 

***

Os Requerentes formulam ainda um pedido de indemnização por garantia indevida.

Esta matéria foi objecto já de decisão no âmbito, entre outros, do processo arbitral do CAAD, n.º 1/2013T, nos termos que ora se transcrevem

De harmonia com o disposto na alínea b) do artigo 24.º do RJAT a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a administração tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, «restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito».

Na autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT, concedida pelo artigo 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril, proclama-se, como diretriz primacial da instituição da arbitragem como forma alternativa de resolução jurisdicional de conflitos em matéria tributária, que «o processo arbitral tributário deve constituir um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à ação para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária».

Embora o artigo 2.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT utilize a expressão «declaração de ilegalidade» para definir a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD e não faça referência a decisões constitutivas (anulatórias) e condenatórias, deverá entender-se, em sintonia com a referida autorização legislativa, que se compreendem nas suas competências os poderes que em processo de impugnação judicial são atribuídos aos tribunais tributários em relação aos atos cuja apreciação de legalidade se insere nas suas competências.

Apesar de o processo de impugnação judicial ser essencialmente um processo de mera anulação (arts. 99.º e 124.º do CPPT), pode nele ser proferida condenação da administração tributária no pagamento de juros indemnizatórios e de indemnização por garantia indevida.

Na verdade, apesar de não existir qualquer norma expressa nesse sentido, tem-se vindo pacificamente a entender nos tribunais tributários, desde a entrada em vigor dos códigos da reforma fiscal de 1958-1965, que pode ser cumulado em processo de impugnação judicial pedido de condenação no pagamento de juros indemnizatórios com o pedido de anulação ou de declaração de nulidade ou inexistência do ato, por nesses códigos se referir que o direito a juros indemnizatórios surge quando, em reclamação graciosa ou processo judicial, a administração seja convencida de que houve erro de facto imputável aos serviços. Este regime foi, posteriormente, generalizado no Código de Processo Tributário, que estabeleceu no n.º 1 do seu artigo 24.º que «haverá direito a juros indemnizatórios a favor do contribuinte quando, em reclamação graciosa ou processo judicial, se determine que houve erro imputável aos serviços», a seguir, na LGT, em cujo artigo 43.º, n.º 1, se estabelece que «são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido» e, finalmente, no CPPT em que se estabeleceu, no n.º 2 do artigo 61.º (a que corresponde o n.º 4 na redação dada pela Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro), que «se a decisão que reconheceu o direito a juros indemnizatórios for judicial, o prazo de pagamento conta-se a partir do início do prazo da sua execução espontânea».

Relativamente ao pedido de condenação no pagamento de indemnização por prestação de garantia indevida, o artigo 171.º do CPPT, estabelece que «a indemnização em caso de garantia bancária ou equivalente indevidamente prestada será requerida no processo em que seja controvertida a legalidade da dívida exequenda» e que «a indemnização deve ser solicitada na reclamação, impugnação ou recurso ou em caso de o seu fundamento ser superveniente no prazo de 30 dias após a sua ocorrência».

Assim, é inequívoco que o processo de impugnação judicial abrange a possibilidade de condenação no pagamento de garantia indevida e até é, em princípio, o meio processual adequado para formular tal pedido, o que se justifica por evidentes razões de economia processual, pois o direito a indemnização por garantia indevida depende do que se decidir sobre a legalidade ou ilegalidade do ato de liquidação.

O pedido de constituição do tribunal arbitral tem como corolário passar a ser no processo arbitral que vai ser discutida a «legalidade da dívida exequenda», pelo que, como resulta do teor expresso daquele n.º 1 do referido artigo 171.º do CPPT, é também o processo arbitral o adequado para apreciar o pedido de indemnização por garantia indevida.

Aliás, a cumulação de pedidos relativos ao mesmo ato tributário está implicitamente pressuposta no artigo 3.º do RJAT, ao falar em «cumulação de pedidos ainda que relativos a diferentes atos», o que deixa perceber que a cumulação de pedidos também é possível relativamente ao mesmo ato tributário e os pedidos de indemnização por juros indemnizatórios e de condenação por garantia indevida são suscetíveis de ser abrangidos por aquela fórmula, pelo que uma interpretação neste sentido tem, pelo menos, o mínimo de correspondência verbal exigido pelo n.º 2 do artigo 9.º do Código Civil.

O regime do direito a indemnização por garantia indevida consta do artigo 52.º da LGT, que estabelece o seguinte:

Artigo 53.º

Garantia em caso de prestação indevida

              1. O devedor que, para suspender a execução, ofereça garantia bancária ou equivalente será indemnizado total ou parcialmente pelos prejuízos resultantes da sua prestação, caso a tenha mantido por período superior a três anos em proporção do vencimento em recurso administrativo, impugnação ou oposição à execução que tenham como objeto a dívida garantida.

              2. O prazo referido no número anterior não se aplica quando se verifique, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços na liquidação do tributo.

              3. A indemnização referida no número 1 tem como limite máximo o montante resultante da aplicação ao valor garantido da taxa de juros indemnizatórios prevista na presente lei e pode ser requerida no próprio processo de reclamação ou impugnação judicial, ou autonomamente.

              4. A indemnização por prestação de garantia indevida será paga por abate à receita do tributo do ano em que o pagamento se efetuou.”

 

No caso em apreço, é manifesto que o erro do acto de liquidação consubstanciado na aplicação ilegal da cláusula geral anti-abuso – quer porque o direito à instauração do respectivo procedimento tinha já caducado, quer porque, mesmo que assim não fosse, não se verificam os pressupostos do artigo 38.º da Lei Geral Tributária -, é imputável à Autoridade Tributária e Aduaneira, pois a inspeção tributária e a liquidação foram da sua iniciativa e os Requerentes em nada contribuiram para que esse erro fosse praticado.

Por isso, os Requerentes têm direito a indemnização pela garantia prestada.

No entanto, não foram alegados e provados os encargos que os Requerentes suportaram para prestar a garantia bancária, pelo que é inviável fixar aqui a indemnização a que os Requerentes têm direito, o que só poderá ser efectuado em execução deste acórdão.

 

***

 

C. DECISÃO

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral:

a)      Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral e, em consequência, anular o acto tributário impugnado nos autos;

b)      Condenar a Autoridade Tributária a pagar aos Requerentes indemnização por garantia indevida, no montante que se vier a liquidar em execução de sentença;

c)      Condenar a Autoridade Tributária nas custas do processo, no montante de €5.202,00.

 

D. Valor do processo

Fixa-se o valor do processo em €280.404,56, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

E. Custas

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em €5.202,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Autoridade Tributária, uma vez que o pedido foi integralmente procedente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.

 

Notifique-se.

 

Lisboa

 

31 de Dezembro de 2014

 

O Árbitro Presidente

 

 

 

(José Pedro Carvalho - Relator)

 

 

O Árbitro Vogal

 

 

 

(Suzana Costa)

 

 

 

O Árbitro Vogal

 

 

 

(Carla Castelo Trindade)

 



[1] Sublinhado nosso.

[2] Cfr. Revista Fiscalidade, n.º 44, Outubro/Dezembro 2010, Instituto Superior de Gestão, p. 112.

[3]A Cláusula Geral Anti-Abuso: Problemática, Aplicação e Procedimento”, in Bússola Fiscal 1, Encontro da Escrita, p. 219.

[4] Não se tratará de atos ou negócios jurídicos que sejam essencial ou principalmente dirigidos à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, atos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, uma vez que não há negócio idêntico à transformação operada, do qual resultasse uma tributação. O que se passa, in casu, é que o status quo ante implicava, na operação global subsequentemente operada pelos Requerentes, onde se encaixa o acto cuja ineficácia a Autoridade Tributária persegue, uma tributação.

[5] NABAIS, JOSÉ CASALTA, “O Direito Fundamental de Pagar Impostos” Almedina, 2009, p. 205 e 206.

[6] SALDANHA SANCHES, "Os Limites do Planeamento Fiscal - substância e forma no direito fiscal português, comunitário e internacional", Coimbra, 2006, Coimbra Editora, p. 9.

[7] SALDANHA SANCHES, "Os Limites do Planeamento Fiscal - substância e forma no direito fiscal português, comunitário e internacional", Coimbra, 2006, Coimbra Editora, p.182.

[8] Disponível em http://www.cidadevirtual.pt/stj/jurisp/RegistoPredial.html.