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SUMÁRIO:
1. A interpretação do Tribunal de Justiça sobre o direito da União Europeia é vinculativa para os órgãos jurisdicionais nacionais, com a necessária desaplicação do direito interno em caso de desconformidade com aquele.
2. Pode concluir-se que o artigo 22.º do EBF, na redação que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 7/2015, de 13 de janeiro, na medida em que limita o regime de isenção nele previsto aos OIC constituídos segundo a legislação nacional, dele excluindo os OICs constituídos segundo a legislação de outros Estados, é incompatível com a liberdade de circulação de capitais que decorre do artigo 63.º do TFUE.
DECISÃO ARBITRAL
O Tribunal Arbitral, composto pelos árbitros Professora Doutora Regina de Almeida Monteiro, (Presidente), Professor Doutor Jorge Bacelar Gouveia e Dr. Jorge Carita (Adjuntos), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) constituído em 02-04-2024.
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Relatório
A..., SAS, sociedade de Direito francês, com sede em..., Rue..., ..., Paris, França, titular dos Números únicos de Identificação de Pessoa Coletiva português ... e francês ... (“Requerente”), na qualidade de entidade gestora do Fundo de Investimento B... (“Fundo”), titular do Número único de Identificação de Pessoa Coletiva francês ..., ao abrigo do disposto nos artigos 95.º, n.os 1 e 2, alíneas a) e d), da Lei Geral Tributária (“LGT”), 99.º, alínea a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”), 137.º, n.os 1 e 2, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (“CIRC”), e 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a), 10.º, n.os 1, alínea a), e 2, do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), requereu a constituição de tribunal arbitral no objetivo de apreciar a legalidade dos atos de retenção na fonte de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (“IRC”) referentes ao período compreendido entre 17 de maio de 2021 e 21 de dezembro de 2022, no montante total de 674.550,97 EUR, e da decisão de indeferimento tácito da reclamação graciosa apresentada contra aqueles atos tributários.
É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (AT).
O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi apresentado em 22-01-2024 e aceite em 24-01-2024 pelo Exm.º Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira.
A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 1, e no artigo 11.º, n.º 1, al. b), do RJAT, o Conselho Deontológico, em 12 de março de 2024, designou os membros do presente tribunal arbitral, que comunicaram, no prazo legalmente estipulado, a aceitação dos respetivos encargos.
As partes foram devidamente notificadas dessa designação, e não manifestaram vontade de a recusar, nos termos do artigo 11.º, n.º 1, als. a) e b), do RJAT e dos artigos. 6.º e 7.º do Código Deontológico.
O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído em 2 de abril de 2024, com base no preceituado nos artigos. 2.º, n.º 1, al. a), e 10.º, n.º 1, do RJAT, para apreciar e decidir o objeto do presente litígio, tendo sido subsequentemente notificada AT em 3 de maio de 2024 para, querendo, apresentar resposta e juntou o Processo Administrativo.
A Requerida, sustentou, na sua resposta de 6 de maio de 2024, que a Requerente não tinha razão, defendendo-se por exceção e por impugnação:
- por exceção, alegando que o Tribunal Arbitral não poderia conhecer o pedido por o mesmo ter sido apresentado por entidade sem legitimidade processual ativa, uma vez que deveria ser o próprio fundo beneficiário dos dividendos a fazê-lo, ainda que por entidade em seu nome;
- por impugnação, considerando que não assiste razão no pedido de pronúncia arbitral na medida em que considera não provada a tributação desfavorável em razão da distinção entre residência e não residência, invocando diversas decisões judiciais do TJUE e não tendo sido violado o Direito da União Europeia.
Em 29 de maio de 2024, a Requerente apresentou as suas alegações escritas, nas quais também respondeu à exceção processual invocada pela Requerida, tendo esta apresentado as suas alegações em 4 de junho de 2024 em que considerando não existirem factos novos remete e dá por integralmente reproduzido o aduzido em sede da Resposta.
Considerando que as alegações da AT foram apresentadas para além do prazo, e considerando o seu teor decide este Tribunal Arbitral que se devem manter no SGP.
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Saneamento
O Tribunal Arbitral foi devidamente constituído em 2 de abril de 2024, em conformidade com o estabelecido na al. c) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro.
As partes têm personalidade e capacidade judiciárias e estão legalmente patrocinadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e do artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.
Pressuposto processual controvertido, a ser analisado já de seguida, é o da legitimidade processual ativa da Requerente.
O processo não padece de vícios que o invalidem.
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Matéria de facto
A matéria factual relevante para a compreensão e decisão da causa, após exame crítico da prova documental junta ao pedido de pronúncia arbitral e dos elementos remetidos aos autos, fixa-se como segue.
3.1. Dos factos provados
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A Requerente, A..., SAS, é uma sociedade de Direito francês, com sede em ..., Rue ..., ..., Paris, França, e titular dos Números únicos de Identificação de Pessoa Coletiva português ... e francês ... (“Requerente”), sendo a entidade gestora do Fundo de Investimento B... (“Fundo”), titular do Número único de Identificação de Pessoa Coletiva francês ...; (cfr. doc. 3 junto com o PPA).
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O Fundo reveste a forma jurídica de Sociedade de Investimento de Capital Variável (“SICAV”); (cfr. doc. n.º 3 (p. 1) junto com o PPA).
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A entidade responsável pela custódia dos valores mobiliários é a instituição de crédito C..., sociedade de Direito francês, com sede em ..., ..., ..., Paris, França, titular dos Números únicos de Identificação de Pessoa Coletiva português ... e francês ...; (cfr. doc. n.º 3 (p. 3) junto com o PPA).
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Nos anos de 2021 e 2022, o Fundo manteve investimentos em diversos países, entre os quais Portugal, detendo participações diretas nas seguintes sociedades comerciais portuguesas:
(cfr. cópia de informação oficial emitida pelo C...; (cfr. doc. 4 junto com o PPA).
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O Fundo não dispõe de sede, direção efetiva ou estabelecimento estável em território nacional, sendo residente para efeitos fiscais em França, aí se encontrando sujeito à lei fiscal francesa; (cfr. cópias dos certificados de residência emitidos pelas autoridades fiscais francesas; (cfr. doc. 5 junto com o PPA).
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o Fundo não é sujeito a tributação em sede de “imposto sobre o rendimento das sociedades” no Estado da residência: «The UCI is not subject to corporate income tax. However, its shareholders are liable for taxation on dividends that the SICAV distributes and on realised capital gains or losses. The tax treatment of sums distributed by the SICAV or the unrealised or realised capital gains or losses of the SICAV depends on the tax rules applicable to the particular circumstances of each subscriber and/or the SICAV’s investment jurisdiction» (sublinhado nosso); (cfr. doc. 3 (p. 4) junto com o PPA).
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No período compreendido entre 17 de maio de 2021 e 21 de dezembro de 2022, foram praticados atos de retenção na fonte de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (“IRC”) no montante total de 674.550,97 EUR relativos a dividendos auferidos por aquele Fundo, assim identificados:
(cfr. cópias dos certificados fiscais emitidos pelo D...; (cfr. doc. 1 junto com o PPA).
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Os rendimentos de capitais auferidos pelo Fundo foram sujeitos a retenção na fonte em sede de IRC em Portugal, tendo o E..., titular do Número único de Identificação de Pessoa Coletiva português..., atuado na qualidade de substituto tributário; cfr. cópias das declarações emitidas pelo substituto tributário, (cfr. doc. 6 junto com o PPA).
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Os rendimentos foram pagos pelo substituto tributário à entidade custodiante que, por sua vez, os entregou aos beneficiários efetivos: diversos OIC, inclusive o Fundo de Investimento B... SRI, tendo a retenção na fonte ascendido ao total de 674.550,97 EUR, é este o montante cuja anulação se peticiona; (cfr. doc. 6 junto com o PPA).
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os dividendos auferidos pelo Fundo ascenderam ao montante líquido total de 2.023.652,90 EUR; (facto não controvertido).
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Por referência a tais rendimentos de capitais, o E... emitiu, na qualidade de substituto tributário, as respetivas guias de retenção na fonte, tendo informado a Autoridade Tributária das importâncias retidas, da tipologia de rendimentos a que se referem e da circunstância de tais rendimentos terem sido pagos a um beneficiário não residente; (cfr. doc. 6 junto com o PPA).
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Os montantes constantes nas guias de retenção na fonte foram oportunamente entregues pelo E... junto dos cofres do Estado; (cfr. doc. 6 junto com o PPA).
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As retenções na fonte relativas aos dividendos de fonte portuguesa percecionados não deram lugar a qualquer crédito de imposto, parcial ou total, no Estado de residência do Fundo; (cfr. doc. 7 junto com o PPA).
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O Fundo de Investimento B..., titular do Número único de Identificação de Pessoa Coletiva francês..., foi a entidade beneficiária dos dividendos cuja tributação em sede de IRC; (facto não controvertido).
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Em 20 de junho de 2023 a Requerente apresentou reclamação graciosa no sentido de obter a anulação daqueles atos tributários; (cfr. doc. 8 junto com o PPA e PA).
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A Reclamação Graciosa encontra-se instaurada no SICAT com o n.º ...2023..., em nome de C... SAS.
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A Autoridade Tributária e Aduaneira ainda não se pronunciou sobre o pedido de reclamação graciosa, não tendo a Requerente sido notificada do respetivo projeto de decisão.
3.2. Factos não provados
Não se consideram provados factos com relevo substancial para a decisão a tomar pelo Tribunal Arbitral.
3.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada
Relativamente à matéria de facto, o Tribunal Arbitral não tem de se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada.
Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. o artigo 596.º, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, al. e), do RJAT].
Os factos dados como provados resultaram da análise crítica dos documentos juntos aos autos, bem como das posições assumidas pelas Partes nos respetivos articulados e alegações.
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Da exceção da ilegitimidade da Requerente invocada pela Requerida
A apreciação em sede de Direito nos presentes autos deve, desde logo, debruçar-se sobre a apreciação da exceção processual dilatória apresentada pela Requerida, da ilegitimidade processual ativa da entidade que fez o pedido de pronúncia arbitral, o qual foi objeto de resposta por parte da Requerente nas suas alegações escritas.
O pedido de pronúncia arbitral tem como Requerente a sociedade C... SAS, entidade que outorga a procuração forense, que se diz ser a gestora e representar o Fundo de Investimento B... SRI.
4.1. Posição da Requerida
Na Resposta a AT alega:
“Afigura-se-nos que a REQUERENTE, a agir na qualidade de sociedade gestora do FUNDO DE INVESTIMENTO B... SRI (sem NIF português), NÃO TEM LEGITIMIDADE para apresentar o pedido de anulação das liquidações de retenção na fonte de IRC, efetuada a terceiros, nomeadamente a C... COM O NIF ... (O BENEFICIÁRIO DO PAGAMENTO DOS DIVIDENDOS E SUBSTITUÍDO TRIBUTÁRIO IDENTIFICADO PELO SUBSTITUTO) e respetivo reembolso.
NÃO OBSTANTE E SEM CONCEDER, verificamos que a Requerente identifica somente um substituto tributário (cfr.§§22.º, 25.º e 26.º do PPA) - E... NIF ..., quando são apresentadas declarações (a Modelo 30 submetida e declaração constante no Doc.6) por dois substitutos tributários, o anterior e o F..., SA, com o NIF: ...”
Com efeito, da análise aos documentos juntos pela Requerente (Doc. 6), constata-se que os pagamentos de dividendos foram feitos à entidade C..., com sede em França e NIF... .
Donde se conclui que a Requerente não é a beneficiária efetiva dos rendimentos objeto de tributação, não sendo, em consequência, titular do direito de anulação dos atos que aqui peticiona.”
4.2. Posição da Requerente
Nas alegações e em resposta à exceção alegada pela AT, defende a Requerente:
“Em primeiro lugar, cumpre esclarecer que o entendimento perfilhado pela Autoridade Tributária assenta num equívoco quanto às posições que assumem a Requerente, o Fundo1, os substitutos tributários e a entidade custodiante.
Como consabido, os fundos de investimento, enquanto organismos de investimento coletivo (“OIC”), são patrimónios autónomos desprovidos de personalidade jurídica.
A ausência de personalidade jurídica (e também de capacidade judiciária) dos OIC é suprida através da sua representação por uma sociedade gestora – uma terceira entidade dotada de personalidade jurídica –, a qual atua em nome e por conta dos OIC por si geridos.
In casu, a Requerente é a sociedade gestora do Fundo – cfr. Documento n.º 3 junto com o pedido de pronúncia arbitral.
Por outras palavras, a Requerente, ao assumir as vestes de sociedade gestora, atua em representação do Fundo, agindo em seu nome e por sua conta, o que, desde logo, determina a sua plena legitimidade, quer procedimental, quer processual.
Neste contexto, foi a Requerente quem apresentou a reclamação graciosa e, subsequentemente, quem intentou a presente ação arbitral – cfr. Documento n.º 8 junto com o pedido de pronúncia arbitral.
Por conseguinte, resulta manifesta e inequívoca a legitimidade da Requerente para, em nome e por conta do Fundo, o representar em sede dos presentes autos.
Por outro lado, o facto de os rendimentos de capitais (in casu, dividendos) terem sido entregues pelos substitutos tributários à entidade responsável pela custódia dos valores mobiliários do Fundo, per se, não exclui que este tenha sido o beneficiário efetivo daqueles rendimentos.”
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Apreciação
Comece-se por reconhecer que no pedido de constituição do tribunal arbitral foi identificada como Requerente a sociedade A... SAS.
Por sua vez, no pedido de pronúncia arbitral, embora se diga que a Requerente é a dita sociedade gestora, expressamente se reconhece que ela atua “na qualidade de entidade gestora do Fundo de Investimento B... SRI”. É também a sociedade gestora que outorga a procuração forense junta aos autos, assumindo também nesse documento a “qualidade de entidade gestora do Fundo de Investimento B... SRI”.
Resulta dos documentos juntos aos autos que a Requerente é a sociedade gestora do Fundo de Investimento B... SRI, facto que a Requerida não parece contestar. Também terá de reconhecer-se que um fundo de investimento, sendo um património autónomo, não tem personalidade jurídica, tendo, porém, personalidade tributária e judiciária. Portanto, o Fundo pode demandar e ser demandado e, num caso ou noutro, poderá ser representado pela respetiva entidade gestora.
Se lermos com atenção o PPA e as alegações da Requerente, vemos com clareza o que está em causa. No § 15 das alegações, a Requerente refere: “Por outras palavras, a Requerente, ao assumir as vestes de sociedade gestora, atua em representação do Fundo, agindo em seu nome e por sua conta, o que, desde logo, determina a sua plena legitimidade, quer procedimental, quer processual”. E no § 17 diz “por conseguinte, resulta manifesta e inequívoca a legitimidade da Requerente para, em nome e por conta do Fundo, o representar em sede dos presentes autos”. O verbo usado é representar. E a representação, conceda-se, significa uma atuação em nome e por conta de outrem. A entidade gestora, como ela própria refere inúmeras vezes, assume expressamente e sem margem para qualquer dúvida que representa o Fundo, o mesmo é dizer, que atua em nome e por conta do Fundo. Portanto, se atua em nome e por conta do Fundo, não atua em nome próprio e por conta própria.
No art.º 5.º da Resposta, a AT diz que “vem a requerente deduzir o presente p.p.a. alegando que, na qualidade de acionista de sociedades residentes em Portugal, recebeu dividendos (…)”. Ora, essa afirmação não corresponde à verdade. Não é isso que se pode ler no PPA. Aí, no artigo 21.º, o primeiro do ponto C.2. intitulado “Dos rendimentos de fonte portuguesa auferidos pelo Fundo e da tributação incidente sobre os mesmos”, poder ler-se: “Por força da detenção de participações sociais diretas nas sociedades comerciais portuguesas acima identificadas, o Fundo auferiu, no período compreendido entre 17 de maio de 2021 e 21 de dezembro de 2022, dividendos no montante total bruto de 2.698.203,88 EUR:
A Requerente afirma, pois, que foi o Fundo que auferiu esses rendimentos e não a sociedade gestora.
É certo que no presente processo arbitral a Requerente identificada é a A... SAS. Terá sido nestes termos que foi por si apresentado o pedido de constituição do tribunal arbitral. Contudo, para além da forma, do nomen iuris de uma assumida qualidade é evidente que a intervenção desta sociedade no processo decorre da circunstância de ser ela a sociedade gestora do Fundo, que, recordemos, é um património autónomo, desprovido de personalidade jurídica, mas que tem personalidade judiciária. Na verdade, no pedido de pronúncia arbitral é expressamente dito que a Requerente o é “na qualidade de entidade gestora do Fundo de Investimento B... SRI, titular do Número único de Identificação de Pessoa Coletiva francês FR...”. E o mesmo se repete nas alegações que apresenta. Resulta, portanto, do próprio pedido de pronúncia arbitral que a Requerente, ainda que assim identificada e assumida, não age na prossecução de um interesse próprio, mas procurando, como lhe cumpre, defender os interesses do património autónomo que lhe cabe, para todos os efeitos, incluindo judiciários, representar. O mesmo resulta, como vimos, da procuração forense junta aos autos, que é clara a este respeito.
Resulta, portanto, evidente que a Requerente atua não em nome próprio, mas em representação do Fundo, percebendo-se cristalinamente que tanto o pedido como a causa de pedir, que balizam a cognoscibilidade do tribunal, se referem indubitavelmente ao Fundo. Portanto, não pode senão concluir-se que, em termos substantivos, o Requerente é o Fundo.
O n.º 2 do artigo 10.º do RJAT refere que o pedido de constituição do tribunal é apresentado mediante requerimento enviado por via eletrónica. Mas aí diz-se também que desse requerimento devem constar a identificação do ato ou atos tributários objeto do pedido de pronúncia arbitral e a própria identificação do pedido de pronúncia arbitral.
Havendo uma divergência no que respeita à identificação do Requerente, ao nomen iuris de uma qualidade, insista-se, entre o pedido de constituição do tribunal e o pedido de pronúncia arbitral, não pode ela configurar uma situação de ilegitimidade. Quando muito seria uma irregularidade sanável, não pode a superação dessa divergência deixar de fazer-se dando prevalência ao pedido de pronúncia.
Resta saber se o Fundo, representado judiciariamente pela sociedade gestora, é o titular da relação material controvertida.
Como vimos, a Requerida sustenta a ilegitimidade ativa da Requerente (e, diga-se, do Fundo que esta representa), por reconhecer E... o papel de substituído tributário. A AT alega que a Requerente, a agir na qualidade de sociedade gestora do Fundo de investimento (sem NIF português), não tem legitimidade para apresentar o presente pedido de anulação das liquidações de retenção na fonte de IRC, efetuada a terceiros, nomeadamente E... (o beneficiário do pagamento dos dividendos e substituído tributário identificado pelo substituto) e respetivo reembolso.
Pelas razões adiantadas pela Requerente, a AT não tem razão. Na verdade, acompanhamos o juízo da Requerente quando afirma que o “entendimento perfilhado pela Autoridade Tributária assenta num equívoco quanto às posições que assumem a Requerente, o Fundo, o substituto tributário e a entidade custodiante”.
Resulta com meridiana clareza dos autos que o Fundo é o titular das ações representativas do capital social da sociedade com sede em Portugal que distribui os dividendos sobre os quais foram feitas as retenções na fonte que deram causa ao presente processo arbitral. É manifesto que a G... SGPS, S.A. distribuiu dividendos, que esses dividendos foram pagos pelo E..., como agente pagador, com a respetiva retenção na fonte, ao C... (NIF...), como entidade custodiante, que, por sua vez, entregou esses rendimentos ao Fundo, que é indubitavelmente o beneficiário efetivo desses rendimentos. Foi o Fundo, e não outra entidade, que suportou economicamente a ablação patrimonial respeitante à retenção na fonte operada a título definitivo a que o agente pagador, como substituto tributário, procedeu. Portanto, parece claro que é o Fundo o titular do interesse legalmente protegido a que se refere o art.º 9.º do CPPT, o mesmo é dizer, é ele o titular da relação material controvertida.
Pelo exposto, este Tribunal Arbitral julga improcedente a exceção dilatória da ilegitimidade processual da Requerente, passando de seguida à apreciação do mérito da causa.
5. Questão de direito
Neste processo arbitral a questão jurídica material que vem controvertida, consiste em determinar se a legislação portuguesa, na redação em vigor à data dos factos tributários, ao excluir de tributação os dividendos distribuídos por uma sociedade residente em Portugal a fundos de investimento mobiliário que se constituam e operem de acordo com a legislação nacional (artigo 22.º do EBF) e, por isso residentes em território nacional, mas sujeitando a retenção na fonte em IRC os dividendos distribuídos por essas mesmas sociedades a fundos de investimento mobiliário, que não tenham sido constituídos nem operem de acordo com a legislação nacional, e por isso não residentes, configura uma restrição à livre circulação de capitais, não consentida pelo artigo 63.º do TFUE.
A Requerente representa um fundo de investimento (Organismo de Investimento Coletivo) constituído ao abrigo do Direito francês.
Em 2021, o Fundo, ora representado pela Requerente, recebeu dividendos, pagos em Portugal por sociedades de direito português, relativamente aos quais foi efetuada retenção na fonte à taxa de 25%.
5.1. A legislação nacional
O artigo 22.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais (EBF), na redação vigente em 2021, estabelecia o seguinte:
Artigo 22.º
Organismos de Investimento Coletivo
1 – São tributados em IRC, nos termos previstos neste artigo, os fundos de investimento mobiliário, fundos de investimento imobiliário, sociedades de investimento mobiliário e sociedades de investimento imobiliário que se constituam e operem de acordo com a legislação nacional.
2 – O lucro tributável dos sujeitos passivos de IRC referidos no número anterior corresponde ao resultado líquido do exercício, apurado de acordo com as normas contabilísticas legalmente aplicáveis às entidades referidas no número anterior, sem prejuízo do disposto no número seguinte.
3 – Para efeitos do apuramento do lucro tributável, não são considerados os rendimentos referidos nos artigos 5.º, 8.º e 10.º do Código do IRS, exceto quando tais rendimentos provenham de entidades com residência ou domicílio em país, território ou região sujeito a um regime fiscal claramente mais favorável constante de lista aprovada em portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças, os gastos ligados àqueles rendimentos ou previstos no artigo 23.º-A do Código do IRC, bem como os rendimentos, incluindo os descontos, e gastos relativos a comissões de gestão e outras comissões que revertam para as entidades referidas no n.º 1.
4 – Os prejuízos fiscais apurados nos termos do disposto nos números anteriores são deduzidos aos lucros tributáveis nos termos do disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 52.º do Código do IRC.
5 – Sobre a matéria coletável correspondente ao lucro tributável deduzido dos prejuízos fiscais, tal como apurado nos termos dos números anteriores, aplica -se a taxa geral prevista no n.º 1 do artigo 87.º do Código do IRC.
6 – As entidades referidas no n.º 1 estão isentas de derrama municipal e derrama estadual.
7 – Às fusões, cisões ou subscrições em espécie entre as entidades referidas no n.º 1, incluindo as que não sejam dotadas de personalidade jurídica, é aplicável, com as necessárias adaptações, o disposto nos artigos 73.º, 74.º, 76.º e 78.º do Código do IRC, sendo aplicável às subscrições em espécie o regime das entradas de ativos previsto no n.º 3 do artigo 73.º do referido Código.
8 – As taxas de tributação autónoma previstas no artigo 88.º do Código do IRC têm aplicação, com as necessárias adaptações, no presente regime.
9 – O IRC incidente sobre os rendimentos das entidades a que se aplique o presente regime é devido por cada período de tributação, o qual coincide com o ano civil, podendo no entanto ser inferior a um ano civil:
a) No ano do início da atividade, em que é constituído pelo período decorrido entre a data em que se inicia a atividade e o fim do ano civil;
b) No ano da cessação da atividade, em que é constituído pelo período decorrido entre o início do ano civil e a data da cessação da atividade.
10 – Não existe obrigação de efetuar a retenção na fonte de IRC relativamente aos rendimentos obtidos pelos sujeitos passivos referidos no n.º 1.
11 – A liquidação de IRC é efetuada através da declaração de rendimentos a que se refere o artigo 120.º do Código do IRC, aplicando -se, com as necessárias adaptações, o disposto no artigo 89.º, no n.º 1 do artigo 90.º, no artigo 99.º e nos artigos 101.º a 103.º do referido Código.
12 – O pagamento do imposto deve ser efetuado até ao último dia do prazo fixado para o envio da declaração de rendimentos, aplicando -se, com as necessárias adaptações, o disposto nos artigos 109.º a 113.º e 116.º do Código do IRC.
13 – As entidades referidas no n.º 1 estão ainda sujeitas, com as necessárias adaptações, às obrigações previstas nos artigos 117.º a 123.º, 125.º e 128.º a 130.º do Código do IRC.
14 – O disposto no n.º 7 aplica -se às operações aí mencionadas que envolvam entidades com sede, direção efetiva ou domicílio em território português, noutro Estado membro da União Europeia ou, ainda, no Espaço Económico Europeu, neste último caso desde que exista obrigação de cooperação administrativa no domínio do intercâmbio de informações e da assistência à cobrança equivalente à estabelecida na União Europeia.
15 – As entidades gestoras de sociedades ou fundos referidos no n.º 1 são solidariamente responsáveis pelas dívidas de imposto das sociedades ou fundos cuja gestão lhes caiba.
16 – No caso de entidades referidas no n.º 1 divididas em compartimentos patrimoniais autónomos, as regras previstas no presente artigo são aplicáveis, com as necessárias adaptações, a cada um dos referidos compartimentos, sendo-lhes ainda aplicável o disposto no Decreto-Lei n.º 14/2013, de 28 de janeiro.
Nos termos do artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 7/2015, que procedeu, à reforma do regime de tributação dos organismos de investimento coletivo (OIC), “as regras previstas no artigo 22.º do EBF, na redação dada pelo presente decreto-lei, são aplicáveis aos rendimentos obtidos após 1 de julho de 2015”.
No referido artigo 22.º, n.º 1 determina-se que o regime nele previsto é aplicável aos “fundos de investimento mobiliário, fundos de investimento imobiliário, sociedades de investimento mobiliário e sociedades de investimento imobiliário que se constituam e operem de acordo com a legislação nacional”.
O Fundo é constituído ao abrigo da lei francesa e não da lei nacional e, por isso, o artigo 22.º, n.º 1, do EBF afasta a aplicação daquele regime ao Requerente.
5.2. A legislação do TFUE
Artigo 63.º
(ex-artigo 56.º TCE)
1. No âmbito das disposições do presente capítulo, são proibidas todas as restrições aos movimentos de capitais entre Estados-Membros e entre Estados-Membros e países terceiros.
2. No âmbito das disposições do presente capítulo, são proibidas todas as restrições aos pagamentos entre Estados-Membros e entre Estados-Membros e países terceiros.
O artigo 65.º do TFUE limita a aplicação deste princípio, estabelecendo o seguinte:
Artigo 65.º
(ex-artigo 58.º TCE)
1. O disposto no artigo 63.º não prejudica o direito de os Estados-Membros:
a) Aplicarem as disposições pertinentes do seu direito fiscal que estabeleçam uma distinção entre contribuintes que não se encontrem em idêntica situação no que se refere ao seu lugar de residência ou ao lugar em que o seu capital é investido;
b) Tomarem todas as medidas indispensáveis para impedir infrações às suas leis e regulamentos, nomeadamente em matéria fiscal e de supervisão prudencial das instituições financeiras, preverem processos de declaração dos movimentos de capitais para efeitos de informação administrativa ou estatística, ou tomarem medidas justificadas por razões de ordem pública ou de segurança pública.
2. O disposto no presente capítulo não prejudica a possibilidade de aplicação de restrições ao direito de estabelecimento que sejam compatíveis com os Tratados.
3. As medidas e procedimentos a que se referem os n.ºs 1 e 2 não devem constituir um meio de discriminação arbitrária, nem uma restrição dissimulada à livre circulação de capitais e pagamentos, tal como definida no artigo 63.º.
5.3. Apreciação
A questão da compatibilidade ou não do regime previsto no artigo 22.º, n.º 1, do EBF com o Direito da União Europeia, designadamente o artigo 63.º do TFUE, foi apreciada no acórdão do TJUE de 17-03-2022, proferido no processo n.º C-545/19, relativo a pedido de decisão prejudicial, do qual salientamos as seguintes conclusões, (também transcritas no Acórdão do STA de 28-09-2023, proferido no Processo n.º 093/19.7BALSB):
a) Perante o órgão jurisdicional de reenvio, a A...-Fonds AEVN alega que, nos anos de 2015 e 2016, os OIC constituídos e que operam de acordo com a legislação portuguesa estavam sujeitos a um regime fiscal mais favorável do que aquele a que foi sujeita em Portugal, na medida em que, relativamente aos dividendos pagos por sociedades estabelecidas em Portugal, esses organismos estavam isentos, ao abrigo do artigo 22.°, n.° 3, do EBF, do imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas. A A...-Fonds AEVN considera que, sendo tributada à taxa de 25 % sobre os dividendos que lhe são pagos por sociedades estabelecidas em Portugal, é objeto de um tratamento discriminatório proibido pelo artigo 18.° TFUE, bem como de uma restrição à liberdade de circulação de capitais proibida pelo artigo 63.° TFUE. (§ 17);
b)Uma vez que a legislação nacional em causa no processo principal tem, assim, por objeto o tratamento fiscal de dividendos recebidos pelos OIC, deve considerar-se que a situação em causa no processo principal é abrangida pelo âmbito de aplicação da livre circulação de capitais (§ 33);
c)Por conseguinte, a circunstância de os OIC não residentes não estarem sujeitos ao imposto do selo e ao imposto específico previsto no artigo 88.°, n.° 11, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas não os coloca numa situação objetivamente diferente em relação aos OIC residentes no que se refere à tributação dos dividendos de origem portuguesa. (§ 57);
d) um OIC não residente pode ter detentores de participações sociais que tenham residência fiscal em Portugal e sobre cujos rendimentos este Estado-Membro exerce o seu poder de tributação. Nesta perspetiva, um OIC não residente encontra-se numa situação objetivamente comparável à de um OIC residente em Portugal (§ 69);
e) Por conseguinte, o critério de distinção a que se refere a legislação nacional em causa no processo principal, que tem por objeto unicamente o lugar de residência dos OIC, não permite concluir pela existência de uma diferença objetiva de situações entre os organismos residentes e os organismos não residentes. Atendendo a todos os elementos precedentes, há que concluir que, no caso em apreço, a diferença de tratamento entre os OIC residentes e os OIC não residentes diz respeito a situações objetivamente comparáveis. (§ 73 e 74);
f) No entanto, como o Tribunal de Justiça também já declarou, quando um Estado-Membro tenha optado, como na situação em causa no processo principal, por não tributar os OIC residentes beneficiários de dividendos de origem nacional, não pode invocar a necessidade de garantir uma repartição equilibrada do poder de tributar entre os Estados-Membros para justificar a tributação dos OIC não residentes beneficiários desses rendimentos (§ 83);
g) Atendendo a todas as considerações precedentes, há que responder às questões submetidas que o artigo 63.° TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado-Membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um OIC não residente são objeto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção. (§ 85).
Em consequência, o TJUE expressa a seguinte declaração final:
O artigo 63.° TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado-Membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um organismo de investimento coletivo (OIC) não residente são objeto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção.
Nestes termos, concluindo-se pela incompatibilidade do artº.22, do E.B.F., na redação que lhe foi dada pelo Decreto-Lei 7/2015, de 13/01 (a aplicável ao caso "sub iudice"), com o disposto no artº.63, do TFUE, na medida em que limita o regime de isenção nele previsto aos OIC constituídos segundo a legislação nacional, dele excluindo os OIC constituídos segundo a legislação de outros Estados Membros da União Europeia, impõe-se a não aplicação do referido normativo nacional, de onde se deve concluir que a decisão arbitral recorrida não poderá manter-se, dado enfermar de erro de julgamento de direito, determinante da sua anulação, mais sendo a posição adoptada na decisão arbitral fundamento a que se encontra em conformidade com o direito e jurisprudência, europeus.
Por Acórdão de 28-09-2023, proferido no Processo n.º 093/19.7BALSB o Supremo Tribunal Administrativo uniformizou a jurisprudência sobre esta matéria em obediência ao decidido pelo TJUE nos seguintes termos:
“1-Quando um Estado Membro escolhe exercer a sua competência fiscal sobre os dividendos pagos por sociedades residentes unicamente em função do lugar de residência dos Organismos de Investimento Colectivo (OIC) beneficiários, a situação fiscal dos detentores de participações destes últimos é desprovida de pertinência para efeitos de apreciação do carácter discriminatório, ou não, da referida regulamentação;
2-O artº.63, do TFUE, deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado-Membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um OIC não residente são objecto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção;
3-A interpretação do artº.63, do TFUE, acabada de mencionar é incompatível com o artº.22, do E.B.F., na redação que lhe foi dada pelo Decreto-Lei 7/2015, de 13/01, na medida em que limita o regime de isenção nele previsto aos OIC constituídos segundo a legislação nacional, dele excluindo os OIC constituídos segundo a legislação de outros Estados Membros da União Europeia.
A este Acórdão do STA, seguiram-se outros Acórdãos que repetem esta decisão.
Neste âmbito, como tem sido pacificamente entendido pela jurisprudência e é corolário da obrigatoriedade de reenvio prejudicial prevista no artigo 267º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), que substituiu o artigo 234º do Tratado de Roma (anterior artigo 177º), a jurisprudência do TJUE tem carácter vinculativo para os Tribunais nacionais, quando tem por objeto questões de Direito da União Europeia (neste sentido, podem ver-se os seguintes Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo: de 25-10-2000, processo n.º 25128, publicado em Apêndice ao Diário da República de 31-1-2003, p. 3757; de 7-11-2001, processo n.º 26432, publicado em Apêndice ao Diário da República de 13-10-2003, p. 2602; de 7-11-2001, processo n.º 26404, publicado em Apêndice ao Diário da República de 13-10-2003, p. 2593).
A supremacia do Direito da União Europeia sobre o Direito Nacional tem suporte no n.º 4 do artigo 8.º da CRP:
“as disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respectivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático”.
Assim, considera-se ilegal, por incompatibilidade com o artigo 63.º do TFUE, o artigo 22.º, n.º 1, do EBF, na parte em que limita o regime nele previsto a sociedades constituídas segundo a legislação nacional, excluindo das sociedades constituídas segundo legislações de outros Estados Membros.
Pelo exposto, tem de se concluir que os atos de retenção na fonte impugnados, bem como o indeferimento da reclamação graciosa, enfermam de vício de violação de lei, que justifica a sua anulação, de acordo, com o disposto no artigo 163.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo subsidiariamente aplicável nos termos do artigo 2.º, alínea c), da LGT.
6. Reembolso das importâncias pagas e juros indemnizatórios
A Requerente pede o reembolso da quantia de € 674.550,97 que foi retida na fonte, acrescido de juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43.º da LGT.
6.1. Reembolso
Na sequência da anulação da retenção na fonte o FUNDO representado pela Requerente tem direito a ser reembolsado da quantia retida, o que é consequência da anulação.
Assim, tendo sido retida a quantia de € 674.550,97 o FUNDO, representado pela Requerente tem direito a dela ser reembolsado.
6.2. Juros indemnizatórios
O TJUE tem decidido que a cobrança de impostos em violação do direito da União tem como consequência não só direito ao reembolso como o direito a juros, e referimos o acórdão de 18-04-2013, processo n.º C-565/11
21 Há que lembrar ainda que, quando um Estado-Membro tenha cobrado impostos em violação do direito da União, os contribuintes têm direito ao reembolso não apenas do imposto indevidamente cobrado, mas igualmente das quantias pagas a esse Estado ou por este retidas em relação direta com esse imposto. Isso inclui igualmente o prejuízo decorrente da indisponibilidade de quantias de dinheiro, devido à exigibilidade prematura do imposto (v. acórdãos de 8 de março de 2001, Metallgeselischaft e o., C-397/98 e C-410/98, Colet., p. I-1727, n.ºs 87 a 89; de 12 de dezembro de 2006, Test Claimants in the FII Group Litigation, C-446/04, Colet., p. I-11753, n.º 205; Littlewoods Retail e o., já referido, n.º 25; e de 27 de setembro de 2012, Zuckerfabrik Jülich e o., C-113/10, C-147/10 e C-234/10, n.º 65).
22 Resulta daí que o princípio da obrigação de os Estados-Membros restituírem com juros os montantes dos impostos cobrados em violação do direito da União decorre desse mesmo direito da União (acórdãos, já referidos, Littlewoods Retail e o., n.º 26, e Zuckerfabrik Jülich e o., n.º 66).
23 A esse respeito, o Tribunal de Justiça já decidiu que, na falta de legislação da União, compete ao ordenamento jurídico interno de cada Estado-Membro prever as condições em que tais juros devem ser pagos, nomeadamente a respetiva taxa e o modo de cálculo. Essas condições devem respeitar os princípios da equivalência e da efetividade, isto é, não devem ser menos favoráveis do que as condições relativas a reclamações semelhantes baseadas em disposições de direito interno, nem organizadas de modo a, na prática, impossibilitar ou dificultar excessivamente o exercício dos direitos conferidos pelo ordenamento jurídico da União (v., neste sentido, acórdão Littlewoods Retail e o., já referido, n.ºs 27 e 28 e jurisprudência referida).
Como é referido no n.º 23, cabe a cada Estado-Membro determinar as condições em que tais juros devem ser pagos, nomeadamente a respetiva taxa e o modo de cálculo.
O artigo 24.º, n.º 5 do RJAT determina que: “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previstos na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”, o que permite concluir pelo reconhecimento do direito a juros indemnizatórios no âmbito de um processo arbitral.
O artigo 43.º, n.º 1, da LGT determina que:
São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.
Esta disciplina deriva do dever, que recai sobre a AT, de reconstituição imediata e plena da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, como resulta do disposto nos artigos 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e 100.º da LGT, fazendo este último preceito referência expressa ao pagamento de juros indemnizatórios, compreendido nesse efeito repristinatório do statu quo ante. O que significa que, na execução do julgado anulatório, a AT deve reintegrar totalmente a ordem jurídica violada, restituindo as importâncias de imposto pagas em excesso e, neste âmbito, a privação ilegal dessas importâncias deve ser objeto de ressarcimento por via do cálculo de juros indemnizatórios, por forma a reconstituir a situação atual hipotética que existiria se o ato anulado não tivesse sido praticado.
Assim, ainda que a ilegalidade decorra da violação do Direito da União Europeia, a circunstância não impede que se considere estarmos perante um erro que confira direito a juros indemnizatórios, sendo somente necessário que o erro seja imputável aos serviços.
De mencionar a nossa concordância com o decidido no Acórdão do STA de 14-10-2020, proferido no Proc. 01273/08.6BELRS 01364/17:
“De todo o modo, sempre se deixa expresso que, como a Recorrente bem sabe, nos termos dos artigos 61.º do CPPT e 43.º da LGT, são devidos juros indemnizatórios quando, anulados os actos por vício de violação de lei, se apure que a culpa do erro subjacente à anulação do acto é imputável aos serviços da Administração Tributária. Ou, em bom rigor, não é imputável ao contribuinte.
Ora, no caso concreto, verificado o erro e ordenada judicialmente a sua anulação, é manifesto que, para além da devolução dos montantes ilegalmente retidos, a Recorrida tem direito a que lhe sejam pagos os juros vencidos sobre esses valores (ilegalmente retidos) até integral restituição, sendo indiferente, ao reconhecimento desse direito, que o erro decorra especialmente da violação de normas comunitárias e não apenas de normas nacionais. Ou seja, não é o facto do erro de violação de lei resultar da desconformidade do ordenamento nacional com o Direito da União que sustenta o afastamento do direito a juros indemnizatórios uma vez que o que releva é a imputabilidade do seu cometimento à Administração Fiscal, como é o caso. As normas de direito comunitário porque vigoram directamente na ordem jurídica interna, prevalecem sobre as normas do direito interno, não podendo ser afastadas pelos Estados Membros através de imposição de normas de direito interno, que, como se viu, foram aplicadas pela Administração Fiscal.”
A determinação do momento a partir do qual devem ser calculados os juros indemnizatórios, constitui jurisprudência uniforme do STA,
Em 20 de junho de 2023 a Requerente apresentou reclamação graciosa instaurada no SICAT com o n.º ...2023..., em nome de A... SAS, a qual ainda não foi objeto de decisão pela AT.
O Pleno do Supremo Tribunal Administrativo uniformizou jurisprudência, especificamente para os casos de retenção na fonte seguida de reclamação graciosa, no acórdão de 29-06-2022,
processo n.º 93/21.7BALSB, nos seguintes termos:
Em caso de retenção na fonte e havendo lugar a impugnação administrativa do ato tributário em causa (v.g. reclamação graciosa), o erro passa a ser imputável à A. Fiscal depois de operar o indeferimento do mesmo procedimento gracioso, efetivo ou presumido, funcionando tal data como termo inicial para cômputo dos juros indemnizatórios a pagar ao sujeito passivo, nos termos do artigo 43.º, nºs.1 e 3, da L.G.T.
Nos presentes autos, a reclamação graciosa foi apresentada em 20-06-2023, pelo que a presunção de indeferimento tácito se formou em 21-10-2023, nos termos do n.º 5 do artigo 57.º da LGT, decorrido o prazo de quatro meses previsto no n.º 1 do mesmo artigo.
Assim, à face daquela jurisprudência uniformizada, é de concluir que a Requerente tem direito a juros indemnizatórios desde 21-10-2023.
Os juros indemnizatórios devem ser contados, com base na quantia de € 674.550,97, desde 21-10-2023, até integral reembolso ao Requerente, à taxa legal supletiva, nos termos dos artigos 43.º, n.º 4, e 35.º, n.º 10, da LGT, do artigo 61.º do CPPT, do artigo 559.º do Código Civil e da Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril.
Os juros indemnizatórios devem ser contados, com base no valor de € 674.550,97 com termo inicial em 21-10-2023, à taxa legal supletiva, nos termos dos artigos 43.º, n.º 4, e 35.º, n.º 10, da LGT, do artigo 61.º do CPPT, do artigo 559.º do Código Civil e da Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril.
7. Decisão
De harmonia com o exposto, decide o Tribunal Arbitral em julgar procedente a ação e, em consequência:
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Declarar ilegais e anular as liquidações de IRC por retenção na fonte impugnadas, referentes ao período compreendido entre 3 de junho e 14 de outubro de 2019, no montante total de € 674.550,97;
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Condenar a Requerida a restituir as importâncias indevidamente retidas na fonte a título de IRC, no montante total de € 674.550,97 ao FUNDO representado pela Requerente;
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Condenar a Requerida ao pagamento de juros indemnizatórios, ao FUNDO representado pela Requerente com termo inicial em 21-10-2023 e nos termos suprarreferidos.
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Condenar a AT nas custas do processo.
8. Valor do processo
De harmonia com o disposto nos artigos 306.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, 97.º-A, n.º 1, al. a), do CPPT, e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 674.550,97 (seiscentos e setenta e quatro mil, quinhentos e cinquenta euros e noventa e sete cêntimos), correspondente ao valor dos atos de retenção objeto de impugnação no pedido de pronúncia arbitral, o qual não foi objeto de contestação nesses termos.
9. Custas
Calculadas de acordo com o artigo 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e da Tabela I a ele anexa, fixa-se o valor de € 9.792,00 (nove mil, setecentos e noventa e dois euros), a cargo da Requerida.
Notifique-se.
Lisboa, 26 de dezembro de 2024.
Os Árbitros
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(Regina de Almeida Monteiro – Presidente)
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(Jorge Bacelar Gouveia – Adjunto, com declaração de voto de vencido)
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(Jorge Carita – Adjunto)
Declaração de voto de Jorge Bacelar Gouveia
Votei vencido o presente acórdão arbitral por entender verificar-se a exceção processual dilatória da ilegitimidade ativa da Requerente, suscitada pela Requerida, na medida em que não está em juízo a entidade titular da relação jurídico-tributária materialmente controvertida, pelo que devia ter havido uma decisão de absolvição da instância.