Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 392/2014-T
Data da decisão: 2014-12-19  IRS  
Valor do pedido: € 62.501,01
Tema: IRS – transparência fiscal
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DECISÃO ARBITRAL

(redigida conforme ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990)

 

I.                   RELATÓRIO

A, doravante o Requerente, contribuinte n.º…, residente na Estrada … Viana do Castelo, requereu a constituição do Tribunal Arbitral, nos termos do disposto nos artigos 2.º n.º 1 alínea a), 5.º n.º 3 alínea a), 6.º n.º 2 alínea a), 10.º n.º 1 alínea a), todos, do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), e do artigo 102.º n.º 2 do Código do Procedimento e do Processo Tributário (“CPPT”), com vista à declaração da ilegalidade dos actos tributários consubstanciados nas seguintes liquidações no valor total de € 78.082,26:

- liquidação de IRS n.º 2013 …, do ano de 2009;

  - demonstração de liquidação de juros n.º 2013 …, do ano de 2009;

  - demonstração de acerto de contas n.º 2013 …, do ano de 2009;

- liquidação de IRS n.º 2013 …, do ano de 2010;

  - demonstração da liquidação de juros n.º 2013…;

  - demonstração de acerto de contas n.º 2013 …;

- liquidação de IRS n.º 2013 …, do ano de 2011;

  - demonstração de liquidação de juros n.º 2013 …, do ano de 2011;

  - demonstração de acerto de contas n.º 2013 …, do ano de 2011.

 

As liquidações em causa resultaram de inspecção tributária realizada aos anos de 2009, 2010 e 2011.

Considera o Requerente, em síntese, que os referidos actos tributários de liquidação devem ser anulados por serem ilegais em virtude da existência de vício nos pressupostos de direito.

De facto, alega o Requerente que, em síntese, a Administração Tributária e Aduaneira (doravante a Requerida ou a AT )  aplicou erroneamente o regime de transparência fiscal à sociedade B, Lda. (a “Sociedade”), contribuinte n.º …, com o fundamento de, desde Fevereiro de 2009, o capital da Sociedade ser exclusivamente detido pelo Requerente, ao qual foi imputado, na qualidade de sócio da Sociedade, a matéria colectável da Sociedade e liquidado adicionalmente IRS dos anos de 2009, 2010 e 2011.

Contudo, alega o Requerente que em 9 de Fevereiro de 2009 ocorreu a cessão de uma das quotas de C (sócia com A na sociedade de transparência) para A tendo, na mesma data, este cedido uma quota a seu filho D, o qual não exerce a actividade médica.

Motivo pelo qual entende o Requerente não ser aplicável à Sociedade, a partir dessa data, o regime de transparência fiscal, previsto no artigo 6.º do Código do IRC.

A AT, por sua vez, constatando que o registo da aludida cessão de quotas só ocorreu em 12/01/2013, e atenta a não produção de efeitos perante terceiros do contrato de cessão de quotas feito por mero escrito particular datado de 09/02/2009, concluiu que a cessão de quotas só produz efeitos perante a AT a partir daquela data de registo, havendo lugar, por conseguinte, à imputação da matéria colectável da Sociedade ao então único sócio, ora Requerente, no período de 09/02/2009 a 12/01/2013.

E mais refere a AT que a Sociedade “procedeu ao registo do facto…..apenas em 12 de Janeiro de 2013…”.

Junto o processo administrativo, pela AT, ambas as Partes se pronunciaram favoravelmente no sentido da dispensa da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT.

 

II.        SANEAMENTO

O tribunal foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria, em conformidade com o artigo 2.º do RJAT.

As Partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e encontram-se regularmente representadas, em conformidade com os artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.

Não foram  invocadas nem identificadas nulidades no processo.

Não existem questões prévias a decidir.

III.      FUNDAMENTAÇÃO

III.A   Matéria de Facto

O tribunal considera provada os seguintes factos:

O Requerente é médico, sendo ainda sócio e gerente da Sociedade, a qual se dedica à prestação de serviços relacionados com a medicina, higiene e segurança no trabalho.

Até 9 de Fevereiro de 2009 a Sociedade era detida, em igual proporção, pelo Requerente e por C, ele médico e esta professora.

Nessa data ocorreu a cessão de uma das quotas de C para o Requerente. Nessa mesta data foi celebrado um contrato entre o Requerente e D,  tendo sido realizada divisão, cessão e unificação de quotas da Sociedade.

D é filho do Requerente e  não exerce a actividade médica, nem qualquer outra relacionada com a medicina.

A Sociedade consentiu em tal cessão, do que foi lavrada acta nesse mesmo dia de 9 de Fevereiro de 2009.

O livro de actas da Sociedade dispõe de acta lavrada em 9 de Fevereiro de 2009, bem como actas datadas de 31 de Março de 2009, de 31 de Março de 2010, de 31 de Março de 2011 e 30 de Março de 2012, em cujas reuniões em assembleia geral participaram o sócio Requerente e o sócio D.

A Sociedade não foi transformada em sociedade unipessoal.

A aquisição da quota por D não foi objecto de registo no Registo Comercial.

Em causa nos presentes autos estão as liquidações adicionais de IRS, referentes aos anos de 2009, 2010 e 2011, na parte em que as mesmas procederam à liquidação adicional de IRS do Requerente nas importâncias, respectivamente, de € 17.297,34, de € 22.076,75 e de € 18.480,53, num total de € 57.854,62, ao abrigo do artigo 6.º do Código do IRC, bem como as respectivas liquidações de juros compensatórios no montante total de € 4.646,39.

O Requerente procedeu ao pagamento das liquidações adicionais supra identificadas, referentes aos ano de 2009 e 2010 ao abrigo do regime excepcional de regularização de dívidas fiscais e à segurança social, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 151-A/2013, de 31 de Outubro, beneficiando das prerrogativas concedidas por tal regime no que aos juros compensatórios diz respeito.

A convicção da factualidade dada como provada teve como fundamento a prova documental junta aos autos pela Requerente, bem como pela Requerida, à qual acresce a aceitação mútua das partes sobre os mesmos.

 

III.B    Matéria de Direito

Pela Requerida foi, sucintamente, alegado que se afigura irrelevante, para os efeitos jurídico-tributários em causa, indagar se o contrato de cessão celebrado entre o Requerente e D produz efeitos perante a Sociedade, ou entre as partes que o celebraram, porquanto os efeitos com relevo para a situação dos autos são os que se produzem perante terceiros, ou mais concretamente, perante a AT.

Mais alegando que o artigo 242.º-A do Código das Sociedade Comerciais determina “que os factos relativos a quotas são ineficazes perante a sociedade enquanto não for solicitada, quando necessária, a promoção do respectivo registo”.

Por um lado, o número 1 do artigo 3.º do Código do Registo Comercial, com a redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 8/2007, de 17 de Janeiro, estabelece que “estão sujeitos a registo os seguintes factos relativos às sociedades comerciais e sociedades civis sob a forma comercial:

(...) c) A unificação, divisão e transmissão de quotas de sociedades por quotas, bem como de partes sociais de sócios comanditários de sociedades em comandita simples;”.

Por outro lado, nos termos do n.º 1 do artigo 15.º do Código do Registo Comercial, o registo daquele facto, isto é, a unificação, divisão e transmissão de quotas de sociedades por quotas (alínea c) do n.º 1 do artigo 3.º do Código do Registo Comercial) é obrigatório.

Assim sendo, alega a Requerida, que o contrato de divisão, cessão e unificação de quotas é um facto sujeito a registo obrigatório, considerando que apenas a partir de 12 de Janeiro de 2013, data em que foi promovido o registo do facto em causa, vigora a alteração decorrente do mesmo.

Pelo que, conclui a Requerida, até àquela data seria aplicável ao Requerente o regime de transparência fiscal, previsto no artigo 6.º do Código do IRC, sendo-lhe, consequentemente, imputada a matéria colectável da Sociedade.

Para o Requerente tal entendimento é ilegal, porquanto não se encontram preenchidos os requisitos legais para aplicação do regime da transparência fiscal.

De facto, alega o Requerente que a posição da Requerida assenta, erroneamente, na conclusão que, desde 9 de Fevereiro de 2014, a Sociedade ser por si exclusivamente detida, desconsiderando a cessão da quota, realizada nessa mesma data, pelo Requerente para D, o qual não exerce a actividade médica, e que é plenamente válida e eficaz, não obstante não haver sido promovido o respectivo registo junto do registo comercial.

Mais alega que o registo de tal acto não é constitutivo, sendo a transmissão em causa válida nos termos n.º 1 do artigo 228.º do Código das Sociedades Comerciais (“CSC”), o qual estabelece como único requisito de validade a sua redução a escrito.

Acrescenta ainda, que o registo é mera condição de eficácia perante terceiros, mas que perante a própria Sociedade a transmissão em causa é plenamente eficaz por ter sido, tacitamente, consentida, apesar da desnecessidade de tal consentimento, conforme previsto no artigo 228.º do CSC para os casos de cessão entre ascendentes e descendentes.

Conclui assim o Requerente pela inexistência de uma sociedade profissional com um único sócio e, consequentemente, propugna a inaplicabilidade do regime de transparência fiscal, previsto no artigo 6.º do Código do IRC.

Do alegado pelas Partes resulta clara a dicotomia entre validade e eficácia, sendo consensual em ambas as posições que a transmissão em causa é válida.

Com efeito, sustenta a própria Requerida no ponto 12 na sua resposta, que não pretende colocar minimamente em causa a validade do contrato de cessão de quotas em referência.

Por seu lado, a posição do Requerente, alicerçada no parecer emitido por …, não deixando de sustentar a eficácia do contrato entre as partes e perante a Sociedade, reconhece como requisito de eficácia perante terceiros, da transmissão de quotas perante terceiros, o respectivo registo.

São estas, sucintamente, as posições apresentadas pelas partes. Cumprindo, pois, decidir.

Consagra o artigo 6.º do Código do IRC, na redacção em vigor à data que:

Artigo 6.º

Transparência fiscal

 

1 — É imputada aos sócios, integrando-se, nos termos da legislação que for aplicável, no seu rendimento tributável para efeitos de IRS ou IRC, consoante o caso, a matéria colectável, determinada nos termos deste Código, das sociedades a seguir indicadas, com sede ou direcção efectiva em território português, ainda que não tenha havido distribuição de lucros:

 

(...)

b) Sociedades de profissionais;

(...)

3 — A imputação a que se referem os números anteriores é feita aos sócios ou membros nos termos que resultarem do acto constitutivo das entidades aí mencionadas ou, na falta de elementos, em partes iguais.

4 — Para efeitos do disposto no n.º 1, considera-se:

 

a) Sociedade de profissionais — a sociedade constituída para o exercício de uma actividade profissional especificamente prevista na lista de actividades a que alude o artigo 151.º do Código do IRS, na qual todos os sócios pessoas singulares sejam profissionais dessa actividade;”

Daqui resulta que o regime de transparência fiscal aplica-se, necessariamente, às sociedades residentes em Portugal que se encontram devidamente identificadas no n.º 1 do artigo 6.º do Código do IRC, entre as mesmas se encontrando as sociedades de profissionais, como é o caso das sociedades constituídas por médicos, nos termos da alínea a) do n.º 4 do artigo 6.º, do Código do IRC, conjugado com a lista de actividades profissionais prevista no artigo 151.º, do Código do IRS, cuja tabela foi aprovada pela Portaria n.º 1011/2001, de 21 de Agosto, e contanto que todos os sócios pessoas singulares sejam profissionais dessa actividade.

O regime de transparência fiscal caracteriza-se, no essencial, por imputar aos sócios ou membros da sociedade transparente a respectiva matéria colectável, ainda que não tenha havido distribuição de lucros. A matéria colectável destas sociedades é determinada em sede de IRC pelo que, embora subordinadas a este regime, não perdem as mesmas a qualidade de sujeito passivo do imposto, ficando sujeitas ao cumprimento de todas as obrigações como qualquer outro tipo de sociedade, designadamente, à apresentação da declaração periódica de rendimentos. Em sede de IRS, os valores imputados integram-se como rendimento líquido na categoria B. A mencionada imputação é efectuada de acordo com o que resultar do acto constitutivo da respectiva entidade ou, na falta de elementos, em partes iguais, conforme previsto no n.º 3 do artigo 6.º do Código do IRC. A verdadeira caracterização do regime de transparência fiscal da sociedade pode definir-se como uma situação de não tributação em sede de IRC e não de isenção do mesmo tributo[1].

Ora, para aferir da aplicabilidade do regime da transparência fiscal ao Requerente, é, pois, essencial indagar se se encontram preenchidos os respectivos requisitos legais, i.e., in casu, saber se a Sociedade tinha um ou mais sócios e se, tendo-os, estes tinham a mesma actividade profissional.

Do alegado pelas Partes resulta que o Requerente, validamente, transmitiu em 9 de Fevereiro de 2009 uma quota a favor de D.

Mais que D não exerce a actividade médica.

Assim, não sendo questionada a veracidade e realização da transmissão em causa, resulta claro que, de facto, a Sociedade não tinha como sócio único o Requerente, não tendo os dois sócios da Sociedade nos períodos relevantes para a análise vertente, a mesma actividade profissional.

Neste contexto, importa indagar, conforme sustentado pela Requerida, no âmbito das liquidações adicionais aqui controvertidas, que não obstante a validade reconhecida pelas Partes a tais factos, se o acto formal do seu não registo junto do registo comercial e, consequentemente, a sua alegada ineficácia contra terceiros e, especificamente, contra a AT, será o bastante para sustentar a aplicação da transparência fiscal ao Requerente.

Vejamos.

Com grande relevância em sede de normas tributárias, é notória a preocupação do legislador em que a tributação e todo o procedimento tributário sejam norteados pelo princípio da verdade material.

Tal resulta expresso no artigo 58.º da Lei Geral Tributária (“LGT”), segundo o qual, a respeito da consagração do princípio do inquisitório, “a administração tributária deve, no procedimento, realizar todas as diligências necessárias à satisfação do interesse público e à descoberta da verdade material, não estando subordinada à iniciativa do autor do pedido”, bem como dos artigos 5.º e 6.º, ambos, do Regime Complementar do Procedimento de Inspecção Tributária e Aduaneira (“RCPIT”), consagrando este último que “o procedimento de inspecção visa a descoberta da verdade material, devendo a administração tributária adoptar oficiosamente as iniciativas adequadas a esse objectivo”.

Não será, pois, irrelevante saber quais os actos que foram materialmente praticados pelo Requerente e quando os mesmos são susceptíveis de produzir efeitos, bem como aferir da sua validade.

De igual modo, importa ter presente que a defesa do erário público deverá realizar-se dentro do princípio da legalidade, conforme consagrado no artigo 103.º da Constituição da República Portuguesa.

Assim, a posição da Requerida não é equivalente à de um qualquer terceiro, não apenas pelos poderes que lhe são conferidos para desenvolvimento da sua actividade, mas, em especial, em resultado dos deveres que lhe estão assignados.

De facto, o incumprimento de formalismos ou mesmo a eventual ilicitude de um acto ou facto não inibem a sua tributação. Isso mesmo se encontra expressamente consignado no artigo 10.º da LGT, porquanto “a tributação é valoritavamente neutra, reportando-se unicamente às circunstâncias (reveladoras de capacidade contributiva) do facto ou do acto. (...) É necessário, porém, que a obtenção ou disposição de bens, enquanto tal, seja subsumível num quadro legal (...)”.[2]

Ora, se materialmente a Requerida aceita a factualidade tal como descrita pela Requerente, i.e., sem colocar em causa a data e sua efectiva realização, nem tão pouco a sua validade, desconsiderar os factos por questões formais representaria desatender à verdade material dos actos – com relevância tributária – praticados pelo Requerente.

Aliás, isso mesmo corrobora o artigo 38.º da LGT, cujo n.º 1 refere que “a ineficácia dos negócios jurídicos não obsta à tributação, no momento em que esta deva legalmente ocorrer, caso já se tenham produzido os efeitos económicos pretendidos pelas partes”. O “realismo” do Direito Fiscal assim o impõe. Pelo que, “determina-se a tributação dos efeitos económicos dos actos e negócios jurídicos, independentemente da eficácia ou validade dos negócios jurídicos que os visaram”[3].

Contrariamente, consagra o n.º 2 da antedita norma, que “são ineficazes no âmbito tributário os actos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, actos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios, efectuando-se então a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as vantagens fiscais referidas”. Vulgarmente apelidada de “cláusula geral anti-abuso”, o que aqui se pretende estabelecer é precisamente o inverso, i.e., o que neste caso se pretende afastar é a eficácia de actos ou negócios jurídicos – também eles com relevância tributária – por os mesmos haverem, no essencial e de forma abusiva, visado, por essa via, obter uma alteração da receita tributária devida a uma qualquer factualidade.

O tribunal não ignora as inúmeras fontes que, especialmente no caso das sociedades profissionais, apontam para um uso, porventura, abusivo da admissão de sócios com actividade profissional distinta para, assim, se “contornar a transparência fiscal”[4].

Contudo, apesar da transmissão em causa se considerar – pela Requerente e pela Requerida – validamente realizada ser a favor de D, filho do Requerente, e destarte a invocada “curiosidade” do livro de actas da Sociedade se ter extraviado e do exibido se iniciar precisamente em 9 de Fevereiro de 2009, a Requerida em momento algum invocou que tais actos tenham sido praticados no intuito de abusivamente contornarem a aplicação do regime da transparência fiscal, nem tão pouco disso fez prova.

Assim sendo, a questão essencial não é aferir da validade, nem tão pouco da eficácia, perante as partes, a Sociedade ou mesmo perante terceiros, pois que nisso as partes não divergem, mas sim a de avaliar a sua não eficácia perante a Requerida e, bem assim, a sua irrelevância para efeitos tributários.

Sendo que, pelo exposto, se conclui que a posição sustentada pela AT viola os princípios da legalidade, bem como o da prevalência da verdade material sobre a realidade jurídico-formal.

Contexto em que não se curará de apreciar, por não ser determinante para a decisão da causa, as questões formais referentes ao regime do registo, designadamente a do regime do registo por depósito, a relativa a quem incumbe o dever de promoção do registo, nem tão pouco à da responsabilidade civil de tal eventualmente decorrente.

Por outro lado, questiona a Requerente a constitucionalidade do regime da transparência fiscal a sociedades com um só sócio, uma vez que tal viola os princípios da boa-fé, da segurança jurídica, da igualdade e da capacidade contributiva.

Não procedem os fundamentos invocados, porquanto não está em causa a pluralidade ou não dos sócios, mas sim o facto de todos desenvolverem a mesma actividade, sendo que a confiança e segurança jurídica apenas poderiam ser afectadas caso estas fossem ilegitimamente afectadas, o que manifestamente não sucedeu no caso vertente, porquanto apenas pode confiar na aplicação, ou não, de um dado regime aquele que logra cumprir os respectivos requisitos legais da sua aplicação, não tendo sido alterados os seus pressupostos nem tão pouco regime, pelo que não resultada afectada a segurança jurídica.

 

  IV.    JUROS COMPENSATÓRIOS E JUROS INDEMNIZATORIOS

Propugna o Requerente pela anulação das liquidações adicionais de IRC e, bem assim, das liquidações dos respectivos juros compensatórios.

No âmbito do direito tributário, os juros compensatórios podem definir-se como aqueles que consubstanciam compensação para o credor, por certas utilidades concedidas ao devedor, tendo a função de completar a indemnização devida, assim compensando o prejudicado do ganho perdido até que tenha conseguido a reintegração do seu crédito.

Os juros compensatórios podem configurar-se como tendo a natureza de uma verdadeira cláusula penal legal, assim aparecendo como um agravamento ex lege ao imposto, sendo incluídos na liquidação deste e arrecadados juntamente com ele, tendo os mesmos prazos de cobrança e estando sujeitos ao mesmo período prescricional, sobre ambos podendo incidir o cálculo dos juros de mora, em conformidade com o artigo 35.º da LGT.

Assim, não se verificando qualquer uma das situações ali previstas, sendo anuladas as liquidações questionadas por facto não imputável ao Requerente, deverão ser igualmente anuladas as liquidações de juros compensatórios.

Por outro lado, quanto aos juros indemnizatórios peticionados pelo Requerente, atento o facto do mesmo ter procedido ao integral pagamento do IRS objecto das liquidações aqui controvertidas, importa ter em consideração que, segundo a alínea b) do artigo 24.º do RJAT, não cabendo recurso ou impugnação da decisão arbitral, a mesma vincula a AT, devendo esta “restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito”.

De igual modo, estipula o artigo 100.º da LGT, aplicável ex vi a alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT, que a “a administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial da reclamação, impugnação judicial ou recurso a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da legalidade do acto ou situação objecto do litígio, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, se for caso disso, a partir do termo de prazo da execução da decisão”.

Não obstante as alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 2.º do RJAT não façam referência a decisões condenatórias, é entendimento deste tribunal que se encontram compreendidos nas suas competências os poderes que em processo de impugnação judicial são atribuídos aos tribunais tributários.

O processo de impugnação judicial admite a condenação da AT no pagamento de juros indemnizatórios, em conformidade com o artigo 43.º da LGT e, bem assim, com o artigo 61.º do CPPT.

Pelo que, considera este tribunal que, nos termos do n.º 5 do artigo 24.º do RJAT, é permitido o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios em sede de processo arbitral.

Contexto em que, sendo decidido pela ilegalidade dos actos de liquidação adicional por facto imputável à AT, nos termos dos citados artigos 43.º da LGT e do artigo 61.º do CPPT, serão devidos juros indemnizatórios ao Requerente, desde a data em que este realizou o pagamento indevido até à data do seu integral reembolso, à respectiva taxa legal.

 

V.        DECISÃO

Nestes termos e com a fundamentação que se deixa exposta, o Tribunal Arbitral decide julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral, com a consequente anulação das liquidações questionadas, condenando a AT a proceder ao reembolso das quantias indevidamente pagas pelo Requerente, relativamente aos anos de 2009 e 2010, bem como dos respectivos juros indemnizatórios, à taxa legal, desde 16.12.2013 até integral reembolso das quantias em causa.

 

 

VI.      VALOR DO PROCESSO

De acordo com o disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 97.º-A do CPPT aplicável ex vi o n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 62.501,01 (sessenta e dois mil, quinhentos e um euros e um cêntimo).

De facto, o valor aqui controvertido é, não o valor de IRS liquidado para os anos de 2009, 2010 e 2011, no total de € 78.082,26,  mas sim o valor liquidado adicionalmente, em face das correcções preconizadas pela AT, ou seja, o valor de € 62.501,01.

 

VII.     CUSTAS

Nos termos do n.º 4 do artigo 22.º do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 2.448,00 (dois mil, quatrocentos e quarenta e oito euros), nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da AT.

Lisboa, 19 de Dezembro de 2014.

Os Árbitros

 

(Manuel Luís Macaísta Malheiros)

 

(Tiago dos Santos Matias)

 

(José Rodrigo de Castro)

 

 

Texto elaborado em computador, nos termos do artigo 131.º, n.º 5 do Código de Processo Civil, aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.

A redacção da presente decisão arbitral rege-se pela ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.

 

 



[1] A este respeito veja-se J. L. Saldanha Sanches, Manual de Direito Fiscal, Coimbra Editora, 3.ª Edição, 2007, págs 291 e sgs; F. Pinto Fernandes e Nuno Pinto Fernandes, Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas, anotado e comentado, Rei dos Livros, 5ª Edição, 1996, págs 93 e sgs; José Guilherme Xavier Basto, IRS: Incidência Real e Determinação dos Rendimentos Líquidos, Coimbra Editora, 2007, págs 166 e sgs; Acórdão do STA – 2.ª Secção, 13/3/2002, rec.26823; Acórdão do TCA Sul – 2.ªSecção, 29/5/2007, proc.1682/07; Acórdão do TCA Sul – 2.ª Secção, 14/12/2011, proc.3644/09.

[2] In Lei Geral Tributária, Comentada e Anotada, de Diogo Leite Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, pág. 74, 3.ª Edição, 2003, Vislis Editores.

[3] In Lei Geral Tributária, Comentada e Anotada, de Diogo Leite Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, pág. 175, 3.ª Edição, 2003, Vislis Editores.

[4] In A Decisão Fiscal Planificadora: uma abordagem à sua dimensão teórica e prática – Dissertação de Mestrado de Filipe João Saraiva Fernandes, de Abril de 2012, na Escola de Direito da Universidade do Minho, pág. 148. Disponível em https://repositorium.sdum.uminho.pt/bitstream/1822/21360/3/Disserta%C3%A7%C3%A3o%20de%20mestrado%20-%20A%20decis%C3%A3o%20fiscal%20planificadora2.pdf