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SUMÁRIO:
Ao circunscrever o regime de tributação de dividendos constante no artigo 22.º do EBF aos OIC que se constituam e operem de acordo com a legislação nacional, isto é, ao sujeitar a retenção na fonte os dividendos pagos aos OIC não residentes e ao reservar aos OIC residentes a possibilidade de obter a isenção dessa retenção na fonte, o artigo 22.º do EBF procede a um tratamento desfavorável dos dividendos pagos aos OIC não residentes incompatível com a livre circulação de capitais prevista no artigo 63.º do TFUE.
DECISÃO ARBITRAL
Os Árbitros Carla Castelo Trindade, Hélder Faustino e Mariana Vargas, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formar o Tribunal Arbitral, decidem no seguinte:
I. RELATÓRIO
1. A..., fundo de investimento constituído ao abrigo da lei dos Estados Unidos da América, com sede em ..., ..., Estados Unidos da América, com o número de contribuinte fiscal americano ... e com o número de contribuinte fiscal português ... (“Requerente”), representado pela sua entidade gestora B..., INC., sociedade de direito americano, com sede em ..., ..., Estados Unidos da América, com o número de contribuinte fiscal americano ..., apresentou pedido de constituição de Tribunal Arbitral e pedido de pronúncia arbitral (“PPA”), ao abrigo dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 10.º do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (“RJAT”), tendo em vista a declaração de ilegalidade e consequente anulação da decisão de indeferimento da reclamação graciosa n.º ...2021..., bem como dos actos de retenção na fonte de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (“IRC”) referentes aos períodos de Janeiro, Maio, Junho, Julho e Dezembro de 2020, consubstanciados nas guias n.º..., n.º..., n.º ..., n.º ... e n.º ..., respectivamente.
2. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira (“AT” ou “Requerida”) em 1 de Abril de 2024.
3. O Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea a) e do artigo 11.º, n.º 1, alínea a), ambos do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do Tribunal Arbitral colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável. As partes foram notificadas dessa designação em 22 de Maio de 2024, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.
4. Em conformidade com o disposto no artigo 11.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, o Tribunal Arbitral colectivo ficou constituído em 14 de Junho de 2024.
5. Tendo sido devidamente notificada para o efeito, a Requerida apresentou resposta e juntou aos autos o processo administrativo em 5 de Setembro de 2024, tendo-se defendido por impugnação e pugnado pela sua absolvição do pedido.
6. Em 12 de Setembro de 2024, foi proferido despacho a dispensar a reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT bem como a apresentação de alegações, ao abrigo dos princípios da autonomia do Tribunal Arbitral na condução do processo, da celeridade, simplificação e informalidade processuais previstos nos artigos 16.º, alínea c), 19.º e 29.º, n.º 2, todos do RJAT.
II. SANEAMENTO
7. O Tribunal Arbitral colectivo é competente e foi regularmente constituído, em conformidade com o disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 5.º, n.º 3, alínea a) do RJAT. O pedido é tempestivo e as partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e estão regularmente representadas, por força do disposto nos artigos 4.º e 10.º do RJAT e nos artigos 1.º a 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março. O processo não enferma de nulidades, nem existem outras excepções ou questões prévias que cumpram conhecer e que obstem à apreciação do mérito da causa.
III. MATÉRIA DE FACTO
§1 – Factos provados
8. Analisada a prova produzida nos presentes autos, com relevo para a decisão da causa consideram-se provados os seguintes factos:
-
O Requerente é um fundo de investimento mobiliário constituído e a operar de acordo com o direito norte-americano – cfr. doc. n.º 1 junto com a reclamação graciosa;
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A gestão do Requerente é feita pela entidade gestora B..., INC., sociedade de direito americano, com sede em..., Estados Unidos da América, com o número de contribuinte fiscal americano...– cfr. doc. n.º 1 junto com a reclamação graciosa;
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O Requerente é qualificado pelo direito norte-americano como “Regulated Investment Company”, beneficiando do tratamento fiscal previsto no subcapítulo M do “Internal Revenue Code”, ao abrigo do qual a tributação do rendimento ocorre na esfera dos participantes;
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Em 2020, o Requerente era residente, para efeitos fiscais, nos Estados Unidos da América – cfr. doc. n.º 1 junto com o PPA;
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O Requerente reúne capital de investidores com o propósito de investir em acções de sociedades que apresentem potencial de valorização e crescimento – cfr. doc. n.º 1 junto com a reclamação graciosa;
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Os riscos dos investimentos do Requerente são partilhados pelos investidores – cfr. doc. n.º 1 junto com a reclamação graciosa;
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Em 2020, o Requerente auferiu dividendos por conta das participações sociais detidas nas sociedades C... SA/THECOMMON STOCK NPV, D... SACOMMON STOCK EUR1, E... COMMON STOCK EUR1.0, F... SGPSSACOMMON STOCK EUR.125, G... SGPS SACOMMON STOCK EUR1, H... COMMON STOCK EUR1, I... COMMON STOCK NPV, J... SGPSCOMMON STOCK EUR.01, K... COMMON STOCK EUR1, L... SACOMMON STOCK EUR1, C... SA/THECOMMON STOCK NPV e K... COMMON STOCK EUR1, todas residentes em Portugal, que foram sujeitos a tributação em sede de IRC por retenção na fonte à taxa liberatória de 15% (cf. artigo 94.º do Código do IRC e artigo 10.º da Convenção para Evitar a Dupla Tributação celebrada entre o Estado Português e os Estados Unidos da América), no montante total de € 987.012,65, conforme discriminado no seguinte quadro:
– cfr. doc. n.º 2 junto com o PPA;
-
O Requerente não deduziu nos Estados Unidos da América o imposto retido na fonte em Portugal – cfr. doc. n.º 3 junto com o PPA;
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Em 22 de Dezembro de 2021, o Requerente deduziu reclamação graciosa, que tramitou sob o n.º ...2021..., contra os referidos actos de retenção na fonte de IRC referentes aos períodos de Janeiro, Maio, Junho, Julho e Dezembro de 2020, consubstanciados nas guias n.º..., n.º ..., n.º..., n.º ... e n.º ... – cfr. processo administrativo;
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Em 30 de Novembro de 2023, o Requerente foi notificado do projecto de indeferimento da reclamação graciosa – cfr. doc. n.º 4 junto com o PPA;
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Em 8 de Janeiro de 2024, o Requerente foi notificado da decisão de indeferimento da reclamação graciosa n.º ...2021... – cfr. doc. n.º 5 junto com o PPA;
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Em 28 de Março de 2024, o Requerente apresentou o pedido de constituição de Tribunal Arbitral que deu origem os presentes autos – cfr. certificação do sistema de gestão processual do CAAD.
§2 – Factos não provados
9. Com relevo para a decisão da causa, inexistem factos que não se tenham considerado provados.
§3 – Fundamentação da fixação da matéria de facto
10. Ao Tribunal Arbitral incumbe o dever de seleccionar os factos que interessam à decisão da causa e discriminar os factos provados e não provados, não existindo um dever de pronúncia quanto a todos os elementos da matéria de facto alegados pelas partes, tal como decorre da aplicação conjugada do artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e do artigo 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.
11. Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram seleccionados e conformados em função da sua relevância jurídica, determinada com base nas posições assumidas pelas partes e nas várias soluções plausíveis das questões de direito para o objecto do litígio, conforme decorre do artigo 596.º, n.º 1 do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.
12. Os factos dados como provados e não provados resultaram da análise da prova produzida no presente processo, designadamente da prova documental junta aos autos pelo Requerente e o processo administrativo junto aos autos pela Requerida, que fora apreciada pelo Tribunal Arbitral de acordo com o princípio da livre apreciação dos factos e tendo presente a ausência da sua contestação especificada pelas partes, conforme decorre do artigo 16.º, alínea e), do RJAT, e do artigo 607.º, n.ºs 4 e 5, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.
IV. MATÉRIA DE DIREITO
§1 – Violação da liberdade de circulação de capitais
13. Através do presente processo pretende o Requerente sindicar a legalidade dos actos de retenção na fonte de IRC acima referidos, por considerar que os mesmos têm como fundamento jurídico normas que estabelecem uma distinção do regime fiscal aplicável a fundos de investimento residentes e não residentes que configura uma restrição à livre circulação de capitais que está a ser exercida por um residente de um Estado terceiro.
14. Por um lado, argumenta o Requerente, em síntese, que o regime português de tributação de dividendos auferidos por Organismos de Investimento Colectivo (“OIC”) previsto nos artigos 94.º, n.º 1, alínea c), 94.º, n.º 3, alínea b), 94.º, n.º 4 e 87.º, n.º 4, todos do CIRC, ao sujeitar os rendimentos obtidos em Portugal por OIC não residentes a retenção na fonte em sede de IRC, enquanto os rendimentos obtidos em Portugal por OIC residentes estão isentos de tributação nos termos do artigo 22.º do EBF, estabelece um discriminação incompatível com o princípio da livre circulação de capitais previsto no artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (“TFUE”).
15. Por outro lado, argumenta a Requerida, em síntese, que os OIC residentes e não residentes se encontram em situações que não são objectivamente comparáveis, já que a tributação dos dividendos opera segundo modalidades diferentes e nada indica que a carga fiscal que onera os dividendos auferidos pelos OIC residentes é mais reduzida do que a que recai sobre os dividendos auferidos em Portugal por OIC não residentes como o Requerente. Nesta medida, conclui pela inexistência de qualquer restrição à livre circulação de capitais prevista no artigo 63.º do TFUE.
16. A existência de uma discriminação entre OIC residentes e não residentes no âmbito do regime de tributação de dividendos auferidos em Portugal, por um lado, e a respectiva compatibilidade com o Direito da União Europeia, por outro lado, foram já objecto de apreciação pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (“TJUE”), no âmbito do acórdão AllianzGI‑Fonds AEVN, proferido em 17 de Março de 2022, no processo n.º C‑545/19, onde este Tribunal entendeu, ao que aqui importa, o seguinte:
“(…) 36 Resulta de jurisprudência constante do Tribunal de Justiça que as medidas proibidas pelo artigo 63.º, n.º 1, TFUE, enquanto restrições aos movimentos de capitais, incluem as que são suscetíveis de dissuadir os não residentes de investir num Estado‑Membro ou de dissuadir os residentes de investir noutros Estados (v., designadamente, Acórdão de 2 de junho de 2016, Pensioenfonds Metaal en Techniek, C‑252/14, EU:C:2016:402, n.º 27 e jurisprudência referida, e de 30 de janeiro de 2020, Köln‑Aktienfonds Deka, C‑156/17, EU:C:2020:51, n.º 49 e jurisprudência referida).
37 No caso em apreço, é facto assente que a isenção fiscal prevista pela legislação nacional em causa no processo principal é concedida aos OIC constituídos e que operam de acordo com a legislação portuguesa, ao passo que os dividendos pagos a OIC estabelecidos noutro Estado‑Membro não podem beneficiar dessa isenção.
38 Ao proceder a uma retenção na fonte sobre os dividendos pagos aos OIC não residentes e ao reservar aos OIC residentes a possibilidade de obter a isenção dessa retenção na fonte, a legislação nacional em causa no processo principal procede a um tratamento desfavorável dos dividendos pagos aos OIC não residentes.
39 Esse tratamento desfavorável pode dissuadir, por um lado, os OIC não residentes de investirem em sociedades estabelecidas em Portugal e, por outro, os investidores residentes em Portugal de adquirirem participações sociais em OIC e constitui, por conseguinte, uma restrição à livre circulação de capitais proibida, em princípio, pelo artigo 63.º TFUE (v., por analogia, Acórdão de 21 de junho de 2018, Fidelity Funds e o., C‑480/16, EU:C:2018:480, n.os 44, 45 e jurisprudência referida).
40 Não obstante, segundo o artigo 65.º, n.º 1, alínea a), TFUE, o disposto no artigo 63.º TFUE não prejudica o direito de os Estados‑Membros aplicarem as disposições pertinentes do seu direito fiscal que estabeleçam uma distinção entre contribuintes que não se encontrem em idêntica situação no que se refere ao seu lugar de residência ou ao lugar em que o seu capital é investido.
41 Esta disposição, enquanto derrogação ao princípio fundamental da livre circulação de capitais, é de interpretação estrita. Por conseguinte, não pode ser interpretada no sentido de que qualquer legislação fiscal que comporte uma distinção entre os contribuintes em função do lugar em que residam ou do Estado‑Membro onde invistam os seus capitais é automaticamente compatível com o Tratado FUE. Com efeito, a derrogação prevista no artigo 65.º, n.º 1, alínea a), TFUE é ela própria limitada pelo disposto no artigo 65.º, n.º 3, TFUE, que prevê que as disposições nacionais a que se refere o n.º 1 desse artigo «não devem constituir um meio de discriminação arbitrária, nem uma restrição dissimulada à livre circulação de capitais e pagamentos, tal como definida no artigo 63.º [TFUE]» [Acórdão de 29 de abril de 2021, Veronsaajien oikeudenvalvontayksikkö (Rendimentos distribuídos por OICVM), C‑480/19, EU:C:2021:334, n.º 29 e jurisprudência referida].
42 O Tribunal de Justiça declarou igualmente que, por conseguinte, há que distinguir as diferenças de tratamento permitidas pelo artigo 65.º, n.º 1, alínea a), TFUE das discriminações proibidas pelo artigo 65.º, n.º 3, TFUE. Ora, para que uma legislação fiscal nacional possa ser considerada compatível com as disposições do Tratado FUE relativas à livre circulação de capitais, é necessário que a diferença de tratamento daí decorrente diga respeito a situações que não sejam objetivamente comparáveis ou se justifique por uma razão imperiosa de interesse geral [Acórdão de 29 de abril de 2021, Veronsaajien oikeudenvalvontayksikkö (Rendimentos distribuídos por OICVM), C‑480/19, EU:C:2021:334, n.º 30 e jurisprudência referida]”.
(…) 49 Resulta de jurisprudência constante que, a partir do momento em que um Estado, de modo unilateral ou por via convencional, sujeita ao imposto sobre o rendimento não só os contribuintes residentes mas também os contribuintes não residentes, relativamente aos dividendos que auferem de uma sociedade residente, a situação dos referidos contribuintes não residentes assemelha‑se à dos contribuintes residentes (Acórdão de 22 de novembro de 2018, Sofina e o., C‑575/17, EU:C:2018:943, n.º 47 e jurisprudência referida).
(…) a legislação nacional em causa no processo principal não se limita a prever diferentes modalidades de cobrança de imposto em função do local de residência do OIC beneficiário de dividendos de origem nacional, mas prevê, na realidade, uma tributação sistemática dos referidos dividendos que onera apenas os organismos não residentes (v., por analogia, Acórdão de 8 de novembro de 2012, Comissão/Finlândia, C‑342/10, EU:C:2012:688, n.º 44 e jurisprudência referida).
(…) 53 A este propósito, importa salientar, por um lado, no que respeita ao imposto do selo, que resulta tanto das observações escritas apresentadas pelas partes como da resposta do órgão jurisdicional de reenvio ao pedido de informações do Tribunal de Justiça que, pelo facto de a sua matéria coletável ser constituída pelo valor líquido contabilístico dos OIC, esse imposto do selo é um imposto sobre o património, que não pode ser equiparado a um imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas.
54 Além disso, como salientou a advogada‑geral no n.º 47 das suas conclusões, no processo principal, a legislação fiscal portuguesa distingue, no caso dos OIC residentes, entre o rendimento do capital acumulado e o que é imediatamente redistribuído, apenas o primeiro sendo englobado na matéria coletável do referido imposto do selo. Ora, este aspeto basta, por si só, para distinguir este processo do que deu origem ao Acórdão de 2 de junho de 2016, Pensioenfonds Metaal en Techniek (C‑252/14, EU:C:2016:402).
55 Com efeito, mesmo considerando que esse mesmo imposto do selo possa ser equiparado a um imposto sobre os dividendos, um OIC residente pode escapar a tal tributação dos dividendos procedendo à sua distribuição imediata, ao passo que esta possibilidade não está aberta a um OIC não residente.
56 Por outro lado, no que se refere ao imposto específico previsto no artigo 88.º, n.º 11, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas, resulta das indicações da Autoridade Tributária, contidas na decisão de reenvio, que, por força desta disposição, este imposto só incide sobre os dividendos recebidos por OIC residentes quando as partes sociais a que respeitam os lucros não tenham permanecido na titularidade do mesmo sujeito passivo, de modo ininterrupto, durante o ano anterior à data da sua colocação à disposição e não venham a ser mantidas durante o tempo necessário para completar esse período. Assim, o imposto previsto pela referida disposição só incide sobre os dividendos de origem nacional recebidos por um OIC residente em casos limitados, pelo que não pode ser equiparado ao imposto geral de que são objeto os dividendos de origem nacional recebidos pelos OIC não residentes.
57 Por conseguinte, a circunstância de os OIC não residentes não estarem sujeitos ao imposto do selo e ao imposto específico previsto no artigo 88.º, n.º 11, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas não os coloca numa situação objetivamente diferente em relação aos OIC residentes no que se refere à tributação dos dividendos de origem portuguesa
60 Por outro lado, apenas os critérios de distinção pertinentes estabelecidos pela legislação em causa devem ser tidos em conta para apreciar se a diferença de tratamento resultante dessa legislação reflete uma diferença de situação objetiva (v., neste sentido, Acórdão de 2 de junho de 2016, Pensioenfonds Metaal en Techniek, C‑252/14, EU:C:2016:402, n.º 49 e jurisprudência referida).
(…) na aceção da jurisprudência do Tribunal de Justiça referida no n.º 60 do presente acórdão, há que observar que o único critério de distinção estabelecido pela legislação nacional em causa no processo principal se baseia no lugar de residência dos OIC, sujeitando apenas os organismos não residentes a uma retenção na fonte dos dividendos que recebem.
72 Ora, como resulta de jurisprudência do Tribunal de Justiça, a situação de um OIC residente que beneficia de uma distribuição de dividendos é comparável à de um OIC beneficiário não residente, na medida em que, em ambos os casos, os lucros realizados podem, em princípio, ser objeto de dupla tributação económica ou de tributação em cadeia (v., neste sentido, Acórdão de 10 de abril de 2014, Emerging Markets Series of DFA Investment Trust Company, C‑190/12, EU:C:2014:249, n.º 58 e jurisprudência referida).
73 Por conseguinte, o critério de distinção a que se refere a legislação nacional em causa no processo principal, que tem por objeto unicamente o lugar de residência dos OIC, não permite concluir pela existência de uma diferença objetiva de situações entre os organismos residentes e os organismos não residentes.
74 Atendendo a todos os elementos precedentes, há que concluir que, no caso em apreço, a diferença de tratamento entre os OIC residentes e os OIC não residentes diz respeito a situações objetivamente comparáveis.”.
17. Resulta da jurisprudência do TJUE acabada de citar que a legislação portuguesa que estabelece o tratamento fiscal em sede de IRC dos dividendos auferidos por OIC estabelece uma discriminação inadmissível dos OIC não residentes face aos OIC residentes. Isto pelo facto de estarem em causa situações objectivamente comparáveis e, ainda assim, apenas ser aplicável aos OIC residentes as regras de isenção de tributação em sede de IRC, que não se encontram previstas para os OIC não residentes. Discriminação esta que o TJUE entendeu não ser justificável por razões imperiosas de interesse geral, designadamente pela necessidade de preservar a coerência do regime fiscal nacional ou a necessidade de preservar uma repartição equilibrada do poder tributário. Em suma, concluiu o TJUE, em termos inteiramente transponíveis para o presente processo, que o regime português de tributação de dividendos auferidos por OIC não residentes viola o princípio da livre circulação de capitais consagrado no artigo 63.º do TFUE.
18. Ora, as disposições dos tratados que regem a União Europeia são directa e obrigatoriamente aplicáveis na ordem jurídica interna, por força do princípio do primado previsto no artigo 8.º, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa, prevalecendo sobre as normas do direito nacional, razão pela qual se impõe aos tribunais nacionais a recusa da aplicação de lei ou norma jurídica que se encontre em desconformidade com o direito europeu (cfr., entre outros, o acórdão do STA proferido no âmbito do processo n.º 0188/15, em 1 de Julho de 2015). Raciocínio que vale igualmente para a jurisprudência proferida pelo TJUE relativa à interpretação ou validade de normas jurídicas perante o Direito Europeu.
19. As conclusões aqui expostas coincidem com o entendimento expresso pelo Supremo Tribunal Administrativo (“STA”), no acórdão n.º 7/2024, de 26 de Fevereiro, que uniformizou jurisprudência no seguinte sentido:
“1 –Quando um Estado Membro escolhe exercer a sua competência fiscal sobre os dividendos pagos por sociedades residentes unicamente em função do lugar de residência dos Organismos de Investimento Colectivo (OIC) beneficiários, a situação fiscal dos detentores de participações destes últimos é desprovida de pertinência para efeitos de apreciação do carácter discriminatório, ou não, da referida regulamentação;
2 – O art.º 63, do TFUE, deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado -Membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um OIC não residente são objecto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção;
3 – A interpretação do art.º 63, do TFUE, acabada de mencionar é incompatível com o art.º 22, do E.B.F., na redação que lhe foi dada pelo Decreto -Lei n.º 7/2015, de 13/01, na medida em que limita o regime de isenção nele previsto aos OIC constituídos segundo a legislação nacional, dele excluindo os OIC constituídos segundo a legislação de outros Estados Membros da União Europeia.”.
20. Aqui chegados, e sem necessidade de mais considerações, adere o presente Tribunal Arbitral às conclusões da jurisprudência do TJUE e do STA anteriormente citadas, sob evocação do desiderato uniformizador decorrente do artigo 8.º, n.º 3, do Código Civil, razão pela qual se julga procedente o vício de violação do direito da União Europeia invocado pelo Requerente e se declaram ilegais o acto de indeferimento da reclamação graciosa e os actos de retenção na fonte de IRC aqui contestados.
§2 – Reembolso do imposto retido na fonte e pagamento de juros indemnizatórios
21. Em virtude da procedência do pedido de pronúncia arbitral, impõe-se ao Requerente o reembolso do imposto indevidamente pago no montante de € 987.012,65, em conformidade com o disposto no dos artigos 24.º do RJAT e 100.º da LGT, aplicável ex vi alínea a), do n.º 1, do artigo 29.º do RJAT.
22. Sobre este montante, peticionou o Requerente o pagamento de juros indemnizatórios, contados desde 21 de Abril de 2022 e até à data do processamento da respectiva nota de crédito.
23. Ora, prevê-se no artigo 43.º, n.º 1 da LGT que “São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.”.
24. Quanto à aplicação desta norma aos casos de retenção na fonte contra os quais foi deduzida reclamação graciosa, o STA uniformizou jurisprudência no seguinte sentido:
“Em caso de retenção na fonte e havendo lugar a impugnação administrativa do acto tributário em causa (v.g. reclamação graciosa), o erro passa a ser imputável à A. Fiscal depois de operar o indeferimento do mesmo procedimento gracioso, efectivo ou presumido, funcionando tal data como termo inicial para cômputo dos juros indemnizatórios a pagar ao sujeito passivo, nos termos do artº. 43, nºs. 1 e 3, da L.G.T.”
25. Tendo por base a mencionada jurisprudência – a que este Tribunal Arbitral adere com base no disposto no artigo 8.º, n.º 3, do Código Civil –, conclui-se serem devidos ao Requerente juros indemnizatórios, calculados sobre o montante de imposto indevidamente pago, com termo inicial reportado ao dia 21 de Abril de 2022 (data em que se presumiu tacitamente indeferida a reclamação graciosa), e até à data do processamento da respectiva nota de crédito, por força do disposto no artigo 24.º, n.º 5 do RJAT, nos artigos 43.º, n.ºs 1 e 4 e 100.º da LGT e no artigo 61.º, n.º 5 do CPPT.
V. DECISÃO
26. Termos em que se decide:
-
Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral formulado pelo Requerente e, em consequência, determinar a anulação do acto de indeferimento da reclamação graciosa e dos actos de retenção na fonte contestados no presente processo;
-
Julgar procedente o pedido de reembolso do imposto indevidamente pago, no montante de € 987.012,65, acrescidos de juros indemnizatórios nos termos anteriormente fixados;
-
Condenar a Requerida nas custas do processo.
VI. VALOR DO PROCESSO
27. Atendendo ao disposto no artigo 97.º-A do CPPT, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 987.012,65.
VII. CUSTAS
28. Nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, as custas são no valor de € 13.770,00, a suportar pela Requerida, conforme o disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem.
Notifique-se.
Lisboa, 11 de Dezembro de 2024
Os árbitros,
Carla Castelo Trindade
(Presidente e relatora)
Hélder Faustino
Mariana Vargas