Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 155/2024-T
Data da decisão: 2024-12-13  IRC  
Valor do pedido: € 1.647.604,66
Tema: IRC – Código Fiscal do Investimento – Regime Fiscal de Apoio ao Investimento (RFAI) – criação e manutenção de postos de trabalho.
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SUMÁRIO:

O regime jurídico do RFAI não exige a criação líquida de postos de trabalho, mas apenas que do investimento inicial realizado resulte um aumento do número de trabalhadores ao serviço da empresa, independentemente de os contratos de trabalho serem celebrados com ou sem termo.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

            Os Árbitros Carla Castelo Trindade, Jorge Carita e João Taborda da Gama, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formar o Tribunal Arbitral, decidem no seguinte:

 

I. RELATÓRIO

 

            1. A..., S.A, NIPC..., com sede na Rua ..., n.º..., ..., ...-... Figueira da Foz, (“Requerente”), apresentou pedido de constituição de Tribunal Arbitral ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e dos artigos 10.º e seguintes do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), tendo em vista a declaração de ilegalidade e anulação do despacho de indeferimento da reclamação graciosa que tramitou sob o n.º ...2023... e do acto de liquidação de Imposto sobre os Rendimentos de Pessoas Colectivas (“IRC”) n.º 2023..., referente ao exercício fiscal de 2019, com o consequente reembolso do montante de € 1.769.135,75, acrescido do pagamento de juros indemnizatórios.

 

            2. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira (“AT” ou “Requerida”) em 7 de Fevereiro de 2024.

 

            3. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea a) e do artigo 11.º, n.º 1, alínea a), ambos do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do Tribunal Arbitral colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável. As partes foram notificadas dessa designação em 26 de Março de 2024, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.

 

            4. Em conformidade com o disposto no artigo 11.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, o Tribunal Arbitral ficou constituído em 16 de Abril de 2024.

 

            5. Tendo sido devidamente notificada para o efeito, a Requerida apresentou a sua resposta e juntou aos autos o processo administrativo, em 3 de Junho de 2024, tendo-se defendido por impugnação.

 

            6. Em 11 de Outubro de 2024, pelas 14:30 horas, realizou-se a reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT, na qual prestaram depoimento as testemunhas da Requerente B... e C... . Na reunião arbitral foram ainda as partes notificadas para, querendo, apresentaram alegações escritas, o que apenas foi feito pela Requerente, em 28 de Outubro de 2024, que reiterou os argumentos já anteriormente avançados no pedido de pronúncia arbitral. Na reunião arbitral foi ainda prorrogado por dois meses o prazo de arbitragem, nos termos e para os efeitos do artigo 21.º, n.º 2, do RJAT, tendo sido designado o dia 16 de Dezembro de 2024 como data-limite para a prolação da decisão arbitral.

 

II. SANEAMENTO

 

            7. O Tribunal Arbitral colectivo é competente e foi regularmente constituído, em conformidade com o disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 5.º, n.º 3, alínea a) do RJAT. O pedido é tempestivo e as partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e estão regularmente representadas, por força do disposto nos artigos 4.º e 10.º do RJAT e nos artigos 1.º a 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março. O processo não enferma de nulidades, nem existem outras excepções ou questões prévias que cumpram conhecer e que obstem à apreciação do mérito da causa.

 

III. MATÉRIA DE FACTO

 

§1 – Factos provados

 

            8. Analisada a prova produzida nos presentes autos, com relevo para a decisão da causa consideram-se provados os seguintes factos:

  1. A Requerente é uma sociedade comercial anónima do sector da indústria transformadora, que está enquadrada no CAE 023131 – Fabricação de vidro de embalagem, cuja actividade consiste na produção e comercialização de vidro de embalagem, operando em diversos segmentos, tais como o dos refrigerantes, alimentar, cervejas, vinhos de mesa e espumantes;
  2. Em sede de IRC, a Requerente está enquadrada no regime geral de tributação e adopta um período de tributação coincidente com o ano civil;
  3. Em 2016, a Requerente celebrou com D... e E..., contratos de trabalho com termo certo, para o desempenho de funções inerentes à categoria profissional de praticante geral, mais concretamente tarefas de aquisição de conhecimentos teóricos e práticos na área técnica e experiência profissional no fabrico de vidro de embalagem;
  4. Em 2019, com o propósito de aumentar a capacidade de um estabelecimento existente, a Requerente fez investimentos com a instalação de um novo equipamento de produção de garrafas de vidro (máquina IS na Linha 13) e investimentos em elementos do activo fixo tangível conexos e colaterais (compressor, instalações eléctricas, equipamentos informáticos, etc.) necessários para a sua entrada em funcionamento;
  5. Em 2019, os contratos de trabalho com termo certo dos colaboradores D... e E... foram objecto de conversão em contratos de trabalho sem termo;
  6. Em 2019, os colaboradores D... e E... deixaram de exercer funções como praticantes gerais na linha de produção e passaram a exercer funções como “paletizadores” na área directamente ligada à linha de produção do novo equipamento de produção de garrafas de vidro (máquina IS na Linha 13);
  7. Em 2019, a Requerente celebrou com F... um contrato de trabalho com termo certo, para o desempenho de funções inerentes à categoria profissional de praticante geral, mais concretamente tarefas relacionadas com as linhas de produção;
  8. Os colaboradores F..., D... e E... laboram em turnos diferentes para assegurar o funcionamento contínuo (em regime de 24 horas) do novo equipamento de produção de garrafas de vidro (máquina IS na Linha 13);
  9. Entre Dezembro de 2018 e Dezembro de 2019 a Requerente teve o seguinte número de trabalhadores com contratos a termo e sem termo:

 

Dez/

2018

Jan/

2019

Fev/

2019

Mar/

2019

Abr/

2019

Mai/

2019

Jun/

2019

Jul/

2019

Ago/

2019

Set/

2019

Out/

2019

Nov/

2019

Dez/

2019

Colaboradores

246

249

248

248

248

250

247

248

246

247

245

250

248

  1. Em 11 de Maio de 2021, a Requerente submeteu a declaração de rendimentos de IRC Modelo 22, referente ao exercício fiscal de 2019, na qual foi inscrita a importância de € 1.698.846,43 no campo 355, do quadro 10, com o propósito de beneficiar do RFAI;
  2. Em 2022, a Requerente foi objecto de um procedimento inspectivo, de âmbito parcial, em sede de IRC e Imposto sobre o Valor Acrescentado (“IVA”), por referência ao período de tributação de 2019, realizada pela Direcção de Finanças de Coimbra sob a ordem de serviço n.º OI2021...;
  3. No relatório de inspecção tributária (“RIT”) foram propostas as seguintes correcções:

Descrição

Declarado (EUR)

Correcção (EUR)

Corrigido (EUR)

Lucro Tributável

30.527.233,62

413.136,26

30.940.369,88

Derrama Estadual

1.331.361,68

20.656,81

1.352.018,49

Derrama Municipal

457.908,50

6.197,05

464.105,55

RFAI

1.634.859,02

1.540.251,26

94.607,77

  1. Na sequência da inspecção tributária, a AT emitiu os actos de liquidação de IRC n.º 2023..., de 12.04.2023, e de juros compensatórios n.º 2023..., bem como a demonstração de acerto de contas n.º 2023..., no montante total a pagar de € 1.769.135,75;
  2. Em 1 de Junho de 2023, a Requerente efectuou o pagamento do montante de € 1.769.135,75;
  3. Em 22 de Agosto de 2023, a Requerente apresentou reclamação graciosa, que tramitou sob o n.º ...2023..., contra os referidos actos de liquidação, na concreta parte em que corrigiram a dotação do RFAI do exercício de 2019;
  4. Por Despacho de 7 de Novembro de 2023, do Chefe de Divisão da Divisão de Justiça Tributária da Unidade dos Grandes Contribuintes, ao abrigo de subdelegação de competências, foi indeferida a reclamação graciosa;
  5. Em 5 de Fevereiro de 2024, a Requerente apresentou o pedido de constituição de Tribunal Arbitral que deu origem aos presentes autos.

 

§2 – Factos não provados

 

            9. Analisada a prova produzida nos presentes autos, com relevo para a decisão da causa, inexistem factos que se tenham considerado não provados.

 

§3 – Fundamentação da fixação da matéria de facto

 

10. O Tribunal Arbitral tem o dever de seleccionar os factos que interessam à decisão da causa e discriminar os factos provados e não provados, não tendo de se pronunciar quanto a todos os elementos da matéria de facto alegados pelas partes, tal como decorre da aplicação conjugada do artigo 123.º, n.º 2, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”) e do artigo 607.º, n.º 3, do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.

 

11. Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram seleccionados e conformados em função da sua relevância jurídica, determinada com base nas posições assumidas pelas partes e nas várias soluções plausíveis das questões de direito para o objecto do litígio, conforme decorre do artigo 596.º, n.º 1 do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.

 

12. Os factos dados como provados e não provados resultaram da análise da prova documental junta aos autos pela Requerente, do processo administrativo e documentação dele constante junto aos autos pela Requerida, bem como dos depoimentos das testemunhas prestados na reunião arbitral a que alude o artigo 18.º do RJAT.

 

13. No âmbito dos respectivos depoimentos, as testemunhas relataram os factos de forma isenta, objectiva e credível, demonstrando conhecimento directo da factualidade, cuja veracidade e adesão à realidade se considerou comprovada. Esta e a demais prova produzida foi apreciada pelo Tribunal Arbitral de acordo com o princípio da livre apreciação dos factos e com a ausência de contestação especificada pelas partes, conforme decorre do artigo 16.º, alínea e), do RJAT, e do artigo 607.º, n.ºs 4 e 5, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.

 

IV. MATÉRIA DE DIREITO

 

            14. Discute-se no âmbito do presente processo a legalidade dos actos de liquidação acima referidos, na concreta parte em que materializaram correcções quanto ao benefício fiscal do RFAI apurado e deduzido pela Requerente no ano de 2019, com exclusivo fundamento no (alegado) incumprimento do requisito de criação e manutenção de postos de trabalho.

 

            15. Por um lado, entende a Requerente que da alínea f), do n.º 4, do artigo 22.º do Código Fiscal do Investimento (“CFI”), bem como do Direito Europeu aplicável, não resulta qualquer obrigação de criação líquida de postos de trabalho para que um determinado investimento seja elegível para usufruir do benefício fiscal RFAI. De acordo com a Requerente, da letra da lei resulta apenas a imposição de criação e manutenção de, pelo menos, um posto de trabalho. O que, argumenta, pode ocorrer através da criação de novos postos de trabalho, bem como da conversão de contratos com termo em contratos sem termo. Neste sentido, considerou a Requerente ter cumprido o referido requisito, já que no ano de 2019 admitiu um trabalhador com contrato de trabalho com termo certo e converteu o contrato de dois trabalhadores com termo certo em contratos sem termo. Não obstante, defendeu ainda a Requerente que mesmo que da lei resultasse a obrigatoriedade de criação líquida de postos de trabalho, tal requisito estaria cumprido, ao contrário do defendido pela AT no RIT que adoptou uma errada metodologia de contabilização e errou no cálculo da média de trabalhadores ao serviço da empresa.

 

16. Por outro lado, defendeu a Requerida que o propósito visado com o RFAI apenas é alcançado se ocorrer uma criação líquida de postos de trabalho com contrato sem termo, já que só assim se pode considerar que o benefício fiscal contribui para a criação sustentável de emprego. Neste sentido, defendeu a Requerente que este requisito apenas se poderá considerar verificado se o nível de empregabilidade atingido pela entidade no período do investimento relevante, isto é, se o número de trabalhadores com contrato sem termo no final do período em causa, for superior à média dos 12 meses anteriores, média esta que terá de ser mantida nos cinco períodos seguintes. Com base nesta interpretação, defendeu a Requerida a validade dos cálculos efectuados no RIT, que consideraram que a Requerente não deu cumprimento ao requisito de criação de postos de trabalho pelo facto de a média de trabalhadores com contrato sem termo nos doze meses anteriores a 31 de Dezembro de 2019 (i.e., de Dezembro 2018 a Novembro 2019) revelar uma diminuição de postos de trabalho, mais agravada ainda se a comparação tiver por base o período de 31 de Dezembro de 2018 a 31 de Dezembro de 2019.

 

17. Dito isto, cumpre em primeira linha determinar se nos termos da lei bastava que o investimento realizado fosse acompanhado da criação de postos de trabalho conforme defende a Requerente ou, em sentido oposto, se era necessária que essa criação fosse aferida numa base líquida, considerando a globalidade dos postos de trabalhos criados e cessados no período em causa, conforme defende a Requerida. Em função da resposta à questão anterior, haverá eventualmente que determinar qual a correcta metodologia de cálculo da “criação líquida de postos de trabalho”, aferindo a validade dos cálculos invocados por cada uma das partes.

 

18. Quanto ao requisito da criação e manutenção de postos de trabalho previa-se na alínea f), do n.º 4, do artigo 22.º do CFI, na redacção vigente à data dos factos, que “Podem beneficiar dos incentivos fiscais previstos no presente capítulo os sujeitos passivos de IRC que (…) Efetuem investimento relevante que proporcione a criação de postos de trabalho e a sua manutenção até ao final do período mínimo de manutenção dos bens objeto de investimento”.

 

19. Ora, do elemento gramatical da referida norma resulta, desde logo, que para que um investimento seja exigível para efeitos do RFAI é necessário que a criação de postos de trabalho seja pelo mesmo proporcionada. Quer isto dizer que, independentemente dos termos em que deverá ser apurada a existência ou não de efectiva criação de emprego, certo é que a mesma terá de operar numa relação consequencial directa face aos investimentos realizados.

 

20. Do elemento gramatical da referida norma resulta, também, a inexistência de uma obrigação de criação líquida de postos de trabalho, porquanto nenhuma referência é feita à necessidade de se verificar um aumento líquido do número de trabalhadores do estabelecimento em relação ao qual o investimento é realizado.

 

21. Isto ao contrário do que sucedeu com outros benefícios fiscais, designadamente com o benefício fiscal para criação de emprego outrora previsto no artigo 19.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais na última redacção aplicável, onde se exigia expressamente a necessidade de criação líquida de postos de trabalho, aferida pela diferença positiva, num dado exercício económico, entre o número de contratações elegíveis e o número de saídas de trabalhadores que, à data da respectiva admissão, se encontravam nas mesmas condições.

 

22. Ora, ao não encontrar a exigência de criação líquida de postos de trabalho qualquer correspondência no teor gramatical da alínea f), do n.º 4, do artigo 22.º do CFI, a sua exigência apenas poderia resultar da convocação de outros elementos da interpretação, mormente do elemento teleológico que expressa o fundamento extrafiscal legitimador da consequente restrição ao princípio da igualdade. Sem prejuízo, ao estar em causa uma norma excepcional, a respectiva interpretação terá necessariamente de ser estrita ou declarativa, o que significa que a convocação dos demais elementos da interpretação jurídica não permite sustentar a imposição, pela via interpretativa, de requisitos ou pressupostos adicionais de aplicação do benefício fiscal que não encontrem na expressão textual da norma qualquer amparo. Isto sob pena de violação do disposto no artigo 9.º, n.º 2 do Código Civil.

 

23. Esta é, também, a conclusão que se extrai das normas de Direito Europeu que enquadram o benefício fiscal RFAI enquanto auxílio compatível com o mercado interno, designadamente com o Regulamento (UE) n.º 651/2014 da Comissão, de 16 de Junho de 2014, comummente designado por Regulamento Geral de Isenção por Categoria (“RGIC”).

 

24. No artigo 14.º, n.º 4 do RGIC previa-se que os custos elegíveis para efeitos dos auxílios regionais ao investimento podiam corresponder aos custos de investimento em activos corpóreos e incorpóreos nos termos da alínea a), aos custos salariais estimados decorrentes da criação de emprego, em virtude de um investimento inicial, calculados ao longo de um período de dois anos nos termos da alínea b), ou a uma combinação das alíneas a) e b), que não exceda o montante de a) ou b), consoante o que for mais elevado nos termos da alínea c).

 

            25. Por sua vez, determinava-se na alínea a), do n.º 9, do artigo 14.º do RGIC que os custos salariais estimados decorrentes da criação de emprego a que aludia a alínea b) do n.º 4 daquele mesmo artigo, deviam “conduzir a um aumento líquido do número de trabalhadores do estabelecimento em causa, em comparação com a média dos 12 meses anteriores, ou seja, qualquer perda de postos de trabalho deve ser deduzida do número aparente de postos de trabalho criados nesse período”.

 

            26. Ora, se a alínea a), do n.º 9, do artigo 14.º do RGIC apenas remete para os custos mencionados na alínea b) do n.º 4 daquela norma, é porque o legislador europeu apenas pretendeu condicionar ao aumento líquido de postos de trabalho a elegibilidade dos auxílios concedidos com base nos custos salariais e já não com base nos custos de investimento em activos corpóreos e incorpóreos, como sucede no caso do RFAI.

 

27. No fundo, não resulta quer da lei nacional quer do Direito Europeu a obrigatoriedade de o investimento realizado pela Requerente ter proporcionado uma criação líquida de emprego, exigindo-se tão só que do mesmo tenha efectiva e directamente resultado a criação e manutenção de, pelo menos, um posto de trabalho.

 

28. Esta é a conclusão a que tem chegado diversa jurisprudência arbitral que se pronunciou sobre o tema, designadamente nos acórdãos proferidos nos processos n.ºs 307/2019‑T, 488/2019-T, 546/2020-T, 500/2021-T, 508/2021-T, 156/2022-T e 544/2022-T. Por todos, cita-se aqui o acórdão proferido pelo Tribunal Arbitral no âmbito do processo n.º 307/2019-T, em 9 de Março de 2020, no qual se referiu, ao que interessa, o seguinte:

 

Ora, como se viu já, o RFAI foi sempre um apoio ao investimento, e é calculado com base nos custos de investimento em activos corpóreos e/ou incorpóreos, e não com base nos custos de investimento em postos de trabalho ou em custos salariais estimados.

Daí que não seja fundada, julga-se, a invocação do conceito de criação líquida de postos de trabalho do Regulamento em questão, para a interpretação a fazer da al. f) do n.º 4 do art.º 22.º do CFAI.

De resto, terá sido por ter noção do quanto se expôs que o legislador não utilizou a expressão “criação líquida de emprego”, quando a mesma era utilizada, por exemplo, no art.º 19.º do EBF vigente à data, esse sim, um benefício fiscal que tem por base os custos de investimento em postos de trabalho.

Considerando-se, então, que a al. f) do n.º 4 do art.º 22.º do CFI, não se reporta à criação líquida de postos de trabalho, nos termos em que, por exemplo, o referido art.º 19.º do EBF e as Directivas sobre apoios de Estado o fazem, é ainda necessário densificar qual o sentido e alcance da expressão “criação de postos de trabalho”, ali empregue, tem.

Tendo em conta que, pelos fundamentos expostos, não se deverá equiparar a expressão “criação de postos de trabalho” a “criação líquida de postos de trabalho”, dever-se-á, em obediência ao princípio hermenêutico do legislador razoável, obter um resultado interpretativo que seja coerente com a teleologia do benefício fiscal em questão e que tenha um efectivo conteúdo prático.

Nessa perspectiva, a única interpretação que não se reconduza à “criação líquida de postos de trabalho”, será, julga-se, a de que a “criação de postos de trabalho” pressuposta pelo benefício fiscal em questão se refere à criação de postos de trabalho, e a sua manutenção, causalmente associáveis ao investimento realizado, independentemente de, sob um ponto de vista global, a empresa ter verificado, ou não, um aumento do número de trabalhadores ao seu serviço.

Ou seja: o que está em causa é que o investimento realizado por determinada empresa será elegível para usufruir do benefício fiscal em questão se, e na medida em que, dele resulte, de forma causalmente adequada, a criação de, pelo menos, um posto de trabalho, e a sua manutenção.

(…)

Deverá ser assim este, julga-se, o critério para aferir da criação de postos de trabalho, pressuposto pela al. f) do n.º 4 do art.º 22.º do CFI.”.

 

            29. Este é, igualmente, o sentido interpretativo defendido na jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo. Veja-se, para o efeito, as seguintes considerações feitas no acórdão proferido no âmbito do processo n.º 0411/16.0BEPNF, em 8 de Novembro de 2023, cuja ratio se considera aqui aplicável:

 

Antes do mais, é de notar que a AT não pôs em causa a ligação causal entre o investimento efectuado pela ora Recorrida e a criação dos empregos ocorrida em 2011 nem a sua manutenção durante o período de dedução. O que considera é que não houve criação de postos de trabalho porque esta condição só poderia considerar-se preenchida se «à data de 31 de Dezembro de 2011 se verifica[sse] um aumento líquido do número de trabalhadores relativamente à média dos doze meses precedentes», o que não ocorreu. Ou seja, a AT sustenta que não basta a criação de postos de trabalho causada pelo investimento realizado, exigindo-se ainda que o número global de trabalhadores do sujeito passivo tenha aumentado.

Dando de barato que a alegação da Impugnante (de que «no exercício de 2011, em consequência do investimento relevante realizado, teve uma criação líquida de postos de trabalho de 8 colaboradores») não tenha sido objecto de julgamento por parte do Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel – que não a julgou provada nem não provada, como lhe competia (cfr. art. 123.º, n.º 2, do CPPT) – (O que, por si só, justificaria a devolução do processo à 1.ª instância para ampliação da matéria de facto, caso a tese de AT vingasse.), a verdade é que a fundamentação em que a AT suportou a recusa da aplicação do benefício, de inexistência de criação líquida de emprego, nunca serviria o seu propósito, pois arranca de um erro na interpretação da norma em causa, como bem considerou a sentença recorrida. Por isso, permitimo-nos conhecer do recurso.

Desde logo, a letra da lei – que constitui «o ponto de partida da interpretação» (Cfr. BAPTISTA MACHADO, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 1983, pág. 182, que assinala uma dupla função à letra da lei enquanto factor hermenêutico: por um lado, «uma função negativa», qual seja «a de eliminar aqueles sentidos que não tenham qualquer apoio, ou pelo menos uma qualquer “correspondência” ou ressonância nas palavras da lei»; por outro lado, «uma função positiva», que se reconduz a dois efeitos, sendo o primeiro, que, «se o texto comporta apenas um sentido, é esse o sentido da norma – com a ressalva, porém, de se poder concluir com base noutras normas que a redacção do texto atraiçoou o pensamento do legislador» e o segundo «quando, como é de regra, as normas (fórmulas legislativas) comportam mais de um significado)», «dar mais forte apoio a, ou sugerir mais fortemente um dos sentidos possíveis».) –aponta nesse sentido. Na verdade, como bem assinalou a Juíza do Tribunal a quo, o legislador disse «investimento relevante que proporcione a criação de postos de trabalho e a sua manutenção até ao final do período de dedução constante dos n.ºs 2 e 3 do artigo 3.º» (sublinhado nosso) e não que haja criação líquida de emprego nesse ou noutro período – expressões de sentido obviamente diverso –, apesar de ter utilizado expressamente esta segunda expressão relativamente a outros regimes de benefícios fiscais. Ora, o n.º 3 do art. 9.º CC impõe-nos presumir, não só «que o legislador consagrou as soluções mais acertadas», como também que «soube exprimir o seu pensamento em termos adequados».

Mas ainda que se pudesse considerar que a letra da lei comportava o significado que a Recorrente lhe aponta – e, a nosso ver, não pode –, sempre teríamos de ter presente que «na falta de outros elementos que induzam à eleição do sentido menos imediato do texto, o intérprete deve optar em princípio por aquele sentido que melhor e mais imediatamente corresponde ao significado natural das expressões verbais utilizadas» (Cfr. BAPTISTA MACHADO, ibidem.). Ora, criação de postos de trabalho não se confunde com criação líquida de emprego, sendo que esta última expressão tem, manifestamente, um carácter bem mais restritivo que a primeira. Tenha-se presente que se aconselha redobrado cuidado na tarefa hermenêutica uma vez que nos situamos no âmbito de benefícios fiscais, que, como é sabido, se encontram a coberto do princípio da legalidade tributária (cfr. art. 8.º da LGT e art. 103.º da Constituição da República Portuguesa), o que proíbe a sua integração por analogia (cfr. art. 11.º, n.º 4, da LGT). Para além disso, as normas que criam benefícios fiscais têm a natureza de normas excepcionais (cfr. art. 2.º, n.º 1, do Estatuto dos Benefícios Fiscais), pelo que devem ser interpretadas nos seus precisos termos, sem ampliações ou restrições.

Mas não é só a letra da lei a apontar esse significado. Também a sua razão de ser (a ratio legis) – factor hermenêutico cuja consideração é imposta ao intérprete pelo n.º 1 do art. 9.º do CC (Nos termos do art. 9.º, n.º 1, do Código Civil, a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, antes procurando reconstituir a partir do seu texto o pensamento legislativo.) – vai no sentido de que a norma releva a criação efectiva (e ulterior manutenção durante o período da dedução) de postos de trabalho (Sendo de realçar que a AT, através da Ficha Doutrinária – Processo 2010 002853 e 2010 001800, divulgou já o entendimento de que é suficiente a criação de um posto de trabalho.), independentemente de ser positiva a relação entre o número absoluto dos trabalhadores nesse ano e no ano anterior, i.e., independentemente do efectivo aumento global do número de trabalhadores da empresa. Se não vejamos:

O RFAI 2019 integra-se no âmbito da Iniciativa para o Investimento e o Emprego, designada por Programa IIE, criado pela Lei 10/2009, de 10 de Março, programa que visou «promover o crescimento económico e o emprego, contribuindo para o reforço da modernização e da competitividade do País, das qualificações dos Portugueses, da independência e da eficiência energética, bem como para a sustentabilidade ambiental e promoção da coesão social» (cfr. art. 2.º, n.º 1, da Lei n.º 10/2009) e no seu âmbito incluíam-se medidas de «Apoio especial à actividade económica, exportações e pequenas e médias empresas (PME)» e de «Apoio ao emprego e reforço da protecção social» [cfr. alíneas d) e e) do n.º 1 do art. 3.º da Lei 10/2009).

O RFAI 2009 foi criado no âmbito do mesmo Programa como «um sistema específico de incentivos fiscais ao investimento», conforme resulta do respectivo art. 1.º do mesmo Regime e é um regime que visa, essencialmente o investimento e não o emprego (o apoio ao investimento é calculado com base nos custos de investimento em activos corpóreos e/ou incorpóreos, e não com base nos custos de investimento em postos de trabalho ou em custos salariais estimados). Ou seja, o RFAI 2009 foi formulado como um incentivo ao investimento. Assim sendo, a criação de emprego é uma condição para a aplicação do benefício fiscal nele previsto, não é o seu objectivo principal, motivo por que bem se compreende que o legislador se tenha bastado com a «criação de postos de trabalho», ao invés de exigir, como noutros a criação líquida de emprego. Nesse contexto, a criação de postos de trabalho a que alude a alínea f) do n.º 3 do art. 2.º daquele regime, deverá ser entendido como um requisito sine qua non do direito ao benefício fiscal, mas não o fundamento desse direito.

No mesmo sentido aponta o Regulamento (CE) n.º 800/2008 da Comissão, de 6 de Agosto de 2008, vigente na altura da implementação do RFAI 2009 e que está na sua génese.

Na verdade, o referido Regulamento distingue dois tipos de apoios às PME: os apoios quantificados com base nos custos do investimento e os apoios quantificados com base nos custos relativos aos postos de trabalho directamente criados por um projecto de investimento. É para este último tipo de apoios que é utilizado o conceito de criação líquida de postos de trabalho por serem, justamente, aqueles em que a utilização de tal conceito se justifica.

Ora, como deixámos já dito, o RFAI 2009 foi um apoio ao investimento, calculado com base nos custos de investimento em activos corpóreos e/ou incorpóreos, e não com base nos custos de investimento em postos de trabalho ou em custos salariais estimados.

Por isso, também a ratio legis não autoriza a invocação do conceito de criação líquida de postos de trabalho para a interpretação a fazer da alínea f) do n.º 3 do art. 2.º do RFAI 2009, que se refere a criação de postos de trabalho.

Concluímos, pois, que a expressão criação de postos de trabalho não pode ser interpretada, como pretende a Recorrente, com o sentido de criação líquida de postos de trabalho.

No caso, a AT reconhece que foram criados 5 postos de trabalho, que não põe em causa que se devem ter como causados pelo investimento relevante, o que basta para que se considere verificado o pressuposto da criação de postos de trabalho a que se refere a alínea f) do n.º 3 do art. 2.º do RFAI 2009.”

 

            30. Assente que está o erro em que incorreu a AT ao sustentar no RIT o incumprimento do pressuposto de criação líquida de postos de trabalho, cumpre finalmente aferir se o mencionado requisito foi ou não cumprido.

 

            31. Para o efeito haverá ainda que ter presente, em conformidade com o sustentado pela Requerente, que não resulta da letra da lei qualquer exigência no sentido de a criação de emprego ser feita exclusivamente através de contratos de trabalho sem termo. Neste preciso sentido, registou-se no acórdão arbitral proferido no âmbito do processo n.º 516/2017-T, em 16 de Abril de 2018, que “não há neste regime do RFAI 2009 qualquer fundamento para concluir que só se pretendeu a criação de emprego duradouro, pois não se formula qualquer exigência, para atribuição do benefício, de que os postos de trabalho criados sejam ocupados por trabalhadores contratados por tempo indeterminado (…)”.

 

            32. Aqui chegados, não resta senão concluir que o investimento realizado pela Requerente preenchia todos os requisitos previstos no artigo 22.º do CFI para beneficiar do RFAI, porquanto ficou provado nos autos a criação de, pelos menos, três postos de trabalho, ocupados pelos colaboradores D..., E... e F..., para o exercício de funções directamente relacionadas com o investimento feito na linha de produção do novo equipamento de produção de garrafas de vidro (máquina IS na Linha 13).

 

            33. Em face do exposto, julga-se procedente a ilegalidade imputada pela Requerente à decisão de indeferimento da reclamação graciosa e aos actos de liquidação impugnados no presente processo, impondo-se respectivamente a sua anulação total e parcial, com o consequente reembolso à Requerente do montante de imposto indevidamente pago, em conformidade com o disposto no artigo 24.º, n.º 1 do RJAT.

 

34. Por fim, cumpre apreciar o pedido de condenação da Requerida no pagamento de juros indemnizatórios.

 

            35. O direito a tais juros encontra-se regulado no artigo 43.º, n.º 1 da LGT que, ao que importa, estabelece que “São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.”.

 

            36. Ora, resultou provado que os actos de liquidação contestados enfermam de vício de violação de lei, por erro sobre os pressupostos de facto e de direito, unicamente imputável aos serviços da AT. Por conseguinte, ao ter a Requerente suportado imposto em montante superior ao legalmente exigido, é devido pela Requerida o pagamento de juros indemnizatórios, contados sobre o valor do imposto indevidamente pago, desde a data do pagamento indevido, à taxa legal supletiva e até à data da emissão da correspondente nota de crédito, nos termos conjugados dos artigos 43.º, n.º 1 e 100.º da LGT, 61.º do CPPT e 24.º, n.º 5 do RJAT.

 

V. DECISÃO

 

37. Termos em que se decide:

  1. Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral e, em consequência, declarar a ilegalidade e anulação total do acto de indeferimento da reclamação graciosa e a ilegalidade e anulação parcial dos actos de liquidação de IRC e juros compensatórios impugnados nos presentes autos;
  2. Condenar a Requerida no reembolso do imposto indevidamente pago acrescido de juros indemnizatórios, contados desde a data do pagamento indevido, à taxa legal supletiva, até à data da emissão da correspondente nota de crédito;
  3. Condenar a Requerida no pagamento das custas do processo.

 

VI. VALOR DO PROCESSO

           

            38. Atendendo ao disposto no artigo 97.º-A do CPPT, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 1.647.604,66.

 

VII. CUSTAS

 

            39. Nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, as custas são no valor de € 21.726,00 a suportar pela Requerida, conforme ao disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 13 de Dezembro de 2024

 

Os árbitros,

 

 

Carla Castelo Trindade

(Presidente e Relatora)

 

 

Jorge Carita

 

 

 

João Taborda da Gama