Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 530/2024-T
Data da decisão: 2024-12-20   Outros 
Valor do pedido: € 65.484,00
Tema: Adicional de solidariedade sobre o sector bancário. Inoponibilidade de erros contidos na notificação. Princípio da proibição da retroatividade dos impostos. Princípio da igualdade. Princípio da capacidade contributiva.
Versão em PDF

Sumário:

 

I – Os erros contidos na notificação de ato tributário são inoponíveis ao interessado quando o erro o tenha levado a utilizar um meio judicial de impugnação quando havia ainda lugar a uma impugnação administrativa necessária;

II – A norma transitória do artigo 21.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 27-A/2020, de 24 de julho, na parte em que se refere ao cálculo do imposto relativo ao primeiro semestre de 2020, é inconstitucional por violação do princípio da proibição da retroatividade dos impostos, consagrado no artigo 103.º, n.º 3, da Constituição;

III -As normas conjugadas dos artigos 1.º, n.º 2, 2.º e 3.º, n.º 1, alínea a), do Anexo VI à Lei n.º 27-A/2020, de 24 de julho, são inconstitucionais, por violação do princípio da igualdade e por violação do princípio da capacidade contributiva, enquanto decorrência do princípio da igualdade tributária.

 

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

 

Acordam em tribunal arbitral

 

I – Relatório

 

           

1.A..., S.A., titular do número de identificação de pessoa coletiva..., com sede social na ..., n.º ..., ...-..., Lisboa, vem requerer a constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, para apreciar a legalidade da autoliquidação do Adicional de Solidariedade sobre o Sector Bancário (ASSB) referente ao período de tributação de 2020, no valor de € 5.211.645,85, bem como da decisão de indeferimento do pedido de

 

 

revisão oficiosa contra ela deduzida, requerendo ainda a condenação da Autoridade Tributária no reembolso do imposto indevidamente pago e no pagamento de juros indemnizatórios.

Fundamenta o pedido nos seguintes termos.

 

A Requerente é uma instituição financeira de crédito portuguesa sujeita à supervisão do

Banco de Portugal e que se rege pelo Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (RGICSF).  

            Em 14 de dezembro de 2020, a Requerente submeteu a Declaração Modelo 57 de autoliquidação do ASSB, relativa ao período de tributação de 2020, em que apurou um valor a pagar de € 5.211.645,85.

O ASSB é um tributo, aprovado pela Lei n.º 27-A/2020, de 24 de julho, que nasceu no quadro da crise pandémica de COVID-19 e se destina exclusivamente ao financiamento do Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social (FEFSS) e onera especificamente o setor bancário, alegadamente como forma de compensação pela isenção de IVA aplicável à generalidade dos serviços e operações financeiras e caracteriza-se como um imposto.

 

Por outro lado, o ASSB não se caracteriza como uma contribuição financeira, nem apresenta qualquer tipo de bilateralidade, grupal ou individual, que lhe permita a qualificação como taxa, havendo de entender-se que constitui um verdadeiro imposto, atenta a sua unilateralidade, como tal sujeito ao respetivo regime jurídico-constitucional.

 

O ASSB padece de inconstitucionalidade, na medida em que, sendo um tributo criado em julho de 2020, por via da Lei n.º 27A/2020, de 24 de julho, e que se tornou devido, pela primeira vez, tendo por referência saldos de passivos relativos ao primeiro semestre de 2020, viola o princípio da proibição da retroatividade da lei fiscal, consagrado no n.º 3 do artigo 103.º da CRP. 

 

Considerando ainda a natureza do ASSB e o fim a que se destina, que se prende exclusivamente com o financiamento da Segurança Social, o imposto viola o princípio da igualdade ínsito no artigo 13.º da CRP, na vertente da proibição do arbítrio, ao onerar mais gravosamente o setor bancário do que os demais setores de atividade, sem qualquer justificação.

 

Além de que o regime que cria o ASSB é inconstitucional por violação do princípio da proporcionalidade decorrente do n.º 2 do artigo 18.º da CRP, e ainda por violação do princípio da capacidade contributiva.

 

Por outro lado, o tributo em causa viola ainda a Lei de Enquadramento Orçamental, no que se refere ao princípio da discriminação de receitas e despesas e das suas sub-regras de não compensação, de não consignação e de especificação, que resultam dos artigos 15.º, 16.º e 17.º da Lei de Enquadramento Orçamental.

 

Conclui, requerendo a anulação da decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa e da autoliquidação do ASSB relativa ao ano de 2020, e a condenação da Autoridade Tributária na restituição do imposto indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios.

 

 A Autoridade Tributária, na sua resposta, suscitou as exceções da incompetência do tribunal e da inimpugnabilidade da autoliquidação do ASSB.  

 

Em sede de impugnação, considera que a base de incidência do ASSB para o primeiro semestre de 2020 é a que resulta dos artigos 3.º e 4.º do respetivo regime, e, por efeito desses artigos, o que releva na formação do facto tributário sujeito a ASSB é o momento do apuramento e aprovação das contas e não o facto material de contabilisticamente ser apurada a existência de passivo. O que significa que o ASSB do primeiro semestre de 2020 não deixa de incidir sobre os passivos apurados e aprovados pelo sujeito passivo, não obstante o balanço de final de cada período só ficar fechado com a divulgação de contas.

 

No que se refere à alegada violação do princípio da igualdade, a Autoridade Tributária entende que o ASSB constitui um tributo com a natureza de imposto indireto, na medida em que visa compensar a não tributação em IVA da generalidade das operações financeiras. E considerando que o IVA constitui uma das fontes de financiamento da Segurança Social, através da consignação de uma parcela da sua receita a essa finalidade, a criação de um imposto como forma de contrabalançar a isenção de IVA associada aos serviços e operações financeiras, apresenta-se como uma opção legislativa razoável e materialmente justificada.

 

Sendo ainda de considerar que só uma parte diminuta da atividade financeira das instituições de crédito está sujeita a tributação indireta, designadamente em sede de imposto do selo, que, além do mais, apresenta um mecanismo de funcionamento semelhante ao do IVA, pelo qual o imposto liquidado e entregue ao Estado pelo sujeito passivo é repercutido no adquirente.

 

Neste sentido, a sujeição das instituições de crédito ao ASSB tem como fundamento material a ideia de justiça fiscal, e mais concretamente, a reposição da igualdade através da distribuição do esforço tributário entre os diversos operadores económicos, reduzindo-se assim a discrepância entre a carga fiscal suportada pelo setor financeiro e aquela que onera os demais

setores de atividade.

 

No que concerne à alegada violação do princípio da capacidade contributiva, há que atender a que a tributação deve abranger todas as manifestações de riqueza, de modo que o imposto corresponda à efetiva força económica do sujeito passivo, que poderá reconduzir-se ao rendimento, ao património e ao consumo.

 

Sendo que o legislador nacional, entre vários indicadores possíveis, optou pelo valor do passivo e o valor dos derivados fora do balanço, por serem fatores que recaem sobre a realidade

 

económica relevante dos sujeitos passivos visados e que permite mensurar a sua capacidade contributiva.

 

Quanto à pretendia violação da Lei de Enquadramento Orçamental e do princípio da especificação, a Requerida entende que o ASSB, tendo sido consignado por lei ao FEFSS, enquadra-se na exceção ao princípio da não consignação de receitas, contemplada na alínea c) do artigo 16.º dessa lei, e, por outro lado, encontra-se suficientemente discriminada no Orçamento de Estado Suplementar para o ano de 2020.

 

Conclui no sentido da improcedência do pedido arbitral.

 

2. Por despacho arbitral de 13 de setembro de 2024, a Requerente foi notificada para se pronunciar sobre a matéria de exceção suscitada, na resposta, pela Autoridade Tributária.

 

Por requerimento de 1 de outubro de 2024, a Requerente solicitou o aperfeiçoamento da resposta da Requerida, uma vez que esta baseia as alegadas exceções de incompetência do tribunal e inimpugnabilidade do ato tributário num suposto indeferimento liminar do pedido de revisão oficiosa n.º ...2023..., quando a petição inicial se refere ao indeferimento expresso do pedido de revisão oficiosa com o n.º ...2023... .

 

Por despacho arbitral de 2 de outubro de 2024, a Autoridade Tributária foi convidada a corrigir o articulado inicialmente produzido, suprindo as imprecisões dele constantes, nos termos do disposto no artigo 87.º, n.º 3, do CPTA, subsidiariamente aplicável, tendo em conta que a Requerida faz menção, na resposta, a um indeferimento liminar relativo a um procedimento de revisão oficiosa que não corresponde àquele que é identificado no pedido arbitral.

Por requerimento de 17 de outubro de 2024, a Autoridade Tributária veio corrigir o seu articulado, dizendo que, no ponto 5 da resposta, onde se lê:    

“Como referido na parte introdutória do presente articulado, por via da dedução de Pedido de Pronúncia Arbitral, vem a Requerente reagir contra o Despacho de indeferimento liminar do Pedido de Revisão Oficiosa (PRO) que, sob o n.º ...2023... .”

 

Deve ler-se:

 

“Como referido na parte introdutória do presente articulado, por via da dedução de Pedido de Pronúncia Arbitral, vem a Requerente reagir contra o Despacho de indeferimento do Pedido de Revisão Oficiosa (PRO) que, sob o n.º ...2023... .”

 

            No entanto, a Requerida, apesar de reconhecer não ter havido uma decisão de indeferimento liminar, mantém o entendimento de que se verifica a incompetência do tribunal

 

arbitral e inimpugnabilidade do ato tributário, por considerar que o pedido de revisão oficiosa foi apresentado para além do prazo de dois anos previsto para a reclamação graciosa, não tendo sido cumprido o ónus da impugnação administrativa necessária,  e, também, porque a decisão de indeferimento não se pronunciou sobre o mérito da pretensão deduzida, visto que a Administração Tributária está sujeita ao princípio da legalidade e não pode apreciar a constitucionalidade das normas.

 

Por despacho arbitral de 18 de outubro de 2024, a Requerente foi notificada, em aplicação do disposto no artigo 87.º, n.º 4, do CPTA, subsidiariamente aplicável, para se pronunciar sobre a correção e o aditamento efetuados no requerimento de aperfeiçoamento da resposta.

 

Em resposta ao aperfeiçoamento do articulado, por requerimento de 4 de novembro de 2024, a Requerente, quanto à tempestividade do pedido de revisão oficiosa, alega que, estando em causa a revisão de uma autoliquidação de IRC com fundamento em “injustiça grave ou notória”, o interessado dispõe de um prazo limite de 3 anos, contados a partir do final do ano em que teve lugar o ato de autoliquidação impugnado, conforme o disposto no n.º 4 do artigo 78.º da LGT, e, desse modo, considerando que a autoliquidação data de 14 de dezembro de 2020, o termo do prazo para apresentação do presente pedido de revisão oficiosa apenas ocorreria em 31 de dezembro de 2023.

 

Por despacho de 4 de dezembro de 2024, a Requerente foi notificada para dizer se mantém interesse na produção da prova, dada a sua aparente desnecessidade, uma vez que estão em causa meras questões de direito que se reconduzem à inconstitucionalidade de normas do regime do ASSB e à violação da Lei de Enquadramento Orçamental.

 

Por requerimento de 16 de dezembro de 2024, a Requerente veio prescindir da produção de prova testemunhal requerida.

 

Por despacho arbitral de 17 de dezembro de 2024, considerando que a matéria de facto relevante para a decisão da causa depende de prova documental e se torna desnecessária a realização de outras diligências instrutórias, determinou-se a dispensa da reunião do tribunal arbitral a que se refere o artigo 18.º do RJAT, bem como a apresentação de alegações, relegando-se para final a apreciação da matéria de exceção.

 

3. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira nos termos regulamentares.

 

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral coletivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

As partes foram oportuna e devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e dos artigos 6.° e 7.º do Código Deontológico.

 

 

 

 

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral coletivo foi constituído em 24 de junho de 2024.

 

O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente à face do preceituado no artigo 2.º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro.

 

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

 

O processo não enferma de nulidades.

 

Cabe apreciar e decidir.

 

II - Fundamentação

 

Matéria de facto

 

 

4. Os factos relevantes para a decisão da causa que são tidos como assentes são os seguintes.

 

  1. A Requerente é uma instituição financeira de crédito portuguesa sujeita à supervisão do

Banco de Portugal e que se rege pelo Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras.  

  1.  Em 14 de dezembro de 2020, a Requerente submeteu a Declaração Modelo 57 de autoliquidação do ASSB, referente ao período de tributação de 2020, em que apurou um valor a pagar de € 5.211.645,85.
  2. A Requerente procedeu ao pagamento do imposto devido em 15 de dezembro de 2020.
  3. Em 28 de novembro de 2023, a Requerente apresentou um pedido de revisão oficiosa contra o referido ato tributário de autoliquidação do ASSB, tendo sido notificada do projeto de decisão de indeferimento para o exercício do direito de audição.
  4. A Requerente não exerceu o direito de audição.
  5. Por despacho do Chefe de Divisão do Serviço Central, de 29 de dezembro de 2023, praticado com subdelegação de competência, o pedido de revisão oficiosa foi indeferido.
  6. A decisão de indeferimento baseou-se na informação dos serviços ...-AIR3/2023, que, na parte que releva, é do seguinte teor:

 

      III. Pressupostos processuais

2.

 

2.  O Requerente dispõe de personalidade e capacidade tributárias, nos termos do preceituado nos artigos 15.º e 16.º, ambos da Lei Geral Tributária (LGT), e artigos 3.º e 8.º do Código do Procedimento e de Processo Tributário (CPPT).

3. O procedimento de revisão do ato tributário é meio próprio para reagir contra os atos tributários identificados, nos termos art. 78.º da LGT.

4. O Requerente é parte interessada no procedimento, tendo legitimidade para a respetiva interposição ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 18.º da LGT e no n.º 1 do artigo 9.º do CPPT.

  1. O requerimento de revisão do ato tributário é tempestivo, à luz do disposto no n.º 1 do art. 78.º da LGT, tendo dado entrada no serviço a 28 de novembro de 2023, ou seja, dentro do prazo de 4 anos contados da data de apresentação da declaração da contribuição (Modelo 57) a que se refere o n.º 1 do art. 6.º da Lei n.º 27-A/2020. de 24 de julho, facto que ocorre a 14 de dezembro de 2020
  2. A Requerente integra o grupo dos contribuintes que na aceção do artigo 68.º -B da LGT são considerados "contribuintes de elevada relevância económica e fiscal", cujo acompanhamento permanente e gestão tributária se encontram atribuídos à Unidade dos Grandes Contribuintes, conforme o elenco de entidades constante dos Anexos 1.2 e 3 do Despacho n.º 7048/2022. de 2 de junho.
  3. Nesses termos, atendendo ao disposto na alínea m) do n.º 2 do artigo 34.º do Anexo à Portaria n.º 155/2018, de 29 de meio, é competente para a decisão acerca do pedido de revisão o Diretor da Unidade dos Grande Contribuintes (UGC).

 

IV. Pedido e causa de pedir

 

  1. Constitui pretensão do Requerente a anulação integral do ato tributário de liquidação identificado, com fundamento em "injustiça grave ou notória”.
  2. Com efeito, de forma sumária e apesar da vasta exposição argumentativa, entende o Requerente que esta espécie tributária se encontra ferida de inconstitucionalidade material, nomeadamente, do principio da proibição da retroatividade de lei fiscal, do princípio da igualdade na dimensão da proibição do arbítrio, nas dimensões da proibição da criação de impostos desproporcionais e não genéricos e na dimensão de obrigatoriedade de criação de impostos que tenham como pressuposto a existência de capacidade contributiva.
  3. Nesse sentido, insta a AT a pronunciar-se sobre a legalidade constitucional do tributo e a anular o ato tributário. com todas as consequências legais, designadamente o reembolso da quantia locupletada acrescida de juros indemnizatórios

 

V. Análise do pedido de revisão

  1. Como referido, é pretensão do Requerente ver anulado o ato tributário identificado, com a natural e respetiva restituição do locupletado, com fundamento na suposta inconstitucionalidade material do tributo designado por «Adicional de Solidariedade sobre o Setor Bancário» (ASSB), introduzido no ordenamento jurídico-tributário pelo art. 18.º da Lei 27-A/2020, de 24 de julho, através das suas diversas normas e da sua Incompatibilidade com o sistema fiscal português e os princípios constitucionais que o norteiam.
  2. Faz-se notar que nenhum fundamento ou argumento avançado pelo Requerente respeita a ilegalidade por erro quanto aos pressupostos da aplicação das normas a que se refere o

regime do ASSB, nem de interpretação ilegal pelos serviços na sua aplicação, ainda que com fundamento cm inconstitucionalidade.

  1.  Disto isto, e a respeito da conformidade constitucional da ASSB ou das normas que integram o seu regime, ou de qualquer outra figura tributária diga-se, tem sido a posição da Autoridade Tributária Aduaneira (AT) não se pronunciar sobre o mérito e de facto, nenhuma outra posição poderá ser tomada.
  2. Com efeito, a AT como órgão da administração pública sob direção do Governo, não tem competências no foro de apreciação da conformidade constitucional de normas jurídicas, ou sequer da atividade legiferante, pelo que qualquer pronúncia decisória encontrar-se-ia ela mesma ferida de legalidade institucional.
  3. Resulta pois do Decreto-Lei n.º 118/2011 de 15 de dezembro, diploma que aprova a orgânica da Autoridade Tributária e Aduaneira, no seu art. 2.º, n.º 1, que «a AT tem por missão administrar os impostos, direitos aduaneiros e demais tributos que lhe sejam atribuídos, bem como exercer o controlo da fronteira externa da União Europeia e do território aduaneiro nacional, para fins fiscais, económicos e de proteção da sociedade de acordo com as políticas definidas pelo Governo e o Direito da União Europeia». [sic]
  4. O n.º 2 do mesmo preceito elenca as diversas atribuições ou tarefas que se configuram como administrativas incumbidas à T, e que no fundo aprofundam apenas o conceito de administração dos impostos referido no número anterior, e, naturalmente, nenhuma faz qualquer referência ao controlo legal ou constitucional de normas tributárias.
  5. Isto parque o controlo legai ou constitucional de normas tributarias não se insere no escopo da função administrativa.
  6. Essa função é sim assegurada pelo Tribunal Constitucional, conforme o disposto no art. 280.º da Constituição da República Portuguesa (CRP) que veda essa matéria em exclusivo e este este órgão, e claro, à própria Assembleia da República e ao Governo no exercício da sua função legislativa.
  7. Acrescente.se também que a Administração Pública, da qual a AT faz parte, não goza das mesmas prerrogativas dos tribunais, isto é, de desaplicar uma norma jurídica em caso concreto com fundamento na sua inconstitucionalidade e que no fundo será sempre uma suposição até pronúncia por parte do Tribunal Constitucional, conforme o disposto na alínea a) do n.º 1 do art. 280.º da CRP.
  8. É de facto uma questão relativamente pacífica na arquitetura juríico-administrativa nacional que os órgãos administrativos, pelo dever de obediência (ao Governo, como órgão dirigente máximo da administração publica) que lhes é imposto pela Lei Fundamental, não podem rejeitar a aplicação da lei com tal fundamento.
  9. […]
  10. […]
  11. Ora, não se encontrando prevista nas leis orgânicas da AT ou até do Ministério das Finanças a competência para o controlo legal ou constitucional de normas tributárias, nenhuma decisão nossa sobre o mérito do presente pedido poderá ser proferida sob pena de nulidade.

24. Deste modo, não obstante, possuirmos uma opinião vincada nesta matéria, qualquer pronúncia nossa. favorável ou não aos interesses da Requerente, pecará sempre por invalidade da mesma,

razão pela qual nos abstemos de quaisquer demais considerações para além das enunciadas,

25. Nestes termos. deverá ser assim rejeitada a pretensão formulada.

[…]

 

VII. Conclusão

Perante o exposto, atendendo às razoes de facto e direito descritas, propõe-se o indeferimento, conforme detalhe do "quadro-síntese" identificado no introito da informação com todas as consequências legais.

Mais se informa que deverá ser promovida a notificação do Reclamante, de acordo com as normas constantes nos artigos 35.º a 41.º, todos do CPPT, para querendo, no prazo de 30 (trinta) dias, recorrer hierarquicamente ao abrigo do disposto no artigo 80.º da LGT, conjugado com o artigo 66.º do CPPT, ou, no prazo de três meses, deduzir impugnação judicial, nos termos do 102.º também do CPPT, ou ainda, fazer uso da faculdade prevista no artigo 40.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro.

  1. A decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa foi notificada por carta registada datada de 9 de janeiro de 2024.
  2. A carta registada a que se refere a alínea antecedente é do seguinte teor:

 

Fica por este meio notificado de que no procedimento supra identificado, em 29-12-2023 foi proferido despacho de Indeferimento, pelo Diretor de Serviço Central, ao abrigo de Subdelegação de competências.

Fica ainda notificado de que deste despacho pode recorrer hierarquicamente no prazo de trinta dias, nos termos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 66.º do Código de Procedimento e Processo Tributário (CPPT) ou interpor impugnação judicial no prazo de três meses, nos termos do artigo 97.º e do artigo 102.º, ambos do Código de Procedimento e Processo Tributário (CPPT).

A contagem dos prazos referidos inicia-se no dia útil seguinte àquele em que a notificação se concretizou, nos termos do n.º 3 do artigo 39.º do CPPT.

Nos termos do artigo 77.º da Lei Geral Tributária (LCT), em anexo consta a fundamentação da decisão ora notificada.

  1. O pedido arbitral deu entrada em 9 de abril de 2024.

 

Factos não provados

 

Não existem quaisquer factos não provados relevantes para a decisão da causa.

 

O Tribunal formou a sua convicção quanto à factualidade provada com base nos documentos juntos à petição inicial e no processo administrativo junto pela Autoridade Tributária com a resposta.

 

Saneamento

 

 Competência do tribunal arbitral, idoneidade do meio processual e impugnabilidade do ato tributário impugnado

 

5. No requerimento de correção das imprecisões constantes da resposta, a Autoridade Tributária reconhece que o objeto mediato do pedido arbitral é o despacho de indeferimento do

 

pedido de revisão oficiosa n.º ...2023..., e não o despacho de indeferimento liminar do pedido de revisão oficiosa n.º...2023...- como erroneamente havia sido indicado na resposta - e, não obstante considerar que não ocorreu um indeferimento liminar, mantém o entendimento segundo o qual o tribunal arbitral é materialmente incompetente para conhecer do pedido, porquanto a Administração Tributária não se pronunciou, no âmbito do pedido de revisão oficiosa, sobre o mérito da pretensão. Acrescenta que o ato de autoliquidação é inimpugnável por não ter sido apresentada impugnação administrativa necessária no prazo de dois anos previsto para a reclamação graciosa.

 

Deve começar por dizer-se, analisando a primeira das questões colocadas, que o objeto imediato do pedido de pronúncia arbitral ou de impugnação judicial referente a um ato de liquidação de tributos, ainda que apresentado na sequência de um pedido de revisão oficiosa ou de reclamação graciosa, é esse próprio ato tributário, e não a decisão da Administração Tributária que tenha incidido sobre a impugnação administrativa (cfr. Serena Cabrita Neto/Carla Castelo Trindade, Contencioso Tributário, vol. II, Coimbra, 2017, pág. 434, e acórdãos proferidos nos Processos n.º 591/2017-T e 672/2021-T).

 

A anulação da decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa, no âmbito do processo arbitral, é meramente consequencial da declaração de ilegalidade do ato de liquidação, na medida em que não pode manter-se na ordem jurídica o ato de segundo grau que indefere ilegalmente o pedido de impugnação administrativa dirigido contra esse mesmo ato de liquidação.  

 

Como resulta do disposto no artigo 2.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, a competência dos tribunais arbitrais compreende, entre outras, a apreciação das pretensões referentes à “declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta”.

 

Visando o pedido arbitral a impugnação do ato de autoliquidação do Adicional de Solidariedade sobre o Sector Bancário, não pode subsistir dúvida quanto à competência do tribunal arbitral e a arbitralidade do litígio. 

 

6. Sustenta ainda a Requerida a incompetência do tribunal arbitral, tendo em consideração que a Administração não se pronunciou sobre o mérito da pretensão por não lhe ser possível analisar as questões de constitucionalidade normativa que vinham suscitadas no pedido.

 

A Autoridade Tributária, com tal alegação, poderá ter tido presente o disposto no artigo 97.º, n.º 1, alíneas d) e p), do CPPT, que estabelece a distinção, quanto ao meio processual aplicável, entre “os atos administrativos em matéria tributária que comportem a apreciação da legalidade do ato de liquidação” e outros “atos administrativos relativos a questões tributárias que não comportem apreciação da legalidade do ato de liquidação”, definindo, no primeiro caso,

 

 

como meio próprio, o processo de impugnação judicial, e, no segundo caso, a ação administrativa.

 

No entanto, como se deixou dito, o objeto imediato do pedido arbitral é o ato de autoliquidação do ASSB, que se torna suscetível de impugnação através do processo de pronúncia arbitral. E, por outro lado, ainda que assim não fosse, não obstante o vício de inconstitucionalidade ser imputável a uma norma ou a uma interpretação normativa, e nunca a um ato administrativo, o certo é que os atos administrativos fundados em norma legal ou regulamentar que ofendam diretamente a Constituição poderão ser objeto de controlo jurisdicional, nos termos do artigo 268.º, n.º 4, da Constituição, de modo que poderão ser anulados, em processo contencioso, por falta de base legal.

 

Assim se compreendendo que o CPA, no seu artigo 161.º, n.º 2, alínea d), declare como nulos (e não apenas como anuláveis) os “atos que ofendam o conteúdo essencial de um direito fundamental” (sobre estes aspetos, Carlos Blanco Morais, Justiça Constitucional, Tomo I, 2.ª edição, Coimbra, pág. 515).

 

Em todo o caso, o serviço da Administração Tributária, ao consignar, como se depreende do ponto 23 da informação que serviu de base ao despacho de indeferimento da revisão oficiosa, que não dispõe de competência para apreciar as questões de constitucionalidade e não pode pronunciar-se sobre o mérito do pedido, está justamente a tomar posição sobre a pretensão deduzida pelo sujeito passivo, julgando improcedente o pedido de revisão oficiosa com esse mesmo fundamento.

 

Não há, por conseguinte, motivo para considerar que o meio processual de impugnação da liquidação e do indeferimento do pedido de revisão oficiosa não seja o idóneo para obter o efeito jurídico pretendido, e, por outro lado, que o tribunal arbitral não seja o competente para conhecer da impugnação. 

 

7. A Autoridade Tributária defende ainda a inimpugnabilidade do ato de autoliquidação por não ter sido apresentada impugnação administrativa necessária no prazo de dois anos previsto para a reclamação graciosa.

 

Em causa está a interpretação do disposto no artigo 2.º, n.º 1, alínea a), da Portaria 112-A/2011, de 22 de março, diploma que, em aplicação do artigo 4.º do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (RJAT), regulamenta o âmbito de vinculação da administração tributária aos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD. Nos termos dessa disposição, os serviços e organismos que integram a Administração Tributária vinculam-se à jurisdição arbitral no tocante a qualquer dos tipos de pretensões identificadas o n.º 1 do artigo 2.º desse Regime, com exceção das relativas à “declaração de ilegalidade de atos de autoliquidação que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário”.

 

 

No caso de erro na autoliquidação, o artigo 131.º especifica que a impugnação judicial “será obrigatoriamente precedida de reclamação graciosa dirigida ao órgão periférico regional da administração tributária, no prazo de dois anos a contar da apresentação da declaração”. Essa disposição, tem o sentido inequívoco de tornar exigível a prévia impugnação administrativa do ato tributário como condição de acesso à via jurisdicional, e constitui um requisito de impugnabilidade contenciosa.

 

Por outro lado, a exigência legal de uma impugnação administrativa necessária tem em vista obter, por via de um procedimento de segundo grau, a reapreciação da legalidade do ato impugnado, permitindo que a Administração possa ainda tomar uma posição definitiva sobre a questão antes de o interessado poder suscitar um litígio judicial.

 

O pedido de revisão oficiosa constitui igualmente um procedimento de segundo grau, que tem o mesmo efeito jurídico da reclamação graciosa necessária a que se refere o artigo 131.º do CPPT, na medida em que permite o reconhecimento pela Administração da existência de ilegalidade na prática do ato tributário, e que pode ser deduzido no mesmo prazo e desencadear, em idênticos termos, em caso de indeferimento, o recurso à via contenciosa.

 

Conferindo a lei ao interessado dois meios alternativos de reação administrativa contra o ato tributário, dentro do mesmo prazo e com idênticos efeitos de direito, nenhum motivo existe para que não possa estabelecer-se a equiparação entre esses meios para o efeito de sujeitar o litígio à arbitragem.

 

Tendo sido apresentado, no caso vertente, um pedido  revisão oficiosa contra ato de autoliquidação, e sendo esse um meio administrativo equiparável à reclamação graciosa, a questão está na limitação que a lei estabelece quanto aos prazos que resulta dos dois segmentos normativos do n.º 1 do artigo 78.º da LGT: o sujeito passivo, por sua iniciativa, pode solicitar a revisão dos atos tributários pela entidade que os praticou dentro do prazo de reclamação graciosa e com fundamento em qualquer ilegalidade (n.º 1, primeira parte); a Administração Tributária, por sua iniciativa, pode proceder à revisão oficiosa no prazo de quatro anos após a liquidação, com fundamento em erro imputável aos serviços, possibilidade que se torna extensiva ao contribuinte por força do n.º 7 do artigo 78.º da LGT.

 

No caso em análise, o que se constata é que a Requerente impugna o ato de autoliquidação do ASSB, referente ao período de tributação de 2020, procedeu ao pagamento do imposto devido em 15 de dezembro de 2020, e apresentou um pedido de revisão oficiosa contra esse ato tributário em 28 de novembro de 2023, e, fê-lo, portanto, para além do prazo de dois anos de que dispunha para interpor a reclamação graciosa. E ainda que se atribua ao pedido de revisão oficiosa o mesmo efeito jurídico da reclamação graciosa, essa equivalência apenas pode ser reconhecida quando o pedido de revisão oficiosa tenha sido apresentado dentro do prazo previsto para aquela forma de impugnação administrativa, isto é, dentro do prazo de dois anos (cfr., neste sentido, o acórdão proferido no Processo n.º 778/2023-T).

 

 

 Sendo assim, o pedido de revisão oficiosa foi apresentado intempestivamente, para efeito de poder ser considerado como correspondendo à impugnação administrativa a que se refere o artigo 131.º do CPPT.

 

A questão carece, no entanto, de ser analisada a partir de um outro prisma.

 

Como resulta da matéria dada como assente, a informação dos serviços ...-AIR3/2023, que obteve a concordância do Diretor do Serviço Central, considerou o requerimento de revisão do ato tributário como tempestivo, à luz do disposto no n.º 1 do artigo 78.º da LGT, por ter dado entrada no serviço em 28 de novembro de 2023, ou seja, dentro do prazo de 4 anos contados da data de apresentação da declaração da contribuição Modelo 57 (alínea G) da matéria de facto).

 

Por outro lado, a decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa foi notificada por carta registada na qual se refere que o interessado pode recorrer hierarquicamente da decisão no prazo de trinta dias, nos termos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 66.º do CPPT, ou interpor impugnação judicial no prazo de três meses, nos termos dos artigos 97.º   e 102.º do mesmo Código (alínea I) da matéria de facto).

 

Ou seja, a Autoridade Tributária, no procedimento administrativo, não só considerou o pedido de revisão oficiosa como tempestivo (sendo este um meio alternativo da reclamação graciosa para efeitos do disposto no artigo 131.º do CPPT), como informou a Requerente que da decisão de indeferimento poderia interpor recurso hierárquico ou impugnação judicial.

 

Deste modo, a Autoridade Tributária induziu em erro o interessado, levando-o a utilizar um meio judicial quando havia ainda lugar a uma impugnação administrativa necessária, e, nesse sentido, não é oponível à Requerente a exigência de uma prévia impugnação administrativa, como motivo da inimpugnabilidade do ato tributário, quando foram os próprios serviços da Administração que informaram o administrado de que o meio próprio de reação, no caso, seria (além do recurso hierárquico) a impugnação judicial

 

O princípio da inoponibilidade dos erros contidos na notificação resulta do disposto no artigo 58.º, n.º 3, alínea b), do CPTA, que prevê a não exigibilidade da tempestiva apresentação da petição de impugnação judicial quando a Administração tenha induzido em erro o interessado, bem como do artigo 60.º, n.º 4, desse diploma, que torna inoponíveis aos interessados eventuais erros contidos na notificação, e, designadamente quando o erro tenha levado o interessado a utilizar um meio judicial quando havia ainda lugar a uma impugnação administrativa necessária (cfr. neste sentido, Mário Aroso de Almeida/Carlos Fernandes Cadilha, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 5.ª edição, Coimbra, pág. 447),

 

A regra da inoponobilidade constitui, por outro lado, o corolário do princípio constante do artigo 11.º, n.º 2, do CPA, segundo o qual “a Administração Pública é responsável pelas informações prestadas por escrito aos particulares, ainda que não obrigatórias”. E o artigo 114.º,

 

n.º 4, do CPA estabelece, em consonância, que o reconhecimento jurisdicional da existência de erro ou omissão na indicação do meio de impugnação administrativa a utilizar contra o ato notificado não prejudica que o interessado possa utilizar o meio de impugnação adequado, ainda que se encontre já esgotado o respetivo prazo.

 

Resta referir que os mecanismos de renovação da instância a que se referem os artigos 60.º. n.º 4, do CPTA e 114.º, n.º 4, do CPA não são aplicáveis no âmbito do processo arbitral, visto que o contribuinte não pode deixar, sob pena de intempestividade, de apresentar o pedido de pronúncia arbitral dentro do prazo de 90 dias contados a partir dos factos previstos nos n.ºs 1 e 2 do artigo 102.º do CPPT (artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAT), sendo inviável que o interessado fosse admitido a usar o meio de impugnação administrativa necessária no prazo de dois anos já na pendência do processo arbitral.

 

Havendo de concluir-se, por ser essa também a solução que tutela o princípio da proteção da confiança e da boa-fé, que o requisito procedimental do artigo 131.º, n.º 1, do CPPT se encontra satisfeito mediante a interposição do pedido de revisão oficiosa no prazo de quatro após a liquidação, nos termos das disposições conjugadas dos n.ºs 1 e 4 do artigo 78.º da LGT.

 

Por conseguinte, as exceções suscitadas pela Requerida mostram-se ser improcedentes. 

 

Matéria de direito

 

Regime jurídico do Adicional de Solidariedade sobre o Sector Bancário

 

8. O adicional de solidariedade sobre o setor bancário (ASSB) foi criado pelo artigo 18.º da Lei n.º 27-A/ 2020, de 24 de julho, que altera a Lei do Orçamento do Estado para 2020 (Lei n.º 2/2020, de 31 de março) e cujo regime jurídico consta do Anexo VI a essa Lei.

O ASSB tem por objetivo reforçar os mecanismos de financiamento do sistema de segurança social, como forma de compensação pela isenção de imposto sobre o valor acrescentado (IVA) aplicável à generalidade dos serviços e operações financeiras, aproximando a carga fiscal suportada pelo setor financeiro à que onera os demais setores (artigo 1.º, n.º 2) e tendo como sujeitos passivos as instituições de crédito com sede principal e efetiva da administração situada em território português, as filiais, em Portugal, de instituições de crédito que não tenham a sua sede principal e efetiva da administração em território português e as sucursais em Portugal de instituições de crédito com sede principal e efetiva fora do território português (artigo 2.º, n.º 1).

O ASSB tem como âmbito de incidência objetiva o passivo apurado e aprovado pelos sujeitos passivos e o valor nocional dos instrumentos financeiros derivados fora do balanço apurado pelos sujeitos passivos, com as especificações constantes do artigo 3.º

O artigo 4.º do Anexo VI da Lei n.º 27-A/2020 refere-se à quantificação da base de incidência, definindo, no seu n.º 1, como passivo o “conjunto dos elementos reconhecidos em balanço que, independentemente da sua forma ou modalidade, representem uma dívida para com terceiros”, com as exceções constantes das diversas alíneas desse número, e  como instrumento financeiro derivado o que seja qualificado como tal pelas normas de contabilidade aplicáveis, com exceção dos instrumentos financeiros derivados de cobertura ou cujas posições em risco se compensem mutuamente (artigo 4.º, n.ºs 1, 2 e 3). O n.º 4 desse artigo 4.º esclarece ainda que [a] base de incidência apurada nos termos do artigo 3.º e dos números anteriores é calculada por referência à média anual dos saldos finais de cada mês, que tenham correspondência nas contas anuais do próprio ano a que respeita o adicional, tal como aprovadas no ano seguinte.

Os artigos 5.º, 6.º. 7.º e 8.º referem-se, respetivamente, às taxas aplicáveis à base de incidência e aos procedimentos de liquidação e cobrança, e o artigo 9.º, sob a epígrafe “Consignação da Receita”, declara que a receita do adicional de solidariedade sobre o setor bancário constitui receita geral do Estado, sendo integralmente consignado ao Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social

 

Resta referir que a Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 33/XIV, que originou a Lei n.º 27-A/2020, em consonância com a Resolução do Conselho de Ministros n.º 41/2020, de 6 de junho de 2020, limita-se a assinalar que “[é] igualmente criado um adicional de solidariedade sobre o setor bancário, cuja receita é adstrita a contribuir para suportar os custos da resposta pública à atual crise, através da sua consignação ao Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social.

Qualificação jurídica do Adicional de Solidariedade sobre o Sector Bancário

9. Analisado, em traços gerais, o regime jurídico do Adicional de Solidariedade sobre o Sector Bancário, cabe ainda uma referência preliminar quanto à qualificação jurídica que lhe poderá ser atribuída.

A LGT, aprovada em 1998, no seu artigo 3.º, passou a incluir entre os diversos tipos de tributos, os impostos e outras espécies criadas por lei, designadamente as taxas e as contribuições financeiras a favor das entidades públicas, definindo, em geral, os pressupostos desses diversos tipos de tributos no subsequente artigo 4.º.

 

Aí se explicita que “os impostos assentam essencialmente na capacidade contributiva, revelada, nos termos da lei, através do rendimento ou da sua utilização e do património” (n.º 1), e as taxas assentam na prestação concreta de um serviço público, na utilização de um bem do domínio público ou na remoção de um obstáculo jurídico ao comportamento dos particulares” (n.º 2). No que se refere às contribuições especiais, o n.º 3 desse artigo apenas especifica que “[a]s contribuições especiais que assentam na obtenção pelo sujeito passivo de benefícios ou aumentos de valor dos seus bens em resultado de obras públicas ou da criação ou

 

 

ampliação de serviços públicos ou no especial desgaste de bens públicos ocasionados pelo exercício de uma atividade são consideradas impostos”.   

 

Em tese geral, o imposto constitui uma “prestação pecuniária, coativa e unilateral, exigida por uma entidade pública com o propósito de angariação de receita”, ao passo que a taxa se caracteriza como “prestação pecuniária e coativa, exigida por uma entidade pública, em contrapartida de prestação administrativa efetivamente provocada ou aproveitada pelo sujeito passivo”, distinguindo-se essas duas espécies de tributos pelo seu carácter de unilateralidade ou bilateralidade (cfr., na linha de outros Autores, Sérgio Vasques, Manual de Direito Fiscal, Coimbra, 2015, págs. 214 e 240).

 

Por seu lado, a constitucionalização das contribuições financeiras resultou da alteração introduzida no artigo 165.º, n.º 1, alínea i), da Lei Fundamental, pela revisão constitucional de 1997, que autonomizou as contribuições financeiras a favor das entidades públicas como uma terceira categoria de tributos.

 

A doutrina tem caracterizado as contribuições financeiras como um tertium genus de receitas fiscais, que poderão ser qualificadas como taxas coletivas, na medida em que visam retribuir os serviços prestados por uma entidade púbica a um certo conjunto ou categoria de pessoas. Como referem Gomes Canotilho/Vital Moreira, “a diferença essencial entre os impostos e estas contribuições bilaterais é que aqueles visam financiar as despesas públicas em geral, não podendo, em princípio, ser consignados a certos serviços públicos ou a certas despesas, enquanto que as segundas, tal como as taxas em sentido estrito, visam financiar certos serviços públicos  e certas despesas públicas (responsáveis pelas prestações públicas de que as contribuições são contrapartida), aos quais ficam consignadas, não podendo, portanto, ser desviadas para outros serviços ou despesas” (Constituição da República Portuguesa Anotada, I vol., 4ª edição, Coimbra, pág. 1095).

 

Neste sentido, as contribuições financeiras são tributos com uma estrutura paracomutativa, dirigidos à compensação de prestações presumivelmente provocadas ou aproveitadas pelos contribuintes, distinguindo-se das taxas que são tributos rigorosamente comutativos e que se dirigem à compensação de prestações efetivas (Sérgio Vasques, ob. cit., pág. 287).

 

Trata-se, neste caso, de tributos de natureza bilateral ancorados numa lógica grupal ou de equivalência de grupo, por oposição ao que sucede com a figura das taxas, que se alicerça num princípio de equivalência estrita ou individual, e que, nessa medida, são uma categoria de tributo cujo facto tributário se constitui em função de um nexo bilateral derivado para o qual influem os sujeitos passivos do grupo a que pertencem (cfr. Filipe de Vasconcelos Fernandes, O (Imposto) Adicional de Solidariedade sobre o Sector Bancário, AAFDL Editora, Lisboa, 2020, pág. 86-87 e nota 132). E que dependem, do mesmo modo, do preenchimento de três diferentes requisitos: a homogeneidade do grupo, que pressupõe uma distinção face à carga impositiva geral que incide sobre a generalidade dos contribuintes, a

 

responsabilidade de grupo, que implica uma relação específica entre o cada grupo homogéneo e certas necessidades de ordem financeira, e a utilidade de grupo, que tem por base o facto de estes tributos assentaram num princípio de equivalência de grupo, de forma a que a receita é utilizada no interesse de todo o grupo, e não especificamente de um contribuinte individual (idem, págs. 87-90).

Como se deixou dito, o ASSB tem por objetivo reforçar os mecanismos de financiamento do sistema de segurança social, como forma de compensação pela isenção de imposto sobre o valor acrescentado (IVA) aplicável à generalidade dos serviços e operações financeiras e constitui receita geral do Estado que é integralmente consignada ao Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social.

E, assim, ao contrário do que sucede com a Contribuição sobre o Sector Bancário (CSB), que foi consensualmente caracterizada como uma contribuição financeira (cfr., por último o acórdão do STA de 25 de janeiro de 2023, Processo n.º 01622/20, e a jurisprudência nele citada), não pode ser atribuída essa mesma natureza ao ASSB, na medida em que não existe conexão entre os objetivos que presidem à sua criação e uma qualquer responsabilidade acrescida do setor bancário, como também não há uma relação específica de proximidade entre o grupo de sujeitos passivos e ónus de custear o serviço público de segurança social, nem subsiste qualquer benefício para o grupo por efeito da carga fiscal com que é diferenciadamente onerado. E, nesses termos, não se verificam os requisitos típicos de homogeneidade, responsabilidade e utilidade de grupo que possam justificar a caracterização do ASSB como contribuição financeira (idem, págs. 91-96).

E, por maioria de razão, está excluído que o ASSB possa integrar o conceito de taxa, uma vez que não estão em causa qualquer dos pressupostos enumerados no artigo 4.º, n.º 2, da LGT que permitam evidenciar o carácter de bilateralidade do tributo.

Em face a todo o exposto, o ASSB constitui um imposto especial sobre o sector bancário, que, não obstante apresentar um âmbito de incidência semelhante à Contribuição sobre o Sector Bancário (CSB), não se limita a estabelecer uma nova taxa sobre a matéria coletável dessa contribuição, nem um novo imposto sobre a coleta, e, nesse sentido, não corresponde a um adicional ou a um adicionamento, mas a um imposto autónomo (sobre o conceito de adicional e de adicionamento, cfr. Casalta Nabais, Direito Fiscal, 11.ª edição, Coimbra, pág. 79; no sentido da qualificação do ASSB como imposto, Filipe de Vasconcelos Fernandes, ob. cit., pág. 92, e a decisão arbitral proferida no Processo n.º 504/2021-T).

 

Inconstitucionalidade por violação do princípio da proibição da retroatividade da lei fiscal

 

10. A Requerente começa por suscitar a inconstitucionalidade do regime do Adicional de Solidariedade sobre o Sector Bancário por violação do princípio da proibição da retroatividade da lei fiscal, em relação ao imposto que se torna devido em 2020, por considerar que, por efeito da norma transitória do artigo 21.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 27-A/2020, de 24 de julho, o adicional é calculado, nesse caso, por referência à média semestral dos saldos finais de cada mês que tenham correspondência nas contas relativas ao primeiro semestre de 2020, e, sendo assim, o facto gerador do pagamento do imposto verifica-se em momento anterior à entrada em vigor da lei, que ocorreu no dia seguinte à sua publicação.

 

A Autoridade Tributária contrapõe que, nos termos dos artigos 3.º e 4.º do Anexo VI da Lei n.º 27-A/2020, a base de incidência do ASSB respeitante ao primeiro semestre de 2020 corresponde ao “passivo apurado e aprovado” pelo que o facto tributário se objetiva na ordem jurídica com o apuramento e aprovação das contas, e necessariamente em momento posterior à entrada em vigor da Lei n.º 27-A/2020, de 24 de julho, não se verificando a alegada violação do princípio proibição da retroatividade da lei fiscal.

 

É esta a questão que cabe apreciar.

 

Na revisão constitucional de 1997, o legislador constituinte consagrou, no artigo 103.º, n.º 3, a regra da proibição da retroatividade da lei fiscal desfavorável, que já poderia considerar-se como uma decorrência do princípio da proteção da confiança dos cidadãos inscrito no Estado de Direito. Com essa alteração, a Lei Fundamental pretendeu expressar uma regra absoluta de definição do âmbito de validade temporal das leis que criem ou agravem impostos, tornando constitucionalmente ilícito o imposto que produza efeitos retroativos.

 

O Tribunal Constitucional tem vindo a seguir o entendimento de que esta proibição da retroatividade, no domínio da lei fiscal, apenas se dirige à retroatividade autêntica, abrangendo apenas os casos em que o facto tributário que a lei nova pretende regular já tenha produzido todos os seus efeitos ao abrigo da lei antiga, excluindo do seu âmbito aplicativo as situações de retrospetividade ou de retroatividade imprópria, ou seja, aquelas situações em que a lei é aplicada a factos passados mas cujos efeitos ainda perduram no presente, como sucede quando as normas fiscais que produziram um agravamento da posição fiscal dos contribuintes em relação a factos tributários que não ocorreram totalmente no domínio da lei antiga e continuam a formar-se, ainda no decurso do mesmo ano fiscal, na vigência da nova lei (cfr, por exemplo, os acórdãos n.ºs 128/2009, 85/2010 e 399/2010).

 

Revertendo à situação do caso, deve começar por dizer-se que a CSB e o ASSB, embora possuam uma estrutura de incidência similar, não são coincidentes quanto ao método de quantificação da base de incidência quando esteja em causa a liquidação do ASSB devido em 2020. 

Tal como prevê para a CSB o artigo 3.º, alínea a), da Lei n.º 55-A/2010, de 31 de dezembro, o ASSB, nos termos da disposição homóloga do Anexo VI à Lei n.º 27-A/2020, igualmente incide sobre o “passivo apurado e aprovado pelos sujeitos passivos”, estatuindo o artigo 4.º, n.º 4, quanto à quantificação da base de incidência, que “a base de incidência apurada nos termos do artigo 3.º e dos números anteriores é calculada por referência à média anual dos saldos finais de cada mês, que tenham correspondência nas contas anuais do próprio ano a que respeita o adicional, tal como aprovadas no ano seguinte”.

No entanto, a norma transitória do artigo 21.º da mesma Lei, determina, na sua alínea a), que, no caso do adicional de solidariedade devido em 2020, “a base de incidência apurada nos termos dos artigos 3.º e 4.º do regime é calculada por referência à média semestral dos saldos finais de cada mês, que tenham correspondência nas contas relativas ao primeiro semestre de 2020”.

O acórdão do STA de 19 de junho de 2019 (Processo n.º 023/40/13), analisando a CSB aplicada ao ano de 2011, à luz da referida disposição do artigo 3.º, alínea a), da Lei n.º 55-A/2010, afastou a violação do princípio da proibição da retroatividade dos impostos, com base na seguinte argumentação:

 

O facto tributário correspondente à CSB do ano de 2011 (-) é constituído pelos passivos apurados e aprovados pelo sujeito passivo (deduzidos dos fundos próprios de base (Tier 1), dos complementares (Tier 2) e dos depósitos abrangidos do Fundo de Garantia de Depósitos) no próprio ano em que é devida a contribuição (artigo 3° do regime da CSB, e artigo 6.° da Portaria n° 121/2011, de 30 de março). Ou seja, em 2011. Daí que (…) o facto tributário só tenha emergido na ordem jurídica com a aprovação do passivo e no ano em que a mesma ocorreu (embora respeitando ao ano económico anterior ao ano da aprovação), sendo que, para além de não se configurar, nesses termos, tributação assente em facto sucessivo, também a própria contribuição se objetiva apenas com o apuramento e aprovação do respetivo passivo e na medida deste (-).

O facto tributário assim configurado verificou-se após o início da vigência do regime da CSB (1 de janeiro de 2011). E como se salienta na sentença, o momento relevante a considerar é o da aprovação das contas e não o do encerramento do exercício, sendo que nas instruções constantes da declaração modelo 26 (cfr. o anexo à Portaria) constava igualmente a indicação de que «[a] base de incidência apurada é sempre calculada por referência à média anual dos saldos finais de cada mês, que tenham correspondência nas contas aprovadas no próprio ano em que é devida a contribuição.

Conclui o acórdão, neste condicionalismo, que não há aplicação da lei nova a factos tributários integralmente verificados ou cujos efeitos estivessem integralmente produzidos e verificados no domínio da lei antiga, ou seja, antes da entrada em vigor da lei nova.

Todavia, um tal entendimento não é transponível para o adicional de solidariedade devido em 2020, segundo a regulamentação que consta da citada norma transitória do artigo 21.º da Lei n.º 27-A/2020, que, como se viu, prevê que a base de incidência seja calculada por referência à média semestral dos saldos finais de cada mês, que tenham correspondência nas contas relativas ao primeiro semestre de 2020.

O adicional é calculado com base numa média relativa ao primeiro semestre de 2020, e embora deva haver correspondência entre os saldos de cada mês, nesse semestre, e os saldos que constem das contas anuais relativas ao mesmo semestre, o certo é que a eventual divergência entre o saldo médio que serviu de base à liquidação do imposto e os saldos mensais aprovados nas contas anuais, apenas poderá justificar a correção aritmética, por parte da Autoridade Tributária, com base na verificação de erros ou omissões que determinem a exigência de um valor do adicional superior ao liquidado, tal como prevê o artigo 6.º, n.º 2, do Anexo VI à Lei n.º 27-A/2020.

Ou seja, a exigida correspondência entre o saldo médio relativo ao primeiro semestre e os saldos finais de cada mês considerados nas contas anuais não salvaguarda a retroatividade do imposto, visto que a aprovação das contas referentes a 2020, incluindo as do primeiro semestre, em atenção ao disposto no artigo 65.º, n.ºs 1 e 5, do Código das Sociedades Comerciais, só pode ocorrer após o encerramento de cada exercício anual, e, portanto, após o período de tributação a que respeita o imposto (cfr. Pinto Furtado, Curso de Direito das Sociedades, 4.ª edição, Coimbra, pág. 481).

Tendo em consideração que, no que se refere ao adicional devido em 2020, o sujeito passivo deve efetuar a liquidação do imposto até 15 de dezembro de 2020, não será possível ao contribuinte certificar, através das contas anuais, a média de saldo que serviu de base à liquidação, e, sendo assim, não há qualquer dúvida que o facto tributário que origina o imposto é o mero apuramento contabilístico da média dos saldos do passivo relativamente ao primeiro semestre.

  Como explicita, a decisão arbitral proferida no Processo n.º 504/2021-T, à data da liquidação do imposto relativo ao primeiro semestre de 2020, ainda se não encontra encerrado o exercício nem aprovadas as contas, pelo que o facto tributário que a norma erige para efeito de liquidação não é a aprovação das contas, mas o facto material da verificação de existência do passivo através dos dados inscritos na contabilidade, e que necessariamente ocorre ainda antes da entrada em vigor da Lei n.º 27-A/2020.

A questão suscitada no presente processo não tem, pois, qualquer correspondência com a que foi analisada no citado acórdão do STA de 19 de junho de 2019 relativamente à CSB, em que se considerou como momento relevante para a exigência do tributo o da aprovação das contas, tendo em consideração que, nesse caso, a base de incidência apurada é sempre calculada por referência à média anual dos saldos finais de cada mês, que tenham correspondência nas contas aprovadas no próprio ano em que é devida a contribuição.

Por conseguinte, a norma transitória do artigo 21.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 27-A/2020, de 24 de julho, é inconstitucional, por violação do princípio da proibição da retroatividade dos impostos, consagrado no artigo 103.º, n.º 3, da Constituição, pelo que a liquidação do adicional de solidariedade sobre o sector bancário, relativa ao ano de 2020, não tem base legal.

Violação do princípio da igualdade tributária e da capacidade contributiva.

 

 

11. A Requerente assaca ao regime do Adicional de Solidariedade sobre o Sector Bancário a violação do princípio da igualdade tributária e da capacidade contributiva, na medida em que cria uma imposição injustificada sobre um grupo seletivo de contribuintes e  um tratamento discriminatório entre sujeitos passivos colocados na mesma situação, em face de uma necessidade de financiamento geral.

 

Para dar resposta a estas questões deve começar por efetuar-se, ainda que em termos sucintos, a caracterização dos princípios constitucionais da igualdade fiscal e da capacidade contributiva.

 

Conforme refere Casalta Nabais, o princípio da igualdade fiscal tem ínsita sobretudo «a ideia de generalidade ou universalidade, nos termos da qual todos os cidadãos se encontram adstritos ao cumprimento do dever de pagar impostos, e da uniformidade, a exigir que semelhante dever seja aferido por um mesmo critério - o critério da capacidade contributiva. Este implica assim igual imposto para os que dispõem de igual capacidade contributiva (igualdade horizontal) e diferente imposto (em termos qualitativos ou quantitativos) para os que dispõem de diferente capacidade contributiva na proporção desta diferença (igualdade vertical)» (Direito Fiscal, 11ª edição, Coimbra, 2021, págs. 154-155).

Configurando-se o princípio geral da igualdade como uma igualdade material, o princípio da capacidade contributiva – segundo o mesmo autor - enquanto tertium comparationis da igualdade no domínio dos impostos, não carece de um específico e direto preceito constitucional. O seu fundamento constitucional é o princípio da igualdade articulado com os demais princípios e preceitos da respetiva “constituição fiscal” e, em especial, aqueles que decorrem já dos princípios estruturantes do sistema fiscal que constam dos artigos 103.º e 104.º da Constituição (ob. cit., pág. 155).

Como pressuposto e critério da tributação, o princípio da capacidade contributiva – dentro da mesma linha de entendimento - «afasta o legislador fiscal do arbítrio, obrigando-o a que na seleção e articulação dos factos tributários, se atenha a revelações da capacidade contributiva, ou seja, erija em objeto e matéria coletável de cada imposto um determinado pressuposto económico que seja manifestação dessa capacidade e esteja presente nas diversas hipóteses legais do respetivo imposto» (ob. cit., pág. 157).

Também o Tribunal Constitucional tem analisado o princípio da igualdade fiscal sob o prisma da capacidade contributiva, como se pode constatar designadamente no acórdão n.º 142/2004, onde se consigna que «[o] princípio da capacidade contributiva exprime e concretiza o princípio da igualdade fiscal ou tributária na sua vertente de uniformidade – o dever de todos pagarem impostos segundo o mesmo critério – preenchendo a capacidade contributiva o critério unitário da tributação».

O reconhecimento do princípio da capacidade contributiva como critério destinado a aferir da inadmissibilidade constitucional de certa ou certas soluções adotadas pelo legislador

 

fiscal, tem conduzido também à ideia, expressa por exemplo no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 348/97, de que a tributação conforme com o princípio da capacidade contributiva implicará «a existência e a manutenção de uma efetiva conexão entre a prestação tributária e o pressuposto económico selecionado para objeto do imposto, exigindo-se, por isso, um mínimo de coerência lógica das diversas hipóteses concretas de imposto previstas na lei com o correspondente objeto do mesmo».

O Tribunal Constitucional tem vindo, portanto, a afastar-se de um controlo meramente negativo da igualdade tributária, passando a adotar o princípio da capacidade contributiva como critério adequado à repartição dos impostos; mas não deixa de aceitar a proibição do arbítrio como um elemento adjuvante na verificação da validade constitucional das soluções normativas de âmbito fiscal, mormente quando estas sejam ditadas por considerações de política legislativa relacionadas com a racionalização do sistema.

Em suma, o princípio da igualdade tributária pode ser concretizado através de vertentes diversas: uma primeira, está na generalidade da lei de imposto, na sua aplicação a todos sem exceção; uma segunda, na uniformidade da lei de imposto, no tratar de modo igual os contribuintes que se encontrem em situações iguais e de modo diferente aqueles que se encontrem em situações diferentes, na medida da diferença, a aferir pela capacidade contributiva; uma última, está na proibição do arbítrio, no vedar a introdução de discriminações entre contribuintes que sejam desprovidas de fundamento racional (cfr. acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 306/2010 e n.º 695/2014).

            12. Como se deixou exposto, o Adicional de Solidariedade sobre o Setor Bancário tem por objetivo reforçar os mecanismos de financiamento do sistema de segurança social, como forma de compensação pela isenção de imposto sobre o valor acrescentado (IVA) aplicável à generalidade dos serviços e operações financeiras e incide sobre instituições de crédito sediadas em território português e filiais ou sucursais em Portugal de instituições de crédito com sede principal e efetiva fora do território português (artigos 1.º e 2.º).

 

Tem uma estrutura de incidência objetiva e subjetiva similar ao previsto para a Contribuição sobre o Sector Bancário (artigo 3.º), com a significativa diferença de a receita do Adicional de Solidariedade sobre o Setor Bancário constituir receita geral do Estado, consignada ao Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social (artigo 9.º).

 

Importa fazer notar, num primeiro momento, que, não obstante a similitude de incidência com a Contribuição sobre o Setor Bancário (CSB), o ASSB não pode ser entendido como uma tributação acessória ou adicional do CSB, nem constitui uma contribuição de estabilidade financeira.

 

A Contribuição sobre o Sector Bancário foi criada pelo artigo 141.º da Lei do Orçamento do Estado para 2011, entretanto alterada pela Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março, como uma

 

contribuição extraordinária, que constitui receita do Fundo de Resolução, criado mediante a alteração introduzida pelo Decreto-Lei n.º 31-A/2012, de 10 de fevereiro, ao Regime das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (artigo 153.º-F, alínea a)) e definido como pessoa coletiva de direito público, dotada de autonomia administrativa e financeira, que funciona junto do Banco de Portugal (artigo 153.º-B). O Fundo tem por objeto prestar apoio financeiro à aplicação de medidas de resolução adotadas pelo Banco de Portugal e desempenhar todas as demais funções que lhe sejam conferidas pela lei no âmbito da execução de tais medidas (artigo 153.º-C) e nele participam obrigatoriamente, entre outras entidades, as instituições de crédito com sede em Portugal (artigo 153.º-D).

 

O próprio Relatório do Orçamento de Estado para 2011 explica a génese da Contribuição sobre o Sector Bancário em termos suficientemente elucidativos quanto aos objetivos que se pretendiam atingir, aí se afirmando (pág. 73):

 

«A Proposta do Orçamento do Estado para 2011 procede ainda à criação de uma contribuição sobre o sector bancário na linha daquelas que foram já́ introduzidas noutros Estados Membros, com o propósito de aproximar a carga fiscal suportada pelo sector financeiro da que onera o resto da economia e de o fazer contribuir de forma mais intensa para o esforço de consolidação das contas públicas e de prevenção de riscos sistémicos, protegendo também, assim, os trabalhadores do sector e os mecanismos de segurança social.

A contribuição incide, assim, sobre as instituições de crédito com sede principal e efetiva da administração situada em território português, sobre as filiais de instituições de crédito que não tenham a sua sede principal e efetiva da administração em território português e sobre as sucursais, instaladas em território português, de instituições de crédito com sede principal e efetiva da administração em Estados terceiros».


          Face ao seu regime jurídico, a CSB tem por base uma contraprestação de natureza grupal, na medida em que constitui um preço público a pagar pelo conjunto dos regulados à respetiva entidade ou agência de regulação. Não se reconduz à taxa stricto sensu, visto que não incide sobre uma prestação concreta e individualizada que a Administração dirija aos respetivos sujeitos passivos, nem se caracteriza como um imposto, pois que não se verifica o requisito de unilateralidade: não tem como finalidade exclusiva a angariação de receita (não se destina a que «as instituições participantes concorram para os gastos da comunidade, em cumprimento de um qualquer dever de solidariedade»), antes se pretendendo que o sector financeiro contribua para a cobertura do risco sistémico que é inerente à sua atividade.

 

E a sua natureza não é afastada pela circunstância de as receitas provenientes da CSB serem consignadas ao Fundo de Resolução, porquanto o Fundo tem por objeto prestar apoio financeiro à aplicação de medidas pelo Banco de Portugal e visa a prevenção dos riscos sistémicos do sector bancário. Esse mesmo objetivo é assinalado na nota preambular da Portaria

 

 

nº 121/2011, de 30 de março, onde se refere que os elementos essenciais da CSB são definidos «em termos semelhantes aos de contribuições já introduzidas por outros Estados Membros da União Europeia, com o duplo propósito de reforçar o esforço fiscal feito pelo sector financeiro e de mitigar de modo mais eficaz os riscos sistémicos que lhe estão associados».

 

Como se concluiu no acórdão do STA de 19 de Junho de 2019 (Processo n.º 02340/13), a motivação legislativa constante dos diplomas que regularam a contribuição para o sector bancário e o Fundo de Resolução legitima a ilação de que a contribuição visou, em primeiro lugar e desde o início, atenuar as consequências resultantes das intervenções públicas no sector financeiro, face à situação de crise financeira então desencadeada no âmbito desse mesmo sector, reconduzindo-se a um instrumento de apoio na prevenção dos inerentes riscos do sistema, não se destinando a colmatar necessidades genéricas de financiamento do Estado.

 

Trata-se, nestes termos, de um tributo que, interessando a um grupo homogéneo de destinatários e visando prevenir riscos a este grupo associados, se efetiva na compensação de eventual intervenção pública na resolução de dificuldades financeiras das entidades desse sector, assumindo assim a natureza jurídica de contribuição financeira (cfr., neste preciso sentido, a decisão arbitral proferida no Processo n.º 706/2018-T).

 

Contrariamente, o ASSB é um verdadeiro imposto que constitui receita geral do Estado e se encontra consignada ao Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social, e, embora destinado a fazer face de modo indistinto às necessidades de financiamento da segurança social, se carateriza como um imposto sectorial na medida em que incide exclusivamente sobre o sector financeiro.

 

13. A Resolução do Conselho de Ministros n.º 41/2020, de 6 de junho de 2020, que, na sequência da pandemia causada pelo vírus SARS-CoV-2, aprovou o Programa de Estabilização Económica e Social, refere-se no ponto 4.3.5 à criação de um adicional de solidariedade sobre o setor bancário, “cuja receita é adstrita a contribuir para suportar os custos da resposta pública à atual crise”. Esse mesmo propósito é mencionado na Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 33/XIV, que originou a Lei n.º 27-A/2020, e a que, num momento anterior, já se fez referência.

 

O artigo 1.º, n.º 2, do Regime do ASSB, já transcrito, refere ainda que o tributo tem por objetivo reforçar os mecanismos de financiamento do sistema de segurança social, como forma de compensação pela isenção de imposto sobre o valor acrescentado (IVA) aplicável à generalidade dos serviços e operações financeiras, aproximando a carga fiscal suportada pelo setor financeiro à que onera os demais setores.

 

No entanto, o próprio Relatório da Unidade Técnica de Apoio Orçamental (UTAO), incidente sobre a proposta de alteração da lei orçamental para 2020 (Relatório n.º 13/2020), consigna que “a iniciativa legislativa não tem justificação no contexto COVID-19, antes sendo

 

apresentada pelo Governo para contribuir, de modo permanente, para a diversificação das fontes de financiamento das pensões pagas pelo sistema previdencial da Segurança Social Pública” e

acrescenta que, “do ponto de vista técnico, não se entende a necessidade de justificar publicamente a criação do imposto como sendo uma compensação por o sector das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras estar isento de IVA nas transmissões efetuadas”, quando “deveria também dizer-se que as operações deste sector são tributadas por uma miríade de taxas do imposto do selo”.  

 

E, com efeito, dificilmente se compreende a justificação fornecida pelo legislador quando pretende associar a sujeição das instituições de crédito ao ASSB à despesa fiscal decorrente da isenção aplicável a serviços e operações financeiras.

 

A isenção de IVA relativamente a operações bancárias e financeiras está expressamente prevista na Diretiva 2006/112/CE (artigo 135.º) e o artigo 9.º, n.º 27, do Código do IVA limita-se a efetuar a transposição dessa regra para o direito interno. E, por outro lado, o conteúdo das isenções não pode ser alterado pelos Estados-Membros, dado que estão em causa conceitos autónomos de direito europeu que têm por objetivo evitar divergências na aplicação do regime do IVA, devendo ainda ser objeto de uma interpretação restritiva, na medida em que constituem derrogações ao princípio geral segundo o qual o imposto sobre o valor acrescentado é cobrado sobre todas as prestações de serviços efetuadas a título oneroso por um sujeito passivo (cfr. acórdãos do TJUE, nos Processos n.ºs C-348/1987 e C-455/05).

 

Acresce que, como esclarece Clotilde Celorico Palma, “[a]s isenções em sede de IVA assumem uma natureza objetiva, ou seja, para efeitos da sua concessão releva essencialmente a natureza da atividade prosseguida e não a natureza jurídica da entidade que prossegue a atividade”. Além de que as isenções em IVA têm uma lógica diferente das isenções concedidas no âmbito dos impostos sobre o rendimento. Como refere a mesma Autora, “[a]o passo que nestes impostos, a isenção libera o beneficiário do pagamento do imposto, no IVA as situações de isenção clássica traduzem-se na não liquidação do imposto nas operações ativas por parte sujeito passivo beneficiário (o beneficiário paga imposto mas não liquida). Isto é, nas suas operações passivas (aquisições de bens e prestações de serviços) os sujeitos passivos de IVA não beneficiam de isenção” (Introdução sobre o Imposto sobre o Valor Acrescentado, Coimbra, 6.ª edição, págs. 172-174).

 

Na situação prevista no artigo 135.º da Diretiva IVA, como explica ainda Sérgio Vasques, trata-se de “isenções simples ou incompletas que não conferem direito à dedução do imposto suportado a montante, pelo que o sujeito passivo, não liquidando IVA imposto sobre a operação isenta, não deduz o imposto em que incorra nas aquisições destinadas à sua realização”. E, nesse sentido, “o sujeito passivo passa a ocupar posição idêntica à do consumidor final, suportando na sua esfera o imposto relativo às suas aquisições”, pelo que a isenção não representa um verdadeiro benefício para o sujeito passivo, como sucede com a generalidade das isenções de imposto, na medida em que acaba por suportar o peso do imposto

 

por via das suas aquisições, originando um imposto oculto pela incorporação do IVA incorrido a montante no preço dos bens e serviços prestados a terceiros (O Imposto sobre o Valor Acrescentado, Coimbra, 2015, págs. 312-313; em idêntico sentido, Angelina Tibúrcio, Código do IVA e RITI Notas e Comentários, Coimbra, 2014, pág. 160). 

 

Por outro lado, como refere o Autor há pouco citado, as isenções de IVA relativas a serviços financeiros são motivadas por razões de ordem técnica que respeitam à dificuldade em apurar o valor acrescentado inerente a essas operações e, em especial, no que se refere à determinação da matéria coletável e do montante do IVA dedutível (ob. cit., págs. 318-319, e ainda o acórdão do TJUE, no Processo n.º C-455/05, considerando 24.)

 

Num outro plano de análise, importa ainda reter que a isenção de IVA para serviços e operações financeiras tem como contraponto a sujeição das operações financeiras a imposto do selo, nos termos da verba 17 da Tabela Geral do Imposto do Selo, sendo sintomático, quanto ao nível de dependência entre os dois impostos, que o artigo 1.º, n.º 2, do Código do Imposto do Selo exclua do âmbito de incidência objetiva do imposto “as operações sujeitas a imposto sobre o valor acrescentado e dele não isentas”. Como assinala Saldanha Sanches, “o imposto do selo assume a sua vocação de tributar aquilo que não pode ser tributado de outra forma” e ao contribuinte assiste o direito de ser tributado da forma que melhor se adequa ao normal funcionamento da economia de mercado e ao princípio da tributação segundo a capacidade contributiva do sujeito passivo (Manual de Direito Fiscal, 3ª edição, Coimbra, pág. 435).

 

Em todo este contexto, não é possível determinar objetivamente o critério de diferenciação que conduziu o legislador a sujeitar as instituições de crédito a um imposto especial sobre o sector bancário, nem é possível discernir qual a sua real fundamentação.

 

Encontrando-se a medida legislativa descrita como sendo um tributo destinado a compensar a isenção de IVA de que beneficia o setor financeiro, não se compreende que, simultaneamente, sejam excluídas outras categorias de atividades que se encontram igualmente isentas e que poderão revelar idêntica ou superior capacidade contributiva. E não é tido em devida consideração, na aplicação da medida, que as isenções previstas na Diretiva, e transpostas para o direito interno pelo artigo 9.º do Código do IVA, são de carácter obrigatório, e, no que se refere aos serviços e operações financeiras previstos no artigo 135.º da Diretiva, essas isenções são motivadas pelas dificuldades práticas de apuramento do valor acrescentado e de aplicação do imposto, e não por qualquer propósito de favorecimento fiscal. O legislador desconsidera ainda que a isenção simples, que é aplicável ao caso, não confere o direito à dedução do imposto a montante, e não representa, por isso, uma efetiva vantagem para o sujeito passivo, que acaba por suportar a incidência do imposto através das suas aquisições. Além de que não se tem em linha de conta que essa isenção, no direito nacional, já é contrabalançada pelo imposto do selo, que abrange a generalidade das operações financeiras, tal como sucede, em geral, na legislação dos Estados Membros, em que as operações relativamente às quais se

 

 

afasta a aplicação da diretiva, são sujeitas a impostos especiais (cfr. Sérgio Vasques, O Imposto sobre o Valor Acrescentado, citado, pág. 317).

 

Em todo este condicionalismo, a criação do ASSB como um imposto especial incidente sobre o sector bancário, como forma de compensar a isenção de IVA, configura-se como uma diferenciação arbitrária na medida em que o critério utilizado não apresenta um mínimo de coerência nem se encontra materialmente justificado.

 

14. As condicionantes da criação do ASSB justifica ainda que se recoloque a questão sob o prisma da capacidade contributiva.

 

Como ressalta do disposto no artigo 4.º, n.º 1, da LGT, em linha com o artigo 104.º da Constituição, “os impostos assentam essencialmente na capacidade contributiva, revelada, nos termos da lei, através do rendimento ou da sua utilização e do património”, pelo que são esses os indicadores possíveis do critério de repartição dos impostos. Nesse mesmo sentido, Sérgio Vasques considera que, em razão do princípio da capacidade contributiva, “os impostos devem adequar-se à força económica do contribuinte e por isso o seu alcance mais elementar está na exigência de que o imposto incida sobre manifestações de riqueza e que todas as manifestações de riqueza lhe fiquem sujeitas”. E sublinha que, “para que o imposto corresponda à força económica de quem o paga, é forçoso que incida sobre realidades economicamente relevantes, realidades que se podem reconduzir sinteticamente ao rendimento, ao património e ao consumo” (Manual de Direito Fiscal, Coimbra, 2015, pág. 295).  

 

Como explicita Filipe de Vasconcelos Fernandes (ob. cit., págs. 107-109), o rendimento corresponde ao produto imputável, regularmente e durante um certo período, a uma fonte durável, designadamente ao trabalho (salários, comissões, etc.), ao património (rendas, juros, etc.) ou a uma combinação integrada de trabalho e património (lucros de uma exploração industrial ou comercial). Por outro lado, o rendimento pode corresponder, além do rendimento consumido, à diferença, num determinado período, entre o património final e inicial do contribuinte, compreendendo o rendimento não consumido ou aforrado, os bens adquiridos a título gratuito ou aleatório e as valorizações do ativo, na conceção de rendimento-acréscimo. Os impostos sobre o consumo tributam o rendimento através da sua manifestação em atos de despesa, ou seja, o rendimento propriamente gasto com a aquisição de bens ou serviços. Podem revestir a forma de impostos gerais (IVA) ou de impostos especiais (IEC), apresentando em comum a circunstância de onerarem a transmissão de bens ou serviços. Os impostos sobre o património incidem sobre o rendimento acumulado que, entretanto, foi transformado em valor patrimonial tributário, quer considerado estaticamente o património em si mesmo (IMI), quer numa perspetiva dinâmica, tributando-se o património apenas no momento da respetiva transmissão (IMT).

 

No caso do ASSB, como conclui o mesmo Autor, não está em causa qualquer modalidade de tributação do rendimento, mas tão só a sujeição a imposto de uma parte das

 

componentes do passivo. Do mesmo modo que não se trata da oneração de atos de despesa, que pudesse reconduzir-se a um imposto sobre atividades financeiras ou sobre transações financeiras. E, por outro lado, ainda que pudesse dizer-se, de um ponto de vista contabilístico e financeiro, que os elementos do passivo que são objeto de tributação por via do ASSB integram o balanço dos sujeitos passivos, não poderá entender-se que estamos aí perante modalidade de tributação do património.

 

A ausência de uma cabal correspondência entre o ASSB e um concreto índice de valoração de capacidade contributiva coloca em causa a viabilidade constitucional do imposto, na medida em que impossibilita o estabelecimento de qualquer tipo de relação causal entre o objeto da tributação que é imposto aos sujeitos passivos e um efetivo incremento de capacidade contributiva, sobretudo quando não está em causa uma contrapartida pela prevenção de riscos sistémicos em que as instituições de crédito possam estar envolvidas (como sucedia com a CSB), mas uma exclusiva medida de angariação de receita.

 

Como se refere no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 217/15, o princípio da capacidade contributiva assume um valor paramétrico fundamentalmente como condição da tributação, de molde a impedir que determinado imposto atinja uma riqueza ou rendimento que não existe, vedando a exação de uma capacidade de gastar que verdadeiramente não se verifica. Em idênticos termos, o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 142/2004 consigna que a capacidade contributiva preenche o critério unitário da tributação, entendendo-se esse critério como sendo aquele em que “a incidência e a repartição dos impostos se deverá fazer segundo a capacidade económica ou capacidade de gastar (-) de cada um e não segundo o que cada um eventualmente receba em bens ou serviços públicos (critério do benefício)”.

 

No caso do ASSB, não se denota qualquer relação entre a incidência real do imposto e os fatores que possam revelar uma maior capacidade contributiva, quando é certo, como se deixou dito, que o critério de repartição do imposto, na hipótese, corresponde a uma lógica de solidariedade assente no falso pressuposto de que as instituições de crédito poderão suportar um agravamento da carga fiscal porque se encontram isentas de IVA relativamente aos serviços financeiros que prestam.

Em conclusão:

A norma transitória do artigo 21.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 27-A/2020, de 24 de julho, é inconstitucional, na parte em que se refere ao cálculo do imposto relativo ao primeiro semestre de 2020, por violação do princípio da proibição da retroatividade dos impostos, consagrado no artigo 103.º, n.º 3, da Constituição.

As normas conjugadas dos artigos 1.º, n.º 2, 2.º e 3.º, n.º 1, alínea a), do Anexo VI à Lei n.º 27-A/2020, de 24 de julho, são inconstitucionais, por violação do princípio da igualdade, na dimensão da proibição do arbítrio, e por violação do princípio da capacidade contributiva, enquanto decorrência do princípio da igualdade tributária.

 

Resta acrescentar que, no mesmo sentido, no que concerne à violação do princípio da proibição da retroatividade dos impostos, se pronunciaram os acórdãos proferidos nos Processos n.ºs 598/2022-T e 324/2023-T, e, no que respeita à violação do princípio da igualdade e da capacidade contributiva, os acórdãos proferidos nos Processos n.ºs 598/2022-T, 674/2022-T, 324/2023-T, 21/2024-T, 492/2024-T e 522/2024-T. E, entretanto, o julgamento de inconstitucionalidade formulado no Processo n.º 598/2022-T foi confirmado, em recurso obrigatório, pelo acórdão do Tribunal Constitucional n.º 469/2024. O Tribunal Constitucional veio ainda a decidir no mesmo sentido no acórdão n.º 529/2024, também em recurso interposto de decisão arbitral proferida no CAAD.

Em consequência, o ato de autoliquidação de ASSB relativo ao período de tributação de 2020, bem como a decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa contra ele deduzida, são ilegais.

Vícios de conhecimento prejudicado

15. Face à solução a que se chega, fica prejudicado o conhecimento dos restantes vícios invocados.

           

Juros indemnizatórios

 

16. A Requerente pede ainda a condenação da Autoridade Tributária no reembolso do imposto indevidamente pago e no pagamento de juros indemnizatórios.

 

De harmonia com o disposto na alínea b) do artigo 24.º do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a Administração Tributária, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo, cabendo-lhe “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito”. O que está em sintonia com o preceituado no artigo 100.º da LGT, aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT.

 

Ainda nos termos do n.º 5 do artigo 24.º do RJAT “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previstos na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”, o que remete para o disposto nos artigos 43.º, n.º 1, e 61.º, n.º 5, de um e outro desses diplomas, implicando o pagamento de juros indemnizatórios desde a data do pagamento indevido do imposto até à data do processamento da respetiva nota de crédito.

 

Há assim lugar, na sequência de declaração de ilegalidade dos atos tributários de autoliquidação do ASSB ao pagamento de juros indemnizatórios, nos termos das citadas disposições dos artigos 43.º, n.º 1, da LGT e 61.º, n.º 5, do CPPT, desde a data do pagamento

 

 

indevido do imposto, à taxa dos juros legais, até à data do processamento da respetiva nota de crédito (artigos 35.º, n.º 10, e 43.º, n.º 4, da LGT).

 

No que se refere aos juros indemnizatórios, em face do disposto na alínea c) do n.º 3 do artigo 43.º da LGT, nos casos de pedido de revisão oficiosa, apenas são devidos depois de decorrido um ano após a iniciativa do contribuinte, e não desde a data do desembolso da quantia liquidada, constituindo esse o entendimento jurisprudencial corrente (cfr., entre outros, os acórdãos do STA de 18 de janeiro de 2017, Processo n.º 0890/16, e de 10 de maio de 2017, Processo n.º 01159/14).

 

No caso, o pedido de revisão oficiosa foi apresentado em 28 de novembro de 2023, pelo que são devidos juros indemnizatórios desde 29 de novembro de 2024, ou seja, a partir de um ano depois da apresentação do pedido de revisão oficiosa.

 

 

III – Decisão

Termos em que se decide:

 

a) Declarar inconstitucional a norma transitória do artigo 21.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 27-A/2020, de 24 de julho, na parte em que se refere ao cálculo do imposto relativo ao primeiro semestre de 2020, por violação do princípio da proibição da retroatividade dos impostos, consagrado no artigo 103.º, n.º 3, da Constituição;

b) Declarar inconstitucionais as normas conjugadas dos artigos 1.º, n.º 2, 2.º e 3.º, n.º 1, alínea a), do Anexo VI à Lei n.º 27-A/2020, de 24 de julho, por violação do princípio da igualdade, na dimensão da proibição do arbítrio, e por violação do princípio da capacidade contributiva;

c) Declarar ilegal e anular o ato tributário de autoliquidação do Adicional de Solidariedade sobre o Sector Bancário referente ao período de tributação de 2020, no valor total de € 5.211.645,85, bem como a decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa contra ele deduzida;

d) Condenar a Autoridade Tributária no pagamento de juros indemnizatórios desde 29 de novembro de 2024 até à data do processamento da respetiva nota de crédito.

 

Valor da causa

 

A Requerente indicou como valor da causa o montante de € 5.211.645,85, que não foi contestado pela Requerida e corresponde ao valor da liquidação a que se pretendia obstar, pelo que se fixa nesse montante o valor da causa.

 

Custas

 

 

Nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 24.º, n.º 4, do RJAT, e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e Tabela I anexa a esse Regulamento, fixa-se o montante das custas em € 65.484,00, que fica a cargo da Requerida.

 

Notificação ao Ministério Público

 

Nos termos do disposto no artigo 17.º, n.º 3, do RJAT, notifique-se o representante do Ministério Público junto do tribunal competente para o julgamento da impugnação, para efeitos do recurso previsto no n.º 3 do artigo 72.º da Lei do Tribunal Constitucional.

 

Notifique.

 

Lisboa, 20 de dezembro de 2024

  

O Presidente do Tribunal Arbitral

 

Carlos Fernandes Cadilha

 

O Árbitro vogal

 

 

 

Pedro Miguel Bastos Rosado

 

O Árbitro vogal

 

Fernando Miranda Ferreira