Decisão Arbitral
Os árbitros Cons. Jorge Lopes de Sousa (árbitro-presidente), Dr. José Coutinho Pires e Dra. Alexandra Gonçalves Marques, designados pelo Conselho Deontológico do CAAD para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 08-10-2024, acordam no seguinte:
1. Relatório
A..., S.A, com o número de identificação fiscal ..., com sede na ..., ...– ...– ..., ...‐..., Lisboa, (doravante abreviadamente designada por “Requerente”), veio requerer a constituição de Tribunal Arbitral nos termos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (doravante “RJAT”), tendo em vista a anulação (parcial) dos actos tributários de liquidação de Adicional ao Imposto Municipal sobre os Imóveis (“AIMI’’) 2021 ..., 2022 ... e 2023 ..., com referência, respetivamente, aos anos 2021, 2022 e 2023,no montante global de € 106.519,0, bem como a declaração de ilegalidade do indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa que apresentou.
A Requerente pede ainda que a Autoridade Tributária e Aduaneira seja condenada a reembolsar a Requerente do valor do AIMI pago em excesso, no montante global de € 106.519,07, e, bem assim, condenada ao pagamento de juros indemnizatórios, à taxa legal, até ao reembolso integral do montante referido.
É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (doravante “AT”).
O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT em 31-07-2024.
Em 18-09-2024, o Senhor Presidente do CAAD informou as Partes da designação dos Árbitros, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 1 do artigo 11.º do RJAT.
Assim, em conformidade com o preceituado no n.º 8 artigo 11.º do RJAT, decorrido o prazo previsto no n.º 1 do artigo 11.º do RJAT sem que as Partes alguma coisa viessem dizer, o Tribunal Arbitral Colectivo ficou constituído em 08-10-2024.
A AT apresentou resposta em que defendeu a improcedência do pedido de pronúncia arbitral.
Por despacho de 18-11-2024, foi decidido dispensar reunião e alegações.
O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é competente.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março) e estão devidamente representadas.
O processo não enferma de nulidades.
2. Matéria de facto
2.1. Factos provados
Consideram-se provados os seguintes factos relevantes para a decisão da causa:
-
A Requerente, no âmbito da sua atividade, é proprietária de diversos prédios, localizados em território português, incluindo terrenos para construção;
-
A Requerente foi notificada dos seguintes actos tributários de liquidação de Adicional ao Imposto Municipal sobre Imóveis (AIMI):
Liquidação n.º 2021 ..., com referência ao ano 2021, no montante total de € 97.269,82;
Liquidação n.º 2022... com referência ao ano 2022, no montante total de € 55.175,90;
Liquidação n.º 2023..., com referência ao ano 2023, no montante total de € 91.021,26
(documento n.º 2 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido)
-
A Requerente pagou as quantias liquidadas (documento n.º 4 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido)
-
Em parte, as liquidações de AIMI sub judice tiveram por base, para efeitos de determinação do valor tributável e do correspondente montante de AIMI a pagar pela Requerente, os valores patrimoniais tributários dos terrenos para construção, valores estabelecimento estável que foram fixados tendo em consideração (entre outros elementos) o valor base dos prédios (conforme definido nos termos do artigo 39.º do Código do IMI), bem como o coeficiente de localização (nos termos do artigo 42.º deste mesmo compêndio tributário) (cadernetas prediais urbanas que constam dos documentos n.ºs 5 e 6 juntos com o pedido de pronúncia arbitral, cujos teores se dão como reproduzidos);
-
Em 20-03-2024, a Requerente apresentou pedido de revisão oficiosa das liquidações referidas (documentos n.ºs 1 e 3 juntos com o pedido de pronúncia arbitral, cujos teores se dão como reproduzidos);
-
O pedido de revisão oficiosa não foi decidido até 29-07-2024, data em que a Requerente apresentou o pedido de pronúncia arbitral que deu origem ao presente processo.
2.2. Factos não provados e fundamentação da fixação da matéria de facto
Os factos foram dados como provados com base nos documentos juntos pela Requerente.
Não há controvérsia sobre a matéria de facto.
3. Matéria de direito
No pedido de revisão oficiosa e no presente processo são impugnadas liquidações de AIMI, com fundamento em erros de actos de avaliação de valores patrimoniais.
A Requerente defende as liquidações enfermam de erro imputável aos serviços e que se traduziu em injustiça grave e notória na fixação de um valor patrimonial tributário superior ao que resultaria das disposições legais que deveriam ter sido aplicadas.
A Autoridade Tributária e Aduaneira não se pronunciou sobre o pedido de revisão oficiosa.
A Requerente defende, em suma, o seguinte:
– possibilidade da revisão da matéria tributável com fundamento em injustiça grave ou notória, prevista no n.º 4 do artigo 78.º da LGT, configura um afloramento do dever de revogação de atos ilegais, que emerge do princípio da legalidade da atuação da Administração Tributária ínsito no artigo 266.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa (“CRP”) e no artigo 55.º da LGT;
– a fixação da matéria tributável que serviu de base às liquidações em apreço foi efetuada pela AT com base numa fórmula prevista na lei, sem que tenha havido qualquer intervenção por parte da Requerente, pelo que a ilegalidade de que padece a fórmula de avaliação dos terrenos para construção em apreço não pode ser considerada como imputável a um comportamento negligente do contribuinte;
– a revisão da matéria tributável com fundamento em injustiça grave ou notória verifica‐se apenas após o decurso do prazo normal de impugnação dos atos de fixação da matéria tributável, uma vez que se ainda se estiver dentro do prazo, a impugnação será admitida, como regra, com fundamento em qualquer ilegalidade, nos termos do n.º 1 do artigo 134.º do CPPT;
– a revisão da matéria tributável admitida pelo n.º 4 do artigo 78.º da LGT tem necessariamente por objeto atos de fixação da matéria tributável “consolidados”, por falta de impugnação tempestiva;
– o valor patrimonial tributário dos terrenos para construção foi erradamente calculado com aplicação do coeficiente de localização, que só á aplicável a edifícios, como é jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo;
– a jurisprudência uniformizada do STA no acórdão proferido no processo n.º 0102/22.2BALSB anteriormente referido, não é aplicável à revisão oficiosa prevista no artigo 78.º, n.º 4 da LGT.
No presente processo, a Autoridade Tributária e Aduaneira não questiona que ocorreram os erros na determinação dos valores patrimoniais tributários dos terrenos para construção invocados pela Requerente, aceitando expressamente a posição da Requerente.
No entanto, a Autoridade Tributária e Aduaneira opõe-se à pretensão da Requerente pelas seguintes razões, em suma:
– os eventuais vícios próprios e exclusivos do VPT são insuscetíveis de ser impugnados no ato de liquidação que seja praticado com base no mesmo;
– os atos de fixação do VPT não são atos de liquidação, mas atos autónomos e individualizados com eficácia jurídica própria e diretamente sindicáveis que põem fim ao procedimento de avaliação;
– o Supremo Tribunal Administrativo no processo n.º 102/22.2BALSB em 23-02-2023, veio uniformizar a jurisprudência sobre esta matéria no seguinte sentido de que «não tendo sido impugnado judicialmente o resultado da segunda avaliação, nos termos previstos na lei, forma-se caso decidido ou resolvido sobre o valor da avaliação, pelo que esta não pode voltar a ser discutida»;
– o artigo 78.º da LGT não abrange os atos de avaliação patrimonial, que não são atos tributários, previstos no n.º 1, nem são atos de apuramento da matéria tributável previstos no n.º 4 daquela norma;
– tão pouco se verifica qualquer erro no ato de liquidação, foi calculado com base no VPT constante na matriz predial em estrito e integral cumprimento da lei;
– tão pouco o fundamento da injustiça grave ou notória do nº 4 do art. 78° da LGT, é invocável quando a liquidação do IMI tenha sido efetuada de acordo com o nº 1 do artigo 113º do CIMI, com base nos valores patrimoniais inscritos na matriz predial, não impugnados com esse fundamento pelo sujeito passivo no prazo e nos termos previstos na lei;
– a revogação e a anulação dos atos administrativos em matéria tributária, estão previstas no artigo 79º da Lei Geral Tributária (LGT), sendo subsidiariamente aplicável o regime previsto nos artigos 165° a 174° do Código de Procedimento Administrativo (CPA), por força do artigo 2. c) da LGT;
– apenas são passíveis de anulação os atos de fixação dos VPT nos casos em que não tenham decorrido cinco anos desde a respetiva emissão;
– a inimpugnabilidade não viola os princípios da legalidade e da igualdade.
3.1. Aplicação de jurisprudência uniformizada
No caso dos autos a Requerente impugna actos de liquidação de AIMI com fundamento exclusivamente em ilegalidades de actos de fixação de valores patrimoniais que foram pressupostos daqueles actos.
A questão da possibilidade de sindicância da legalidade dos actos de fixação de valores patrimoniais foi apreciada pelo Pleno do Supremo Tribunal Administrativo no acórdão de 23-02-2023, processo n.º 102/22.2BALSB, em que uniformizou jurisprudência neste sentido:
«Deixando o contribuinte precludir a possibilidade de sindicar o valor patrimonial tributário nos termos previstos nos artigos 76.º e 77.º do Código do IMI, não pode arguir a ilegalidade da liquidação com fundamento na ilegalidade subjacente ao cálculo do valor patrimonial tributário que lhe serviu de matéria coletável».
À face do texto deste acórdão do Supremo Tribunal Administrativo está completamente excluída a possibilidade de ser sindicado o valor das avaliações em processo em que é impugnada a liquidação, inclusivamente na sequência de indeferimento tácito de pedido de revisão oficiosa, que é a situação que esteve subjacente àquele acórdão uniformizador de jurisprudência.
Ainda se poderia duvidar, com toda a pertinência, se o Supremo Tribunal Administrativo considerava esta jurisprudência uniformizada aplicável às situações em que o pedido de revisão oficiosa tem por fundamento «injustiça grave ou notória» na fixação da matéria tributável, pois fixação de valores patrimoniais reconduz-se a fixação da matéria tributável e o artigo 78.º, n.º 4, da LGT estabelece que «o dirigente máximo do serviço pode autorizar, excepcionalmente, nos três anos posteriores ao do acto tributário a revisão da matéria tributável apurada com fundamento em injustiça grave ou notória, desde que o erro não seja imputável a comportamento negligente do contribuinte».
Este artigo 78.º, n.º 4, da LGT atribui natureza excepcional à revisão que aí admite e a excepcionalidade estará, naturalmente, no afastamento do regime normal de sindicância de actos de fixação da matéria tributável.
E, essas dúvidas sobre a aplicabilidade daquela jurisprudência a estas situações de revisão excepcional da matéria tributável eram pertinentes porque o acórdão uniformizador de 23-02-2023, na apreciação que faz, não alude sequer a esta possibilidade excepcional de revisão da matéria tributável, pelo que poderia, justificadamente, ser interpretado como reportando-se às outras situações, em que não se está perante injustiça grave e notória que, na perspectiva legislativa, justificam um regime excepcional.
No entanto, o Pleno do Supremo Tribunal Administrativo, no acórdão de 22-03-2023, proferido no processo n.º 035/22.2BALSB, aplicou aquela jurisprudência, que considerou consolidada, a uma situação em que estava em causa um pedido de revisão oficiosa formulado não só ao abrigo do n.º 1, mas também ao abrigo do n.º 4 daquele artigo 78.º.
E, posteriormente, o Pleno do Supremo Tribunal Administrativo decidiu uniformemente, por unanimidade que «o art.78, da L.G.T., incluindo o seu nº.4, é inaplicável aos actos de fixação do VPT (actos administrativos em matéria tributária), na medida em que visa apenas os actos tributários stricto sensu, incluindo o acto de determinação da matéria tributável, quando não dê lugar à liquidação de qualquer tributo», como pode ver-se pelos seguintes acórdãos:
– de 22-11-2023, processo n.º 0115/23.7BALSB
– de 21-03-2024, processo n.º 77/23.0BALSB
– de 24-01-2024, processo n.º 86/23.0BALSB
– de 24-01-2024, processo n.º 059/23.2BALSB
– de 21-03-2024, processo n.º 077/23.0BALSB
– de 23-05-2024, processo n.º 0155/23.6BALSB
– de 26-06-2024, processo n.º 062/24.5BALSB
– de 26-06-2024, processo n.º 0154/23.8BALSB
Tendo aqueles acórdãos sido proferidos por unanimidade, é jurisprudência que se deverá considerar consolidada (como se diz nos acórdãos de 22-03-2023), pelo menos enquanto não for alterada consideravelmente a composição do Pleno.
Neste contexto, visando o regime legal dos recursos para uniformização de jurisprudência obstar a que se produzam decisões jurisdicionais divergentes sobre as mesmas questões de direito, os tribunais arbitrais, como tribunais que julgam em 1.ª instância, apesar de não se inserirem na hierarquia dos tribunais administrativos e fiscais, devem aplicar a jurisprudência uniformizada, quando não se entrevê, com objectividade, a possibilidade de ela ser alterada.
Pelo exposto, tem de ser rejeitada a tese da Requerente de que «os actos tributários de liquidação de AIMI poderão ser impugnados, pelos meios graciosas / administrativos e I ou judiciais a que o sujeito passivo ] contribuinte tem legalmente acesso nos termos gerais aplicáveis, com base em ilegalidade resultante em erro na determinação dos valores patrimoniais tributários dos bens imóveis em que assenta o cálculo da colecta daquele tributo».
Por isso, necessariamente improcede o pedido de anulação das liquidações de AIMI impugnadas, ficando prejudicado o conhecimento das restantes questões colocadas.
4. Reembolso de quantias pagas e juros indemnizatórios
Improcedendo o pedido de anulação das liquidações de AIMI, improcede o pedido de reembolso das quantias pagas, que pressupõe essa anulação, bem como o pedido de juros indemnizatórios, que pressupõe a existência de uma quantia a reembolsar.
5. Decisão
De harmonia com o exposto acordam neste Tribunal Arbitral em:
-
Julgar improcedente o pedido de pronúncia arbitral;
-
Absolver a Autoridade Tributária e Aduaneira de todos os pedidos.
6. Valor do processo
De harmonia com o disposto nos artigos 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 106.519,07, atribuído pela Requerente, sem contestação da Autoridade Tributária e Aduaneira.
7. Custas
Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 3.060,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerente.
Lisboa, 20-11-2024
Os Árbitros
(Jorge Lopes de Sousa)
(relator)
(José Coutinho Pires)
(Alexandra Gonçalves Marques)