Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 913/2024-T
Data da decisão: 2024-12-08  IMI  
Valor do pedido: € 83.370,30
Tema: IMI – impugnação de liquidações baseadas em VPT’s erroneamente fixados
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SUMÁRIO:

- deixando o contribuinte precludir a possibilidade de sindicar o valor patrimonial tributário nos termos previstos nos artigos 76.º e 77.º do Código do IMI, não pode arguir a ilegalidade da liquidação com fundamento na ilegalidade subjacente ao cálculo do valor patrimonial tributário que lhe serviu de matéria coletável.

- o artigo 78º da LGT (pedido de revisão oficiosa) é inaplicável aos atos de fixação do VPT (atos administrativos em matéria fiscal), na medida em que visa apenas os atos tributários stricto sensu, incluindo o ato de determinação da matéria tributável quando não dê lugar à liquidação de qualquer tributo.

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

A..., S.A, NIPC..., com sede na ... - ..., ...– ...–..., ...-..., Lisboa veio, nos termos legais, requerer a constituição de tribunal arbitral.

É requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

I - RELATÓRIO

 

  1. O pedido

A Requerente peticiona a anulação parcial dos atos de liquidação de Imposto Municipal sobre Imóveis (IMI) nº 2021..., nº 2021... e nº 2021..., relativos a 2021, e nº 2022..., nº 2022 ... e nº 2022..., relativos a 2022, por considerar que tais liquidações são excessivas num montante total de € 83.370,30.

Pede ainda que “seja declarada a ilegalidade do ato de indeferimento (tacitamente presumido) do pedido” e condenação da requerida no pagamento de juros indemnizatórios.

 

  1. O litígio

Está em causa, apenas, a fórmula em concreto utilizada na determinação dos VPT’s de prédios classificados como “terrenos para construção”.

 

Entende a Requerente, em suma:

- que a aplicação, nos termos do artigo 42.º do CIMI, do coeficiente de localização na determinação do VPT dos terrenos para construção padece de ilegalidade porquanto o preceito apenas alude a imóveis edificados e não a terrenos para construção.

- que resulta do entendimento sufragado pela AT da nova redação do artigo 45.º do Código do IMI[1] que a localização dos imóveis continua a ser considerada duplamente no cálculo do valor patrimonial tributário dos terrenos para construção, já que na determinação da % Veap[2] se atende à localização dos imóveis e, cumulativamente, ainda é aplicável o coeficiente de localização propriamente dito.

- assim, entende que o legislador, quando refere na nova redação da norma o coeficiente de localização, se refere ao uso da “localização dos imóveis” apenas na determinação da %Veap.

- nesta linha de raciocínio, entende que “o coeficiente de localização previsto no artigo 38.º do Código do IMI não deverá ser aplicado, na medida em que o mesmo já se encontra observado na percentagem do valor do terreno de implantação estabelecida no artigo 45.º daquele diploma legal, pois a aplicação de tal coeficiente conduziria à respetiva dupla consideração na determinação do Valor Patrimonial Tributário dos terrenos para construção”.

- entende que a ponderação do valor do terreno de implantação, para além do que está previsto nos nº 1 e 2 do artigo 45.º do CIMI significaria uma duplicação ou uma sobreposição, dado que o valor da edificação autorizada (valor da construção autorizada para aquela área) já inclui o valor do terreno de implantação”.

- pelo que conclui que as liquidações sub judice são ilegais, porquanto na determinação do VPT dos terrenos para construção, a AT incorreu em erro de direito ao considerar o coeficiente de localização, bem como o valor base de construção.

- a título subsidiário, sustenta que a situação se enquadra no disposto no n.º 1 do artigo 78.º da LGT, e, consequentemente, será de admitir a revisão da matéria tributável com fundamento em erro imputável aos serviços.

- conclui “pela aplicação dos valores patrimoniais tributários dos terrenos para construção, segundo a fórmula legalmente estabelecida no artigo 45.º do Código do IMI na sua redação vigente à data dos factos tributários, i.e., (i) sem aplicação dos coeficientes de localização, bem como (ii) sem aplicação da majoração, sobre o valor médio de construção, de 25% relativa ao valor do metro quadrado do terreno de implantação constante no n.º 1 do artigo 39.º do Código do IMI –, e a correspondente restituição do imposto indevidamente pago, no montante de € 83.370,30”.

 

Por sua vez, a Requerida sustenta que:

- os vícios do ato que definiu o valor patrimonial tributário (VPT) não são suscetíveis de ser invocados em processo de impugnação do ato de liquidação praticado com base no mesmo. Isto porquanto tal fixação corresponde à prática de um ato administrativo em matéria tributária que a lei autonomiza, relativamente aos atos de liquidação consequentes, para efeito de recurso judicial. Ou seja, não tendo a Requerente lançado mão, oportunamente, do meio de reação judicial que para tal a lei expressamente prevê, as fixações dos VPT´s ora em causa consolidaram-se na ordem jurídica.

- tal consolidação dos VPT’s impede também a utilização do mecanismo da revisão oficiosa para lograr uma alteração do seu montante.

- no mais, conclui a AT que a fixação dos VPT’s é legal porque feita com correta observância dos preceitos legais aplicáveis.

 

  1. Tramitação processual

 

O pedido foi aceite em 31/07/2024

Os árbitros foram nomeados pelo Conselho Deontológico do CAAD, aceitaram as nomeações, as quais não foram objeto de oposição.

O tribunal arbitral ficou constituído em 08/10/2024.

A Requerida apresentou resposta.

Por despacho de 18/11/2024 foi dispensada a realização da reunião a que se refere o art. 18º do RJAT bem como a produção de alegações. Nenhuma das partes se opôs.

 

  1. Saneamento

 

O processo não enferma de nulidades ou irregularidades

 

Não existem exceções de que cumpra conhecer, pois a “objeção processual” aduzida pela Requerida tem natureza material (consolidação na ordem jurídica dos atos administrativos em matéria tributária de fixação dos VPT’s).

 

 

 

II- Os factos

 

Considera-se provado que:

  1. A Requerente é proprietária de diversos prédios localizados em território português, alguns dos quais qualificados como terrenos para construção.
  2. Estão em causa os prédios inscritos na matriz predial urbana da freguesia de ... (...) sob os artigos n.ºs:..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ...,..., ..., ..., ... .
  3. Neste contexto, a Requerente foi notificada das liquidações de IMI que ora impugna.
  4. A Requerente procedeu ao pagamento do imposto liquidado.
  5.  Os valores patrimoniais tributários de tais terrenos para construção foram fixados tendo em consideração (entre outros elementos) o valor base dos prédios (conforme definido nos termos do artigo 39.º do CIMI), bem como o coeficiente de localização (nos termos do artigo 42.º deste mesmo código).
  6. A Requerente apresentou um pedido de Revisão Oficiosa, pretendendo a alteração de tais liquidações “com vista à aplicação dos valores patrimoniais tributários dos terrenos para construção, segundo a fórmula legalmente estabelecida no artigo 45.º do Código do IMI na sua redação vigente à data dos factos tributários das liquidações de IMI sub judice”.
  7. A AT não proferiu qualquer decisão no prazo legal.

 

A convicção do tribunal fundou-se na análise dos documentos juntos aos autos, sendo que os factos acima não suscitaram qualquer divergência entre as partes.

 

II.2 - Factos não provados

 

Não existem factos dados como “não provados” relevantes para a decisão da causa.

 

 

III- O Direito

 

1. Começamos por frisar que a Requerente não imputa qualquer vício às liquidações que impugna.

A Requerente contesta, apenas e tão só, os atos de fixação dos VPT’s que constituem a matéria coletável de tais liquidações.

Pelo que a primeira questão – expressamente aduzida pela Requerida – que cumpre apreciar é saber se o alegado erro de direito na fixação dos VPT´s em causa pode ser apreciado num processo dirigido à apreciação de atos de liquidação daquele decorrentes.

 

2. O Supremo Tribunal Administrativo, no processo n.º 102/22, em 23.02.2023, veio uniformizar a jurisprudência sobre esta matéria, como se segue:

Tendo em conta o que fica dito, duas conclusões se podem retirar, desde já, no que toca à impugnabilidade do ato de fixação do valor tributário: (i) as ilegalidades de que possa padecer a primeira avaliação no que tange à fixação do valor patrimonial não é diretamente impugnável admitindo o Supremo Tribunal Administrativo que poderá ser impugnada com fundamento em vícios de forma ou com base em erro de facto ou de direito, designadamente errada classificação do prédio (acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 16/04/2008, proferido no processo 004/08, de 30/05/2012, proferido no processo 01109/11, de 27/06/2012, proferido no processo 01004/11 e de 27/11/12, de 27/11/2013); (ii) do resultado da segunda avaliação, que esgota os meios graciosos à disposição dos interessados, cabe impugnação judicial que pode ter como fundamento qualquer ilegalidade, designadamente a errónea quantificação do valor patrimonial do prédio. E uma terceira conclusão se impõe: a de que prevendo a lei um modo especial de reação contra as ilegalidades do ato de fixação do valor patrimonial tributário, proferido em procedimento tributário autónomo, as mesmas não podem servir de fundamento à impugnação da liquidação do imposto que tiver por base o resultado dessa avaliação. Na verdade, o ato que fixa o valor patrimonial tributário encerra um procedimento autónomo de avaliação que servirá de base a uma pluralidade de atos de liquidação que venham a ser praticados enquanto o valor dela resultante se mantiver, designadamente às liquidações de impostos sobre o património (cf. acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 14/10/2020, proferido no processo 050/11.1BEAVR, consultável em www.dgsi.pt). O mesmo é dizer que para além de a impugnação judicial do ato de fixação do valor patrimonial depender do esgotamento dos meios graciosos, a não impugnação do ato preclude que, em sede de impugnação judicial do ato de liquidação do imposto, possa ser questionada a quantificação do valor fixado. Não tendo sido impugnado judicialmente o resultado da segunda avaliação, nos termos previstos na lei, forma-se caso decidido ou resolvido sobre o valor da avaliação, pelo que esta não pode voltar a ser discutida (cf. acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 12/01/2011, proferido no processo 0758/10).

 

Em resumo, citando o sumário de tal acórdão, deixando o contribuinte precludir a possibilidade de sindicar o valor patrimonial tributário nos termos previstos nos artigos 76.º e 77.º do Código do IMI, não pode arguir a ilegalidade da liquidação com fundamento na ilegalidade subjacente ao cálculo do valor patrimonial tributário que lhe serviu de matéria coletável.

 

 

  1. A revisão oficiosa

 

Na sequência deste acórdão uniformizador, surgiu a questão da possibilidade de o contribuinte obter a revisão de liquidações baseadas em VPT’s erroneamente fixados peticionando a sua revisão oficiosa, nomeadamente ao abrigo do disposto no nº 4 do artº 78º da LGT (“injustiça grave ou notória”), tal qual fez a Requerente

Neste sentido se orientou, com argumentos que consideramos pertinentes, alguma jurisprudência arbitral, nomeadamente a decisão proferida no processo n.º 462/2022-T, de 06.06.2023

 

O STA teve por bem intervir nesta questão, através de novo acórdão uniformizador (em 22 de novembro, no processo n.º 115/23).

 

Reafirmando a doutrina do acórdão atrás citado (processo n.º 102/2022), o STA acrescentou:

Diga-se ainda que, de nada vale, neste domínio, procurar abrigo no art. 78º nº 4 da LGT, dado que, a jurisprudência emanada do Acórdão Fundamento emerge de um pedido de revisão formulado ao abrigo do disposto no 78º da LGT, impondo-se referir que, se é verdade que está em causa um verdadeiro direito do contribuinte, no sentido de exigir da AT que expurgue da ordem jurídica, total ou parcialmente, um acto ilegal, bem como a restituição do que tenha sido ilegalmente cobrado, com base no artigo 103º nº 3 da Constituição da República Portuguesa, que não permite a cobrança de tributos, nem os respectivos montantes, que não estejam previstos na lei, não pode olvidar-se que este procedimento apenas tem por objecto os “actos tributários” em sentido estrito, aqui se incluindo os actos de liquidação e de alteração da matéria colectável quando não dê lugar a qualquer liquidação, não abrangendo os actos administrativos em matéria tributária, como são os actos de fixação de valores patrimoniais (art. 97º, nº 1 alíneas a), b) e f), do CPPT). Por outro lado, como referem Diogo Leite Campos e Outros, “LGT - Anotada e Comentada”, 4ª ed. 2012, pág.702, estarão abrangidos pela expressão “actos tributários” que consta da epígrafe do artigo 78.º quer os actos de liquidação, quer os de fixação da matéria tributável, se ela tiver autonomia, o que significa que o artigo 78º é inaplicável aos actos de fixação do VPT (actos administrativos em matéria fiscal), na medida em que visa apenas os actos tributários stricto sensu, incluindo o acto de determinação da matéria tributável, quando não dê lugar à liquidação de qualquer tributo.

Assim sendo, uma boa leitura do Acórdão deste Supremo Tribunal (Pleno) de 23-02-2023, proferido no Proc.º n.º 0102/22.2BALSB, www.dgsi.pt, no sentido de que - o artigo 78º é inaplicável aos actos de fixação do VPT (actos administrativos em matéria fiscal), na medida em que visa apenas os actos tributários stricto sensu, incluindo o acto de determinação da matéria tributável, quando não dê lugar à liquidação de qualquer tributo - teriam permitido ao Tribunal Arbitral decidir a questão.

 

4. Atentas as referidas decisões uniformizadoras do STA e o respeito que às mesmas é devido – independentemente da concordância ou discordância que nos possam merecer –, este Tribunal Arbitral não pode deixar de considerar que o entendimento da Requerente no sentido da possibilidade de contestação da ilegalidade dos atos de liquidação de IMI controvertidos sem, anteriormente, contestar os VPT’s dos respetivos imóveis, tem necessariamente de soçobrar.

Por consequência, não tendo a Requerente oportunamente contestado (nos termos enunciados nos citados arestos uniformizadores do STA) os VPT’s dos imóveis em apreço nestes autos, constantes das respetivas matrizes prediais e com base nos quais foram feitas as liquidações de IMI controvertidas, não pode este Tribunal Arbitral deixar de concluir pela improcedência do pedido de pronúncia arbitral, atenta a causa de pedir que lhe subjaz.

 

  1. Ficam assim prejudicados os demais pedidos formulados pela Requerente.

 

III - DECISÃO ARBITRAL

 

Termos em que se conclui pela total improcedência dos pedidos formulados pela Requerente.

 

 

Valor: € 83.370,30.

Custas, no montante de € 2.754,00, a cargo da Requerente por ter sido total o seu decaimento.

 

08 de dezembro de 2024

 

Os árbitros

 

 

 

 

Rui Duarte Morais

 

 

 

 

 

Jónatas Machado

 

 

 


Adelaide Moura 

 

 

 

 



[1] Redação da Lei nº 75-B/2020, de 31 de dezembro.

 

[2] Na definição legal (art. 45º, nº 1 do CIMI) % Veap = percentagem do valor das edificações autorizadas ou previstas com terreno incluído.