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SUMÁRIO:
As normas do n.º 1, parte final, e do n.º 3 do artigo 22.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais, interpretadas conjugadamente, ao estabelecerem um tratamento fiscal mais favorável para os organismos de investimento coletivo que operem em Portugal de acordo com a legislação portuguesa, em relação aos organismos equiparáveis que tenham sido constituídos de acordo com a legislação de outro Estado-Membro da União Europeia ou, como sucede in casu, de acordo com a legislação de um país terceiro, violam o princípio da liberdade de circulação de capitais consagrado no artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia.
DECISÃO ARBITRAL
Os Árbitros Prof.ª Doutora Regina de Almeida Monteiro (Presidente), Dr. Pedro Guerra Alves e Dr. Gonçalo Marquês de Menezes Estanque (Adjuntos), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, acordam no seguinte:
1. Relatório
A..., Organismo de Investimento Coletivo constituído de acordo com o direito dos Estados Unidos da América, com o número de contribuinte português ... (adiante designado por “Requerente”), representado pela sua entidade gestora B..., sociedade de direito americano, com sede em ..., ..., ..., Estados Unidos da América, nos termos do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a) e 10.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2 do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (adiante apenas designado por “RJAT”), requereu a constituição de tribunal arbitral,
É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (doravante “AT” ou “Requerida”).
O Requerente pede a pronúncia arbitral para apreciação da legalidade dos atos de retenção na fonte de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (“IRC”) que incidiram sobre o pagamento de dividendos auferidos em território Português no ano de 2021, bem como da decisão de indeferimento da reclamação graciosa n.º ...2023... .
O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e notificado à AT, em 21/06/2024.
O Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Presidente do Conselho Deontológico designou como árbitros do Tribunal Arbitral Coletivo os ora signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
Em 07/08/2024, as partes foram notificadas da designação dos árbitros, não tendo sido arguido qualquer impedimento.
Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral foi constituído em 28/08/2024.
Por Despacho Arbitral, datado de 28/08/2024, nos termos do previsto nos n.os 1 e 2 do artigo 17.º do RJAT, notificou-se a AT para, no prazo de 30 dias, apresentar resposta e, querendo, solicitar a produção de prova adicional, acrescentando dever ser remetido ao tribunal arbitral cópia do processo administrativo.
A Requerida apresentou, em 30/09/2024, a Resposta e, na mesma data, remeteu cópia do Processo Administrativo.
A Requerente, no decurso do prazo para a Requerida apresentar a sua Resposta, juntou aos autos, em 09/09/2024, a declaração de rendimentos referente ao exercício de 2021, a qual havia protestado juntar.
Em 02/10/2024, através de despacho, o Tribunal Arbitral dispensou a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT e facultou às partes a possibilidade de apresentarem alegações escritas no prazo simultâneo de 20 dias.
A Requerente apresentou as suas alegações escritas em 04/10/2024 e, por seu turno, a Requerida veio, em 09/10/2024, apresentar as suas alegações.
Nestes termos, o Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído para apreciar e decidir o objeto do processo.
O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído, à face do preceituado na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e do n.º 1 do artigo 10.º, ambos do RJAT.
As partes estão devidamente representadas gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (artigo 4.º e n.º 2 do artigo 10.º, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março) e o Tribunal é competente.
O processo não enferma de nulidades.
2. Matéria de facto
2.1. Factos provados
Consideram-se provados os seguintes factos com relevo para a decisão:
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O Requerente é, de acordo com o quadro regulatório e fiscal, uma entidade jurídica de direito dos Estados Unidos da América (“EUA”), mais concretamente um Organismo de Investimento Coletivo (“OIC”), com residência fiscal nos EUA (cfr. documento n.º 1 junto ao PPA e, também, o documento n.º 1 junto à reclamação graciosa, constante do processo administrativo, cujos teores se dão como reproduzidos);
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O Requerente é um sujeito passivo de IRC não residente, para efeitos fiscais, em Portugal e sem qualquer estabelecimento estável no país (Cfr. certificado de residência fiscal emitido pelas Autoridades Fiscais dos EUA para o ano de 2021, junto com o pedido de pronúncia arbitral como documento n.º 1, cujo teor se dá como reproduzido);
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Em 2021, o Requerente detinha investimentos financeiros em Portugal, consubstanciados na detenção de participações sociais nas sociedades C... SGPS, S.A., D..., S.A. e E..., SGPS, S.A., todas sociedades residentes, para efeitos fiscais, em Portugal; (Cfr. documento n.º 2, junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
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O Requerente, na qualidade de acionista daquelas sociedades residentes em Portugal, recebeu, no ano de 2021, dividendos que foram pagos pelas mesmas, aos intermediários financeiros do Requerente (documento n.º 2 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
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Esses rendimentos, no valor de € 962.171,76, foram, em Portugal, sujeitos a tributação em Portugal, através de retenção na fonte, à taxa efetiva de 15%, em virtude da aplicação da Convenção e o Protocolo entre a República Portuguesa e os Estados Unidos da América para Evitar a Dupla Tributação e Prevenir a Evasão Fiscal em Matéria de Impostos sobre o Rendimento;
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Os dividendos, datas de pagamento, importâncias retidas e guias referentes às suas entregas à Autoridade Tributária e Aduaneira constam do quadro sumário infra:
(cfr. documento n.º 2 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido)
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Através das guias de retenção na fonte n.os ..., ... e ... foram entregues à Autoridade Tributária e Aduaneira com as importância retidas, respetivamente, em 20-05-2021, 21-06-2021, e 20-10-2021 (cfr. processo administrativo, Parte 6, cujo teor se dá como reproduzido);
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O Requerente não deduziu nos EUA, Estado da residência, o imposto retido na fonte em Portugal (cfr. Documentos n.os 3 e 4 juntos pelo Requerente, cujos teores se dão como reproduzidos);
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No dia 26-04-2023, o Requerente apresentou reclamação graciosa dos referidos actos de retenção na fonte (documentos n.os 5 e 6 juntos com o pedido de pronúncia arbitral, cujos teores se dão como reproduzidos);
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No dia 26-02-2024, o Requerente foi notificado do projeto de indeferimento da reclamação graciosa (cfr. documento n.o 5, junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
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A reclamação graciosa, foi indeferida por despacho de 19-03-2024, proferido pela Directora da Direcção de Finanças de Lisboa, nos termos que constam do documentos n.os 5 e 6 juntos com o pedido de pronúncia arbitral, cujos teores se dão como reproduzidos;
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Em 20-06-2024, o Requerente apresentou o pedido de constituição do tribunal arbitral que deu origem ao presente processo.
2.2. Factos não provados e fundamentação da decisão da matéria de facto
Não se deu como provado contrariamente ao alegado pela Requerida (art. 61 da Resposta) que o imposto retido ao Requerente tenha (ou, eventualmente, possa) dar lugar a um crédito de imposto por dupla tributação internacional tanto na esfera do Requerente, bem como na esfera dos investidores.
Não existem outros factos relevantes para a decisão da causa que não se tenham provado.
Os factos foram dados como provados com base nos documentos juntos com o pedido de pronúncia arbitral, requerimento da Requerente e processo administrativo.
3. Posição das Partes
No essencial, o Requerente alega que a retenção na fonte que incidiu sobre os dividendos por si obtidos no território nacional no ano de 2021 viola o artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (“TFUE”), isto porque, organismos de investimento colectivo (“OIC”) residentes fiscais em Portugal estão isentos de tributação sobre dividendos, nos termos do regime previsto no artigo 22.º do EBF. Estamos, pois, na sua opinião perante um tratamento discriminatório o qual não pode, em momento algum, ser “neutralizado” atendendo a que o Requerente não beneficiou de um crédito de imposto no país da residência (EUA).
Por seu turno, a AT entende que OICs não residentes fiscais em Portugal, como sucede no caso do Requerente, não se encontram numa situação comparável à dos OICs constituídos / residentes fiscais em Portugal. Alega a AT que a legislação portuguesa, concede isenções a OICs constituídos / residentes fiscais em Portugal, mas sujeita esses mesmos OICs a outras formas de tributação, como o Imposto do Selo ou tributação autónoma. Ou seja, a diferença de tratamento entre OICs residentes e OICs não residentes em Portugal não configura uma discriminação proibida pelo artigo 63.º do TFUE, uma vez que ambos estão sujeitos a regimes fiscais diferentes. Ademais, alega a Requerida que o imposto retido ao Requerente poderá eventualmente dar lugar a um crédito de imposto por dupla tributação internacional tanto na esfera do Requerente, bem como na esfera dos investidores.
4. Matéria de direito
O caso sub judice visa, essencialmente, apreciar a compatibilidade com o princípio da liberdade de circulação de capitais, consagrado no artigo 63.º do TFUE, do regime especial de tributação aplicável aos OICs que se constituam e operem de acordo com a legislação nacional, nos termos da parte final do n.º 1 e do n.º 3 do artigo 22.º do EBF, determinando a exclusão desse regime jurídico dos OICs que operem em Portugal e que tenham sido constituídos de acordo com a legislação de outro Estado-Membro da União Europeia ou de Estado terceiro.
A questão da compatibilidade ou não do regime previsto no artigo 22.º do EBF com o Direito da União Europeia, designadamente o artigo 63.º do TFUE, foi apreciada no acórdão AllianzGI-Fonds AEVN do Tribunal de Justiça da União Europeia (“TJUE”), datado de 17-03-2022, proferido no processo n.º C-545/19, em que se concluiu que:
“O artigo 63.º TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado-Membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um organismo de investimento coletivo (OIC) não residente são objeto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção”.
O Tribunal Arbitral já teve oportunidade de, em diversas ocasiões, reiterar a referida jurisprudência do TJUE. Veja-se, entre muitos outros, os Acórdãos proferidos no âmbito dos proc. n.os 204/2024-T ou 474/2024-T (fundamentação para a qual remetemos).
Note-se, de resto, que o Supremo Tribunal Administrativo (“STA”) uniformizou a jurisprudência sobre esta matéria em obediência ao decidido pelo TJUE (Acórdão de 28/09/2023, Processo n.º 093/19):
“A interpretação do artº. 63, do TFUE, acabada de mencionar é incompatível com o artº.22, do E.B.F., na redação que lhe foi dada pelo Decreto-Lei 7/2015, de 13/01, na medida em que limita o regime de isenção nele previsto aos OIC constituídos segundo a legislação nacional, dele excluindo os OIC constituídos segundo a legislação de outros Estados Membros da União Europeia”.
Jurisprudência esta que tem vindo a ser sucessivamente reiterada, conforme se refere no Acórdão proferido pelo STA no âmbito do processo n.º 0797/21.4BELRS (datado de 06/11/2024):
“(...) a conclusão de que existe tratamento diferenciado decorrente da não aplicação do n.º 3 do artigo 22.º do EBF aos OIC sedeados fora do espaço da União Europeia, atenta a restrição da livre circulação de capitais que daí resulta, por força do disposto no artigo 63.º do Tratado de Funcionamento da União Europeia.
É isso que resulta, com absoluta clareza, do teor do Acórdão deste Supremo Tribunal lavrado no Processo n.º 715/18, de 13 de Setembro de 2023, e, desde então, reiteradamente sufragado na íntegra por vasta jurisprudência desta mesma instância – inter alia, Acórdãos subscritos nos processos n.º 802/21, de 8 de Maio de 2024; n.ºs 806/21 e 755/19, ambos de 29 de Maio de 2024 e n.º 757/19, de 05 de Junho de 2024 – e, ainda, tão recentemente como o Acórdão 1676/20, de 11 de Julho de 2024, onde o presente Relator foi, igualmente, interveniente enquanto Adjunto – todos os acórdãos disponíveis em www.dsgi.pt”.
Como tem sido pacificamente entendido pela jurisprudência e é corolário da obrigatoriedade de reenvio prejudicial prevista no artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (que substituiu o artigo 234.º do Tratado de Roma, anterior artigo 177.º), a jurisprudência do TJUE tem carácter vinculativo para os Tribunais nacionais, quando tem por objecto questões de Direito da União Europeia (neste sentido, entre outros, veja-se o Acórdão proferido pelo Tribunal Arbitral no âmbito do proc. n.º 66/2024).
A supremacia do Direito da União sobre o Direito Nacional tem suporte no n.º 4 do artigo 8.º da CRP, em que se estabelece que “as disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respectivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático”.
Assim, considera-se ilegal, por incompatibilidade com o artigo 63.º do TFUE, o artigo 22.º, n.º 1, do EBF, na parte em que limita o regime de isenção nele previsto a sociedades constituídas segundo a legislação nacional, excluindo das sociedades constituídas segundo legislações de outros Estados.
É certo que o caso sub judice tem uma - aparente - “diferença” relativamente a outros processos onde, também, é discutida a compatibilidade do regime previsto no artigo 22.º do EBF com o artigo 63.º do TFUE. A “diferença” - a qual, conforme se demonstrará, é irrelevante - reside no facto de, in casu, estarmos perante um OIC residente fiscal num país terceiro, i.e. fora da União Europeia (no caso, nos EUA).
Importa recordar que, no acórdão AllianzGI-Fonds AEVN, o TJUE concluiu que estava em causa uma violação da liberdade de circulação de capitais[1], i.e. a apreciação da compatibilidade do artigo 22.º do EBF com o Direito da União Europeia foi efetuada à luz do artigo 63.º do TFUE. Ora, o n.º 1 do artigo 63.º do TFUE é bastante claro ao proibir “todas as restrições aos movimentos de capitais entre Estados-Membros e entre Estados-Membros e países terceiros” (sublinhado e negrito nossos). Ademais, não foram invocadas - nem se vislumbra como o que é poderiam ser aplicadas - as excepções previstas, por exemplo, no artigo 64.º do TFUE.
Assim, voltando ao caso sub judice, a legislação portuguesa, ao tributar por retenção na fonte dividendos distribuídos por sociedades residentes em Portugal a OIC’s constituídos ao abrigo da legislação de outro Estado e ao mesmo tempo permitir que os OIC equiparáveis constituídos ao abrigo da legislação nacional beneficiem, em idêntica situação, de isenção dessa retenção na fonte, não é compatível com o direito da União Europeia, por violação da liberdade fundamental de circulação de capitais consagrada no artigo 63.º do TFUE. Tal conclusão é, pois, igualmente, aplicável quando estão em causa OICs - como sucede in casu - constituídos de acordo com a legislação de países terceiros.
Também, neste sentido, veja-se o Acórdão proferido pelo Tribunal Arbitral no proc. n.º 12/2023-T, onde se concluiu que:
“(...) não altera os dados do problema a circunstância de, no caso, estar em causa um residente em país terceiro.
Nesse sentido, é elucidativo o acórdão do TJUE de 18 de Janeiro de 2018, no Processo n.º C-45/17 (acórdão Jahin).
Aí se refere que o artigo 63º do TFUE estabelece a livre circulação de capitais entre Estados Membros, por um lado, e entre Estados Membros e países terceiros, por outro, de onde decorre que o âmbito de aplicação territorial da livre circulação de capitais prevista no artigo 63º do TFUE não se limita aos movimentos de capitais entre Estados Membros, mas estende se igualmente aos movimentos de capitais entre Estados Membros e Estados terceiros (parágrafos 19 e 21)” [2].
Note-se, por fim, que, conforme referido anteriormente, não ficou provado que a Requerente tenha utilizado um crédito de imposto por dupla tributação internacional quanto ao imposto retido em Portugal ou sequer que exista essa possibilidade tanto na esfera do Requerente, bem como na esfera dos investidores. Aliás, consta dos autos prova de que o Requerente não deduziu, no país da residência (EUA), o imposto retido em Portugal.
Consequentemente, tem de se concluir que os actos de retenção na fonte, bem como o indeferimento da reclamação graciosa que o manteve, enferma de vício de violação de lei, que justifica a sua anulação, de harmonia, com o disposto no artigo 163.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo subsidiariamente aplicável nos termos do artigo 2.º, alínea c), da LGT.
5. Dos juros indemnizatórios
O Requerente pede ainda a condenação da AT no pagamento de juros indemnizatórios, à taxa legal, calculados sobre o imposto, até ao reembolso integral da quantia devida.
Nos termos da al. b) do artigo 24.º do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a AT, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo, cabendo-lhe “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito”. Isto está, pois, em perfeita sintonia com o preceituado no artigo 100.º da LGT, aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT.
Ademais, o TJUE tem decidido que a cobrança de impostos em violação do direito da União Europeia tem como consequência não só direito ao reembolso do imposto pago mas também o direito ao pagamento de juros (vide, o Acórdão Mariana Irimie, Proc. C-565/11):
“21. Há que lembrar ainda que, quando um Estado-Membro tenha cobrado impostos em violação do direito da União, os contribuintes têm direito ao reembolso não apenas do imposto indevidamente cobrado, mas igualmente das quantias pagas a esse Estado ou por este retidas em relação direta com esse imposto. Isso inclui igualmente o prejuízo decorrente da indisponibilidade de quantias de dinheiro, devido à exigibilidade prematura do imposto (v. acórdãos de 8 de março de 2001, Metallgeselischaft e o., C-397/98 e C-410/98, Colet., p. I-1727, n.ºs 87 a 89; de 12 de dezembro de 2006, Test Claimants in the FII Group Litigation, C-446/04, Colet., p. I-11753, n.º 205; Littlewoods Retail e o., já referido, n.º 25; e de 27 de setembro de 2012, Zuckerfabrik Jülich e o., C-113/10, C-147/10 e C-234/10, n.º 65).
22. Resulta daí que o princípio da obrigação de os Estados-Membros restituírem com juros os montantes dos impostos cobrados em violação do direito da União decorre desse mesmo direito da União (acórdãos, já referidos, Littlewoods Retail e o., n.º 26, e Zuckerfabrik Jülich e o., n.º 66).
23. A esse respeito, o Tribunal de Justiça já decidiu que, na falta de legislação da União, compete ao ordenamento jurídico interno de cada Estado-Membro prever as condições em que tais juros devem ser pagos, nomeadamente a respetiva taxa e o modo de cálculo. Essas condições devem respeitar os princípios da equivalência e da efetividade, isto é, não devem ser menos favoráveis do que as condições relativas a reclamações semelhantes baseadas em disposições de direito interno, nem organizadas de modo a, na prática, impossibilitar ou dificultar excessivamente o exercício dos direitos conferidos pelo ordenamento jurídico da União (v., neste sentido, acórdão Littlewoods Retail e o., já referido, n.ºs 27 e 28 e jurisprudência referida)”.
É certo, porém, que, como se refere neste n.º 23, cabe a cada Estado-Membro prever as condições em que tais juros devem ser pagos. No caso Português o direito a juros indemnizatórios é regulado no artigo 43.º da LGT, que estabelece, no que aqui interessa, o seguinte:
“Artigo 43.º
Pagamento indevido da prestação tributária
1 – São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.
2 – Considera-se também haver erro imputável aos serviços nos casos em que, apesar da liquidação ser efectuada com base na declaração do contribuinte, este ter seguido, no seu preenchimento, as orientações genéricas da administração tributária, devidamente publicadas.
3. São também devidos juros indemnizatórios nas seguintes circunstâncias:
a) Quando não seja cumprido o prazo legal de restituição oficiosa dos tributos;
b) Em caso de anulação do acto tributário por iniciativa da administração tributária, a partir do 30.º dia posterior à decisão, sem que tenha sido processada a nota de crédito;
c) Quando a revisão do acto tributário por iniciativa do contribuinte se efectuar mais de um ano após o pedido deste, salvo se o atraso não for imputável à administração tributária.
d) Em caso de decisão judicial transitada em julgado que declare ou julgue a inconstitucionalidade ou ilegalidade da norma legislativa ou regulamentar em que se fundou a liquidação da prestação tributária e que determine a respetiva devolução.
4. A taxa dos juros indemnizatórios é igual à taxa dos juros compensatórios.
5. No período que decorre entre a data do termo do prazo de execução espontânea de decisão judicial transitada em julgado e a data da emissão da nota de crédito, relativamente ao imposto que deveria ter sido restituído por decisão judicial transitada em julgado, são devidos juros de mora a uma taxa equivalente ao dobro da taxa dos juros de mora definida na lei geral para as dívidas ao Estado e outras entidades públicas”.
É verdade que, in casu, estamos perante actos de retenção na fonte e, como tal, não praticados directamente pela AT. No entanto, tal facto, de modo algum, afasta a imputabilidade do erro à AT, isto porque, conforme entendimento preconizado pelo Supremo Tribunal Administrativo (Acórdão proferido no Proc. n.º 93/21.7BALSB de 29-06-2022):
“Em caso de retenção na fonte e havendo lugar a impugnação administrativa do acto tributário em causa (v.g. reclamação graciosa), o erro passa a ser imputável à A. Fiscal depois de operar o indeferimento do mesmo procedimento gracioso, efectivo ou presumido, funcionando tal data como termo inicial para cômputo dos juros indemnizatórios a pagar ao sujeito passivo, nos termos do artº. 43, nºs.1 e 3, da LGT “.
O suprarreferido Acórdão do STA é bastante claro ao concluir que, para efeitos da fixação da termo inicial do cômputo dos juros indemnizatórios deve considerar-se a data em que a reclamação graciosa considera-se tácitamente indeferida:
“De acordo com o probatório da decisão arbitral recorrida, no que diz respeito aos actos tributários que foram objecto de reclamação graciosa (cfr.actos de liquidação de imposto de selo emitidos nos períodos de Fevereiro de 2017 a Dezembro de 2018 - al.J) da matéria de facto supra exarada), foi tal reclamação deduzida em 20 de Março de 2019, mais sendo objecto de indeferimento expresso em 6 de Setembro de 2019 (cfr.al.K) da matéria de facto supra exarada).
Neste segmento da instância recursiva, deve chamar-se à colação a doutrina defendida pelo acórdão fundamento, oriundo do Tribunal Central Administrativo Sul, a qual já foi sufragada por diversos acórdãos deste Tribunal e Secção (cfr.v.g.ac.S.T.A.-2ª.Secção, 18/01/2017, rec.890/16; ac.S.T.A.-2ª.Secção, 3/05/2018, rec.250/17; ac.S.T.A.-2ª.Secção, 7/04/2021, rec. 360/11.8BELRS; ac.S.T.A.-2ª.Secção, 6/10/2021, rec.3009/12.8BELRS; ac.S.T.A.-2ª.Secção, 9/12/2021, rec.1098/16.5BELRS), e que nos diz: em caso de retenção na fonte e havendo lugar a impugnação administrativa do acto tributário em causa (v.g. reclamação graciosa), o erro passa a ser imputável à A. Fiscal depois de operar o indeferimento do mesmo procedimento gracioso, efectivo ou presumido, funcionando tal data como termo inicial para cômputo dos juros indemnizatórios a pagar ao sujeito passivo, nos termos do artº.43, nºs.1 e 3, da L.G.T.
Mais se deve recordar que o indeferimento tácito de reclamação graciosa deduzida opera ao fim de quatro meses, prazo esse que é contínuo e se deve contar nos termos do artº.279, do C.Civil (cfr.artº.57, nºs.1 e 3, da L.G.T.; artºs.20, nº.1, e 106, do C.P.P.T.).
Revertendo ao caso dos autos, tendo sido deduzida, a reclamação graciosa, em 20 de Março de 2019, operou o indeferimento tácito da mesma em 22 de Julho de 2019, uma segunda-feira (cfr.artº.279, als.b), c) e e), do C.Civil).
Portanto, a mencionada data de 22 de Julho de 2019 deve ter-se como "dies a quo" do cômputo dos juros indemnizatórios no caso concreto, em consequência do que, também nesta parcela, deve ser revogada a decisão arbitral que fixou o termo inicial do cômputo dos juros indemnizatórios nas datas do pagamento do imposto”.
Tratando-se de jurisprudência uniformizada, a mesma deve, pois, ser acatada.
No caso em apreço, a reclamação graciosa foi apresentada em 26-04-2023 (vide, al. I) da matéria de facto supra exarada), pelo que a presunção de indeferimento tácito se formou em 28-08-2023, nos termos do n.º 5 do artigo 57.º da LGT, decorrido o prazo de quatro meses previsto no n.º 1 do mesmo artigo.
Assim, face à jurisprudência uniformizada do STA que se invoca, é de concluir que o Requerente tem direito a juros indemnizatórios desde 28-08-2023 (inclusive).
6. Decisão
Nos termos expostos, acordam neste Tribunal Arbitral em:
-
Julgar procedente o pedido arbitral e anular o acto de liquidação de IRC, através de actos de retenção na fonte, no valor total de € 144.325,77, bem como a decisão de indeferimento da reclamação graciosa contra ele deduzida;
-
Julgar procedente o pedido de reembolso da quantia de € 144.325,77, e condenar a Administração Tributária a pagar este montante ao Requerente;
-
Julgar procedente o pedido de juros indemnizatórios e condenar a Autoridade Tributária no seu pagamento desde 28-08-2023 até à data do processamento da respetiva nota de crédito.
7. Valor do Processo
De harmonia com o disposto nos artigos 296.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 144.325,77, indicado pelo Requerente sem oposição da Autoridade Tributária e Aduaneira.
8. Custas
Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 3.060,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira.
Notifique-se
Lisboa, 20 de novembro de 2024.
Os Árbitros
____________
(Regina de Almeida Monteiro - Presidente)
_________________
(Pedro Guerra Alves - Adjunto)
(Gonçalo Estanque - Adjunto e Relator)
[1] Vide parágrafo 33 do Acórdão AllianzGI-Fonds AEVN: “uma vez que a legislação nacional em causa no processo principal tem, assim, por objeto o tratamento fiscal de dividendos recebidos pelos OIC, deve considerar‑se que a situação em causa no processo principal é abrangida pelo âmbito de aplicação da livre circulação de capitais (v., por analogia, Acórdão de 21 de junho de 2018, Fidelity Funds e o., C‑480/16, EU:C:2018:480, n.os 35 e 36)”.
[2] Veja-se, também, no mesmo sentido o Acórdão proferido no proc. n.º 60/2024-T.