SUMÁRIO:
I - ENQUANTO A HERANÇA SE MANTIVER INDIVISA, CADA HERDEIRO É TITULAR DE UM DIREITO A UMA QUOTA DE UMA MASSA DE BENS, QUE CONSTITUI UM PATRITIMÓNIO AUTÓNOMO E NÃO DE UM DIREITO INDIVIDUAL SOBRE CADA UM DOS BENS QUE A INTEGRAM.
II - A ALIENAÇÃO DE QUINHÃO HEREDITÁRIO, MESMO QUE A HERANÇA SEJA APENAS CONSTITUÍDA POR BENS IMÓVEIS, NÃO PODE CONSIDERAR-SE “ALIENAÇÃO ONEROSA DE DIREITOS REAIS SOBRE BENS IMÓVEIS”, PELO QUE NÃO ESTÃO SUJEITOS A IRS OS EVENTUAIS GANHOS RESULTANTES DESSA ALIENAÇÃO.
DECISÃO ARBITRAL
Os árbitros Fernando Araújo (árbitro-presidente), Fernando Marques Simões e A. Sérgio de Matos (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 14-06-2024, acordam no seguinte:
I. RELATÓRIO
A..., titular do NIF..., sujeito passivo de IRS pelo Serviço de Finanças de Vila Verde, representada perante a autoridade Tributária e Aduaneira (AT), enquanto sujeito passivo na situação de não residente, por B..., com residência na ..., n.º ..., ..., ...-... ..., notificada do despacho de indeferimento proferido na Direção de Finanças de Braga, no procedimento de reclamação graciosa autuado com o n.º ...2023..., através do ofício n.º..., de 03-01-2024 (doc. n.º 1), não se conformando com o mesmo, vem, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 3.º, n.º 1, e 10.º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, requerer a constituição de tribunal arbitral em matéria tributária e pedir a pronúncia arbitral de declaração de ilegalidade do mencionado despacho de indeferimento e bem assim da liquidação de IRS n.º 2022 ... que era a questionada no supra referido procedimento de reclamação graciosa. Peticiona também a devolução do imposto e juros compensatórios e moratórios que tenham sido pagos por causa da liquidação impugnada e o pagamento dos juros indemnizatórios que venham a ser devidos, nos termos do art.º 43.º da LGT.
É demandada a Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante referida por “AT” ou “Requerida”.
Em 01 de Abril de 2024, o pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e, automaticamente, notificado à AT.
Em conformidade com o disposto nos artigos 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, e 11.º, n.º 1, alínea a), todos do RJAT, o Exmo. Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os árbitros deste Tribunal Arbitral Colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
As Partes, notificadas dessa designação, não manifestaram vontade de a recusar (artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e c), do RJAT e artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD).
O Tribunal Arbitral ficou constituído em 14 de Junho de 2024.
Em 01 de Agosto de 2024, a Requerida apresentou Resposta e juntou o processo administrativo.
A Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) defendeu-se por impugnação, concluindo que o pedido de pronúncia arbitral deve ser julgado improcedente, com as legais consequências.
Por despacho de 23 de Agosto de 2024, dado não ter sido requerida prova testemunhal, dispensou-se a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT e facultou-se às partes a apresentação de de alegações escritas, por prazo sucessivo de 10 dias.
Não foram apresentadas alegações.
II. Saneamento
O Tribunal foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria para conhecer das liquidações aqui postas em crise, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, n.º 3, alíneas a) e b), 6.º, n.º 2, e 11.º, n.º 1, todos do RJAT.
As partes estão devidamente representadas, gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
A acção é tempestiva, tendo o pedido de pronúncia arbitral sido apresentado no prazo de 90 dias previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, de acordo com a remissão operada para o artigo 102.º, n.º 1, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”).
Não foram identificadas questões que obstem ao conhecimento do mérito.
III. Fundamentação de Facto
1. Matéria de Facto Provada
Com relevo para a decisão, julgam-se provados os seguintes factos:
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A Requerente deduziu prévia reclamação graciosa necessária, autuada sob o nº ...2023..., onde pedia “a anulação da liquidação de IRS n.º 2022..., que vem reclamada, em termos de que seja repristinada a liquidação n.º 2022..., que apura o valor a pagar de € 192,00, como liquidação efetivamente devida quanto aos rendimentos tributáveis em IRS obtidos pela Reclamante no ano de 2201.” (PA)
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Relativamente ao ano de 2021, a Requerente apresentou uma primeira declaração mod/3 de IRS de que decorreu uma primeira liquidação de imposto – liquidação n.º 2022..., efetuada em 2022-06-22 - que apurou um valor a pagar de € 192,00. (PA)
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Posteriormente apresentou uma segunda declaração mod/3, de substituição da primeira - declaração..., submetida em 2022-06-28 - de que decorreu a liquidação n.º 2022 ..., ora impugnada, a qual apura o valor a pagar de € 77 413,50, com base num rendimento global de € 276 476,79” (Docs. 2 e 3, juntos com o PPA, que aqui se dão por reproduzidos).
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A segunda declaração mod/3, ao contrário da primeira, integra o Anexo G, relativo a “MAIS VALIAS E OUTROS INCREMENTOS PATRIMONIAIS”, em cujo Quadro 4 – “ALIENAÇÃO ONEROSA DE DIREITOS REAIS SOBRE BENS IMÓVEIS (art.º 10.º.n.º 1, alínea a) do CIRS)” – foram declaradas alienações de direitos reais sobre bens imóveis, por um valor de realização global de € 325 000,00 e um valor de aquisição global de 49 208,93 (cit. Doc. 2).
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A segunda declaração mod/3 deveu-se a que tenha sido considerado alienação de direitos reais sobre bens imóveis o “CONTRATO DE COMPRA E VENDA DE QUINHÕES HEREDITÁRIOS”, celebrado pela Requerente e outros, na qualidade de vendedores, em 30 de Novembro de 2021 (Doc. n.º5 junto com o PPA, que aqui se dá por reproduzido).
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Da fundamentação do despacho de indeferimento da mencionada Reclamação Graciosa, notificado pelo Ofício n.º..., datado de 03-01-2024, consta, além do mais, o seguinte:
“2. Ainda, havendo vários herdeiros, e antes de efetuada a partilha, cada um deles, embora não tenha um direito real sobre os bens em concreto da herança, nem sequer sobre uma quota parte de cada um, detém um direito de quinhão hereditário, ou seja, a respetiva quota parte ideal da herança global em si mesma, direitos estes que tais herdeiros têm a propriedade (R. Capelo de Sousa, Sucessões, 2.º- 90).
3. A alienação de herança é, pois, a transmissão onerosa ou gratuita do património hereditário ou de uma sua quota, com todos os seus direitos e vinculações.
4. A referida transmissão, quando onerosa, é sujeita a tributação em sede de IMT, por se tratar de uma alienação da herança ou quinhão hereditário, nos termos do artigo 2.º, n.º 5, al. c), do CIMT.
5. No âmbito do IRS, e nos termos do artigo 10.º, número 1, alínea a), do Código do IRS, constituem mais valias os ganhos obtidos que, não sendo considerados rendimentos empresariais e profissionais, de capitais ou prediais, resultem da alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis.
6. No caso, não restam dúvidas que o sujeito passivo procedeu à transmissão onerosa da sua quota-parte do património imobiliário que compunha a herança, encontrando-se, por isso, os ganhos decorrentes de tal operação sujeitos a tributação, nos termos do artigo 10.º do Código doIRS.
7. Mais se refira que o contrato de compra e venda em causa foi realizado tendo como compradora uma sociedade de construção imobiliária e, nesse contrato, é ainda referido que a herança é exclusivamente constituída por 11 imóveis (não constando que a herança tenha quaisquer outros ativos ou passivos), ou seja, trata-se, de facto, da venda da parte daqueles imóveis que pertenciam à reclamante.” (Docs. 1 e 6 juntos com o PPA, que aqui se dão por reproduzidos).
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O presente PPA foi apresentado em 28-03-2024 (SGP do CAAD).
2. Factos não Provados
Não há factos relevantes para decisão da causa que não se tenham provado.
3. Motivação da Decisão de Facto
Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, em face das soluções plausíveis das questões de direito, nos termos da aplicação conjugada dos artigos 123.º, n.º 2 do CPPT, 596.º, n.º 1 e 607.º, n.º 3 do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e) do RJAT, não tendo o Tribunal de se pronunciar sobre todas as alegações das Partes.
A convicção do Tribunal fundou-se na análise dos documentos existentes nos autos, nomeadamente o PA junto pela Requerida e os anexados com o PPA, conforme está refectido em relação a cada facto considerado provado.
Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas Partes e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja validade terá de ser aferida em relação à concreta matéria de facto consolidada.
IV. FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
1. QUESTÃO A DECIDIR
A única questão a resolver consiste em ajuizar sobre se os ganhos resultantes da alienação de quinhão hereditário, quando este inclua bens imóveis ou seja constituído apenas por imóveis, se encontram abrangidos ou não pelo disposto na alínea a) do nº 1 do artº 10º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares.
2 - APRECIAÇÃO
Alega a Requerente, em síntese:
- A alienação do quinhão hereditário, mesmo que o acervo da herança inclua bens imóveis – ou até que seja integrado apenas por bens imóveis – não constitui alienação de qualquer direito real sobre os imóveis, mas apenas de um direito a uma quota ideal na herança.
- Louva-se no sentido da Jurisprudência que “uniformemente tem sido produzida a propósito de casos iguais, ou noutros em que também importava avaliar o alcance dispositivo da norma em questão” (art.º 10.º,n.º1, alínea a) do CIRS), citando nomeadamente os acórdãos do STA, de 25-11-2009, no P. n.º 0975/09, de 28-01-2015, no P. n.º 0450/14, bem assim nas Decisões Arbitrais proferidas no CAAD, em 13-10-2020, no P. n.º 147/2020-T, e em 23-12-22, no P. n.º 247/2022-T.
- Alude ao Acórdão prolatado pelo STA, em 05-02-2015, no P. n.º 01808/13, e transcreve parte do sumário do Ac. STA, de 15-06-2016, no P. n.º 01863/13:
“II - Constituindo a herança indivisa uma universalidade relativamente à qual não houve ainda partilha de bens (art. 2119º do CCivil), estamos em presença de um «património autónomo» partilhado, em regime de comunhão (e não em compropriedade), pelos co-herdeiros, os quais não detêm qualquer direito próprio sobre cada bem individualizado que compõe a herança indivisa, sendo apenas seus titulares em comunhão”.
- Reitera a contradição entre a posição assumida pelo Senhor Chefe de Divisão no despacho que aqui se contesta e aquela que vem sustentada pela AT/FT nos supra referidos processos do STA n.ºs 01808/13 e 01863/13, bem assim no também supra referido processo n.º 147/2020-T do CAAD.
A Autoridade Tributária (requerida) contrapõe, resumidamente:
- Sendo a alienação de quotas em propriedade de bens imóveis subsumível à previsão contida na alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º do CIRS, sendo as suas regras aplicáveis às situações de comunhão, como sucede com os quinhões hereditários, e sendo indiscutível a retroactividade da aceitação da herança ao momento da sua abertura, é também indiscutível que as alienações de quinhões hereditários contendo imóveis são abrangidas pela alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º do CIRS.
- Até porque o n.º 1 do artigo 46.º do CIRS é claro ao remeter para o CIMT o apuramento de valores de aquisição de bens imóveis, ao ponto de, nos termos do n.º 2, determinar que quando não houver lugar à liquidação daquele imposto sobre o património dever ser considerado o valor que, se tal liquidação fosse devida, lhe deveria servir de base.
- A alienação de quinhões hereditários quando nestes se compreendam bens imóveis surge expressamente prevista como sujeita a IMT na parte final da alínea c) do n.º 5 do artigo 2.º do CIMT, sendo o valor relevante para efeitos de liquidação deste tributo que será considerado para efeitos de determinação de valor aquisitivo em sede de IRS.
- Se da transmissão de um imóvel resulta uma mais-valia, a configuração económica desta não será diferente pelo facto de o imóvel ser transacionado isoladamente ou inserido num quinhão de herança, não podendo esta substância económica ser desprezada pelo intérprete na determinação do sentido da alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º do CIRS, sob pena de violação, entre outros, dos princípios da legalidade e da igualdade.
- Nos termos do disposto no artigo 2124.º do C.C. a “(…) alienação de quinhão hereditário está sujeita às disposições reguladoras do negócio jurídico que lhe deu causa”, tendo, cfr. n.º do artigo 2126.º do mesmo Código, de ser “(…) feita por escritura pública ou documento particular autenticado se existirem bens cuja alienação deva ser efetuada por uma dessas formas”, como sucede na alienação de bens imóveis, artigo 875.º do C.C.
- Tal como estabelece o artigo 2128.º do C.C., o adquirente do “(…) quinhão hereditário sucede nos encargos respetivos” e segundo decorre do artigo 2119.º do C.C, feita a partilha, cada um dos herdeiros é considerado, desde a abertura da herança, sucessor único dos bens que lhe foram atribuídos.
- Do plasmado no artigo 1404.º do C.C. “As regras da compropriedade são aplicáveis, com as necessárias adaptações, à comunhão de quaisquer outros direitos (…)”, afigurando-se pacífico que a alienação de quotas em propriedade de bens imóveis é subsumível à previsão contida na alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º do CIRS e que as suas regras são aplicáveis às situações de comunhão, como sucede com os quinhões hereditários, e, bem assim, é também comummente aceite a retroatividade da partilha, não se vislumbrando, assim, qual o fundamento para não se considerar as alienações de quinhões hereditários contendo imóveis como abrangidas por aquela previsão legal.
***
Cumpre decidir.
Para o que aqui releva, o CIRS, no seu artigo 10.º, sob a epígrafe Mais-Valias, estabelece o seguinte:
“1 - Constituem mais-valias os ganhos obtidos que, não sendo considerados rendimentos empresariais e profissionais, de capitais ou prediais, resultem de:
a) Alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis;
(...)”
E a questão que se coloca é, como visto, a de determinar se eventuais ganhos emergentes da alienação de quinhão hereditário, quando este integre bens imóveis, pode ou não assimilar-se à alienação onerosa de direitos reais sobre imóveis, para efeitos de tributação em mais-valias, à luz do preceituado naquele inciso legal.
Pode adiantar-se, desde já, que a questão a dirimir está plúrima e unanimemente discutida na jurispridência superior no sentido negativo, ou seja, de que a alienação de quinhão hereditário composto por bens imóveis, não constitui alienação onerosa de direitos reais sobre imóveis.
Do elenco jurisprudencial destacam-se os arestos seguintes:
- do STA, de 25-11-2009, no P. 0975/09,
“I – Enquanto a herança se mantiver indivisa, cada herdeiro é titular de um direito a uma quota de uma massa de bens, que constitui um património autónomo e não um direito individual sobre cada um dos bens que a integram.
II – Assim, porque a alienação (no caso dos autos, permuta com outros bens de terceiro) de quinhão hereditário, mesmo que a herança seja apenas constituída por bens imóveis, não pode considerar-se “alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis”, não estão sujeitos a IRS os eventuais ganhos resultantes dessa alienação.
III – A impugnação judicial deduzida na sequência de indeferimento de reclamação graciosa e com o mesmo fundamento desta, tem por objecto a anulação do acto tributário.
IV – Deste modo, julgando o juiz procedente a impugnação por ilegalidade do acto tributário, deve anular esse acto e não anular o despacho de indeferimento da reclamação graciosa e ordenar a sua substituição por outro que, reconhecendo a ausência de norma de incidência acima exposta, decida a reclamação”.
- do STJ, de 09-12-2012, no P. 2752/07.8TBTVD.L1. S1,
“1. A transmissão do direito à meação e bem assim do direito ao quinhão hereditário fazem operar a passagem para a esfera jurídica dos compradores o conteúdo de um direito abstractamente considerado e idealmente definido, como expressão patrimonial ainda incerta e cujas demarcação e abrangência também se patenteiam inseguras.
2. O que aos adquirentes destes direitos fica atribuída é a possibilidade de poderem exercer naquela universalidade jurídica um seu direito próprio perante os restantes interessados no "direito à meação” e no “quinhão hereditário”, designadamente legitimando-os a, com vista a concretizar esta sua prerrogativa, se e quando assim o entenderem, darem os passos necessários tendentes a haver para si a quota-parte dos bens determinados que integram tal herança.
3. Enquanto se não constatar a efectiva titularidade de algum (ou alguns) bem concreto que constitui tal universalidade jurídica, os protegidos com esta venda não desfrutam do atinente direito sobre certo e determinado bem.
(...)”
- do STJ, de 30-01-2013, no P. 1100/11.7TBABT.E1.S1,
“I - Tanto a jurisprudência, como a mais abalizada doutrina da especialidade, apontam decisivamente no sentido de que só se pode dividir os bens da herança de que se seja proprietário, ou seja, que tenham sido atribuídos aos herdeiros em partilha previamente realizada.
II - A ratio de tal solução é muito simples: é que, até à partilha, os co-herdeiros de um património comum, adquirido por sucessão mortis-causa, não são donos dos bens que integram o acervo hereditário, nem mesmo em regime de compropriedade, pois apenas são titulares de um direito sobre a herança (acervo de direitos e obrigações) que incide sobre uma quota ou fracção da mesma para cada herdeiro, mas sem que se conheça quais os bens concretos que preenchem tal quota.
III - É pela partilha (extrajudicial ou judicial e, neste caso, através do processo de inventário-divisório) que serão adjudicados os bens dessa universalidade que é herança e que preencherão aquelas quotas.
Por isso, assim se ponderou no aresto deste Supremo Tribunal, de 04-02-1997 supra citado: «A compropriedade pressupõe um direito de propriedade comum sobre uma coisa ou bem concreto e individualizado, ao invés do que sucede na contitularidade do direito à herança que recai obre uma universalidade de bens, ignorando-se sobre qual ou quais deles o direito hereditário se concretizará».
IV - O Ilustre Professor de Coimbra, Doutor Rabindranath Capelo de Sousa assim ensina nas sua Lições de Direito das Sucessões: «Nos casos em que haja lugar à partilha da herança, segundo a opinião dominante, o domínio e posse sobre os bens em concreto da herança só se efectivam após a partilha, uma vez que até aí a herança constitui um património autónomo nada mais tendo os herdeiros do que o direito a uma quota parte do património hereditário» ( Lições de Direito das Sucessões, pg. 185).
V - Por sua vez, outro Professor de Coimbra, o Doutor Pereira Coelho, assim escreveu nas sua obra de Direito das Sucessões: «Não se trata uma vulgar compropriedade entendida como participação na propriedade de bens concretos e determinados. Pelo contrário, contitularidade do direito à herança significa tanto como um direito a uma parte ideal, não de cada um dos bens de que se compõe a herança, mas sim da própria herança em si mesma considerada» (Pereira Coelho, Direito das Sucessões, 2ª ed. 1966-1967).”[1]
Da força esmagadora desta corrente jurisprudencial e doutrinal, à qual se adere sem qualquer reserva, deve concluir-se que a alienação de quinhão hereditário composto por bens imóveis, não constitui alienação onerosa de direitos reais sobre imóveis, designadamente para efeitos do disposto na alínea a) do nº 1 do artº 10º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares. Nessa medida, cumpre declarar a procedência do pedido formulado pela Requerente.
Pedido de reembolso das quantias pagas e juros indemnizatórios
A Requerente pede “a devolução do imposto e juros compensatórios e moratórios que tenham sido pagos por causa da liquidação impugnada”, acrescidos de juros indemnizatórios.
Na sequência da anulação das liquidações, a Requerente tem direito a ser reembolsada das quantias indevidamente pagas, o que é consequência da anulação.
Porém, no caso em apreço não resulta provado que a Requerente tenha pago a quantia da liquidação que veio impugnar. Na verdade, não junta o exigível comprovativo documental e, em rigor, nem alega tal pagamento, o que inviabiliza a pronúncia de qualquer decisão a tal respeito.
De qualquer modo, em harmonia com o disposto no artigo 100.º da LGT, estabelece a alínea b) do n.º 1 do artigo 24.º do RJAT que a decisão arbitral vincula a administração tributária a “Restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito”.
Enquanto tal, o que respeita ao eventual reembolso do imposto e juros indmnizatórios terá que ser promovido em sede de execução da presente decisão arbitral, nos termos das disposições legais acabadas de citar.
V. Decisão
Pelo exposto, decide este Tribunal Arbitral julgar procedente o pedido arbitral e, em consequência, determinar:
- I) A declaralação de ilegalidade e consequente anulação do despacho de indeferimento da reclamação graciosa n.º ...2023...;
- II) A declaração de ilegalidade e consequente anulação da liquidação de IRS aqui impugnada, com o n.º 2022..., na quantia de € 77 413,50 (setenta e sete mil quatrocentos e treze euros e cinquenta cêntimos), com as legais consequências;
- III A condenação da Autoridade Tributária e Aduaneira, aqui requerida, nas custas do processo.
VI. Valor do Processo
Fixa-se o valor do processo em € 77 413,50 (setenta e sete mil quatrocentos e treze euros e cinquenta cêntimos), nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e do artigo 306.º, n.º 2, do CPC, ex vi artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”).
VII. Custas
Custas no montante de € 2.448,00, a cargo da Requerida, de acordo com a Tabela I anexa ao RCPAT e com o disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT, 4.º, n.º 5, do RCPAT e 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.
Notifique-se.
Lisboa, 29 de Novembro de 2024
Os Árbitros,
(Fernando Araújo)
(Fernando Marques Simões)
(A. Sérgio de Matos - relator)
[1] No mesmo sentido v. também os acórdãos do STA: de 05-02-2015, no P. 01808/13; de 15-06-2016, no P. 01863/13; de 28-01-2015, no P. 0450/14; de 12-02-2020, no P. 0360/12.0BECBR 449/18 e de 07-04-2021, no P. 077/17.0BEPDL. Bem asssim, as decisões arbitrais prolatadas nomeadamente nos P. 627/2017-T e 247/2017-T.