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SUMÁRIO:
I - Para efeitos do art. 14.º, 6, b), RGIC, o requisito de constar no contrato de locação financeira a obrigação de o beneficiário do auxílio adquirir o ativo no seu termo deve ser interpretado considerando os interesses subjacentes à norma bem como a matriz concetual do respetivo regime do contrato de locação financeira (DL 149/95, de 24 de junho), no sentido de ser da essência do contrato não forçar o locatário a adquirir a coisa locada; ele só a adquire se optar por isso.
II - A melhor interpretação é a que consegue conciliar os interesses em jogo; perante um contrato de locação financeira em que dele apenas resulta uma opção de compra, a AT pode lançar mão do art. 46.º, 2, c), LGT, devendo, no termo do contrato, encontrando-se o prazo de caducidade do direito à liquidação suspenso, aferir se essa compra se concretizou ou não, para, depois, atuar em conformidade, liquidando o imposto que deve ser liquidado.
DECISÃO ARBITRAL
Os árbitros Victor Calvete (Presidente), Ângelo António Almeida Pereira Dias e Ricardo Maques Candeias (Relator), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”), para formarem o Tribunal Arbitral Coletivo, acordam no seguinte:
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Relatório
A) Dinâmica processual
A..., S.A, sociedade comercial anónima, com sede em..., n.º ..., ..., ...-... ..., NIPC..., (doravante, Requerente), apresentou pedido de pronúncia arbitral (PPA) ao abrigo das disposições conjugadas dos arts. 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro (RJAT), para que seja anulado o ato de liquidação adicional de IRC n.º 2023..., das respetivas liquidações de juros compensatórios n.º 2023 ... e n.º 2023..., bem como da respetiva compensação n.º 2023 ..., num montante total de € 77.585,25, bem como indemnização por prestação de garantia indevida.
É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante também designada por “Requerida” ou “AT”.
No dia 26 de março de 2024 o pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite e automaticamente notificado à Requerente e à AT.
Nos termos do disposto no artigo 5.º, n.º 3, alínea a), do artigo 6.º, n.º 2, alínea a), e do artigo 11.º, n.º 1, alínea b), do RJAT, na redação vigente, o Exmo. Senhor Presidente do Conselho Deontológico designou os árbitros do Tribunal Arbitral coletivo, que comunicaram a aceitação do encargo.
Em 17 de maio de 2024, as Partes foram notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados das alíneas a) e c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
O Tribunal Arbitral Coletivo ficou constituído em 5 de junho de 2024.
Em 11 de julho de 2024, a Requerida apresentou Resposta, defendeu-se por impugnação, pugnando pela improcedência do PPA.
Na mesma data juntou o processo administrativo (“PA”).
A 16 de julho de 2024 foi determinado a dispensa da reunião prevista no artigo 18.º, RJAT, ao abrigo dos princípios da autonomia do Tribunal Arbitral na condução do processo (artigo 19.º, RJAT), e da celeridade, da simplificação e da informalidade processuais (artigo 29.º, 2, RJAT), bem como a dispensa para a apresentação de alegações, e determinando-se que a decisão arbitral deve ser proferida até ao dia 5 de dezembro de 2024 bem como o pagamento da taxa de arbitragem subsequente.
Inconformado, veio a Requerente, a 13 de agosto de 2024, apresentar requerimento onde contradita passagens da Resposta da AT, reitera o seu interesse na audição de uma das testemunhas e junta aos autos novos documentos.
Notificada para exercer o contraditório, veio a AT alegar que o requerimento da Requerente só seria admissível em matéria de exceção, que não constava da sua Resposta, pelo que deve ser desentranhado, bem como os documentos juntos, mantendo a sua oposição à audição da testemunha.
Por despacho de 20 de setembro de 2024, veio Tribunal decidir pelo desentranhamento do requerimento da Requerente e seus anexos bem como pela resposta da AT.
Inconformado, de novo, veio a Requerente, a 8 de outubro de 2024 insistir pela manutenção dos documentos juntos aos autos bem como pela produção de prova testemunhal.
Ora, sobre o supra requerido já o Tribunal se pronunciou, pelo que nada mais há a despachar, mantendo-se o decidido.
B. Posição das partes
Para fundamentar o seu pedido alega a Requerente, em síntese, ter sido objeto de inspeção tendo sido detetado que usufruiu de benefícios fiscais em sede de RFAI, cujo início ocorreu em 2018, por intermédio do qual deduziu à coleta o montante de €282.809,38.
No entanto, a AT entende que as despesas consideradas elegíveis por parte da Requerente para efeitos de RFAI devem ser desconsideradas, tendo em conta que parte dos investimentos foram realizados com recurso a contratos de locação financeira dos quais não resultavam quaisquer cláusulas de compra obrigatória dos bens.
Em segundo lugar, a AT entende que foram incumpridos os requisitos exigidos quanto à criação de postos de trabalho, tendo em conta que estes não estavam diretamente relacionados com os investimentos efetuados.
Insurge-se o SP, pois, quanto ao primeiro ponto, foram acrescentados aos contratos de locação financeira uma declaração unilateral de aquisição a exercer no final dos seus prazos.
Considera ter ocorrido uma errada interpretação do art. 14.º, 6, b), RGIC, na medida em que a AT fez tábua rasa dos princípios decorrentes da ordem jurídica euro-comunitária, ao desconsiderar as particularidades associadas à interpretação teleológica do Direito da União Europeia, a relevância do enquadramento sistemático das locações financeiras no âmbito da fiscalidade europeia, a aplicação do princípio da substância sobre a forma e, por fim, as regras europeias quanto à harmonização do tratamento contabilístico das locações financeiras.
Quanto ao segundo ponto, à luz de uma análise de acordo com o critério da Unidade Trabalho-Ano, verificou-se sempre uma constante evolução positiva, passando para 108,25 em 2019, 140,71 em 2020 e 188,35 em 2021.
A posição da AT, neste conspecto, assentou numa errada interpretação do art. 22.º, 4, f), CFI, para além de consistir numa violação flagrante do princípio do primado e interpretação conforme do Direito Europeu e numa violação do princípio da boa-fé́.
A latere, mas não de somenos importância, a Requerente ainda alega a errada qualificação do procedimento inspetivo, pois não é interno, mas sim externo, na medida em que a análise da AT centrou-se, apenas e só, na análise de elementos que foram recolhidos no âmbito das inspeções externas realizadas por referência aos exercícios de 2019 e 2020. Por ter sido violado o art. 49.º, RCPITA, entende a Requerente que ocorre a invalidade deste procedimento (art. 99.º, d), CPPT).
Além disso, verifica-se a caducidade do direito à liquidação do ato tributário que ora se discute, na medida em que, na perspetiva da AT, as condições impostas pelo art. 22.º, 4, f), CFI não foram cumpridas ab initio (desde 2018).
Conclui pedindo a declaração de ilegalidade do ato de liquidação identificado, bem como indemnização por prestação de garantia indevida.
Por sua vez, a AT considera correta a qualificação do procedimento como interno e, mesmo se assim não fosse, essa qualificação é irrelevante para o caso, além de não gerar a anulabilidade da decisão do procedimento uma alegada falta da notificação prévia, prevista no art. 49.º, RCPIT, sendo mera irregularidade, in casu.
Quanto à alegada caducidade, a mesma não se verifica, pois, o prazo de caducidade do direito à liquidação do IRC do exercício de 2018 ficou suspenso desde a data em que a Requerente apresentou a modelo 22, de IRC do exercício de 2018, (22.06.2019) até ao termo do período de três anos a contar da data do investimento.
Quanto às duas razões de fundo que sustentam o ato de liquidação ora em apreciação, considera a AT: i) que o elemento literal bem como uma interpretação teleológica do art. 14.º, 6, b), RGIC, exige que os contratos de locação financeira incluam a obrigação de compra pois só assim se assegura que os auxílios ao investimento resultem em benefícios duradouros e tangíveis para as empresas beneficiárias; além de ii) a criação de postos de trabalho tem de se encontrar diretamente conexionada (nexo de causalidade) com o investimento, tendo esses mesmos postos de trabalho de ser mantidos durante o período mínimo de detenção dos bens objeto de investimento, nos termos do art. 22.º, 4, c), CFI.
Conclui pela legalidade do ato de liquidação e, consequentemente, pela ausência de fundamentação do pedido de indemnização por prestação de garantia indevida a favor do SP.
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Questões a decidir
As questões a apreciar e a decidir são as de saber i) qual a melhor interpretação para o dispositivo legal que impõe a obrigação de o beneficiário do auxílio adquirir o ativo no termo do contrato de locação; e ainda ii) se se impõe um nexo de causalidade entre os postos de trabalho criados e os bens objeto de investimento.
Complementarmente, importa apreciar a qualificação do procedimento inspetivo e a caducidade do direito à liquidação do ato tributário.
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Saneamento
O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria para conhecer das liquidações de IRC, à face do preceituado nos arts. 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a) e 11.º, n.º 1, todos do RJAT.
As partes gozam de personalidade e de capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas (v. arts. 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
A ação é tempestiva, tendo o pedido de pronúncia arbitral sido apresentado no prazo de 90 dias previsto no art. 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT, de acordo com a remissão operada para o art. 102.º, n.º 1 do CPPT.
O processo não enferma de nulidades.
Importa, previamente, apreciar a questão da caducidade do direito à liquidação bem como da qualificação do procedimento inspetivo, para depois aferirmos da legalidade do ato em causa. Relegamos o tratamento destes temas para o segmento onde apreciaremos o mérito do ato.
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Matéria de facto
1. Factos provados e não provados
A. Factos provados
Consideram-se provados os seguintes factos com relevo para a decisão:
A) No exercício de 2018, a Requerente era uma sociedade anónima, com estabelecimento estável, com sede em ..., n.º ..., ..., ..., estando coletada para o CAE principal 08113 – Extração de calcário e cré e CAE secundário 1: 008111 – Extração de mármore e outras rochas carbonatadas; 2: 046732 – Comércio grosso de materiais construção (exceto madeira) e Equipamento sanitário; 3: 008121 – Extração de saibro, areia e pedra britadas; 4: 008112 – Extração de granito ornamental e rochas similares; 5: 023992 – Fabrico outros produtos minerais não metálicos diversos N.E.;
B) A Requerente estava enquadrada como sujeito passivo de IRC, inscrita no regime geral de tributação, e em sede de Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA), no regime normal mensal.
C) Com referência à data dos factos, a Requerente dispunha de contabilidade regularmente organizada, de acordo com a normalização contabilística e as disposições legais em vigor para o respetivo setor de atividade, não tinha o seu lucro tributável determinado por métodos indiretos e não era devedora ao Estado e à segurança social de contribuições, impostos ou quotizações.
D) A Requerente não era qualificada como uma empresa em dificuldades, nos termos da comunicação da Comissão — Orientações relativas aos auxílios estatais de emergência e à reestruturação concedidos a empresas não financeiras em dificuldade, publicada no Jornal Oficial da União Europeia, n.º C 249, de 31 de julho de 2014.
E) Nos anos de 2018 a 2020 a Requerente foi classificada como uma PME.
F) Foi objeto de ação inspetiva respeitante ao exercício de 2019 e ao exercício de 2020, realizadas, respetivamente, ao abrigo da Ordem de Serviço Externa n.º OI2022..., de 12 de abril de 2022, e da Ordem de Serviço Externa n.º OI2023..., datada de 01 de março de 2023.
G) No âmbito da ação inspetiva respeitante ao exercício de 2019, a AT detetou que o Requerente usufruiu de benefícios fiscais em sede de RFAI cujo início ocorreu em 2018, conforme quadro 074, do anexo D, da Modelo 22, de IRC:
H) O Requerente deduziu à coleta o montante de €282.809,38, relativo a dotação do benefício fiscal RFAI, referente ao exercício de 2019.
I) Consequentemente, foi emitida a Ordem de Serviço Interna n.º OI2023..., de 04 de maio de 2023, originando a ação inspetiva de âmbito interno e parcial (art. 14.º, 1, b), RCPITA), em sede de IRC, para efeitos de controlo dos benefícios fiscais, ao exercício de 2018.
J) A ação de âmbito “parcial”, em sede de IRC, foi emitida para efeitos de controlo dos sujeitos passivos que usufruíram de benefícios fiscais, com incidência no exercício de 2018 (doc. 1 - RIT).
K) Este procedimento foi comunicado à Requerente através de notificação eletrónica, em 26 de maio de 2023, nos termos do art. 69.º, 2, LGT.
L) A ação inspetiva iniciou-se a 26 de junho de 2023, tendo o respetivo términus ocorrido em 01 de setembro de 2023.
M) A AT não realizou a inspeção nas instalações da Requerente.
N) A AT solicitou à Requerente informações e documentos, a que a Requerente respondeu.
O) Na sua declaração de rendimentos Modelo 22 de IRC de 2018 (Anexo D), a Requerente declarou ter direito à dotação de 454.452,20€, via RFAI, da qual deduziu, no ano de 2018, a importância de 66.335,49€, fazendo transitar para anos seguintes o valor de 388.116,71€:
P) Para este efeito, os investimentos considerados relevantes foram os seguintes (RIT):
Q) A despesa de 1.660.280,00€ ocorreu com contratos de locação financeira dos seguintes equipamentos:
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Bem n.º 18EB001 com o valor de €52.000,00;
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Bem n.º 18EB003 com o valor de €12.000,00;
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Bem n.º 18EB004 com o valor de €37.000,00;
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Bem n.º 18EB010 com o valor de €150.000,00;
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Bem n.º 18EB013 com o valor de €71.680,00;
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Bem n.º 18EB014 com o valor de €68.000,00;
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Bem n.º 18EB015 com o valor de €150.000,00;
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Bem n.º 18EB016 com o valor de €150.000,00;
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Bem n.º 18EB019 com o valor de €129.000,00;
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Bem n.º 18EB020 com o valor de €62.000,00;
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Bem n.º 18EB021 com o valor de €70.000,00;
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Bem n.º 18EB034 com o valor de €110.000,00;
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Bem n.º 18EB043 com o valor de €225.000,00;
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Bem n.º 18EB044 com o valor de €167.550,00;
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Bem n.º 18EB045 com o valor de €172.500,00;
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Bem n.º 18EB049 com o valor de €33.600,00.
R) Dos referidos contratos de locação financeira, nas respetivas condições gerais/particulares, vem genericamente determinado que, na vigência dos mesmos, o bem é propriedade dos locadores, mas também que, no final, esse bem lhes deve ser devolvido, a não ser que seja exercida a opção de compra ou renovado o contrato de locação. (RIT)
S) Os bens locados foram reconhecidos, desde o primeiro momento, na rúbrica de ativos do balanço da Requerente.
T) A Requerente pagou o valor residual dos sete contratos de locação financeira que já foram integralmente executados:
i. Bem n.º 18EB001, com o valor de €52.000,00 e valor residual de €1.040,00;
ii. Bem n.º 18EB003 e Bem n.º 18EB004, com o valor de €12.000,00 e €37.000,00, respetivamente, e valor residual de €1.260,00;
iii. Bem n.º 18EB010, com o valor de €150.000,00 e valor residual de €3.000,00;
iv. Bem n.º 18EB013, com o valor de €71.680,00 e valor residual de €1.433,60;
v. Bem n.º 18EB043, com o valor de €225.000,00 e valor residual de €4.500,00;
vi. Bem n.º 18EB044, com o valor de €167.550,00 e valor residual de €3.350,00;
vii. Bem n.º 18EB045, com o valor de €172.500,00 e valor residual de €3.450,00;
U) Quantos aos outros contratos, foram objeto de alterações contratuais que resultaram em prorrogações dos prazos de locação inicialmente estabelecidos, com os seguintes valores residuais:
i. Bem 18EB014, com o valor de €68.000,00 e o valor residual de €1.360,00 em 05/06/2025;
ii. Bem 18EB015, com o valor de €150.000,00 e o valor residual de €3.000,00 em 05/05/2025;
iii. Bem 18EB016, com o valor de €150.000,00 e o valor residual de €3.000,00 em 05/05/2025;
iv. Bem 18EB019, com o valor de €129.000,00 e o valor residual de €1.820,00 em 05/06/2025;
v. Bem 18EB020, com o valor de €62.000,00 e o valor residual de €1.240,00 em 05/06/2025;
vi. Bem 18EB021, com o valor de €70.000,00 e o valor residual de €1.400,00 em 05/06/2025;
vii. Bem 18EB034, com o valor de €110.000,00 e o valor residual de €2.220,00 em 09/10/2024;
viii. Bem 18EB049, com o valor de €33.600,00 e o valor residual de €672,00 em 15/12/2025 (cfr. contrato 2018051163 e respetivas alterações contratuais que ora se juntam como docs. 32 e 33).
V) A ora Requerente contactou o BPI e a CGD, com quem celebrou os contratos de locação financeira ainda em curso, a fim de assegurar a introdução de uma cláusula de compra obrigatória nos contratos em causa
W) Ambos os bancos recusaram a introdução dessa cláusula.
X) A ora Requerente emitiu uma declaração unilateral de opção de compra dos referidos equipamentos.
Y) A Requerente celebrou, em 2018, contratos de trabalho por tempo indeterminado com: i)B..., assistente operacional, com contrato de trabalho celebrado a 02/05/2018; ii) C..., técnica de contabilidade, com contrato de trabalho celebrado a 18/09/2018; iii) Daniela Gomes Bento, administrativa de contabilidade, com contrato de trabalho celebrado a 31/10/2018;
Z) Foram criados em 2018 um posto de trabalho de "assistente operacional", um posto de trabalho de "técnica de contabilidade" e outro posto de trabalho de "administrativa de contabilidade".
AA) Na sequência de solicitação da autoridade tributária, a Requerente por mensagem eletrónica de 13 junho 2023 informou o seguinte:
Os trabalhadores admitidos conexos com o investimento RFAI:
· 2018 – Mantiveram-se até ao final do período de manutenção
· 2019 - Mantiveram-se até ao final do período de manutenção
· 2020 – À data de hoje, todos os trabalhadores admitidos no âmbito do investimento RFAI, se mantêm na empresa.”
BB) A Unidade Trabalho-Ano (UTA) da Requerente era de: ano de 2017: 53 UTA; ano de 2018: 71,49 UTA; ano de 2019: 108,25 UTA; ano de 2020: 140,71; ano de 2021: 188,35.
CC) B... deixou de ser trabalhador da Requerente em agosto de 2022.
DD) As ações inspetivas relativas a 2018 e a 2019 terminaram a 01 de setembro de 2023.
EE) Resultam do RIT relativo ao exercício de 2018, datado de 11 de outubro de 2023, as seguintes correções técnicas:
Em sede de IRC, verificou-se a fruição indevida de incentivos no âmbito do RFAI, propondo-se a respetiva correção, nos montantes que abaixo se indica:
Em face da correção proposta à dotação do período de 2018, no valor de € 454.452,20, irá ser corrigida a dedução à coleta de IRC, no mesmo período, no montante de 66.335,49 €.
O valor da dotação de RFAI considerada indevida, remanescente, no montante de € 388.116,71 (€ 454.452,20-€ 66.335,49) irá diminuir o valor a deduzir à coleta do(s) exercício(s) posteriores, em que a mesma for utilizada.
FF) Retira-se do RIT a seguinte fundamentação, quanto ao investimento efetuado:
GG) Quanto aos postos de trabalho criados, do RIT resulta:
(...)
HH) Com fundamento no RIT de 2018, foi emitida a liquidação adicional de IRC n.º 2023..., assim como as liquidações de juros compensatórios n.º 2023 ... e n.º 2023..., e a respetiva liquidação de acerto de contas, associada à compensação n.º 2023..., no montante total de €77.585,25.
II) A Requerente não procedeu ao pagamento do valor referido.
JJ) A Requerente apresentou garantia voluntária traduzida num penhor de inventários, no âmbito do processo de execução fiscal n.º ...2024...1, que corre termos junto do Serviço de Finanças de Ourém, tendo em vista a suspensão deste processo.
B) Factos não provados
Não existem factos relevantes para a decisão que não se tenham provado.
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Motivação da decisão da matéria de facto
Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, em face das soluções plausíveis das questões de direito, nos termos da aplicação conjugada dos arts. 123.º, 2, CPPT, 596.º, 1, e 607.º, 3, CPC, aplicáveis por remissão do art. 29.º, 1, a) e e), RJAT, não tendo o Tribunal de se pronunciar sobre todas as alegações das Partes.
No que se refere aos factos provados, a convicção dos árbitros teve em conta a posição assumida pelas Partes em relação à matéria de facto e fundou-se essencialmente na análise crítica da prova documental junta aos autos, nomeadamente, do PPA, da documentação junta bem como do PA organizado nos termos do art. 111.º, CPPT, junto pela Requerida.
Não se deram como provadas nem não provadas as alegações feitas pelas Partes e apresentadas como factos, consistentes em meros juízos conclusivos, insuscetíveis de prova e cuja validade terá de ser aferida em relação à concreta matéria de facto consolidada.
V. Matéria de direito
Como vimos, o mérito dos temas em apreciação nos presentes autos, para efeitos de RFAI, são: i) a elegibilidade da despesa emergente de contratos de locação financeira por deles não resultar a obrigação de o beneficiário do auxílio adquirir o ativo no termo do contrato de locação — apenas deles resulta uma mera opção de compra do bem no final do contrato (art. 14.º, 6, b), RGIC); ii) o requisito da criação de postos de trabalho
Subsequentemente, coloca-se a questão do direito a indemnização por prestação e garantia indevida bem como o direito a juros indemnizatórios a favor do SP.
No entanto, preliminarmente, teremos de nos pronunciar sobre a qualificação do procedimento inspetivo bem como da alegada caducidade do direito à liquidação.
i) Caducidade do direito à liquidação
A Requerente imputa à liquidação que ora se aprecia o vício de caducidade do direito de liquidação por entender que à data da notificação, em 2023, já teria decorrido o prazo de caducidade de quatro anos, previsto no artigo 45.º, 1, LGT.
Para a Requerente, o prazo de caducidade não se suspendeu por força do disposto no artigo 46.º, 2, c), LGT, pois, o incumprimento que a AT considera existir em relação à criação de postos de trabalho e a sua manutenção até ao final do período mínimo de manutenção dos bens objeto de investimento reporta-se ao próprio ano de 2018.
Nesse sentido — não existindo a necessidade de verificar a manutenção dos postos de trabalho ao longo do período de três anos subsequentes, já que se considera incumprida a condição quanto à sua criação desde o primeiro momento — não deve ser considerada a suspensão do prazo de caducidade, consagrada no artigo 46.º, n.º 2, alínea c) da LGT. Por conseguinte, no momento em que foi emitida a ordem de serviço n.º OI2023..., o direito a liquidar o imposto já tinha caducado.
Por sua vez, alinhada com a apreciação já considerada em sede de RIT, a AT entende que o prazo de caducidade do direito à liquidação do IRC do exercício de 2018 ficou suspenso desde a data em que a Requerente apresentou a modelo 22, de IRC do exercício de 2018, (22 de junho de 2019) até ao termo do período de três anos a contar da data do investimento.
No RFAI encontra-se previsto no art. 22.º, 4, c) e f), do Código Fiscal do Investimento (CFI), que os bens objecto de investimento «na empresa e na região (devem manter-se) durante um período mínimo de três anos a contar da data dos investimentos, no caso de micro, pequenas e médias empresas», bem como se deve manter pelo mesmo período os postos de trabalho criados com o investimento.
Portanto, o RFAI consagra benefícios fiscais de natureza condicionada.
Por sua vez, determina o art. 46.º, 2, c), LGT, a suspensão do prazo de caducidade do direito de liquidação "em caso de benefícios fiscais de natureza condicionada, desde a apresentação da declaração até ao termo do prazo legal do cumprimento da condição".
António Lima Guerreiro, Lei Geral Tributária Anotada, Rei dos Livros, 2000, pp 214, 222 e 223, sobre o art. 45.º e 46.º, LGT, discorre que “O erro evidenciado na declaração do sujeito passivo é o que a Administração Tributária possa detectar por um mero exame da coerência dos seus elementos, sem recurso a qualquer outra documentação externa, mesmo quando esta esteja em poder da administração tributária, e obtida por inspecção interna ou externa ou por meios de qualquer outra natureza.
Só quando o erro resultar exclusivamente do exame da declaração e seus anexos se justifica o previsto encurtamento do prazo de caducidade, porque o próprio contribuinte pôs de imediato à disposição da Administração tributária os meios necessários a uma atempada detecção do erro.
(…)
O disposto no número 2 do presente artigo [artigo 46.º da LGT] aplica o princípio da suspensão do prazo de caducidade, quando a administração fiscal, por qualquer motivo legal típico, estiver legalmente impedida de proceder à liquidação do tributo.
Trata-se materialmente de uma verdadeira ampliação do prazo de caducidade, justificada pelo justo impedimento do titular do direito de liquidação, a administração tributária. Em caso de obstáculo insuperável ao exercício de um direito, este só pode legalmente ser exercido quando o impedimento cessar.”
Com posição idêntica, Diogo Leite de Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, Lei Geral Tributária, Anotada e Comentada, 4.ª Edição, Lisboa, Encontro da Escrita Editora, 2012, p. 361, defendem que o "[e]rro evidenciado na declaração do sujeito passivo é aquele que é detetável mediante simples análise dessa declaração”.
Esta posição tem respaldo na jurisprudência, v.g., os acórdãos do STA de 28.04.2010, proc. n.º 01001/09 e 14.06.2012, proc. n.º 0402/12; o acórdão do TCAS de 13.07.2016, processo n.º 03595/09; e as decisões arbitrais n.º 14/2011-T, n.º 568/2015-T e 500/2021-T.
Ora, está em apreciação a liquidação de IRC do período tributário de 2018.
Do exame, apenas, da declaração IRC e seus anexos, não era possível à AT concluir pela existência ou não existência de um eventual erro cometido pelo SP.
Ora, inexistindo, por hipótese, quaisquer eventos suspensivos, o respetivo prazo de caducidade do direito à liquidação é de quatro anos contado a partir do termo do ano em que se verificou o facto tributário, uma vez que não se constata a ocorrência de qualquer uma das circunstâncias, legalmente previstas, conducentes ao seu encurtamento ou ampliação; assim, in casu, à luz do artigo 45.º, n.ºs 1 e 4, da LGT, o prazo de caducidade do direito à liquidação do IRC de 2018 teve o termo inicial em 31 de dezembro de 2018 e, inexistindo quaisquer eventos suspensivos do mesmo, o termo final em 31 de dezembro de 2022.
Pensamos que a posição defendida pela Requerente é de afastar porque inexiste na letra da lei suporte que permita concluir pela ausência de suspensão do prazo de caducidade do direito a liquidação previsto no art. 46.º, 2 , c), LGT, nos casos em que esteja em causa, ab initio, o incumprimento das concretas condições de que depende o benefício fiscal em causa. Não é, de todo, o que resulta do texto legislativo.
Como sabemos, ao intérprete compete considerar o pensamento legislativo, mas desde que tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que expresso de forma imperfeita (cf. art. 9.º, 2, CCiv.).
Ora, a título exemplificativo, basta comparar os textos legislativos plasmados no art. 46.º, 2, b) e c), LGT, para perceber das diferentes soluções prescritas.
No primeiro caso, o legislador positiva a suspensão do prazo de caducidade desde o início até à resolução do contrato – ou seja, até ao respetivo incumprimento pelo sujeito passivo – ou durante o decurso do prazo dos benefícios. No nosso caso, a suspensão é até ao termo do prazo legal do cumprimento da obrigação.
Esclarecendo, no primeiro caso a suspensão até depende da posição assumida pelo contribuinte na execução do contrato. No segundo caso, é independentemente da posição assumida por ele (se criou ou não criou postos de trabalho). O relevante é o termo do prazo legal da condição, sem mais.
Portanto, tendo em consideração a suspensão do prazo de caducidade do disposto no art. 46.º, 2, c), LGT, é manifesto que, em 2023, o direito à liquidação relativo a IRC 2018 não caducou. Improcede, portanto, o alegado pela Requerente quanto a este ponto.
ii) Qualificação do procedimento inspetivo
Sobre este ponto, entende o SP que, apesar de a AT ter qualificado o procedimento inspetivo como interno, na verdade, ele deveria ter sido qualificado como externo.
Entende a Requerente que, sendo externo, a AT devia ter cumprido o disposto no artigo 49.º, RCPITA, e ter sido previamente notificada do procedimento inspetivo, pois não se verificam quaisquer das hipóteses previstas no art. 50.º, RCPITA.
Conclui que a falta da notificação prévia do procedimento de inspeção corresponde à preterição de uma formalidade legal, geradora da anulabilidade dos atos ora em crise (art. 99.º, d), CPPT).
Por sua vez, a AT considera estar perante um procedimento de inspeção interno, credenciado por uma ordem de serviço, parcial, em sede de IRC – benefícios fiscais, ao exercício de 2018, em resultado da análise do controlo declarativo relativamente ao exercício contabilístico de 2019, que remetia para a dotação do RFAI iniciada em 2018, tendo este corrido também sob uma ordem de serviço.
Para a AT, a inspeção interna suportou-se apenas numa análise formal e crítica dos documentos facultados pela Requerente, para esse âmbito.
Resumindo, para a Requerente a documentação de suporte do procedimento interno de inspeção do ano de 2018 proveio do procedimento externo aberto para apreciar o ano de 2019; para a AT a documentação que serviu de suporte ao procedimento de inspeção do ano de 2018 foi facultada pela Requerente para esse efeito.
Ora bem.
O procedimento de inspeção tributária visa a observação das realidades tributárias, a verificação do cumprimento das obrigações tributárias e a prevenção das infrações tributárias (art. 2.º, 1, do Regime Complementar do Procedimento de Inspeção Tributária e Aduaneira — RCPITA), pode ser iniciado até ao termo do prazo de caducidade do direito de liquidação dos tributos, é contínuo e deve ser concluído no prazo máximo de seis meses a contar da notificação do seu início, prazo que pode ser prorrogado antes do seu termo, nas condições previstas no art. 36.º, RCPITA.
Este procedimento tributário classifica-se, quanto ao lugar da realização dos atos inspetivos, em interno e externo, consoante tais atos “se efetuem exclusivamente nos serviços da administração tributária através da análise formal e de coerência dos documentos” ou “se efetuem, total ou parcialmente, em instalações ou dependências dos sujeitos passivos ou demais obrigados tributários, de terceiros com quem mantenham relações económicas ou em qualquer outro local a que a administração tenha acesso”, conforme o art. 13.º, a), b), RCPITA.
Quanto ao seu âmbito, o procedimento de inspeção tributária pode ser geral, quando abrange a globalidade da situação tributária ou o conjunto dos deveres tributários do inspecionado (art. 14.º, 1, a), RCPITA), e parcial, quando visa apenas alguns tributos ou deveres dos sujeitos passivos ou dos demais obrigados tributários (art. 14.º, 1, b), RCPITA) e ainda quando tenha em vista apenas a consulta e recolha de determinados documentos e elementos e a verificação dos sistemas informáticos usados pelos sujeitos passivos ou demais obrigados tributários (artigo 14.º, 2, RCPITA).
O procedimento de inspeção tributária pode abranger apenas um ou mais do que um período de tributação (art. 14.º, 3, RCPITA).
Seja como for, a classificação inicialmente determinada pela AT pode vir a ser alterada durante a sua execução, no que respeita aos seus fins, âmbito e extensão, mediante despacho fundamentado da entidade que o ordenou, a notificar à entidade inspecionada (art. 15.º, 1, RCPITA).
Compulsados os autos, resulta provado que o procedimento inspetivo relativo a 2018 se iniciou com a Ordem de Serviço Interna n.º OI2023..., de 04 de maio de 2023, pois, no âmbito da ação inspetiva respeitante ao exercício de 2019, a AT detetou que a Requerente usufruiu de benefícios fiscais em sede de RFAI cujo início ocorreu em 2018.
Esta ação inspetiva relativa a 2018 foi qualificada de âmbito interno e parcial (art. 14.º, 1, b), RCPITA), em sede de IRC, para efeitos de controlo dos benefícios fiscais, ao referido exercício de 2018.
Entende, no entanto, o SP que "a análise da AT centrou-se, apenas e só, na análise de elementos que foram recolhidos no âmbito das inspeções externas realizadas por referência aos exercícios de 2019 e 2020." (ponto 35.º , PPA).
Resulta do RIT que os elementos que suportaram a liquidação ora em discussão tiveram origem no decurso dos atos inspetivos relatados, por intermédio dos quais foram recolhidos os elementos de base considerados necessários àquela análise. Além dessa documentação, foram também fornecidos pelo SP e analisados pela AT os dossiers de RFAI dos anos a que respeitam as deduções efetivadas no período ali em escrutínio, nomeadamente, 2018 e 2019 (cf. p. 10, PA).
O RFAI sujeita o SP beneficiário a elaborar e a ter disponível um processo de documentação fiscal com determinada informação, nomeadamente, a descrição do investimento inicial, indicando designadamente os objetivos, áreas de intervenção e os principais investimentos, bem como o respetivo enquadramento numa das tipologias previstas na alínea d) do n.º 2 do artigo 2.º da Portaria n.º 297/2015, de 21 de setembro, e a identificação da data e custo de aquisição de todas as aplicações relevantes, bem como listagem das faturas que titulem a respetiva aquisição (cf. art. 7.º, a), d), idem).
Perante estes dados, tudo nos leva a crer que a factologia recolhida pela AT que suporta o RIT em apreciação resultou do processo de documentação fiscal que o SP está obrigado a ter consigo. Considerando isto, a inspeção deveria ser qualificada como externa.
No entanto, embora o alegue, o SP não identifica que elementos foram recolhidos no âmbito das referidas inspeções externas aos períodos de 2018 e de 2019, sendo que, neste ponto, o ónus da prova recaía sobre ele (art. 74.º, LGT).
Seja como for, para Joaquim Freitas da Rocha e João Damião Caldeira, Regime Complementar do Procedimento de Inspeção Tributária e Aduaneira, Anotado e Comentado, 2.ª edição, 2021, p. 96, "no quadro desse procedimento interno pode a inspeção tributária solicitar informações e esclarecimentos aos sujeitos passivos, podendo ser feitas correções em resultado do que for apurado".
Sendo assim, as informações recolhidas pela AT, in casu, inserem-se dentro do âmbito dos poderes que a lei lhe confere e nos termos que são típicos de um procedimento inspetivo externo.
Posto isto, procede a argumentação do SP quanto à parte em que esgrima errada qualificação do procedimento inspetivo utilizado pela AT.
Acontece que acompanhamos a jurisprudência dos nossos tribunais superiores v.g., acórdão proferido pelo STA, proc. n.º 1095/15, de 29 de junho de 2016, que considera “I - Ainda que o procedimento de inspeção tenha sido erradamente qualificado como interno, quando o deveria ter sido como externo, esse erro irreleva para a decisão a proferir se não puder concluir-se ter sido preterida qualquer formalidade essencial imposta por esta última modalidade de inspeção. II - A falta da notificação prévia prevista no art. 49.º do RCPIT não gera a anulabilidade da decisão do procedimento, degradando-se tal formalidade em mera irregularidade, sem efeitos invalidantes, se ao interessado foi dado conhecimento do procedimento e do seu objeto a tempo de nele participar e se lhe foi dada a possibilidade legal de exercer o seu direito de audição durante o procedimento inspetivo.”.
Ora, compulsados os autos, verificamos ter tido a Requerente conhecimento do início do procedimento inspetivo e do seu objeto, assim como exerceu o direito de audição.
Sendo assim, não merece provimento o peticionado pela Requerente de anulabilidade dos atos ora em crise (art. 99.º, d), CPPT) por falta da notificação prévia do procedimento de inspeção pois, como vimos, tal falta (se existisse, que não existe) era geradora de mera irregularidade, sem efeitos invalidantes.
iii) RFAI
O Regime Fiscal de Apoio ao Investimento (RFAI) foi instituído em Portugal através do Orçamento Suplementar para 2009, em consonância com os requisitos e diretrizes estabelecidos pela regulamentação europeia, especificamente o Regulamento (CE) n.º 800/2008, da Comissão, de 6 de agosto de 2008, que declara certas categorias de auxílio compatíveis com o mercado comum em aplicação dos arts 87.º e 88.º do Tratado (entretanto, revogado e substituído pelo Regulamento (UE) n.º 651/2014 da Comissão, de 16 de junho de 2014).
Este último citado regulamento, também conhecido como Regulamento Geral de Isenção por Categoria (RGIC), declara certas categorias de auxílio compatíveis com o mercado interno em aplicação dos arts 107.º e 108.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE).
As suas disposições comuns abrangem todas as categorias de auxílios aí definidas e determinam a obrigatoriedade de os Estados respeitarem certos princípios quando se decidem a implementar os auxílios definidos, incorporando as diretrizes sobre os elementos que estes auxílios devem respeitar, para serem considerados compatíveis com o mercado interno e estabelecendo expressamente a obrigação de os auxílios terem um efeito de incentivo (v. art. 6.º, RGIC).
O RFAI encontra-se previsto no capítulo III do CFI, nos seus arts 22.º a 26.º
A Portaria n.º 297/2015, de 21 setembro, procedeu à regulamentação do RFAI, tendo em vista a aplicação das regras previstas no citado RGIC, nomeadamente quanto à definição e âmbito de aplicação a investimentos iniciais e limitações, bem como das obrigações acessórias relacionadas com a documentação.
O RFAI visa incentivar o investimento em ativos fixos tangíveis e intangíveis, especialmente em áreas que promovam a inovação, a modernização e a competitividade das empresas.
A aprovação do novo CFI conferiu ao RFAI uma nova dimensão, quer quanto aos investimentos elegíveis, quer quanto às deduções e ao prazo do reporte do benefício. Constitui um benefício fiscal dirigido ao investimento produtivo e funcionou sempre como dedução à coleta de IRC, embora com limites diferentes, ao longo da sua vigência (cf. Fernando Marques, Regime fiscal de apoio ao investimento — parte I, in Revista da Ordem dos Revisores Oficiais de Contas, n.º 90, 2020, pp 70, ss.).
De acordo com o art. 23.º, 1, a), CFI, o benefício fiscal operacionaliza-se por a) dedução à coleta do IRC apurada nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 90.º do Código do IRC, das seguintes importâncias das aplicações relevantes: 1) No caso de investimentos realizados em regiões elegíveis nos termos da alínea a) do n.º 3 do artigo 107.º do Tratado de Funcionamento da União Europeia constantes da tabela prevista no n.º 1 do artigo 43.º: i) 25 % das aplicações relevantes, relativamente ao investimento realizado até ao montante de € 5 000 000,00; ii) 10 % das aplicações relevantes, relativamente à parte do investimento realizado que exceda o montante de € 5 000 000,00; 2) No caso de investimentos em regiões elegíveis nos termos da alínea c) do n.º 3 do artigo 107.º do Tratado de Funcionamento da União Europeia constantes da tabela prevista no n.º 1 do artigo 43.º, 10 % das aplicações relevantes;
A dedução legalmente definida " é efetuada na liquidação de IRC respeitante ao período de tributação em que sejam realizadas as aplicações relevantes, com os seguintes limites: a) No caso de investimentos realizados no período de tributação do início de atividade e nos dois períodos de tributação seguintes, exceto quando a empresa resultar de cisão, até à concorrência do total da coleta do IRC apurada em cada um desses períodos de tributação; b) Nos restantes casos, até à concorrência de 50 % da coleta do IRC apurada em cada período de tributação." (art. 23.º, 2, CFI).
Nos termos do n.º 3 do citado preceito, "Quando a dedução referida no número anterior não possa ser efetuada integralmente por insuficiência de coleta, a importância ainda não deduzida pode sê-lo nas liquidações dos 10 períodos de tributação seguintes, até à concorrência da coleta de IRC apurada em cada um dos períodos de tributação, no caso de investimentos abrangidos pela alínea a) do número anterior ou com o limite previsto na alínea b) do mesmo número, nos casos aí previstos."
Deste quadro normativo resulta ter o SP direito a transportar, para períodos tributários futuros, os montantes dos benefícios fiscais não utilizados no período em que foram realizadas as aplicações relevantes. É isto em que consiste o direito de o SP reportar as dotações RFAI de que é titular para períodos futuros. Basicamente, deduz à coleta do exercício, mediante reporte, o benefício fiscal sobrante dos exercícios anteriores, e assim sucessivamente, até aos seus limite e esgotamento.
As dotações são os montantes a que o SP tem direito a deduzir à coleta do IRC do período fiscal no âmbito do RFAI resultantes das aplicações relevantes efetuadas. No entanto, como resulta da lei, estão fixados limites anuais quanto ao valor que pode ser deduzido à coleta do IRC desse ano específico: até à concorrência de 50 % da coleta do IRC apurada. O reporte permite que os benefícios fiscais não utilizados num ano não se percam, podendo ser aplicados para reduzir o IRC devido em anos futuros.
Além disso, o reporte dos saldos a transitar está sujeito a certas condições e prazos estabelecidos pela legislação fiscal. No nosso caso, o limite é o de o reporte ocorrer nas liquidações dos 10 períodos de tributação seguintes — cf. o citado art. 23.º, 3, CFI.
Depois, como vimos, a lei estabeleceu outro limite: até à concorrência (ou de 50%) da coleta de IRC apurada em cada um dos períodos de tributação.
Basicamente, portanto, em cada um dos 10 anos seguintes, o SP pode utilizar o saldo da dotação não utilizado até ao limite da coleta de IRC devida nesse ano e no seguinte e até à concorrência de 50% da coleta do IRC a partir do terceiro ano de tributação.
Após este breve enquadramento, no que tange ao RFAI, o RGIC contém, para o que aqui interessa, as seguintes disposições normativas (redação vigente à época dos factos):
Artigo 14.o
Auxílios regionais ao investimento
6. Os ativos adquiridos devem ser novos, exceto no que se refere às PME e à aquisição de um estabelecimento. Os custos relacionados com a locação de ativos corpóreos podem ser tidos em conta nas seguintes condições:
a) No caso de terrenos e edifícios, a locação deve manter-se pelo menos cinco anos após a data prevista de conclusão do projeto de investimento, no que se refere às grandes empresas, ou três anos, no que se refere às PME;
b) No caso de instalações ou máquinas, a locação deve assumir a forma de uma locação financeira e prever a obrigação de o beneficiário do auxílio adquirir o ativo no termo do contrato de locação.
É esta última parte que importa apreciar.
Por sua vez, considerando o CFI, determina o art. 22.º, como segue:
Regime fiscal de apoio ao investimento
Artigo 22.º
Âmbito de aplicação e definições
1 - O RFAI é aplicável aos sujeitos passivos de IRC que exerçam uma atividade nos setores especificamente previstos no n.º 2 do artigo 2.º, tendo em consideração os códigos de atividade definidos na portaria prevista no n.º 3 do referido artigo, com exceção das atividades excluídas do âmbito sectorial de aplicação das OAR e do RGIC.
2 - Para efeitos do disposto no presente regime, consideram-se aplicações relevantes os investimentos nos seguintes ativos, desde que afetos à exploração da empresa:
(...)
4 - Podem beneficiar dos incentivos fiscais previstos no presente capítulo os sujeitos passivos de IRC que preencham cumulativamente as seguintes condições:
(...)
c) Mantenham na empresa e na região durante um período mínimo de três anos a contar da data dos investimentos, no caso de micro, pequenas e médias empresas tal como definidas na Recomendação n.º 2003/361/CE, da Comissão, de 6 de maio de 2003, ou cinco anos nos restantes casos, os bens objeto do investimento ou, quando inferior, durante o respetivo período mínimo de vida útil, determinado nos termos do Decreto Regulamentar n.º 25/2009, de 14 de setembro, alterado pelas Leis n.os 64-B/2011, de 30 de dezembro, e 2/2014, de 16 de janeiro, ou até ao período em que se verifique o respetivo abate físico, desmantelamento, abandono ou inutilização, observadas as regras previstas no artigo 31.º-B do Código do IRC;
(...)
f) Efetuem investimento relevante que proporcione a criação de postos de trabalho e a sua manutenção até ao final do período mínimo de manutenção dos bens objeto de investimento, nos termos da alínea c).
Vejamos então.
iii) 1. A obrigação de compra nos contratos de locação financeira
O tema em apreciação neste ponto é o de, no âmbito de execução do RFAI, da elegibilidade ou não de despesa emergente de contratos de locação financeira por deles não resultar a obrigação de o beneficiário do auxílio adquirir o ativo no termo do contrato de locação — apenas deles resulta uma mera opção de compra do bem no final do contrato (art. 14.º, 6, b), RGIC.
Como vimos, a Requerente desvaloriza a interpretação por parte da AT do art. 14.º, 6, b), RGIC, pois ela desconsidera os princípios decorrentes da ordem jurídica euro-comunitária, as particularidades associadas à interpretação teleológica do Direito da União Europeia, a relevância do enquadramento sistemático das locações financeiras no âmbito da fiscalidade europeia, a aplicação do princípio da substância sobre a forma e, por fim, as regras europeias quanto à harmonização do tratamento contabilístico das locações financeiras.
A AT, sem subterfúgios, chama à colação a interpretação que considera a única possível, pois, na sua perspetiva, é o que resulta clarividentemente da letra da lei (art. 14.º, 6, a), RFAI): os custos derivados de contrato de locação financeira de instalações ou máquinas, só relevam no caso de aquele prever a obrigação de o beneficiário do auxílio adquirir o ativo no termo do contrato de locação.
A questão a dilucidar exige um diálogo, além de outros normativos, entre o citado RGIC e o regime do contrato de locação financeira (DL 149/95, de 24 de junho, sucessivamente alterado pelo DL n.º 265/97, de 2 de outubro, pelo DL n.º 285/2001, de 3 de novembro e, mais recentemente, pelo DL n.º 30/2008, de 25 de fevereiro).
Locação financeira carateriza-se por ser um contrato em que uma das partes (locadora) cede à outra (locatária) o gozo temporário de um bem, mediante o pagamento de rendas, e no qual a locatária tem a opção de adquirir o bem no final do contrato por um valor previamente fixado (cf. art. 1.º, do citado DL 149/95).
Com efeito, dispõe o art. 7.º, idem, que "findo o contrato por qualquer motivo e não exercendo o locatário a faculdade de compra, o locador pode dispor do bem, nomeadamente vendendo-o ou dando-o em locação ou locação financeira ao anterior locatário ou a terceiro."
É obrigação do locador, nos termos do art. 9.º (Posição jurídica do locador), 1, c), ibidem, "vender o bem ao locatário, caso este queira, findo o contrato.", sendo obrigação do locatário (art. 10.º, 1, k, DL 149/95) "restituir o bem locado, findo o contrato, em bom estado, salvo as deteriorações inerentes a uma utilização normal, quando não opte pela sua aquisição.", em articulação com o n.º 2, f), do mesmo artigo enquanto direito que lhe assiste de "adquirir o bem locado, findo o contrato, pelo preço estipulado".
Da mera leitura do texto legal pensamos ser de mediana clarividência concluir ser a opção de compra a exercer pelo locatário caraterizadora do topoi contratual sob análise.
A doutrina também vai nesse sentido.
Para José Simões Patrício, Direito Bancário Privado, Quid Juris, 2004, p. 319, o direito de aquisição por parte do locatário é elemento essencial do contrato.
António Menezes Cordeiro, Direito Bancário, 6.ª Edição, 2018, p. 735, ss., discorre sobre os primórdios, em Portugal, do regime de locação financeira, com a sua primeira regulamentação legal aprovada pelo DL 171/79, de 6 junho (diploma não referendado).
Já aqui, conforme o disposto dos seus arts. 19.º, c), e 22.º, e), se previa a faculdade de o locatário adquirir a coisa, findo o contrato, faculdade essa que se manteve ao longo da história evolutiva desta figura contratual.
Segundo o autor, idem, p. 733, "A locação financeira postula uma intervenção de três sujeitos: o fornecedor, o locador e o locatário. Infere-se, daí, que ela surge em união com — pelo menos — um contrato de compra e venda. A própria locação financeira consigna, em regra, uma opção de compra a favor do locatário."
No mesmo sentido segue a jurisprudência, que nos parece ser a consolidada, v.g, Acórdão do STJ, de 18 de fevereiro de 1999, "II — Estamos perante um contrato de leasing, quando uma das partes cede à outra o gozo temporário de um determinado bem móvel, mediante uma contrapartida em dinheiro, com a obrigação de devolução, findo o uso, ou, em alternativa, com obrigação de a comprar. III - No leasing, o processo contratual começa com uma proposta do locatário ao locador, pertencendo ao locatário a escolha do bem; por outro lado, está subjacente a intenção de proporcionar ao locatário não tanto a propriedade de determinado bem, mas a sua posse e utilização para certos fins. E também é da essência do contrato não forçar o locatário a adquirir a coisa locada; ele só a adquire se optar por isso." (o negrito é nosso).
João Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 2017, pps. 181, ss., afastando-se do puro positivismo jurídico (no sentido de a vontade legislativa ser a "criadora e em boa medida arbitrária da própria evolução da sociedade"), procura, quanto à interpretação legal, de operacionalizar os elementos suportados no art. 9.º, CCiv. para alcançar o "voluntas legislatoris".
E, nessa perspetiva, considera o texto como o ponto de partida, e com uma dupla função: negativa, de afastamento ou eliminação de sentidos sem o mínimo suporte textual; e positiva quando vários sentidos sejam possíveis nela colher.
Nessa função interpretativa, importa considerar o seu elemento teleológico ("o conhecimento deste fim, sobretudo quando acompanhado do conhecimento das circunstâncias ... em que a norma foi elaborada"), bem como o seu elemento sistemático (o que significa "a consideração de outras disposições que formam o complexo normativo do instituto em que se integra a norma interpretanda" ..."é oportuno referir aqui a descoberta da «geneologia» ou «linhagem jurídico-sistemática» da norma"), e ainda o elemento histórico, nele identificando a história evolutiva do instituto, as chamadas fontes da lei e os trabalhos preparatórios, com o objetivo de aferir a "unidade do sistema".
Karl Larenz, Metodologia da Ciência do Direito, 3.ª Edição, Gulbenkian, 2009, p. 172, bem refere que "a lei vale na verdade para todas as épocas, mas em cada época da maneira como esta a compreende e desimplica, segundo a sua própria consciência jurídica".
Numa linha de pensamento que anda muito próxima deste último A., Francesco Ferrara, Ensaio sobre a teoria da interpretação das leis — Interpretação e aplicação das leis, traduzido por Manuel A. Domingues Andrade, A Amado, 1987, p. 136, ss., refere que "o jurista há-de ter sempre diante dos olhos o escopo da lei, quer dizer, o resultado prático que ela se propõe conseguir. A lei é um ordenamento de relações que mira a satisfazer certas necessidades e deve interpretar-se no sentido que melhor responda a esta finalidade, e portanto, em toda a plenitude que assegure tal tarefa".
E continua: "Ora isto pressupõe que o intérprete não deva limitar-se a simples operações lógicas, mas tem de efetuar complexas apreciações de interesses, embora dentro do âmbito legal".
E, do mesmo modo, não deixa de fazer distinguir entre interpretação literal e interpretação lógica, fazendo apelo aos elementos enunciados supra na mira de alcançar a ratio legis.
Quanto aos interesses em jogo emergentes do contrato de locação financeira, António Menezes Cordeiro, idem, p. 732, menciona que a "locação financeira tem várias vantagens enquanto fórmula destinada a proporcionar crédito bancário. Em primeiro lugar, ela traduz um crédito de escopo bem delimitado: o financiador paga diretamente o bem ao fornecedor. Ela está, ainda, muito aderente ao bem a financiar: acompanha o seu valor e a sua força produtiva. Do ponto de vista da facilidade de concessão, as vantagens são claras: o financiador ficará a dispor da própria titularidade do bem: é a garantia por excelência. Assim, ele pode dispensar maiores indagações sobre o cliente, contentando-se com a existência do bem locado. A locação financeira não surge, formalmente, como um débito: as empresas que a ela recorram, não veem aumentar o seu endividamento, ao contrário do que sucederia perante um mútuo tradicional. Além disso, a locação financeira permite diluir contabilisticamente os custos das aquisições, com múltiplas e potenciais vantagens de ordem fiscal e no tocante a própria imagem da empresa."
Isto é, os interesses a salvaguardar exigem que a propriedade do bem permaneça na esfera jurídica do locador e que a opção de compra seja estipulada, para evitar um eventual enriquecimento sem causa do financiador em detrimento do locatário. Assim se equilibram as posições contratuais.
Isto parece-nos ser uma sintética radiografia do contrato de locação.
Ora, chegados aqui, inesperadamente, colidimos com o disposto no citado art. 14.º, 6, b), RGIC, ao impor, para o efeito pretendido pela Requerente, que a locação deve assumir a forma de uma locação financeira e prever a obrigação de o beneficiário do auxílio adquirir o ativo no termo do contrato de locação.
E inesperadamente, porque o estatuído contraria o que resulta diretamente do regime legal do contrato de locação financeira, previsto no DL 149/95, pois embate frontalmente com o direito subjetivo do locatário de exercer a opção de compra aquando do termo do contrato de locação, matriz caraterizadora deste contrato.
Não ignoramos a supremacia do direito da União Europeia (o RGIC, relembramos, é o Regulamento (UE) n.º 651/2014 da Comissão, de 16 de junho de 2014), sobre o direito nacional, que resulta do art. 8.º, 4, CRP.
No entanto, por um lado, também no âmbito do direito da UE a locação financeira carateriza-se por facultar ao locatário uma opção de compra (vg., ponto 63. b), do Regulamento (UE) 2017/1986 da Comissão, de 31 de outubro de 2017 — em vigor na altura dos factos, entretanto revogado pelo Regulamento (UE) 2023/1803 da Comissão, de 13 de agosto de 2023 —, que altera o Regulamento (CE) n.º 1126/2008 que adota determinadas normas internacionais de contabilidade nos termos do Regulamento (CE) n.º 1606/2002 do Parlamento Europeu e do Conselho no que diz respeito à Norma Internacional de Relato Financeiro 16 — Locações: "O locatário tem a opção de comprar o ativo subjacente por um preço que se espera ser suficientemente inferior ao justo valor à data em que a opção se torne exercível para que, à data de início, seja razoavelmente certo que a opção será exercida")
Por outro lado, dentro do próprio sistema jurídico da UE não deixa de se considerar a locação financeira, no âmbito dos fundos estruturais, como sendo uma despesa elegível quando o contrato preveja necessariamente uma opção de compra do bem locado (v.g., a regra n.º 10, 2.2, Regulamento (CE) n.º 1685/2000 da Comissão, de 28 de julho de 2000 relativo às regras de execução do Regulamento (CE) n.º 1260/1999 do Conselho no que diz respeito à elegibilidade das despesas no âmbito das operações co-financiadas pelos Fundos estruturais, posteriormente alterado pelo Regulamento (CE) n.º 1145/2003 da Comissão de 27 de junho de 2003 e pelo Regulamento (CE) n.º 448/2004 da Comissão de 10 de março de 2004: "Os contratos de locação financeira que beneficiam de financiamento comunitário devem comportar uma opção de compra ou prever um período mínimo de locação, equivalente à duração de vida útil do bem que é objeto do contrato."
Além disso, o RGIC, como refere, e bem, a AT, ao prescrever o disposto no art. 14.º, 6, b), tem em vista assegurar que os auxílios ao investimento resultem em benefícios duradouros e tangíveis para as empresas beneficiárias, pois só assim é possível a modernização e eficiência das empresas, garantindo ao mesmo tempo que os recursos públicos sejam utilizados de forma eficaz, só assim se assegurando o desenvolvimento de certas regiões que apresentam padrões económicos aquém do desejável no quadro do processo de integração comunitária.
No entanto, se o RGIC não quisesse contar com a consideração do benefício fiscal proveniente dos custos resultantes com a locação de ativos corpóreos pura e simplesmente não teria positivado tal preceito, pois, conceptualmente, é absolutamente impossível qualificar como de "locação financeira", à luz da legislação nacional, contrato que preveja para o locatário uma obrigação de compra do bem no termo do contrato. Estamos perante um antagonismo conceptual que importa ultrapassar pois, a unidade do sistema repudia, não aceita, antagonismos conceptuais.
Com efeito, se houvesse uma obrigação de compra, o contrato de locação financeira assemelhar-se-ia, de determinada forma, a um contrato de compra a prestações ou a um contrato de crédito ou a uma locação-venda, cujo objetivo principal é a aquisição definitiva do bem. No entanto, a locação financeira foi concebida como um contrato de utilização de um bem por um determinado período, com a possibilidade, e não a obrigatoriedade, de aquisição no final. O legislador quis manter essa diferença fundamental entre os dois tipos de contrato.
De tudo isto, pensamos que a interpretação mais adequada é aquela que considera a unidade dos sistemas jurídicos europeu e nacional bem como os interesses que o legislador procurou salvaguardar ao positivar o preceito sob análise — isto é, sendo possível, conciliar o interesse que se procura salvaguardar com o RGIC com o interesse subjacente que originou o regime do contrato de locação financeira.
Ora, como vimos dos factos dados por provados, resulta que os valores residuais remanescentes no final dos contratos para que a Requerente seja a proprietária são economicamente insignificantes face ao valor dos bens (v.g., o bem 18EB015, com o valor de €150.000,00 e o valor residual de €3.000,00, em 5 de maio de 2025).
Desde logo, este dado permite-nos concluir que, no termo do contrato, é razoavelmente certo que a opção será exercida, pois não existem razões económicas que resultem dos autos que assim não seja.
Depois, como também resulta provado, a Requerente contactou o BPI e a CGD com quem celebrou os contratos de locação financeira ainda em curso, a fim de assegurar a introdução de uma cláusula de compra obrigatória nos contratos em causa, tendo ambos recusado.
Face à impossibilidade de introdução dessa cláusula, a ora Requerente optou por emitir uma declaração unilateral quanto ao exercício da opção de compra, pelo que no final do prazo dos contratos é razoável admitir que muito provavelmente passará a ser a proprietária dos oito bens em causa.
É nesta altura, confrontado com este enquadramento fático e perante a imperatividade do disposto no art. 14.º, 6, b), RGIC, interpretado no quadro da unidade do sistema jurídico e considerando os interesses em causa, que a AT deveria lançar mão do art. 46.º, 2, c), LGT, relativo à suspensão do prazo de caducidade do direito à liquidação do imposto ao determinar que em caso de benefícios fiscais de natureza condicionada, deve suspender-se o prazo de caducidade desde a apresentação da declaração até ao termo do prazo legal do cumprimento da condição.
É certo que da letra do art. 14.º, 6, b), RGIC, não resulta uma condição, propriamente dita, no sentido de exigir, existindo uma opção de compra, o seu exercício, a final. Ela estabelece como pressuposto que essa obrigação não é uma opção e resulta diretamente do contrato. Mas, na verdade, os interesses em causa tanto ficam salvaguardados com uma obrigação de compra como com uma opção de compra que seja exercida (em rigor, tanto uma como a outra podem não ser contratualmente cumpridas pelo locatário).
No caso que nos ocupa, como vimos, essa obrigação de compra a final configura-se como contratualmente estabilizada (com as identificadas declarações unilaterais) assim como economicamente sustentada.
A AT só tem, se assim o entender, no final dos contratos, encontrando-se o prazo de caducidade do direito à liquidação suspenso, aferir se essa compra se concretizou ou não, para, depois, atuar em conformidade, liquidando o imposto que deve ser liquidado.
Neste sentido, não assiste razão à AT por entender que o requisito estabelecido no art. 14.º, 6, b), RGIC, não se encontra preenchido, logo, neste ponto, o investimento efetuado é enquadrável em sede de RFAI.
iii) 2. Postos de trabalho
A segunda questão é a de se saber se se encontra ou não preenchido o requisito do art. 22.º, 4, f), CFI, de modo a que a Requerente possa ou não beneficiar do RFAI.
O art. 22.º, 4, f), CFI, prescreve, como requisito do RFAI, que os sujeitos passivos de IRC podem beneficiar dos incentivos fiscais ao efetuarem "investimento relevante que proporcione a criação de postos de trabalho e a sua manutenção até ao final do período mínimo de manutenção dos bens objeto de investimento, nos termos da alínea c)".
A Requerente responde positivamente, pois considera verificar-se sempre uma constante evolução positiva, passando para 108,25 em 2019, 140,71 em 2020 e 188,35 em 2021.
Desta forma, entende que a posição da AT assenta numa errada interpretação do art. 22.º, 4, f), CFI, para além de consistir numa violação flagrante do princípio do primado e interpretação conforme do Direito Europeu e numa violação do princípio da boa-fé́.
Por sua vez, a AT considera inexistir uma ligação direta entre os investimentos realizados e os postos de trabalho criados pela Requerente.
Do RIT resulta clarividente a sua sustentação:
A lei, no já transcrito art. 22.º, n.º 4, al. f) do CFI, exige que o investimento realizado contribua direta e casualmente para a criação de novos postos de trabalho no momento da sua conclusão.
Nesse sentido, foi emitido, pelo Gabinete da Área do Imposto s/ Rendimento, o Ofício Circulado n.º 20259 de 28-06-2023, o qual versa sobre IRC - RFAI - CRIAÇÃO E MANUTENÇÃO DE POSTOS DE TRABALHO e onde se pode ler:
“ 5 - Assim, por um lado, para que os sujeitos passivos possam beneficiar do RFAI, tem de se verificar a criação de postos de trabalho diretamente conexos com o investimento em causa, tendo esses mesmos postos de trabalho de ser mantidos durante o período mínimo de detenção dos bens objeto de investimento nos termos da alínea c) do n.º 4 do artigo 22.º do CFI, dando assim cumprimento à norma que se encontra prevista nesse diploma e que é de aplicação especifica quando esteja em causa o benefício fiscal (RFAI).”
Assim, no âmbito da análise aos investimentos, é necessário verificar se os mesmos são indutores da criação de postos de trabalho diretos, e se assim, dão cumprimento à condição estipulada pela alínea f) do n.º 4 do artigo 22.º do CFI.
Conforme descrito acima, considerou o sujeito passivo que a criação de postos de trabalho em 2018, resultou da contratação de um assistente operacional, um técnico de contabilidade e uma administrativa de contabilidade.
Em face das funções dos trabalhadores indicados pelo sujeito passivo não se verifica que o desempenho das suas funções, estejam diretamente relacionadas com os investimentos efetuados.”
(...)
De facto, o CFI exige que haja criação de postos de trabalho (e sua manutenção), não que haja criação líquida de emprego ou aumento líquido do número de trabalhadores. Embora, estes últimos não devam ser dissociados do primeiro, ainda mais que, recorde-se, o RFAI faz parte de um pacote de medidas que visam o aumento coeso e coerente da competitividade da economia portuguesa, onde se inclui o aumento do emprego. E faz sentido que assim seja.
Esta questão já foi objeto de apreciação no CAAD.
Conforme decidido no âmbito do processo n.º 307/2019-T (e adotado, entre outros, nos processos n.º 500/2021-T, e n.º 752/2023-T), que perfilhamos, data venia, como segue:
Ressalvado o respeito devido a outras opiniões, considera-se que a referência feita na al. f) do n.º 4 do art.º 22.º do CFI, deve ser entendida como reportando-se à criação de postos de trabalho causalmente associáveis ao investimento realizado, independentemente de, sob um ponto de vista global, a empresa ter verificado, ou não, um aumento do número de trabalhadores ao seu serviço
Com efeito, o regime legal em questão foi criado pela Lei 10/2009, no âmbito da Iniciativa para o Investimento e o Emprego, designada por Programa IIE, que visou «promover o crescimento económico e o emprego, contribuindo para o reforço da modernização e da competitividade do País, das qualificações dos Portugueses, da independência e da eficiência energética, bem como para a sustentabilidade ambiental e promoção da coesão social».
No âmbito do programa IIE, incluíram-se medidas de «Apoio especial à atividade económica, exportações e pequenas e médias empresas (PME)» e de «Apoio ao emprego e reforço da proteção social» (cfr. als. d) e e) do n.º 1 do art.º 2.º da Lei 10/2009).
No quadro daquele programa, o RFAI 2009 foi criado como «um sistema específico de incentivos fiscais ao investimento», conforme resulta do art.º 1.º do mesmo Regime.
Foi, assim, o regime em questão, expressamente e no que para o caso interessa, formulado como um incentivo ao investimento (gerador de crescimento económico) tendo em vista o reforço da modernização e da competitividade do País, e das qualificações dos Portugueses, explicando-se dessa forma a al. f) do n.º 4 do art.º 22.º CFI, que radica na al. f) do n.º 3 do art.º 2.º do RFAI 2009, criado pela referida Lei 10/2009.
Neste contexto, a criação de emprego previsto na al. f) do n.º 4 do art.º 22.º CFI, deverá ser entendido como um requisito sine qua non do direito ao benefício fiscal, já que é esse um dos propósitos assumidos pelo legislador e consta expressamente da letra da lei.
Não obstante não se poderá, nem deverá, julga-se, esquecer que o regime em questão visará, à frente daquele propósito, fomentar o investimento, para além da modernização e da competitividade do País, e das qualificações dos Portugueses, sendo essencialmente um regime de apoio ao investimento, e não ao emprego.
Neste quadro, portanto, e na leitura e interpretação do regime em questão, dever-se-á sempre ter presente em primeira linha a ideia do incentivo ao investimento, sendo a criação de emprego uma condição, mas não o fundamento, do direito ao benefício fiscal.
Assim, e tendo presente igualmente as finalidades de modernização e da competitividade do País, e das qualificações dos Portugueses, dever-se-á concluir que o regime em questão visa promover o investimento modernizador, que aumente a competitividade do país, e fomente a atualização, ou a aquisição de novas, competências pelos trabalhadores.
Posto isto, sustenta a AT que, na leitura da al. f) do n.º 4 do art.º 22.º do CFI, se deverá lançar mão do enquadramento europeu em matéria de auxílios de Estado com finalidade regional no qual se inscreve o RFAI, constituído, nos termos do n.º 2 do art.º 1.º do CFI, pelo Regulamento (UE) n.º 651/2014 da Comissão, de 16 de Junho de 2014 , que declara certas categorias de auxílio compatíveis com o mercado interno, em aplicação dos artigos 107.°e 108.° do Tratado.
Sendo, evidentemente, um elemento relevante, crê-se que, antes de mais, se deve recorrer ao Regulamento (CE) N.º 800/2008 da Comissão, de 6 de Agosto de 2008, vigente na altura da implementação do RFAI 2009, que, como se viu, está na génese do RFAI integrado no CFI.
[…]
Aqui chegados será possível, crê-se, verificar que o Regulamento em questão distingue efetivamente, entre dois tipos distintos de apoios às PME, que são os apoios quantificados:
a) com base nos custos do investimento; e
b) nos custos relativos aos postos de trabalho diretamente criados por um projeto de investimento.
E é para este último tipo de apoios que é utilizado o conceito, e exigido o aumento líquido de postos de trabalho por serem, justamente, aqueles em que a utilização de tal conceito se justifica.
O Regulamento (UE) n.º 651/2014 da Comissão, segue, no que para o caso importa, a mesma lógica, referindo no preâmbulo que «A fim de não favorecer o investimento em capital em relação ao investimento nos custos da mão de obra, deve prever-se a possibilidade de quantificar os auxílios regionais ao investimento com base quer nos custos do investimento quer nos custos salariais do emprego diretamente criado por um projeto de investimento.», e dispondo no art.º 17.º que:
«2. Os custos elegíveis devem ser um dos seguintes custos ou ambos:
a) Os custos de investimento em ativos corpóreos e incorpóreos;
b) Os custos salariais estimados do emprego diretamente criado pelo projeto de investimento, calculados para um período de dois anos.».
No art.º 14.º também se dispõe que:
«4. Os custos elegíveis devem ser os seguintes:
a) Custos de investimento em ativos corpóreos e incorpóreos;
b) Custos salariais estimados decorrentes da criação de emprego, em virtude de um investimento inicial, calculados ao longo de um período de dois anos; ou
c) Uma combinação das alíneas a) e b), que não exceda o montante de a) ou b), consoante o que for mais elevado.».
É neste contexto que o n.º 9 do mesmo art.º 14.º, citado pela AT, dispõe que:
«9. Quando os custos elegíveis são calculados por referência aos custos salariais estimados, descritos no n.º 4, alínea b), devem ser preenchidas as seguintes condições:
a) O projeto de investimento deve conduzir a um aumento líquido do número de trabalhadores do estabelecimento em causa, em comparação com a média dos 12 meses anteriores, ou seja, qualquer perda de postos de trabalho deve ser deduzida do número aparente de postos de trabalho criados nesse período;
b) Cada posto de trabalho deve ser preenchido no prazo de três anos após a conclusão dos trabalhos; e
c) Cada posto de trabalho criado através do investimento deve ser mantido na zona em causa durante um período mínimo de cinco anos a contar da data em que a vaga foi preenchida, ou três anos no caso de PME.».
Ora, como se viu já, o RFAI foi sempre um apoio ao investimento, e é calculado com base nos custos de investimento em ativos corpóreos e/ou incorpóreos, e não com base nos custos de investimento em postos de trabalho ou em custos salariais estimados.
Daí que não seja fundada, julga-se, a invocação do conceito de criação líquida de postos de trabalho do Regulamento em questão, para a interpretação a fazer da al. f) do n.º 4 do art.º 22.º do CFAI.
De resto, terá sido por ter noção do quanto se expôs que o legislador não utilizou a expressão “criação líquida de emprego”, quando a mesma era utilizada, por exemplo, no art. 19.º do EBF vigente à data, esse sim, um benefício fiscal que tem por base os custos de investimento em postos de trabalho.
Considerando-se, então, que a al. f) do n.º 4 do art.º 22.º do CFI, não se reporta à criação líquida de postos de trabalho, nos termos em que, por exemplo, o referido art.º 19.º do EBF e as Diretivas sobre apoios de Estado o fazem, é ainda necessário densificar qual o sentido e alcance da expressão “criação de postos de trabalho”, ali empregue, tem.
Tendo em conta que, pelos fundamentos expostos, não se deverá equiparar a expressão “criação de postos de trabalho” a “criação líquida de postos de trabalho”, dever-se-á, em obediência ao princípio hermenêutico do legislador razoável, obter um resultado interpretativo que seja coerente com a teleologia do benefício fiscal em questão e que tenha um efetivo conteúdo prático.
Nessa perspetiva, a única interpretação que não se reconduza à “criação líquida de postos de trabalho”, será, julga-se, a de que a “criação de postos de trabalho” pressuposta pelo benefício fiscal em questão se refere à criação de postos de trabalho, e a sua manutenção, causalmente associáveis ao investimento realizado, independentemente de, sob um ponto de vista global, a empresa ter verificado, ou não, um aumento do número de trabalhadores ao seu serviço.
Ou seja, o que está em causa é que o investimento realizado por determinada empresa será́ elegível para usufruir do benefício fiscal em questão se, e na medida em que, dele resulte, de forma causalmente adequada, a criação de, pelo menos, um posto de trabalho, e a sua manutenção.
Ora, constata-se que a Requerente incrementou o número de colaboradores em 2018, em comparação com o ano precedente, 2017, crescimento que tem sido sustentado até hoje.
Com efeito a Requerente criou em 2018 um posto de trabalho de "assistente operacional", um posto de trabalho "técnica de contabilidade" e outro posto de trabalho "administrativa de contabilidade".
Ficou também demonstrado que os trabalhadores admitidos conexos com o investimento RFAI se mantiveram de 2018 a 2020 assim como a Unidade Trabalho-Ano (UTA) da Requerente aumentou progressivamente de 2017 a 2021(ano de 2017: 53 UTA; ano de 2018: ano de 71,49 UTA; ano de 2019: 108,25 UTA; ano de 2020: 140,71; ano de 2021: 188,35).
Por outro lado, relativamente ao investimento nos equipamentos foi identificado um trabalhador (B...) com funções relacionadas com os equipamentos adquiridos, sendo que o investimento inicial, para este efeito, ocorreu em 2018.
Não obstante o trabalhador ter deixado de o ser para a Requerente em agosto de 2022, nessa altura já tinha decorrido o período mínimo exigido de três anos a contar da data do investimento (art. 22.º, 4, c), CFI).
Isto é, dos investimentos efetuados pela Requerente resultou a criação de, pelo menos, um posto de trabalho de assistente operacional, que se manteve para além de três anos a contar da data dos investimentos (ainda se mantinha em funções no final de 2021), pelo que está cumprido o requisito previsto na art. 22.º, 4, c), CFI.
Pelo exposto, tem de se concluir que a interpretação da AT enferma de vício de violação de lei, por erro sobre os pressupostos de direito quanto à interpretação do art. 22.º, 4, c), CFI, pelo que não pode basear-se nela a não aplicação do RFAI a qualquer dos investimentos referidos.
* *
À face do exposto, considerando-se preenchidos os requisitos estabelecidos no art. 14.º, 6, b), RGIC, bem como no 22.º, 4, f), CFI, determinamos a invalidade da liquidação adicional de IRC impugnada nos autos, porque contrária ao disposto no art. 22.º, CFI, nos moldes supra explanados, pelo que a mesma vai anulada, por ilegalidade substantiva, nos termos do disposto no art. 163.º, 1, CPA, por remissão do art. 29.º, 1, d), RJAT, bem, como as liquidações de juros compensatórias correlativas, por inexistir prestação tributária em dívida (cf. art. 35.º, LGT).
IV. Reenvio prejudicial
Atenta a decisão tomada sobre a invocada ilegalidade material, por erro nos pressupostos de facto e de direito, das liquidações de IRC e juros compensatórios, por não subsistirem quaisquer dúvidas interpretativas, não se afigura necessário considerar uma decisão do TJUE para a apreciação da causa (art. 267.º, TFUE).
V. Da indemnização por prestação de garantia indevida
Como resulta provado, a Requerente apresentou garantia voluntária traduzida num penhor de inventários, no âmbito do processo de execução fiscal n.º ...2024..., que corre termos junto do Serviço de Finanças de Ourém, tendo em vista a suspensão deste processo.
A Requerente, peticiona, como decorrência da anulabilidade dos atos de liquidação de IRC e juros compensatórios, a indemnização por prestação de garantia bancária indevida.
Por sua vez, a AT veio pronunciar-se sobre não se verificarem, nos presentes autos, erro imputável aos serviços na liquidação do tributo, pelo que não deve ser reconhecido aos Requerentes qualquer direito a juros indemnizatórios, alicerçando o seu entendimento no disposto no art. 43.º, 1, LGT.
O pedido de condenação ao pagamento de garantia indevida encontra-se previsto no artigo 171.º, CPPT, e deve ser efetuado, segundo o seu n.º 2, em “reclamação, impugnação ou recurso”.
Configurando o processo arbitral um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial, como referido de forma expressa na autorização legislativa habilitante do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o RJAT, os poderes de pronúncia deste Tribunal abrangem aqueles que em processo de impugnação judicial são atribuídos aos tribunais tributários, nos quais pontuam a condenação em indemnização por prestação de garantia indevida, nos moldes em que tal obrigação é recortada pelo artigo 53.º, LGT, infra transcrito:
Artigo 53.º - Garantia em caso de prestação indevida
1 — O devedor que, para suspender a execução, ofereça garantia bancária ou equivalente será indemnizado total ou parcialmente pelos prejuízos resultantes da sua prestação, caso a tenha mantido por período superior a três anos em proporção do vencimento em recurso administrativo, impugnação ou oposição à execução que tenham como objeto a dívida garantida.
2 — O prazo referido no número anterior não se aplica quando se verifique, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços na liquidação do tributo.
3 — A indemnização referida no n.º 1 tem como limite máximo o montante resultante da aplicação ao valor garantido da taxa de juros indemnizatórios prevista na presente lei e pode ser requerida no próprio processo de reclamação ou impugnação judicial, ou autonomamente.
4 — A indemnização por prestação de garantia indevida será paga por abate à receita do tributo do ano em que o pagamento se efetuou.
Esta indemnização inscreve-se no dever de restabelecer a situação que existiria se o ato tributário anulado não tivesse sido praticado, alicerça-se no princípio constitucional da responsabilidade das entidades públicas (artigo 22.º da CRP) e consta da previsão do artigo 24.º, n.º 1, alínea b) do RJAT, em sintonia com o preceituado no artigo 100.º da LGT.
Na situação em apreço, os atos tributários de liquidação são anulados por vício substantivo, de erro sobre os pressupostos, pelo que se suscita a obrigação indemnizatória.
Erro-vício que não pode deixar de ser atribuído à AT, dado que as correções foram da sua iniciativa e a Requerente em nada contribuiu para que os erros fossem praticados, razão pela qual é procedente o pedido de reconhecimento do direito da Requerente a indemnização por garantia indevida, cujo valor será determinado em sede de execução de sentença.
VI. Decisão
Termos em que, decide este Tribunal Arbitral Coletivo por:
i. Julgar procedente a ação arbitral, com a consequente anulação dos atos tributários de liquidação adicional de IRC e de juros compensatórios supra identificados, relativos ao período de tributação de 2018, que resultaram no valor total a pagar de € 77.585,25;
ii. Julgar procedente o pedido de condenação da AT no pagamento de uma indemnização à Requerente por prestação de garantia indevida, a liquidar em execução da presente decisão, pelas despesas suportadas com a prestação de garantia bancária, até ao respetivo cancelamento, com o limite do quantum indemnizatório estatuído no artigo 53.º, 3, LGT;
iii. Condenar a Requerida no pagamento das custas do presente processo.
VII. Valor do processo
Fixa-se ao processo o valor de € 77.585,25, indicado pela Requerente e não impugnado pela Requerida, correspondente à utilidade económica do pedido, i.e., ao valor total das liquidações cujas anulações se pretende — v. artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT, aplicável por remissão do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”) e artigo 306.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.
VII. Custas
Fixam-se custas no montante de € 2.448,00 a cargo da Requerida, em conformidade com a Tabela I anexa ao RCPAT e com o disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT e 4.º do RCPAT.
Notifique-se.
Lisboa, 5 de dezembro de 2024
Os Árbitros,
Victor Calvete
(Árbitro Presidente)
Ângelo António Almeida Pereira Dias
(Árbitro Vogal)
Ricardo Marques Candeias
(Árbitro Vogal — Relator)