Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 658/2014-T
Data da decisão: 2015-04-27  IRC  
Valor do pedido: € 5.751,00
Tema: IRC – Cessão de quotas; Transparência fiscal
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DECISÃO ARBITRAL

REQUERENTE: A..., Lda., pessoa colectiva n.º …, matriculada na Conservatória do Registo Comercial de … sob o nº …, com sede na Rua …, nº .., Bloco I, 5º Esq., …-… ….

REQUERIDA: Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante designada AT)  representada pela Drª…., conforme despacho de designação do Director Geral da AT, de 16-09-2014.

I – RELATÓRIO

1.      A REQUERENTE apresentou pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º nº 1 alínea a), 5º nº2 alínea a), 6º nº 1, 10.º nº 1 alínea a) todos do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (RJAT) e do artigo 102 nº 2 do Código de Processo e Procedimento Tributário (CPPT), onde refere que o mesmo tem por objecto:

A declaração de ilegalidade dos actos tributários que antes descreve como sendo:

A “decisão de indeferimento, proferida por despacho de 04-06-2014 do Ex.mo Senhor Chefe de Divisão Dr. …, por delegação da Diretora de Finanças Adjunta de …, a qual recaiu sobre a reclamação graciosa nº …2013…, apresentada nos termos do artigo 68º do Código do procedimento e do Processo tributário (CPPT), com referência aos atos tributários consubstanciados nas liquidações de IRC nº 2013… do ano de 2009 no valor de 5.751,00€”

Vindo, a final, a Requerente a peticionar a este Tribunal Arbitral se pronuncie no sentido de que “deve a referida liquidação de IRC nº 2013… do ano de 2009, objecto do presente pedido de pronúncia arbitral ser anulada.”

2.      A REQUERENTE apresentou Pedido de constituição do Tribunal Arbitral, a 03-09-2014, o qual aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD a 04-09-2014, levou à notificação da AT, em cumprimento do nº 3 do art.º 10º do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (doravante RJAT).

3.      Tendo a REQUERENTE optado por não designar árbitro, ao abrigo do disposto no nº1 do artigo 6º do RJAT, foi o signatário designado árbitro singular pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa, a 21-10-2014, nomeação que tempestivamente aceite foi notificada às partes que não se opuseram à referida designação.

4.      O Tribunal Arbitral Singular foi constituído a 05-11-2014, conjugado o disposto na alínea c), do nº 1, com o nº 8 do artigo 11º, do RJAT, pelo que a 07-11-2014 foi notificada a AT para, nos termos e para os efeitos do disposto nos nºs 1 e 2 artigo 17º do RJAT, apresentar Resposta e o correspondente processo administrativo;

5.      Em Reposta a AT, a 10-12-2014, vem apresentar defesa, requerer a dispensa da realização da reunião do art.º 18º do RJAT, bem como a dispensa da realização de alegações (nº 64.).

6.      Tendo a 05-01-2015 sido marcada a reunião prevista no art.º 18º do RJAT, a mesma não se realizou por ter sido dispensada conforme resposta da defesa da AT a 10-12-2014 e resposta da requerida a 09-01-2014, da qual se emitiu despacho a 15/01/2015, onde consta a fixação da data de 30-04-2015 para prolação da decisão arbitral.

II – QUESTÃO PRÉVIA

A Requerida vem, em sede de Alegações Finais suscitar o desentranhamento do documentos junto pela Requerente a 23-01-2015, pelo que, antes de apreciar a questão objecto do litígio, cumpre decidir o peticionado.

1.      Conforme despacho de 28-01-2015, deste Tribunal, o documento junto aos autos tem por objecto demonstrar o sentido duma decisão proferida no âmbito da Arbitragem tributária, “porquanto nesses autos estavam igualmente em discussão a anulação das liquidações efectuadas pela AT ao sócio gerente da ora Requerente, pela aplicação do Regime de Transparência Fiscal”, conforme sustentado no requerimento admitido.

2.      A Requerida suscita, em documento não autónomo, mas apenas nas Alegações Finais, o desentranhamento do referido documento do Pedido de Pronúncia Arbitral, sustentando que não cumpre o disposto no nº 1 do art.º 423º do CPC;

3.      Tratando-se, todavia, dum documento que não estava na disponibilidade da Requerente à data do pedido de pronúncia arbitral, nas condições previstas no nº 1 do art.º 423º do CPC, e, atento o disposto nos nºs 2 e 3 do mesmo preceito, conjugado com o nº 2 do art.º 19º do RJAT, bem como o antecedente art.º 16º, alíneas c) e f), não se verificando os fundamentos aduzidos pela AT, indefere-se o pedido de desentranhamento do documento, tal como solicitado nas Alegações Finais da Requerida.

III – SANEAMENTO

1.      O tribunal é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2º, nº 1, alínea a), 5º, nº 2 e 6º, nº 1 do RJAT.

2.      As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4º e 10º do RJAT e artigo 1º da Portaria nº 112-A/2011, de 22 de Março.

3.      O processo não enferma de quaisquer vícios que o invalidem.

Pelo que se passará à apreciação da decisão de mérito

IV - MATÉRIA DE FACTO

A matéria relevante, considerada provada, é a seguinte:

1.      A Requerente - A..., Lda. - é uma pessoa colectiva, matriculada na Conservatória do Registo Comercial de … sob o nº …, com sede na Rua …, nº .., Bloco I, 5º Esq.,…-… …;

2.      A Requerente - A..., Lda. – dedica-se à prestação de serviços relacionados com a medicina, higiene e segurança no trabalho;

3.      Até 9 de Fevereiro de 2009 a Requerente - A..., Lda., com o capital social de € 5000,00, era detida, em igual proporção, de duas quotas de € 2500,00, por B..., médico de profissão, e por C..., sendo esta professora; 

4.      Na referida data - 9 de Fevereiro de 2009 - ocorreu a cessão da quota de € 2500,00, de C... para B...;

5.      Não ocorreu a unificação de quotas num único sócio – B…, em virtude da cessão de quotas de C... para B..., ocorrida a 09 de Fevereiro de 2009, dado que,

6.      Também a 9 de Fevereiro de 2009 foi celebrado um contrato entre B... e D…, tendo sido realizada divisão, cessão e unificação de quotas da Sociedade;

7.      A Sociedade consentiu em tal cessão, do que foi lavrada acta nesse mesmo dia de 9 de Fevereiro de 2009, pelo que,

8.      Deste contrato resultou que as quotas passaram a ser distribuídas por B..., correspondendo a um capital social de 95%, no valor de 4.750€; e pelo sócio D…, correspondendo a um capital social de 5%, no valor de 250,00€;

9.      Pelo que, a Sociedade não foi transformada em sociedade unipessoal;

10.  D… é filho de B..., não exercendo a actividade médica, nem qualquer outra relacionada com a medicina;

11.  O livro de actas da Sociedade dispõe duma acta lavrada em 9 de Fevereiro de 2009, bem como actas datadas de 31 de Março de 2009 (nº 2), de 31 de Março de 2010 (nº 3), de 31 de Março de 2011 (nº 4) e 30 de Março de 2012 (nº 5), em cujas reuniões em assembleia geral participaram B... e o sócio D….O registo comercial da quota adquirida por D…  não foi realizado à data de 9 de Fevereiro de 2009, mas sim à data de 12 de Janeiro de 2013;

12.  Em causa nos presentes autos estão os actos tributários consubstanciados na liquidação de IRC nº 2013…, referente ao ano de 2009 no valor de 5.751,00€.

Para a formação da convicção sobre a factualidade dada como provada teve-se presente a documentação junta aos autos pela Requerente e Requerida, assim como os articulados de ambas as partes, na qual demonstram, ambas, a aceitação mútua dos factos aqui considerados provados.

V – APRECIAÇÃO DO MÉRITO DO PEDIDO

V.A - POSIÇÃO DA REQUERENTE

A Requerente alega, em síntese, como fundamento do pedido de constituição do Tribunal Arbitral e com relevo para a apreciação do mesmo, o seguinte:

1.      Que em processo de inspecção tributaria lhe foram efectuadas correcções em sede de IRC quanto aos anos de 2009, 2010 e 2011 e emitidas diversas liquidações de IRC, respeitantes aos mesmos anos;

2.      Que não concordando com a liquidação de IRC nº 2013… do ano de 2009 apresentou Reclamação Graciosa a 19-11-2013;

3.      Que a 06-06-2014 foi notificada da decisão de indeferimento da Reclamação Graciosa respeitante ao ano de 2009;

4.      Manifesta a Requerente discordância com os fundamentos do indeferimento da Reclamação Graciosa e que originaram a liquidação de IRC nº 2013… do ano de 2009 no valor de 5.751,00€”, em síntese pelo seguinte:

4.1.   Que a AT enquadrou a Requerente no regime de transparência fiscal no que respeita ao período em questão, e no caso em apreço, no ano de 2009, não se verificando para tal os pressupostos de facto e de direito;

4.2.   Porque a transmissão de quotas que se operou entre B... para D…, pai e filho, aquele médico, este não, produziu imediatamente efeitos, sem prejuízo de o referido acto não ter sido registado nesse ano;

4.3.   Como tal, quando a 09 de Fevereiro de 2009, data em que o Sócio B… adquiriu a quota de C…, não houve unificação de quotas num único sócio, o sócio B…;

4.4.   Pelo que, em consequência da cessão de quotas entre B... para D…, o primeiro médico, o segundo não, a referida sociedade não poderia ficar sujeita ao regime da transparecia fiscal previsto no art.º 6º do CIRC como sustenta a AT, pois não tendo como único sócio um único profissional, médico, mas sim dois sócios, sendo um médico e o outro não, a sociedade não preenche os pressupostos da sujeição ao referido regime fiscal.

5.      Suscita, por fim, a questão da constitucionalidade da submissão de sociedades unipessoais ao regime da transparecia fiscal, por violação dos princípios da boa-fé, da segurança jurídica, da igualdade e da capacidade contributiva.

V.B - POSIÇÃO DA REQUERIDA

A Requerida alega, em síntese, que o pedido de pronúncia arbitral não pode proceder destacando-se, com relevo para a apreciação do mesmo, o seguinte:

1.      Que desde 09 de Fevereiro de 2009, a Requerente se encontra legalmente sujeita ao regime da transparência fiscal, pois,

2.      A 09 de Fevereiro de 2009, o sócio B… adquiriu a quota de C..., pelo que se procedeu à unificação de quotas num único sócio – B… – pelo que tratando-se duma sociedade com um único profissional, médico, a mesma fica sujeita ao regime da transparecia fiscal previsto no art.º 6º do CIRC; mais sustenta,

3.      Que a acta da sociedade, de 09 de Fevereiro de 2009, da qual consta a divisão, cessão e unificação de quotas da Sociedade, que levou à cessão de quotas de B... para D…, só produz efeitos perante terceiros a partir do registo, logo, apenas a partir de 12 de Janeiro de 2013.

4.      Manifesta, por fim, não haver qualquer violação dos princípios da certeza e segurança jurídica invocados mas sim desconhecimento da lei, facto não oponível à AT.

V.C - APRECIAÇÃO DA QUESTÃO

Face à factualidade dada como provada, em particular que numa acta da sociedade ora Requerente, a 09 de Fevereiro de 2009 se procedeu à cessão e unificação de quotas, o que levou à cessão de quotas de B... para D…, a questão central que consubstancia o pedido de pronúncia arbitral, em divergência com a AT, está em saber se a referida acta produz efeitos:

1.      Imediatos, isto é, desde 09 de Fevereiro de 2009, mesmo em relação à AT, como sustentado pela Requerente, ou,

2.      Só produz efeitos perante terceiros a partir do registo, e consequentemente, também em relação à AT, logo, apenas a partir de 12 de Janeiro de 2013, como sustenta a Requerida.

3.      Importa ainda ver se do referido se pode assacar todos os efeitos, nomeadamente, a existência ou não duma sociedade unipessoal, bem como a sujeição da mesma ao regime da transparência fiscal, o que implica ter presente o seguinte:

3.1.   O Artigo 6.º do CIRC - Transparência fiscal:

 1 — É imputada aos sócios, integrando-se, nos termos da legislação que for aplicável, no seu rendimento tributável para efeitos de IRS ou IRC, consoante o caso, a matéria colectável, determinada nos termos deste Código, das sociedades a seguir indicadas, com sede ou direcção efectiva em território português, ainda que não tenha havido distribuição de lucros:

(…)

b) Sociedades de profissionais;

(…)

3 — A imputação a que se referem os números anteriores é feita aos sócios ou membros nos termos que resultarem do acto constitutivo das entidades aí mencionadas ou, na falta de elementos, em partes iguais.

4 — Para efeitos do disposto no n.º 1, considera-se:

(…)

a) Sociedade de profissionais:

1) A sociedade constituída para o exercício de uma atividade profissional especificamente prevista na lista de atividades a que se refere o artigo 151.º do Código do IRS, na qual todos os sócios pessoas singulares sejam profissionais dessa atividade;

Face a este dispositivo legal,

3.2.   A não se produzirem efeitos imediatos – dando-se razão à tese da ineficácia da cessão de quotas à data de 09 de Fevereiro de 2009, entre B... e D…, seu filho -, para se dar razão à Requerida, ter-se-ia ainda de entender que a Requerente, tendo um único sócio, a exercer a profissão de médico, se enquadraria no regime jurídico da transparência fiscal previsto no n.º 1 do art.º 6º do CIRC, em conjugação com o disposto na alínea a) do n.º 4 do artigo 6.º do CIRC, conjugado com a lista de actividades profissionais previstas no artigo 151.º, do CIRS, cuja tabela foi aprovada pela Portaria Nº 1011/2001, de 21 de Agosto.

3.3.   Ao invés, a considerar-se produzirem-se os efeitos imediatos – dando-se razão à tese da eficácia da cessão de quotas à data de 09 de Fevereiro de 2009, entre B... e D…, seu filho -, tal seria o bastante para se dar razão à Requerente, de que a mesma não se enquadra no regime jurídico da transparência fiscal previsto no art.º 6º do CIRC, pois os dois sócios não exercem a mesma actividade profissional.

Face à divergência, cumpre apreciar e decidir.

4.      Não sendo questionada pela Requerida a validade da transmissão ocorrida a 09 de Fevereiro entre o sócio da Requerente, B..., e D…, seu filho – pois claramente a admite a § 3 da Resposta e 25, 28 e 29 das Alegações Finais -, a questão que se coloca não é pois a da validade daquela transmissão, mas da sua eficácia em relação à AT.

5.      Alega a Requerida que a referida transmissão não produz efeitos em relação a terceiros, pelo que, sendo a AT terceiro não pode a Requerente opor-se à tributação nos termos aqui debatidos.

Vejamos pois se a Requerida tem razão.

6.      Em primeiro lugar, não cabendo no âmbito deste Tribunal a apreciação da eficácia da cessão de quotas em apreço em relação a um qualquer terceiro, apenas importa apreciar se ela pode ser eficaz em relação à AT.

7.      Para tal, teremos de nos socorrer das regras de interpretação jurídica e também de interpretação das normas fiscais.

8.      Sustenta a Requerida que o negócio realizado é ineficaz perante terceiros, logo, também perante a AT.

9.      Para percebermos se a AT tem razão, basta equacionar os efeitos do eventual não registo da cessão de quotas anterior, caso a posterior cessão de quotas (aqui objecto de controvérsia) não se tivesse verificado.

9.1.   Com efeito, tendo-se dado a primeira transmissão, de C... para B... a 09 de Fevereiro de 2009, se posteriormente a esta cessão não houvesse nova cessão de quotas, agora de B... para D…, seu filho, ainda que aquela não fosse registada, sempre a AT poderia procurar retirar da mesma os efeitos pretendidos, alegando ter havido concentração de quotas numa única pessoa, médico de profissão, na medida em que a ineficácia dos negócios jurídicos não obsta à tributação, no momento em que esta deva legalmente ocorrer, caso já se tenham produzido os efeitos económicos pretendidos pelas partes, em conformidade com o nº 1 do art.º 38º - Ineficácia de actos e negócios jurídicos -, da LGT.

9.2.   Assim, ainda que fosse a ora Requerente a sustentar a tese de que a cessão de quotas de C... para B... a 09 de Fevereiro de 2009, seria ineficaz em relação à AT, pela falta de registo (tese que a AT agora sustenta), a AT manifestar-se-ia no sentido da unificação das quotas num único sócio. E bem, pois o registo não seria condição de eficácia face à AT.

10.  Ora, não se vê como na situação em apreço já se pudesse retirar um efeito inverso.

11.  Sempre teremos porém de ler o conceito de ineficácia suscitado pela AT, no âmbito das normas de onde o mesmo releva, no caso, do Código do Registo Comercial, porquanto tratando-se de termos próprios de outros ramos de direito, devem os mesmos ser interpretados no mesmo sentido daquele que aí têm, salvo se outro decorrer directamente da lei, de acordo com o nº 2 do art.º 11º da LGT:

12.  Assim, e em sede de interpretação jurídica, basta atermo-nos ao elemento teleológico do Instituto Jurídico do Registo Comercial, expresso no nº 1 do seu art.º 1º - Fins do registo:

O registo comercial destina-se a dar publicidade à situação jurídica dos comerciantes individuais, das sociedades comerciais, das sociedades civis sob forma comercial e dos estabelecimentos individuais de responsabilidade limitada, tendo em vista a segurança do comércio jurídico.

13.  Seja mediante uma eficácia constitutiva ou consolidativa, o objectivo do Instituto Jurídico do Registo Comercial, é segurança do comércio jurídico, pelo que importa verificar se, face a este elemento teleológico pode a AT configurar-se como um qualquer terceiro, nos termos que sustenta.

14.  Terceiros são, como a AT refere, por menção ao acórdão do STJ referido a § 56 da Resposta, quem não seja parte no facto sujeito a registo, ao que temos de acrescentar, por imposição do elemento teleológico do Instituto Jurídico do Registo Comercial, que os terceiros são assim considerados atenta a referida necessidade de acautelar a segurança do comércio jurídico, leia-se, o clima de segurança nas trocas comerciais.

15.  Dito de outro modo, quem não seja parte num facto sujeito a registo, terá, atenta a necessidade de acautelar a segurança do comércio jurídico, a garantia de que o referido facto não produzirá perante si efeitos.

16.  Pretende-se, pois, e tão só, proteger quem não seja parte num facto sujeito a registo por uma questão de segurança do comércio jurídico, nada mais.

17.  Retirar do Instituto Jurídico do Registo Comercial que um acto de cessão de quotas é ineficaz em relação à AT, por ser terceiro, não só não cabe no elemento teleológico do Instituto Jurídico do Registo Comercial, como é, ademais, desnecessário, pois como já referido, a ineficácia dos negócios jurídicos não obsta à tributação, ex.vi, nº 1 do art.º 38º da LGT.

18.  Importa agora apreciar se o inverso, a eficácia dos negócios jurídicos – como é o caso, sustentado pela Requerente – pode prejudicar a prossecução pela AT do seu múnus de percepção de receitas fiscais.

19.  Como referido, o Instituto Jurídico do Registo Comercial protege o terceiro - quem não seja parte no facto sujeito a registo -, pois por não ser parte, devido ao desconhecimento dum facto poderia fazer opções que colocassem em causa a segurança do comércio jurídico.

20.  Ora, a AT mesmo não sendo parte no facto sujeito a registo, não se encontra em idêntica situação, pois o seu desconhecimento do facto não se projecta no domínio do comércio jurídico, mas da percepção de receitas, dele emergente.

21.  Acresce que, não sendo parte no facto sujeito a registo, não se encontra em idêntica situação, por uma outra razão, pois o seu desconhecimento do facto não inibe a AT de retirar do mesmo as necessárias consequências, tributárias. Com efeito,

22.  Atenta a necessidade de a AT prosseguir o seu múnus, de percepção de receitas fiscais, o legislador fiscal colocou à sua disposição diversas normas susceptíveis de lhe permitir revelar a verdade material subjacente a um qualquer formalismo apresentado pelo sujeito passivo de imposto, mormente:

22.1.                   O art.º 6º do Regime Complementar do Procedimento de Inspecção Tributária e Aduaneira, de que a AT lançou mão, o qual determina:

O procedimento de inspecção visa a descoberta da verdade material, devendo a administração tributária adoptar oficiosamente as iniciativas adequadas a esse objectivo.

22.2.                   Bem como pela realização de todas as diligências tendentes à satisfação do interesse público e à descoberta da verdade material, com previsão no art.º 58º da LGT de que a AT podia ter lançado mão, sobretudo quando a ora Requerente apresentou Reclamação Graciosa, onde se colocaria em causa a cessão de quotas entre pai e filho, ocorrida a 09 de Fevereiro de 2009.

22.3.                   E, por todos, accionando, em consonância com o disposto no nº 2 do art.º 38º da LGT, o procedimento especial de aplicação da cláusula geral antiabuso, previsto no art.º 63º do Código de Procedimento e de Processo Tributário o que pressuporia, entre outros requisitos necessários, nos termos do nº 3:

A demonstração de que a celebração do negócio jurídico ou prática do acto jurídico foi essencial ou principalmente dirigida à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em caso de negócio ou acto com idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais. 

23.  É certo que a AT, conforme resulta do Processo Administrativo, ainda indicia a “falta de credibilidade dos documentos apresentados”:

23.1.                   «E esta falta de credibilidade dos documentos é corroborada pela análise ora efectuada em sede de reclamação graciosa:

·         O contrato, alegadamente celebrado em 2009, coincide exactamente com o pretendido pela reclamante: alteração da estrutura societária para não “cair” no regime de transparência fiscal. Intervenientes: sócio e seu filho.»

23.2.                   Referindo ainda a Requerida que o livro de actas da Requerente utiliza o Acordo ortográfico o qual só entrou em vigor a 13 de maio de 2009, parecendo assim querer sustentar a referida falta de credibilidade da acta, bem como o facto de que “contrariamente ao afirmado pela reclamante, nem na contabilidade nem nas IES, dos anos de 2009, 2010, 2011 e 2012, consta qualquer indício de a sociedade ter tido, nesse período, mais do que um sócio”.

24.  Todavia, a Requerida, não só não lançou mão do meio idóneo, para atacar aquela que refere ser a falta de credibilidade, previsto no já referido art.º 63º do CPPT, como não invocou que de um processo fraudulento se tratasse, nem se dispôs a disso fazer prova, como lhe seria devido, mas,

25.  Ao invés, veio a consubstanciar a sua Resposta não no sentido de que a referida acta de 09 de Fevereiro de 2012 fosse um acto inválido, antes sim, tendo-o como válido, sustentar a sua não eficácia em relação à AT dado o seu registo ter sido efectuado apenas a 12 de Janeiro de 2013, pois que, ao suscitar a eficácia do negócio jurídico, há assunção da sua validade.

26.  Já vimos, porém, que a AT não se configura como um qualquer terceiro para efeitos da teleologia do Instituto Jurídico do Registo Comercial, pois, diferentemente dos terceiros prejudicados pela não segurança do comércio jurídico, que se não vissem o acto sujeito a registo ser ineficaz, nada poderiam fazer, a AT pode, e deve, agir.

27.  Assim, não tendo agido, e aceitando a validade da cessão de quotas pai – filho, não pode o mesmo deixar de produzir efeitos face à Requerida pois ao configurar-se mediante ela a existência duma sociedade com dois sócios, com exercício profissional distinto, não se enquadra a referida sociedade, aqui Requerente, no regime jurídico da transparência fiscal, nos termos do art.º 6º do CIRC.

28.  Termos em que este Tribunal, na sequência de anterior decisão junta aos autos pela Requerente, a Decisão nº 392/2014-T, não pode deixar de considerar que ao não se socorrer das normas legais ao seu alcance, a posição sustentada pela AT viola os princípios da legalidade, bem como o da prevalência da verdade material sobre a realidade jurídico-formal.

29.  Decisão fundamentada não apenas na posição sustentada neste processo, mas também[1], v.g., no âmbito do Processo 297/2014-T, de cujo acórdão se pode ler:

“(…) a Autoridade Tributária e Aduaneira não accionou o procedimento especial de aplicação da cláusula geral antiabuso, previsto no artigo 63.º do CPPT, e seria essa a aplicação dessa cláusula, que consta do n.º 2 do artigo 38.º da LGT, a única via admissível para tornar ineficaz, para efeitos fiscais, o acto (…).

30.  Com efeito, não tendo a AT feito uso do procedimento especial de aplicação da cláusula geral antiabuso, previsto no artigo 63.º do CPPT, a acta de cessão de quotas entre B... e D…, sendo válida, é eficaz para a AT, pois que,

31.  A única via admissível para tornar ineficaz no âmbito tributário, o acto de cessão de quotas ocorrido a 09 de Fevereiro de 2009, entre B... e D…, seria pois, a aplicação da cláusula que consta do n.º 2 do artigo 38.º da LGT:

São ineficazes no âmbito tributário os actos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, actos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios, efectuando-se então a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as vantagens fiscais referidas.

32.  Termos em que não importa apreciar, por não ser determinante para a decisão da causa, as questões formais referentes ao regime do registo.

VI - QUESTÃO DE CONHECIMENTO PREJUDICADO

Sustenta a Requerente a §§ 36, ainda que não se concluísse pela existência de estrutura pluri-societária desde 09/02/2009 sempre se poderá questionar a constitucionalidade da aplicação do regime da transparência fiscal a sociedades unipessoais.

Ora, tendo este tribunal concluído que a estrutura pluri-societária da Requerente, que existindo antes de 09/02/2009 se manteve nessa data, não aproveita à questão controvertida a apreciação da constitucionalidade da aplicação do regime da transparência fiscal a sociedades unipessoais, suscitada pela Requerente, por se entender que de uma sociedade unipessoal não se trata.

VII - DECISÃO

Em face do que antecede decide-se julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral e em consequência anular a liquidação de IRC nº 2013…, do ano de 2009.

VIII - VALOR DO PROCESSO

€ 5.751,00 (Cinco mil setecentos e cinquenta e um euros).

IX – CUSTAS

Conforme o disposto Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se as custas em 612,00€, a suportar pela AT.

 

Lisboa, 27 de Abril de 2015

Texto elaborado em computador, nos termos do art.º 131º, nº 5 do CPC, ex VI, artº. 29º nº 1 alínea e) do RJAT, com verso em branco de cada folha, sendo a ortografia anterior ao último acordo ortográfico.

 

O Árbitro

 

 

 

 

Henrique Curado



[1] São vários os processos submetidos à arbitragem tributária tendo por base a apreciação da Cláusula-geral antiabuso, nomeadamente: 5/2011-T, 196/2013-T, 224/2013-T, 143/2014-T, 208/2014-T e 379/2014-T, como resulta da página da Internet do CAAD-T.