Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 99/2024-T
Data da decisão: 2024-12-02   Outros 
Valor do pedido: € 79.639,12
Tema: Contribuição de Serviço Rodoviário (CSR) – Competência dos Tribunais Arbitrais – Ilegitimidade processual ativa.
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Sumário

  1. A Contribuição de Serviço Rodoviário é um imposto; e assim, o Tribunal Arbitral tem competência para apreciar os correspondentes atos de liquidação.
  2. A Requerente não tem legitimidade: não é o sujeito passivo da CSR, nem repercutido legal deste imposto. É mero repercutido de facto ou económico – e esse interveniente não tem legitimidade, por si e também porque não demonstrou um interesse legalmente protegido (artigos 9.º, n.º 1 do CPPT, 18.º, n.º 4, alínea a) e 65.º da LGT).
  3. Esse interesse corresponderia à circunstância de ter suportado, do ponto de vista económico, o imposto [CSR]: ter-lhe sido repercutido (de facto) pelo sujeito passivo fornecedor dos combustíveis e ter feito prova (que não fez) de não o ter repassado, em termos económicos, a jusante (aos seus clientes).

 

DECISÃO ARBITRAL

 

Os árbitros designados para formarem o Tribunal Arbitral Coletivo, constituído em 3 de abril de 2024 ,  José Poças Falcão (presidente), António Alberto Franco e Pedro Guerra Alves, acordam no seguinte:

 

 

  1. Relatório

 

  1. A..., LDA., titular do número de identificação de pessoa coletiva ..., com sede na Rua ..., n.º ..., ...-... Vila Nova de Gaia (doravante “Requerente”), na sequência da formação da presunção de indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa por si apresentado a 28 de junho de 2023, veio apresentar o presente pedido de pronúncia arbitral  tendo em vista “(...) a declaração de ilegalidade e consequente anulação do indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa em referência e, bem assim, dos atos de liquidação de Contribuição de Serviço Rodoviário (“CSR”) referentes ao período de 2019 a 2022, com o valor global de € 79.639,12 (setenta e nove mil, seiscentos e trinta e nove euros e doze cêntimos), a qual foi suportada pela Requerente na qualidade de adquirente e consumidor final de produtos petrolíferos que englobam o Imposto sobre Produtos Petrolíferos (“ISP”), através do mecanismo da repercussão legal (...)”.

              

Alegou a Requerente, a fundamentar o pedido:

  • É uma sociedade cujo objeto social consiste na «Extração de saibro, areia e pedra britada. Adicionalmente, a sociedade dedica-se à prestação de serviços de turismo rural, com restauração e alojamento» – cfr. certidão permanente do teor do registo comercial com o código de acesso ... .
  • Durante o período compreendido entre o mês de junho de 2019 e o último dia do mês de dezembro de 2022, a Requerente procedeu à aquisição de produtos petrolíferos, tendo pago o preço exigido pelo fornecedor de combustível, conforme resulta das faturas agrupadas por ano que se juntam como documentos n.os 2 a 5.
  • Das mencionadas faturas resulta a identificação do fornecedor do combustível, bem como a identificação do adquirente, o tipo de produto petrolífero que foi adquirido, bem assim como o número de litros, o que permite apurar de forma exata o valor de CSR suportado pela Requerente em cada fatura.
  • No âmbito da aquisição dos produtos petrolíferos, os fornecedores de combustível, enquanto responsável pelas declarações de introdução no consumo dos combustíveis adquiridos pela Requerente, repercutiram a CSR na Requerente, conforme resulta das faturas que titulam a aquisição dos mencionados produtos petrolíferos – cfr. atos de liquidação conjunta de ISP, CSR e outros tributos, relativos ao período compreendido entre o mês de junho de 2019 e 31 de dezembro de 2022, que são documentos do conhecimento e que estão na posse da Administração Tributária, nos termos do artigo 74.º, n.º 2 da LGT. Em função da relevância para a boa decisão da causa, desde já se requer seja a Requerida notificada para apresentar os mencionados documentos em prazo a designar ao abrigo do princípio da cooperação, conforme preceituado no artigo 429.º do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT e, bem assim, no artigo 74.º, n.º 2 da LGT. Na medida em que a fornecedora de produtos petrolíferos à Requerente repercutiu a CSR por si entregue nos cofres do Estado, esta última não dispõe dos atos de liquidação em crise.
  • Neste sentido, as fornecedoras de produtos petrolíferos à Requerente declararam, por escrito, que a Contribuição de Serviço Rodoviário por si entregue, na qualidade de sujeito passivo, junto dos cofres do Estado, por referência ao combustível fornecido à Requerente, foi por si integralmente repercutida nesta – cfr. cópia das declarações dos fornecedores de combustível que se juntam como documento n.º 6.
  • Quer isto dizer que os fornecedores de combustíveis repercutiram integralmente na Requerente a CSR da qual são sujeitos passivo, por referência a todo o combustível que aquelas venderam a esta, tendo para o efeito incluído os montantes liquidados a título de CSR no preço de venda.
  • A Requerente registou na sua contabilidade todos os consumos de produtos petrolíferos que resultam das faturas juntas como documentos n.os 2 a 5 ao presente pedido, conforme resulta dos balancetes de fecho da Requerente referentes aos anos de 2019, 2020, 2021 e 2022, nos quais se encontram registados os seguintes consumos de combustível nas contas de custo:
  • na totalidade do ano de 2019, a Requerente registou um total de consumo de produtos petrolíferos que ascende a € 205.733,38, conforme resulta da rúbrica #6242;
  • no ano de 2020, a Requerente registou um total de consumo de produtos petrolíferos que ascende a € 171.475,41, conforme resulta da rúbrica #6242;
  • no ano de 2021, a Requerente registou um total de consumo de produtos petrolíferos que ascende a € 220.631,17, conforme resulta da rúbrica #6242;
  • no ano de 2022, a Requerente registou um total de consumo de produtos petrolíferos que ascende a € 263.260,85, conforme resulta da rúbrica #6242;

- cfr. cópia dos balancetes de fecho dos anos de 2019 a 2022 que se juntam como documentos n.os 7 a 10.

  • Tal demonstra que, sob o ponto de vista contabilístico, a Requerente incluiu a CSR nos seus custos incorridos no período compreendido entre junho de 2019 e 31 de dezembro de 2022 – cfr. extratos de conta #6242 e listagem de aquisições, que se juntam como documentos n.os 11 e 23.
  • Da mesma forma, os consumos de produtos petrolíferos da Requerente durante os anos de 2019 e de 2022, encontram-se registados no Portal E-Fatura, por referência às faturas juntas ao presente como documentos n.os 2 a 5, o que é demonstrativo de que aquela incorreu na totalidade dos custos com combustível que adiante se discriminam e, bem assim, que suportou a totalidade da CSR repercutida pelo seu fornecedor – cfr. extratos das faturas emitidas pelos fornecedores de produtos petrolíferos da Requerente no Portal E-Fatura, que se juntam como documentos n.os 24 a 27 e que são igualmente do conhecimento da Administração Tributária, nos termos do artigo 74.º, n.º 2 da LGT.
  • O que significa que o encargo com a CSR foi transferido para a Requerente, tendo ocorrido uma repercussão no preço de venda à Requerente da totalidade da CSR suportada pela K..., S.A. aquando da aquisição dos produtos petrolíferos que vieram a ser vendidos à Requerente, em particular e no que releva para os presentes autos, no período compreendido entre o mês de junho de 2019 e 31 de dezembro de 2022.
  • Desta forma, entre junho de 2019 e 31 de dezembro de 2022, conforme resulta das tabelas infra, a Requerente efetuou os seguintes consumos de combustível:

 

Fornecedor

Fatura

Ano

Data

Valor

Quantidade em litros

B...

F.140

2019

03/07

7 260,00 €

6000

B...

F.632

2019

25/10

9 746,44 €

8002

C...

F.348

2020

10/03

13 811,50 €

12010

C...

F.438

2020

24/03

12 283,02 €

12001

C...

F.596

2020

28/04

11 377,58 €

12008

C...

F.778

2020

25/05

11 607,79 €

11994

C...

F.930

2020

26/06

12 692,90 €

12100

C...

F.1140

2020

07/08

12 661,49 €

11998

C...

F.1323

2020

15/09

11 932,04 €

11992

C...

F.1440

2020

07/10

11 995,00 €

11995

C...

F.1554

2020

27/10

12 113,81 €

12001

C...

F.260

2021

18/02

14 066,40 €

12000

C...

F.374

2021

12/03

14 329,20 €

12000

C...

F.676

2021

04/05

14 548,82 €

12002

C...

F.1022

2021

09/07

15 574,31 €

11995

C...

F.1118

2021

28/07

15 345,44 €

11998

C...

F.1210

2021

17/08

12 747,73 €

9999

C...

F.1298

2021

07/09

15 418,80 €

12000

C...

F.1392

2021

23/09

7 908,00 €

6000

C...

F.1428

2021

30/09

13 246,00 €

10000

C...

F.1589

2021

26/10

13 923,39 €

10001

C...

F.1687

2021

12/11

9 727,23 €

6997

C...

F.1757

2021

24/11

9 661,40 €

7000

C...

F.1820

2021

7/12

13 172,97 €

9903

C...

F.1926

2021

23/12

6 838,29 €

5009

C...

F.19

2022

06/01

11 002,40 €

8000

C...

F.104

2022

21/01

4 964,75 €

3500

C...

F.384

2022

04/03

9 302,49 €

6106

C...

F.1128

2022

07/07

9 111,00 €

5000

C...

F.1207

2022

19/07

8 761,00 €

5000

C...

F.1245

2022

27/07

8 752,00 €

5000

C...

F.2189

2022

18/12

5 822,80 €

4000

D...

F.90

2019

11/06

12 966,64 €

10998

D...

F.3059

2022

04/03

68,00 €

39

E...

F.1669

2019

15/07

12 003,00 €

10000

E...

F.1877

2019

01/08

10 925,10 €

9000

E...

F.1986

2019

07/08

7 315,20 €

6000

E...

F.2312

2019

18/09

9 720,00 €

8000

E...

F.2555

2019

10/10

17 107,29 €

14004

E...

F.3045

2019

26/11

14 618,67 €

12016

E...

F.3249

2019

13/12

14 703,68 €

12003

E...

F.27

2020

06/01

10 066,52 €

8002

E...

F.176

2020

24/01

9 990,24 €

8005

E...

F.346

2020

12/02

14 431,20 €

12000

E...

F.1689

2020

20/07

12 589,20 €

12000

E...

F.2042

2020

26/08

10 268,00 €

10000

E...

F.3030

2020

16/11

9 889,00 €

10000

E...

F.106

2021

12/01

12 567,20 €

11500

E...

F.327

2021

02/02

11 296,00 €

10000

F...

F.13963

2020

12//11

10 340,00 €

10000

F...

F.125

2021

25/02

8 571,12 €

7002

F...

F.5204

2021

07/05

8 741,34 €

6999

F...

F.167

2021

28/05

12 691,18 €

10001

F...

F.3757

2022

23/03

13 258,24 €

7499

F...

F.4264

2022

05/04

13 594,02 €

7498

F...

F.4689

2022

19/04

23 372,39 €

12999

F...

F.6807

2022

03/06

8 054,24 €

4800

F...

F.7873

2022

28/06

15 784,34 €

8000

F...

F.12698

2022

11/10

13 223,98 €

8000

F...

F.13665

2022

09/11

14 155,43 €

7997

F...

F.14274

2022

23/11

14 623,10 €

9010

G...

F.211

2020

14/04

11 047,30 €

11000

H...

F.68

2022

24/01

14 140,08 €

10000

H...

F.135

2022

10/02

14 890,38 €

10000

H...

F.271

2022

11/03

17 030,58 €

10000

H...

F.491

2022

09/05

17 030,58 €

10000

H...

F.569

2022

27/05

12 944,52 €

8000

H...

F.849

2022

03/08

15 102,80 €

9000

H...

F.961

2022

23/08

14 831,59 €

9000

H...

F.1070

2022

09/09

14 922,36 €

9000

H...

F.1132

2022

22/09

14 562,59 €

9000

I...

F.5459

2019

28/06

8 515,35 €

6997

I...

F.7558

2019

09/09

14 671,11 €

11996

I...

F.9815

2020

22/12

11 141,11 €

10001

I...

F.2599

2021

05/04

12 342,47 €

10002

I...

F.3025

2021

20/04

12 442,49 €

10002

I...

F.4753

2021

18/06

15 545,52 €

11995

I...

F.10452

2022

26/12

11 838,52 €

7999

J...

F.18308

2022

03/03

300,00 €

187

J...

F.18748

2022

04/03

690,02 €

430

J...

F.71361

2022

25/07

360,80 €

200

J...

F.115047

2022

16/12

300,80 €

200

 

 

 

 

943 291,28 €

723992

 

Aquisições de produtos petrolíferos sujeitos a CSR entre junho de 2019 e 31 de dezembro 2022 (valor em Litros)

CSR

Valor de CSR suportado

Total do período

723 992

0,11

€ 79.639,12

       

 

  • Em face do exposto, durante o período compreendido entre junho de 2019 e 31 de dezembro de 2022, a Requerente consumiu 723.992 litros de gasóleo.
  • Considerando um valor fixo de CSR de € 111,00 por 1000 litros de gasóleo rodoviário, a Requerente suportou, no período compreendido entre junho de 2019 e 31 de dezembro de 2022, € 79.639,12 a título de CSR repercutida pelos fornecedores de produtos combustíveis/ sujeitos passivos de CSR, sendo esse o valor que deverá ser reembolsado, considerando a ilegalidade das liquidações da CSR.
  • Por não se conformar com os valores pagos a título de CSR supra identificados constantes nas faturas das aquisições de produtos petrolíferos nos anos de 2019 a 2022, por entender que as liquidações da CSR enfermam de erro de aplicação do direito pelos serviços de Administração Tributária por violação o Direito Europeu, a Requerente apresentou, em  28 de junho de 2023, pedido de revisão oficiosa nos termos do artigo 78.º da LGT, atento o erro imputável aos serviços na aplicação ao procedimento de liquidação de CSR de normas nacionais inquinadas de ilegalidade por vício de violação de lei, em concreto, da Diretiva 2008/118/CE – cfr. documento n.º 1.
  • Em síntese, a Requerente sustentou no referido pedido de revisão oficiosa que os valores por si suportados a título de CSR repercutida, entre os meses de junho de 2019 e dezembro de 2022, deverão ser considerados ilegais por violação do Direito da União Europeia face ao princípio do primado do Direito da União Europeia consagrado no artigo 8.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa (“CRP”). -  cfr. documento n.º 1.
  • Na presente data, o referido procedimento de revisão oficiosa encontra-se pendente junto da Administração Tributária, correndo os seus termos sob o n.º ...2024... .
  • Volvidos mais de quatro meses desde a apresentação do referido pedido de revisão oficiosa, a Requerente não foi ainda notificada pela Administração Tributária de decisão final em sede do correspondente procedimento, verificando-se assim uma situação de indeferimento tácito.
  • Reúnem-se, no caso,  razões de facto e de Direito que determinam a ilegalidade do indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa em referência e, bem assim, dos montantes suportados a título de CSR entre junho de 2019 e 31 de dezembro de 2022.

 

  1. O pedido arbitral foi aceite e, nos termos regulamentares, notificada a Autoridade Tributária e Aduaneira
  2. A Requerente não nomeou árbitro e, consequentemente, ao abrigo do disposto no RJAT [alínea a), do nº 2, do artigo 6º e da alínea b) do nº 1, do artigo 11º], foram os árbitros do Tribunal Coletivo designados pelo Conselho Deontológico do CAAD.
  3.  Aceite a designação pelos signatários e pelas partes, o Tribunal ficou constituído em 3 de abril de 2024.
  4. Em 4-4-2024 foi determinada a notificação da Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) para apresentar resposta ao pedido de pronúncia arbitral e em 6-5-2024, foi apresentada a Resposta.

 

Posição da AT

  1. Na Resposta foram suscitadas exceções (incompetência material do Tribunal, ilegitimidade processual e substantiva da Requerente, ineptidão da petição inicial por falta de objeto e caducidade do direito de ação) e, subsidiariamente, contestado o pedido por impugnação.

Sobre a incompetência material:

  1. Suscitou a Requerida a exceção da incompetência do Tribunal em razão da matéria trazendo à colação a fundamentação ou pronúncia sobre esta matéria de algumas decisões de Tribunais arbitrais constituídos no âmbito do CAAD, v. g., nos processos nºs 212/2020-T, 707/2019-T 131/2019-T e 117/2021-T.
  2. Por outro lado, também a incompetência material resultaria, segundo a Requerida, da circunstância de serem alegadamente atos de repercussão e não atos de liquidação de ISP/CSR, os que são objeto do pedido, sendo que só estes e não aqueles os que podem ser objeto de pronúncia arbitral. Citou algumas decisões que consagram este entendimento.

Sobre a ilegitimidade processual e substantiva:

  1.  Suscitou também a Requerida a exceção de ilegitimidade processual e substantiva da Requerente, consubstanciada no facto de que só os sujeitos passivos que tenham introduzido no consumo os produtos petrolíferos em território nacional e provem o pagamento do respetivo ISP/CSR é que possuem legitimidade para pedirem o reembolso do valor pago porquanto é isso que resulta do disposto nos artigos 5º-1, da Lei nº 55/2007 (que criou a CSR) e  15º e 16º, do CIEC.
  2. Assim é que, de acordo com os artigos 15º e 16º dos IEC, os múltiplos adquirentes dos produtos petrolíferos não têm legitimidade para pedido de revisão do ato tributário e consequente reembolso.
  3. Ora – conclui a Requerida -, esse direito não se encontra, no caso, na esfera jurídica da Requerente porquanto esta não é mais do que, alegadamente, uma repercutida económica ou de facto (sublinhado nosso) e não sujeito passivo nos termos e para efeito do disposto no artigo 4º, do CIEC.
  4. Vai no sentido apontado o despacho proferido pelo TJUE em 7-2-2022, no Proc nº C-460/21 ao reconhecer a legitimidade do sujeito passivo do imposto ao reembolso do tributo indevidamente liquidado, por violação do direito da UE.
  5. A este respeito, traz a Requerida à colação, sufragando o entendimento de que a repercussão da CSR tem natureza meramente económica ou de facto, as decisões arbitrais proferidas nos processos nºs 296/2023-T, 375/2023-T, 408/2023-T, 452/2023-T e 467/2023-T.
  6. Concluindo: inexistindo efetiva titularidade do direito a que se arroga, carece a Requerente de legitimidade processual e, consequentemente, deve a Requerida  ser absolvida da instância [arts. 576º-1 e 2, 577º-al. e) e 578º, do CPC] ou do pedido, por ilegitimidade substantiva [arts 576º-1 e 3 e 579º, do CPC].
  7.  Pronunciou-se ainda a Requerente sobre as exceções de ineptidão da petição inicial por falta de objeto e caducidade do direito de ação, concluindo também pela sua total falta de fundamento.

 

Questões a Apreciar

A questão de mérito a decidir respeita apreciação da compatibilidade do regime da CSR subjacente aos atos tributários (de liquidação de CSR) impugnados com o direito da União Europeia, em concreto, com o disposto no artigo 1.º, n.º 2 da Diretiva 2008/118/CE.

Em causa o ato de indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa (ato de primeiro grau) apresentado pela Requerente por alegado erro imputável aos serviços na aplicação ao procedimento de liquidação de CSR (ato de segundo grau) de normas nacionais “(...)inquinadas de ilegalidade por vício de violação de lei, em concreto, a Diretiva 2008/118/CE, do Conselho, de 16 de dezembro de 2008 (Diretiva 2008/118/CE”) (...)”

Contestando, a Requerida invocou, como se viu, múltiplas exceções, quer dilatórias, quer perentórias, de que o Tribunal deve conhecer a título prévio, logo após a fixação da matéria de facto, a começar pelas dilatórias, pois a sua procedência, impede a apreciação do mérito da causa.

 

II - Fundamentação de Facto

Factos Provados

Consideram-se provados, os seguintes factos:

  1. A Requerente  é uma sociedade cujo objeto social consiste na «Extração de saibro, areia e pedra britada. Adicionalmente, a sociedade dedica-se à prestação de serviços de turismo rural, com restauração e alojamento» – cfr. certidão permanente do teor do registo comercial com o código de acesso ...;
  2. Durante o período compreendido entre o mês de junho de 2019 e o último dia do mês de dezembro de 2022, a Requerente procedeu à aquisição de produtos petrolíferos, tendo pago o preço exigido pelos fornecedores de combustível, conforme faturas agrupadas por ano que se juntam como documentos n.os 2 a 5;
  3. Das mencionadas faturas resulta a identificação do fornecedor do combustível, bem como a identificação do adquirente, o tipo de produto petrolífero que foi adquirido, bem assim como o número de litros de produtos petrolíferos adquirido;
  4. As fornecedoras de produtos petrolíferos à Requerente declararam, por escrito, que a Contribuição de Serviço Rodoviário por si entregue, na qualidade de sujeito passivo, junto dos cofres do Estado, por referência ao combustível fornecido à Requerente, foi por elas integralmente repercutida nesta – cfr. cópia das declarações dos fornecedores de combustível que se juntam como documento n.º 6.
  5. A Requerente registou na sua contabilidade todos os consumos de produtos petrolíferos que resultam das faturas juntas como documentos n.os 2 a 5 ao presente pedido, conforme resulta dos balancetes de fecho da Requerente referentes aos anos de 2019, 2020, 2021 e 2022;
  6. Na totalidade do ano de 2019, a Requerente registou um total de consumo de produtos petrolíferos que ascende a € 205.733,38, conforme resulta da rúbrica #6242;
  7. No ano de 2020, a Requerente registou um total de consumo de produtos petrolíferos que ascende a € 171.475,41, conforme resulta da rúbrica #6242;
  8. No ano de 2021, a Requerente registou um total de consumo de produtos petrolíferos que ascende a € 220.631,17, conforme resulta da rúbrica #6242;
  9. No ano de 2022, a Requerente registou um total de consumo de produtos petrolíferos que ascende a € 263.260,85, conforme resulta da rúbrica #6242;
  10. Entre  junho de 2019 e 31 de dezembro de 2022, conforme resulta das tabelas infra, a Requerente efetuou os seguintes consumos de combustível:

Fornecedor

Fatura

Ano

Data

Valor

Quantidade em litros

B...

F.140

2019

03/07

7 260,00 €

6000

B...

F.632

2019

25/10

9 746,44 €

8002

C...

F.348

2020

10/03

13 811,50 €

12010

C...

F.438

2020

24/03

12 283,02 €

12001

C...

F.596

2020

28/04

11 377,58 €

12008

C...

F.778

2020

25/05

11 607,79 €

11994

C...

F.930

2020

26/06

12 692,90 €

12100

C...

F.1140

2020

07/08

12 661,49 €

11998

C...

F.1323

2020

15/09

11 932,04 €

11992

C...

F.1440

2020

07/10

11 995,00 €

11995

C...

F.1554

2020

27/10

12 113,81 €

12001

C...

F.260

2021

18/02

14 066,40 €

12000

C...

F.374

2021

12/03

14 329,20 €

12000

C...

F.676

2021

04/05

14 548,82 €

12002

C...

F.1022

2021

09/07

15 574,31 €

11995

C...

F.1118

2021

28/07

15 345,44 €

11998

C...

F.1210

2021

17/08

12 747,73 €

9999

C...

F.1298

2021

07/09

15 418,80 €

12000

C...

F.1392

2021

23/09

7 908,00 €

6000

C...

F.1428

2021

30/09

13 246,00 €

10000

C...

F.1589

2021

26/10

13 923,39 €

10001

C...

F.1687

2021

12/11

9 727,23 €

6997

C...

F.1757

2021

24/11

9 661,40 €

7000

C...

F.1820

2021

7/12

13 172,97 €

9903

C...

F.1926

2021

23/12

6 838,29 €

5009

C...

F.19

2022

06/01

11 002,40 €

8000

C...

F.104

2022

21/01

4 964,75 €

3500

C...

F.384

2022

04/03

9 302,49 €

6106

C...

F.1128

2022

07/07

9 111,00 €

5000

C...

F.1207

2022

19/07

8 761,00 €

5000

C...

F.1245

2022

27/07

8 752,00 €

5000

C...

F.2189

2022

18/12

5 822,80 €

4000

D...

F.90

2019

11/06

12 966,64 €

10998

D...

F.3059

2022

04/03

68,00 €

39

E...

F.1669

2019

15/07

12 003,00 €

10000

E...

F.1877

2019

01/08

10 925,10 €

9000

E...

F.1986

2019

07/08

7 315,20 €

6000

E...

F.2312

2019

18/09

9 720,00 €

8000

E...

F.2555

2019

10/10

17 107,29 €

14004

E...

F.3045

2019

26/11

14 618,67 €

12016

E...

F.3249

2019

13/12

14 703,68 €

12003

E...

F.27

2020

06/01

10 066,52 €

8002

E...

F.176

2020

24/01

9 990,24 €

8005

E...

F.346

2020

12/02

14 431,20 €

12000

E...

F.1689

2020

20/07

12 589,20 €

12000

E...

F.2042

2020

26/08

10 268,00 €

10000

E...

F.3030

2020

16/11

9 889,00 €

10000

E...

F.106

2021

12/01

12 567,20 €

11500

E...

F.327

2021

02/02

11 296,00 €

10000

F...

F.13963

2020

12//11

10 340,00 €

10000

F...

F.125

2021

25/02

8 571,12 €

7002

F...

F.5204

2021

07/05

8 741,34 €

6999

F...

F.167

2021

28/05

12 691,18 €

10001

F...

F.3757

2022

23/03

13 258,24 €

7499

F...

F.4264

2022

05/04

13 594,02 €

7498

F...

F.4689

2022

19/04

23 372,39 €

12999

F...

F.6807

2022

03/06

8 054,24 €

4800

F...

F.7873

2022

28/06

15 784,34 €

8000

F...

F.12698

2022

11/10

13 223,98 €

8000

F...

F.13665

2022

09/11

14 155,43 €

7997

F...

F.14274

2022

23/11

14 623,10 €

9010

G...

F.211

2020

14/04

11 047,30 €

11000

H...

F.68

2022

24/01

14 140,08 €

10000

H...

F.135

2022

10/02

14 890,38 €

10000

H...

F.271

2022

11/03

17 030,58 €

10000

H...

F.491

2022

09/05

17 030,58 €

10000

H...

F.569

2022

27/05

12 944,52 €

8000

H...

F.849

2022

03/08

15 102,80 €

9000

H...

F.961

2022

23/08

14 831,59 €

9000

H...

F.1070

2022

09/09

14 922,36 €

9000

H...

F.1132

2022

22/09

14 562,59 €

9000

I...

F.5459

2019

28/06

8 515,35 €

6997

I...

F.7558

2019

09/09

14 671,11 €

11996

I...

F.9815

2020

22/12

11 141,11 €

10001

I...

F.2599

2021

05/04

12 342,47 €

10002

I...

F.3025

2021

20/04

12 442,49 €

10002

I...

F.4753

2021

18/06

15 545,52 €

11995

I...

F.10452

2022

26/12

11 838,52 €

7999

J...

F.18308

2022

03/03

300,00 €

187

J...

F.18748

2022

04/03

690,02 €

430

J...

F.71361

2022

25/07

360,80 €

200

J...

F.115047

2022

16/12

300,80 €

200

 

 

 

 

943 291,28 €

723992

 

Factos NÃO Provados

Não está provado:

- que a Requerente tenha efetivamente suportado a CSR ou que, suportando este tributo, o não tenha voltado a repercutir em vendas aos seus clientes.

Fundamentos da fixação da matéria de facto

              Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, em face das soluções plausíveis das questões de direito, nos termos da aplicação conjugada dos artigos 123.º, n.º 2 do CPPT, 596.º, n.º 1 e 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e) do RJAT, não tendo o Tribunal que se pronunciar sobre todas as alegações das Partes, mas apenas sobre as questões de facto necessárias para a decisão.

Os factos foram dados como provados a partir do exame dos documentos juntos pela Requerente e da análise do processo administrativo instrutor, tudo analisado criticamente pelo Tribunal.

Não se considerou provado que a Requerente tenha suportado, no final do respetivo circuito económico,  a CSR, porquanto não se alegou nem provou que não ocorreu ulterior repercussão nos clientes da Requerente do valor da CSR que as empresas que venderam esses produtos petrolíferos à Requerente declararam ter repercutido nos valores ou preços de venda.

 

            Do Direito

Questões Prévias

Sobre todas estas questões de direito, depois da devida ponderação e análise, segue-se, em parte, de perto, por paralelismo das situações de facto e de direito,  a jurisprudência arbitral – Cfr decisões proferidas nos processos nºs 604/2024-T, 601/2024-T, 327/2024-T, 266/2024-T, 259/2024-T, 256/2024-T, 224/2024-T, 194/2024-T e 166/2024-T, publicadas em www.caad.org.pt

 

Da Ineptidão do Pedido de Pronúncia Arbitral

A AT defende que o pedido de pronúncia arbitral é inepto, porque a Requerente não identificou os atos que são objeto do pedido arbitral, como exige o artigo 10.º, n.º 2, alínea b) do RJAT. A Requerente declina esta argumentação e propugna que os atos impugnados são da autoria da AT, sobre quem recai o ónus da sua identificação.

O artigo 98.º, n.º 1, alínea a) do CPPT, subsidiariamente aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea c) do RJAT indica como nulidade insanável do processo judicial tributário, a ineptidão da petição inicial, sem contudo esclarecer as situações que configuram essa ineptidão. Desta forma, deve aplicar-se, a título subsidiário [v. artigos 2.º, alínea e) do CPPT e 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT], o disposto no compêndio processual civil que, no artigo 186.º, rege esta matéria (v. neste sentido a decisão do processo arbitral n.º 410/2024-T, de 13 de novembro de 2023, que a seguir se acompanha).

No citado artigo 186.º, n.º 1 do CPC, indicam-se as seguintes situações de ineptidão da petição inicial:

a) Quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir;

b) Quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir;

c) Quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis.

O n.º 3 do mesmo artigo determina que “se o réu contestar, apesar de arguir a ineptidão com fundamento na alínea a) do número anterior, a arguição não é julgada procedente quando, ouvido o autor, se verificar que o réu interpretou convenientemente a petição inicial”.

Em relação à identificação dos atos tributários, não tendo a Requerente a qualidade de sujeito passivo da CSR, nem sendo substituto tributário, não lhe é exigível que disponha das liquidações correspondentes, uma vez que não é o destinatário das mesmas nem participou na sua emissão. Aliás, tal exigência comprometeria a sindicabilidade dos atos tributários por repercutidos legais, ou, no caso de retenções na fonte, pelos substituídos, com a consequente contração do acesso ao direito, incompatível com o direito a uma tutela jurisdicional efetiva e com o princípio da proporcionalidade (v. artigos 20.º e 268.º, n.º 4 da Constituição).

A não identificação dos atos tributários não impediu o exercício do contraditório pela Requerida, que, pelo teor da extensa e circunstanciada resposta, manifestou compreender o alcance da pretensão da Requerente e os argumentos que a alicerçam, não se suscitando, portanto, um problema de ininteligibilidade do pedido e/ou da causa de pedir. Nem essa identificação é necessária para aferir da legalidade da cobrança de CSR.

Afigura-se, assim, que o pedido formulado é perfeitamente inteligível e idóneo ao meio processual (ação arbitral tributária), como se constata do petitório: “(...) apresentar o presente pedido de pronúncia arbitral  tendo em vista (...) a declaração de ilegalidade e consequente anulação do indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa em referência e, bem assim, dos atos de liquidação de Contribuição de Serviço Rodoviário (“CSR”) referentes ao período de 2019 a 2022, com o valor global de € 79.639,12 (setenta e nove mil, seiscentos e trinta e nove euros e doze cêntimos), a qual foi suportada pela Requerente na qualidade de adquirente e consumidor final de produtos petrolíferos que englobam o Imposto sobre Produtos Petrolíferos (“ISP”), através do mecanismo da repercussão legal (...)”

 Ou seja, o pedido reconduz-se à anulação, por ilegalidade, do ato de indeferimento de reclamação graciosa (ato de primeiro grau) e dos respetivos  atos de liquidação de CSR.

Pelo exposto, improcede a exceção da ineptidão do pedido de pronúncia arbitral, pois não se verifica nenhuma das situações elencadas no artigo 186.º do CPC.

 

Da Competência Material do Tribunal Arbitral

A Requerida qualifica a CSR como contribuição financeira e não como imposto, daí retirando a consequente exclusão do âmbito da jurisdição arbitral por falta de vinculação da AT (v. artigo 4.º, n.º 1 do RJAT[1]). Isto porque a Portaria de Vinculação[2], no corpo do seu artigo 2.º, delimita o respetivo âmbito à “apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida [à AT]”, sem prever outros tributos. (sublinhado nosso)

A questão releva do ponto de vista da competência “relativa” do Tribunal Arbitral e não “absoluta”, em razão da matéria, já que a norma que rege a competência, o artigo 2.º, n.º 1 do RJAT, faz referência a “atos de liquidação de tributos”, categoria ampla que compreende a tripartição clássica refletida no artigo 165.º, n.º 1, alínea i) da Constituição e no artigo 3.º, n.º 2 da LGT – impostos, taxas e contribuições financeiras –, pelo que aí tem claro enquadramento a CSR.

Porém, mesmo na perspetiva da competência “relativa” não assiste razão à Requerida, porquanto, apesar de o artigo 2.º da citada Portaria parecer limitar o âmbito da vinculação da AT à jurisdição arbitral aos “impostos” e de o nomen juris da CSR sugerir que estamos perante uma contribuição financeira, a sua natureza é, na realidade, a de um imposto administrado pela AT, ainda que de receita consignada, não sendo a denominação determinante.

A Requerida cita diversas decisões arbitrais para reforçar o seu argumento[3], mas omite a existência de múltiplas outras decisões em sentido distinto, nomeadamente a do processo arbitral 304/2022-T, de 5 de janeiro de 2023[4], que se acompanha nesta matéria, e que, com suporte na jurisprudência dos Tribunais superiores, incluindo o Tribunal Constitucional, conclui que a CSR é um imposto.

Desde logo, a designação de contribuição não vincula o aplicador do direito e não é o facto de o tributo ter a receita consignada que o qualifica como contribuição financeira (v. Acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 539/2015; 369/99 e 232/2022, respetivamente), existindo vários impostos que têm a sua receita consignada (ainda que ao arrepio do princípio da não consignação da receita dos impostos).

O elemento decisivo para a qualificação da CSR como contribuição financeira é a existência de uma estrutura paracomutativa[5], ou dito de outra forma, de um nexo de bilateralidade/causalidade que se estabelece entre o ente beneficiário da receita [Estado] e os sujeitos passivos do tributo. A prestação deve destinar-se a compensar prestações administrativas aproveitadas (bilateralidade) ou provocadas (causalidade) pelos respetivos sujeitos passivos, “(...) acabando por se reconduzir à categoria de impostos de receita consignada as prestações pecuniárias coativas cobradas com o intuito de financiar despesa pública – mesmo que se trate de despesa pública concretamente identificada no âmbito da consignação das receitas – sempre que essa despesa se não possa reconduzir ao suporte financeiro de medidas ou atividades administrativas provocadas pelos sujeitos passivos ou de que estes sejam beneficiários (v. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 232/2022, citado na decisão arbitral 304/2022-T).

No caso da CSR, constata-se que a mesma não tem por finalidade compensar prestações administrativas realizadas de que o sujeito passivo seja presumidamente beneficiário e também não se identificam prestações administrativas a que o sujeito passivo tenha dado causa.

Conforme explicita a decisão arbitral 304/2022-T:

Desde logo, a CSR não tem como pressuposto uma prestação, a favor de um grupo de sujeitos passivos, por parte de uma pessoa coletiva. A contribuição é estabelecida a favor da EP — Estradas de Portugal, E. P. E. (art. 3º, nº 2 da Lei n.º 55/2007), sendo essa mesma entidade a titular da receita correspondente (art.º 6º). No entanto, os sujeitos passivos da contribuição (as empresas comercializadoras de produtos combustíveis rodoviários) não são os destinatários da atividade da EP — Estradas de Portugal, E. P. E., a qual consiste na “conceção, projeto, construção, conservação, exploração, requalificação e alargamento” da rede de estradas (art. 3º, nº 2 da Lei n.º 55/2007).

Em segundo lugar, também não se encontra base legal alguma para afirmar que a responsabilidade pelo financiamento da tarefa administrativa em causa – que no caso será a “conceção, projeto, construção, conservação, exploração, requalificação e alargamento da rede de estradas” – é imputável aos sujeitos passivos da contribuição, que são as empresas comercializadoras de combustíveis rodoviários. Pelo contrário, o art.º 2.º da Lei n.º 55/2007 diz expressamente que o “financiamento da rede rodoviária nacional a cargo da EP - Estradas de Portugal, E.P. E., (...), é assegurado pelos respetivos utilizadores e, subsidiariamente, pelo Estado, nos termos da lei e do contrato de concessão aplicável.”

Portanto, apesar de ser visível, de forma clara, o elemento de afetação da contribuição para financiar a atividade de uma entidade pública não territorial – a EP - Estradas de Portugal, E. P. E. – não é de modo algum evidente a existência, pelo contrário, afigura-se  inexistir um “nexo de comutatividade coletiva” entre os sujeitos passivos e a responsabilidade pelo financiamento da respetiva atividade, ou entre os sujeitos passivos e os benefícios retirados dessa atividade.

A Contribuição de Serviço Rodoviário visa financiar a rede rodoviária nacional a cargo da EP — Estradas de Portugal, E. P. E. (art.º 1º da Lei 55/2007). O financiamento da rede rodoviária nacional a cargo da EP — Estradas de Portugal, E. P. E., é assegurado pelos respetivos utilizadores (art.º 2º). São, estes, como se conclui, os sujeitos que têm um vínculo com a atividade da entidade titular da contribuição e com a atividade pública financiada pelo tributo; são eles os beneficiários, e são eles os responsáveis pelo seu financiamento.

No entanto, a contribuição de serviço rodoviário é devida pelos sujeitos passivos do imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos, que, nos termos do art.º 4º n.º 1, al. a) do CIEC, são os “depositários autorizados” e os “destinatários registados”, não existindo qualquer nexo específico entre o benefício emanado da atividade da entidade pública titular da contribuição e o grupo dos respetivos sujeitos passivos.

Embora a Autoridade Tributária afirme que a posição dos revendedores de produtos petrolíferos é a de uma “espécie de substituição tributária”, não entendemos assim, pois tal entendimento não tem apoio na lei.

[…]

Ainda poderia acrescentar-se que o universo de entidades que beneficiam ou dão causa à atividade financiada pela CSR não é um grupo delimitado de pessoas, mas é toda a população de um modo geral. E que o efetivo sacrifício fiscal, suportado através de uma repercussão meramente económica, não é suportado apenas pelos que efetivamente utilizam a rede de estradas a cargo da Infraestruturas de Portugal S.A., mas também pelos que utilizam vias rodoviárias que não se incluem nessa rede.

Por conseguinte, conclui também este tribunal que a Contribuição de Serviço Rodoviário, apesar do seu nomen juris e de a sua receita se destinar a financiar uma atividade pública específica, não tem o caráter de comutatividade, bilateralidade ou sinalagmaticidade grupal ou coletiva que é necessária à contribuição financeira.

 

No mesmo sentido, salienta a decisão arbitral 629/2021-T, de 3 de agosto de 2022, que “o nexo grupal – que faria das contribuições financeiras uma espécie de taxas coletivas – não se estabelece com os sujeitos passivos da CSR, mas sim com terceiros não participantes na relação tributária.”.

A qualificação da CSR como um imposto foi também a seguida pelo Tribunal de Contas, na Conta Geral do Estado de 2008, e resulta da análise da sua génese. Interessa a este respeito notar que a Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto, criou a CSR por desdobramento do ISP, em relação ao qual é indiscutível a sua qualificação como imposto. Esta relação umbilical merece destaque na decisão arbitral 332/2023-T: “A CSR, durante algum tempo legalmente autonomizada do ISP, a partir do qual nasceu e ao qual voltou, constituiu sempre um pseudónimo deste – e, portanto, sempre foi um imposto”. 

Em síntese, a CSR é enquadrável como imposto, uma vez que não reúne as características de bilateralidade difusa e de responsabilidade de grupo inerente às contribuições, estando, deste modo, abrangida pela autovinculação da AT à jurisdição arbitral, nos termos da citada Portaria n.º 112-A/2011, sendo este Tribunal competente para proceder à sua apreciação.

 

A Requerida suscita ainda a incompetência material deste Tribunal, por entender que a Requerente visa a apreciação da legalidade de todo o regime da CSR, pretendendo, em rigor, suspender a eficácia de atos legislativos.  Contudo, não é assim.

O pedido formulado pela Requerente é especificamente dirigido à anulação dos atos tributários e da decisão silente de segundo grau que os manteve, não tendo sido peticionada a ilegalidade ou ineficácia da Lei n.º 55/2007 ou de alguma(s) das suas normas. E a pronúncia jurisdicional será, se a ação for procedente, meramente anulatória (constitutiva) dos atos impugnados, não consubstanciando uma declaração de ilegalidade do (ou dirigida ao) regime da CSR em bloco.

Quer do ponto de vista formal, quer numa perspetiva material, a Requerente não pretende, nem do seu articulado se infere, a “fiscalização da legalidade de normas em abstrato”. O que está em causa nos atos é a apreciação de atos individuais e concretos – de liquidação de CSR – em relação aos quais foi suscitada a questão da respetiva ilegalidade por erro de direito. A alegada ilegalidade do regime da CSR por violação do direito da União Europeia é causa de invalidade dos atos, mas não o objeto da pronúncia jurisdicional. A pretendida decisão anulatória de atos individuais e concretos com fundamento da desconformidade da disciplina da CSR com o direito europeu, mais não é do que a expressão do princípio do primado do direito da União Europeia, sem paralelo com uma alegada declaração de ilegalidade do próprio regime.

 

              A Requerida invoca finalmente a falta de competência material do Tribunal Arbitral para se pronunciar sobre a legalidade dos atos de repercussão de CSR, subsequentes e autónomos dos atos de liquidação da própria CSR. 

              Como descreve Sérgio Vasques “Os atos de repercussão materializam um fenómeno que consiste na transferência do peso económico de um tributo para pessoa diferente do sujeito passivo e com quem este está em relação, através da sua integração no preço de um qualquer bem[6].

Independentemente da posição que se adote sobre a natureza jurídica dos atos de repercussão, quanto a saber se são atos que integram uma relação jurídico-tributária complexa, ou se são um fenómeno económico de natureza estritamente privada, certo é que aqueles não são atos tributários em sentido lato, porque não envolvem o apuramento da matéria coletável/tributável através da aplicação de uma norma tributária substantiva a um caso concreto e muito menos atos tributários de liquidação stricto sensu, que tornam certa, líquida e exigível a obrigação tributária através da operação aritmética de aplicação da taxa legal à matéria tributável previamente determinada (v. neste sentido Serena Cabrita Neto e Carla Castelo Trindade, Contencioso Tributário, vol. I, Almedina, 2017, p. 278).

              Efetivamente, os atos de repercussão não se subsumem a nenhuma das realidades visadas pelo artigo 2.º do RJAT, pelo que os Tribunais Arbitrais não são competentes para os apreciar. Porém, dito isto, a Requerente não solicita a apreciação da legalidade dos atos de repercussão. O pedido da Requerente circunscreve-se aos atos de liquidação de CSR emanados da AT, dos quais, como acima dito, o Tribunal pode conhecer.

              Por fim, no tocante à incompetência do Tribunal Arbitral para decidir o pedido de restituição de valores, que segundo a Requerida, só pode ser apreciado em execução do julgado, tal só se verifica se a determinação do valor da liquidação a anular estiver dependente de operações que envolvam o exercício da atividade administrativa, não havendo necessidade de remeter tal fixação para a fase de execução da decisão se a quantificação do valor anulado não oferecer dúvidas e resultar de um cálculo aritmético simples, sem margem de apreciação administrativa (v. artigo 609.º, n.º 2 do CPC (a contrario), por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT). 

Assim, por oposição ao que a Requerida preconiza, não estão em juízo matérias às quais a AT não se tenha vinculado, nem pedidos que o Tribunal Arbitral não possa conhecer, pelo que soçobram as premissas de uma eventual inconstitucionalidade, que a Requerida invocou, mas não substanciou.

À face do exposto, julga-se improcedente a exceção de incompetência material do Tribunal Arbitral, encontrando-se a AT ao mesmo vinculada, por estar em causa um pedido de anulação de atos de liquidação de imposto, a CSR (v. artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 5.º do RJAT).

 

Da Ilegitimidade Ativa

O RJAT não contém a regulação do pressuposto processual da legitimidade, como possibilidade de intervenção num processo contencioso, cuja conformação jurídica tem, assim, de proceder do direito subsidiariamente aplicável, por via da aplicação do seu artigo 29.º, n.º 1, que remete para as disposições legais de natureza processual do CPPT, do CPTA e do CPC.

Da regra geral do direito processual, constante do artigo 30.º do CPC, resulta que é parte legítima quem tem “interesse direto” em demandar, sendo considerados titulares do interesse relevante, para este efeito, na falta de indicação da lei em contrário, “os sujeitos da relação controvertida”. A mesma regra é reproduzida no processo administrativo, que confere legitimidade ativa a quem “alegue ser parte na relação material controvertida” (v. artigo 9.º, n.º 1 do CPTA).

A legitimidade no processo é, pois, recortada pelo conceito central de “relação material” que, no âmbito fiscal, há de ser uma relação regida pelo direito tributário, à qual subjaz um ato tributário, cujo sujeito passivo é delimitado no artigo 18.º, n.º 3 da LGT, como “a pessoa singular ou coletiva, o património ou a organização de facto ou de direito que, nos termos da lei, está vinculado ao cumprimento da prestação tributária, seja como contribuinte direto, substituto ou responsável.”.

Neste domínio, a legitimidade não pode deixar de ser enquadrada no âmbito das relações jurídicas tributárias que se estabelecem entre a administração tributária, agindo como tal, e as pessoas singulares ou coletivas e entidades equiparadas (v. artigo 1.º, n.º 2 da LGT).

O CPPT consagra uma norma específica à legitimidade no processo judicial tributário, atribuindo-a aos “contribuintes, incluindo substitutos e responsáveis, outros obrigados tributários, as partes dos contratos fiscais e quaisquer outras pessoas que provem interesse legalmente protegido” (v. artigo 9.º, n.ºs 1 e 4 do CPPT).

No mesmo sentido, ainda que se refira somente à legitimidade no procedimento, a LGT determina no seu artigo 65.º que “têm legitimidade no procedimento os sujeitos passivos da relação tributária e quaisquer pessoas que provem interesse legalmente protegido.”. E o artigo 78.º da LGT, no âmbito da revisão dos atos tributários, assegura a mesma posição apelando aos conceitos de sujeito passivo e de contribuinte.

Em relação aos sujeitos passivos não originários, o legislador teve a preocupação de justificar, especificadamente, a razão pela qual lhes é concedida legitimidade processual. Assim, quanto aos responsáveis solidários, a legitimidade processual deriva “da exigência em relação a eles do cumprimento da obrigação tributária ou de quaisquer deveres tributários, ainda que em conjunto com o devedor principal” (v. artigo 9.º, n.º 2 do CPPT). E, relativamente aos responsáveis subsidiários, está associada ao facto “de ter sido contra eles ordenada a reversão da execução fiscal ou requerida qualquer providência cautelar de garantia dos créditos tributários” (v. artigo 9.º, n.º 3 do CPPT). Em ambas as situações constitui-se uma relação jurídico-tributária entre estas categorias de sujeitos passivos derivados e o credor tributário Estado, que encerra prestações – principais (de pagamento da obrigação tributária) e acessórias –, o que sucede igualmente com outra categoria de sujeito passivo (não originário), o substituto.

Compreende-se que o legislador não tenha adotado um conceito irrestrito de legitimidade ativa, rodeando-se de algumas cautelas, atentas as dificuldades práticas que uma tal abertura suscitaria, quer na ligação entre o ato de liquidação do imposto, a determinação da sua efetiva repercussão (económica) e a determinação do seu quantum; quer ainda no potencial desdobramento/duplicação de devoluções de imposto indevidas: simultaneamente ao sujeito passivo e ao(s) múltiplos repercutido(s) económicos da cadeia de valor. A ser assim, o mesmo imposto poderia ser restituído a diversos intervenientes, de forma dificilmente controlável, com manifesto prejuízo para o Estado, em colisão com os princípios da igualdade e da praticabilidade.

In casu, a Requerente parece invocar, em simultâneo, a qualidade de sujeito passivo da CSR e a de repercutido legal, que são inconciliáveis face ao preceituado no artigo 18.º, n.º 4, alínea a) da LGT, que dispõe não ser sujeito passivo quem “suporte o encargo do imposto por repercussão legal”, sem prejuízo do direito de deduzir pedido de pronúncia arbitral, nos termos das leis tributárias. Afirma também que suportou a CSR, por repercussão dos sujeito passivos, que lhe repercutiram economicamente o imposto, via faturas.

Apesar de a LGT estender a legitimidade ativa ao repercutido legal[7], que, como acabámos de ver, não é sujeito passivo, a CSR não constitui um caso de repercussão legal.

A Lei n.º 55/2007, que institui a CSR, não contém qualquer referência sobre quem deve recair o encargo do tributo. Basta atentar, para esta conclusão, no seu artigo 5.º, n.º 1: “A contribuição de serviço rodoviário é devida pelos sujeitos passivos do imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos, sendo aplicável à sua liquidação, cobrança e pagamento o disposto no Código dos Impostos Especiais de Consumo, na lei geral tributária e no Código de Procedimento e Processo Tributário, com as devidas adaptações.”. Assim, o legislador limitou-se a identificar o sujeito passivo da CSR, nada acrescentando sobre a repercussão da mesma, pelo que o artigo 5.º, n.º 1 não remete para o artigo 2.º do Código dos IEC, mas apenas para as normas desse código que regulam a liquidação, cobrança e pagamento do imposto pelo sujeito passivo.

Em síntese, a Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto, que instituiu a CSR não contempla qualquer mecanismo de repercussão legal, nem sequer, adiante-se, de repercussão meramente económica, isto, sem prejuízo de ser um dado que, em princípio, as empresas repassam nos preços praticados os gastos em que incorrem, independentemente da sua natureza (e, portanto, incluindo os gastos tributários), por forma a concretizarem o objetivo lucrativo que preside à sua criação e manutenção (vide artigos 22.º do Código das Sociedades Comerciais e 980.º do Código Civil)[8].

 De salientar que a mera repercussão económica não é, por si só, atributo de legitimidade processual, que reclama, nos termos da lei, a demonstração de um interesse legalmente protegido, i.e., que mereça a tutela do direito substantivo.

Interessa ainda sublinhar que a Requerente não tem a qualidade de consumidor de combustíveis, no sentido de consumidor final sobre o qual recai ou deve recair o encargo do tributo, na lógica da repercussão económica que subjaz nomeadamente aos Impostos Especiais de Consumo (“IEC”). Na verdade, o combustível adquirido é um fator de produção no circuito económico, pelo que, se a CSR se destina a ser suportada pelo consumidor, à partida, a Requerente não faz parte das entidades potencialmente lesadas, que são os consumidores e não os operadores económicos (v. neste sentido as decisões dos processos arbitrais n.ºs 408/2023-T, de 8 de janeiro de 2024, e 375/2023-T, de 15 de janeiro de 2024).

Ora, ao não revestir a qualidade de sujeito passivo de CSR (seja como contribuinte direto, substituto ou responsável), nos termos do citado artigo 18.º, n.º 3 da LGT, nem sendo parte em contratos fiscais, a Requerente só teria legitimidade para demandar a Requerida e solicitar o reembolso do imposto [CSR] se comprovasse que é titular de um interesse legalmente protegido (v. artigo 9.º, n.ºs 1 e 4 do CPPT).

Assim, teria que alegar e demonstrar factos que suportassem a aplicação da norma residual atributiva de legitimidade, em concreto, que o sujeito passivo lhe tinha transferido o encargo económico da CSR e, cumulativamente, que esse encargo tinha sido por si suportado a final, ou seja, sem que tivesse sido repassado no âmbito da atividade desenvolvida (por via do preço dos serviços praticado com os seus clientes).  (sublinhado nosso).

Conforme antes referido, a Requerente não logrou atestar que suportou a CSR contra a qual reage, ou a medida em que a suportou. E esta seria, segundo entendemos, a única forma de lhe poder ser reconhecida a legitimidade residual para a presente ação arbitral, tendo em conta que não é sujeito passivo, nas diversas modalidades que o conceito acomoda, nem repercutido legal.

Por fim, em cumprimento do desiderato do direito nacional e da União Europeia, não se diga que a Requerente ficou desprovida de tutela, pois nada impede o ressarcimento, através de uma ação civil de repetição do indevido instaurada contra os seus fornecedores, se reunir os devidos pressupostos, nos termos declarados pelo Acórdão do Tribunal de Justiça, de 20 de outubro de 2011, no processo C-94/10, Danfoss A/S (pontos 24 a 29). Nesta perspetiva, está acautelada a observância do princípio fundamental da tutela jurisdicional efetiva (v. artigo 20.º da Constituição).

De notar que a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo já entendeu, em relação a um caso de liquidação de Imposto Automóvel (correspondente ao atual Imposto sobre Veículos), que o adquirente não tem legitimidade para impugnar a respetiva liquidação, precisamente por não se tratar de um caso de repercussão legal (v. Acórdão de 1 de outubro de 2003, processo n.º 0956/03).

Em síntese, não tendo ficado provada a repercussão da CSR pelos fornecedores de combustíveis, nem que a Requerente suportou o encargo económico do imposto, falece-lhe legitimidade para pedir a anulação das respetivas liquidações e o reembolso do imposto, solução que se enquadra numa interpretação conforme à Constituição (v. artigo 268.º, n.º 4), porquanto o direito à impugnação dos atos lesivos não pode deixar de reportar-se aos sujeitos cuja esfera jurídico-patrimonial sofreu a lesão (os lesados) e não a outros.

 

A conclusão da ilegitimidade da Requerente também se retira da exegese do Código dos IEC, aplicável à CSR na parte referente à liquidação, cobrança e pagamento do imposto (por remissão do artigo 5.º, n.º 1 da Lei n.º 55/2007). Conforme declara o acórdão do CAAD, de 1 de fevereiro de 2024, proferido no âmbito do processo 296/2023-T, “qualquer que seja, em tese geral, a possibilidade de o repercutido invocar a ilegalidade das liquidações que originam a repercussão, no âmbito dos impostos especiais de consumo há uma norma que o veda e que o legislador manteve incólume ao longo das 25 alterações que, em 24 anos, introduziu no CIEC: a do n.º 2 do artigo 15.º (epigrafado “Regras gerais do reembolso”).” (realce nosso)

A referida norma [artigo 15.º, n.º 2, do Código dos IEC] estabelece que “Podem solicitar o reembolso os sujeitos passivos referidos no n.º 1 e na alínea a) do n.º 2 do artigo 4.º que tenham procedido à introdução no consumo dos produtos em território nacional e provem o pagamento do respetivo imposto.”.

Desde a redação inicial destas normas, dada pelo Decreto-Lei n.º 73/2010, de 21 de junho, a única alteração substancial registada foi o aditamento (pela Lei n.º 24-D/2022, de 30 de dezembro) do “destinatário certificado” entre os sujeitos passivos identificados à cabeça da norma sobre “Incidência subjetiva”. Quer dizer que nenhum legislador – nem mesmo o que entendeu atribuir natureza interpretativa à alusão à tipicidade da repercussão dos impostos especiais de consumo – considerou necessário, para o que ora importa, alargar o círculo dos “sujeitos passivos” para lá do “destinatário certificado”.

Quer dizer que só os sujeitos passivos aí identificados (no artigo 4.º), e só quando preencham requisitos adicionais, podem suscitar questões sobre, tal como resulta do n.º 1 desse artigo 15.º, “o erro na liquidação”. Ora, esta solução apresenta total cabimento face à impraticabilidade que seria fazer a gestão de um sistema demasiadamente aberto a todo o género de reembolsos, com uma duvidosa forma de controlo. A esta mesma conclusão chegaram, entre outras, as decisões proferidas atrás citadas e ainda as proferidas nos processos arbitrais n.ºs 296/2023-T, 408/2023-T, 375/2023-T e 633/2023-T.

Importa, ainda, notar ou realçar que a questão de legitimidade processual não tem de ser analisada à luz da Diretiva 2008/118/CE, nem da jurisprudência do Tribunal de Justiça. O direito da União Europeia não se projeta no domínio do direito adjetivo, seja procedimental, ou processual, que continua a fazer parte das competências próprias dos Estados-Membros, sem prejuízo do seu controlo (negativo) por conformação aos parâmetros (princípios) do direito da União Europeia, nomeadamente da proporcionalidade, na medida em que afetem posições substantivas regidas por este direito.

Os princípios (europeus) da equivalência e da efetividade não justificam a sua aplicação e pertinência à situação em análise. O enunciado do princípio da equivalência é o de que as regras nacionais não podem tratar de modo mais desfavorável um direito decorrente da ordem jurídica europeia por comparação a direitos decorrentes da ordem jurídica nacional. No caso, não há qualquer tratamento diferenciado.

Por outro lado, o princípio da efetividade postula que as regras nacionais não podem tornar impossível ou excessivamente difícil a efetivação de um direito decorrente da ordem jurídica europeia. Circunstância que também aqui não se verifica, pois o direito de ação contra o credor tributário é assegurado ao sujeito passivo ou a quem demonstre que suportou o imposto (não o tendo demonstrado a Requerente). Acresce que o Tribunal de Justiça, como atrás referido, já se pronunciou no sentido de que nos demais casos o ressarcimento pode ser acedido através de uma ação civil dirigida aos fornecedores.

 

Em face do exposto julga-se verificada a exceção de ilegitimidade da Requerente, constituindo uma exceção dilatória de conhecimento oficioso que obsta a que o Tribunal conheça a questão de fundo e demais questões suscitadas, com a consequente absolvição da Requerida da instância, nos termos do disposto nos artigos 9.º do CPPT, 65.º da LGT, 55.º, n.º 1, alínea a) e 89.º, n.ºs 2 e 4, alínea e) do CPTA, ex vi artigo 29.º, n.º 1 do RJAT.

 

Questões Prejudicadas

A procedência da questão prévia da ilegitimidade ativa da Requerente, prejudica o conhecimento das restantes exceções suscitadas, incluindo a apreciação do requerimento formulado pela demandante [com vista à notificação da Requerida para proceder à identificação e junção aos autos dos atos de liquidação de CSR relativos ao período compreendido entre o mês de junho de 2019 e 31 de dezembro de 2022] e impede o conhecimento do mérito da causa (v. artigos 608.º e 130.º do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT).

 

III Decisão

            Atento o exposto, este Tribunal Arbitral Coletivo decide:

 

  1. Julgar improcedentes as exceções dilatórias de ineptidão do pedido de pronúncia arbitral e de incompetência material do Tribunal Arbitral para apreciar os atos de liquidação/repercussão de CSR;
  2. Julgar procedente a exceção de ilegitimidade ativa da Requerente e, em consequência, absolve-se a Requerida da instância e
  3. Condenar a Requerente no pagamento das custas do processo.

 

                 Valor do Processo

                 Fixa-se ao processo o valor de € 79.639,12, indicado pela Requerente e  não contestado pela Requerida - artigos 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”), 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT e 306.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, este último ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.

                 Custas

                 Fixam-se as custas no montante de € 2.448,00 (dois mil quatrocentos e quarenta e oito euros), a suportar pela Requerente por decaimento, de acordo com o disposto nos artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4 do RJAT e 4.º do RCPAT e com a Tabela I anexa ao RCPAT.

 

  • Notifique-se.

 

                            Lisboa, 2 de dezembro de 2024

 

O Tribunal Arbitral Coletivo,

 

 

José Poças Falcão

(Presidente)

 

 

 

António Alberto Franco (com declaração de voto)

 

 

 

Pedro Guerra Alves (com declaração de voto)

 

 

 

 

 

 

 

DECLARAÇÃO DE VOTO

 

Não acompanhamos o sentido decisão, ao julgar verificada a excepção de ilegitimidade.

Como resulta do artigo 3º, a CSR corresponde à contrapartida pela utilização da rede rodoviária nacional - tal como esta é verificada pelo consumo dos combustíveis – e constitui uma fonte de financiamento da mesma no que respeita à respectiva concepção, projecto, construção, conservação, exploração, requalificação e alargamento, ainda que a exigência da contribuição não prejudique a eventual aplicação de portagens em vias específicas ou o recurso da entidade concessionária a outras forma de financiamento.

A CSR, na versão anterior à Lei n.º 24-E/2022, de 30 de Dezembro, foi criada tendo em vista a repercussão nos consumidores das quantias cobradas a esse título pelos sujeitos passivos do imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos.

Com efeito, no artigo 2.º da Lei n.º 55/2007, de 31 de Agosto (na redacção da Lei n.º 67-A/2007, de 31 de Dezembro, vigente em 2018 e 2019) estabelece-se que “o financiamento da rede rodoviária nacional a cargo da IP, S. A., tendo em conta o disposto no Plano Rodoviário Nacional, é assegurado pelos respetivos utilizadores e, subsidiariamente, pelo Estado, nos termos da lei e do contrato de concessão aplicável” e no n.º 3 do mesmo artigo (vigente na redacção inicial) que “a contribuição de serviço rodoviário constitui a contrapartida pela utilização da rede rodoviária nacional, tal como esta é verificada pelo consumo dos combustíveis.

Isto, aliás, na linha do que determina o Código dos Impostos Especiais sobre o Consumo (para onde remete o regime da CSR no artigo 5º da Lei55/2007), no seu artigo 2º quando determina que “os impostos especiais sobre o consumo obedecem ao princípio da equivalência, procurando onerar os contribuintes na medida dos custos que estes provocam, designadamente nos domínios do ambiente e da saúde pública, sendo repercutidos nos mesmos, em concretização de uma regra geral de igualdade tributária”.

Em suma, entendemos que a repercussão da CSR nos consumidores de combustíveis é pretendida por lei, pois é a única forma de assegurar que “o financiamento da rede rodoviária nacional” seja “assegurado pelos respectivos utilizadores” e que a CSR seja a “contrapartida pela utilização da rede rodoviária nacional, tal como esta é verificada pelo consumo dos combustíveis”.

Há, desse modo, que concluir que se está perante repercussão legal, prevista na lei e por ela pretendida, e não perante repercussão económica

Ora, resulta do disposto no artigo 18.º, n.º 4, a), da LGT, que quem suporte o encargo do imposto por repercussão legal, ainda que não seja sujeito passivo da relação jurídica tributária, mantém o direito de reclamação, recurso, impugnação ou de pedido de pronúncia arbitral nos termos das leis tributárias contra os actos de liquidação que geram a repercussão.

De qualquer modo, para além da legitimidade activa da Requerente se encontrar coberta pelo referido preceito, essa legitimidade é também reconhecida pela regra geral do artigo 9.º, n.º 1, do CPPT, segundo a qual “têm legitimidade no procedimento tributário, além da administração tributária, os contribuintes, incluindo substitutos e responsáveis, outros obrigados tributários, as partes dos contratos fiscais e quaisquer outras pessoas que provem interesse legalmente protegido”.

Entendemos, por isso, estar justificada a legitimidade da Requerente no pedido arbitral formulado (enumeram-se, a título exemplificativo, neste sentido, as decisões arbitrais 676/2023-T, de 12-03-2024, 523/2023-T, de 24-01-2014, 491/2023-T, de 05-03-2024 ou 222/2024, de 02-09-2024).

O Árbitro Adjunto

 

 

             

(António A. Franco)

Voto Vencido

 

Entendo não poder subscrever a posição da presente Decisão Arbitral, quanto a exceção da incompetência do tribunal em razão da matéria, entendo que é procedente a exceção de incompetência do Tribunal, por falta do acordo necessário para a constituição de tribunal arbitral, a que se reporta o artigo 18.º da Lei de Arbitragem Voluntária [Lei n.º 63/2011, de 14 de dezembro, aplicável aos processos arbitrais tributários por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT e artigo 181.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos], posição que já subscrevi nos processos arbitrais 372/2023-T, 520/2023-T, 876/2023-T, 168/2024-T, cujos fundamentos passo sinteticamente, a expor:

O artigo 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril, que autorizou o Governo a legislar no sentido de instituir a arbitragem como forma alternativa de resolução jurisdicional de conflitos em matéria tributária, fixou como possível âmbito da arbitragem «os actos de liquidação de tributos, incluindo os de autoliquidação, de retenção na fonte e os pagamentos por conta, de fixação da matéria tributável, quando não dêem lugar a liquidação, de indeferimento total ou parcial de reclamações graciosas ou de pedidos de revisão de actos tributários, os actos administrativos que comportem a apreciação da legalidade de actos de liquidação, os actos de fixação de valores patrimoniais e os direitos ou interesses legítimos em matéria tributária».

O Decreto-Lei n.º 10/2011 (RJAT), emitido ao abrigo da autorização legislativa, não estendeu o âmbito da jurisdição arbitral tributária a todo o tipo de litígios permitidos pela autorização legislativa, limitando a competência dos tribunais arbitrais à «declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta», à «declaração de ilegalidade de actos de determinação da matéria tributável, de actos de determinação da matéria colectável e de actos de fixação de valores patrimoniais» e à «apreciação de qualquer questão, de facto ou de direito, relativa ao projecto de decisão de liquidação, sempre que a lei não assegure a faculdade de deduzir a pretensão referida na alínea anterior».

A Lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro, restringiu ainda mais o âmbito da arbitragem tributária, eliminado a possibilidade de recurso à arbitragem para declaração de ilegalidade de actos de fixação da matéria tributável quando deem origem à liquidação de qualquer tributo, e para apreciação de qualquer questão, de facto ou de direito, relativa ao projeto de decisão de liquidação.

No entanto, o artigo 4.º, n.º 1, do RJAT, ao estabelecer que «a vinculação da administração tributária à jurisdição dos tribunais constituídos nos termos da presente lei depende de portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça», veio admitir que, no âmbito das competências dos tribunais arbitrais, o âmbito da arbitragem tributária fosse limitado de harmonia com a vinculação.

Foi em concretização deste desígnio legislativo que foi emitida a Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, que definiu o «objecto da vinculação» e os «termos da vinculação» da seguinte forma:

 

Artigo 1.º

Vinculação ao CAAD

 

      Pela presente portaria vinculam-se à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam, nos termos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, no CAAD — Centro de Arbitragem Administrativa os seguintes serviços do Ministério das Finanças e da Administração Pública:

a) A Direcção-Geral dos Impostos (DGCI); e

b) A Direcção-Geral das Alfândegas e dos Impostos Especiais sobre o Consumo (DGAIEC).

 

Artigo 2.º

Objecto da vinculação

 

      Os serviços e organismos referidos no artigo anterior vinculam-se à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD que tenham por objecto a apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida referidas no n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, com excepção das seguintes:

a) Pretensões relativas à declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário;

b) Pretensões relativas a actos de determinação da matéria colectável e actos de determinação da matéria tributável, ambos por métodos indirectos, incluindo a decisão do procedimento de revisão;

c) Pretensões relativas a direitos aduaneiros sobre a importação e demais impostos indirectos que incidam sobre mercadorias sujeitas a direitos de importação; e

d) Pretensões relativas à classificação pautal, origem e valor aduaneiro das mercadorias e a contingentes pautais, ou cuja resolução dependa de análise laboratorial ou de diligências a efectuar por outro Estado membro no âmbito da cooperação administrativa em matéria aduaneira.

 

Artigo 3.º

Termos da vinculação

 

      1 – A vinculação dos serviços e organismos referidos no artigo 1.º está limitada a litígios de valor não superior a € 10 000 000.

      2 – Sem prejuízo dos requisitos previstos no Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, a vinculação dos serviços referidos no artigo 1.º está sujeita às seguintes condições:

a) Nos litígios de valor igual ou superior a € 500 000, o árbitro presidente deve ter exercido funções públicas de magistratura nos tribunais tributários ou possuir o grau de mestre em Direito Fiscal;

b) Nos litígios de valor igual ou superior a € 1 000 000, o árbitro presidente deve ter exercido funções públicas de magistratura nos tribunais tributários ou possuir o grau de doutor em Direito Fiscal.

      3 – Em caso de impossibilidade de designar árbitros com as características referidas no número anterior cabe ao presidente do Conselho Deontológico do CAAD a designação do árbitro presidente.

 

              Desta legislação e regulamentação conclui-se que houve uma preocupação em limitar o âmbito da arbitragem tributária:

– na alínea a) do n.º 4 do artigo 124.º da Lei de autorização legislativa admitia-se a possibilidade de nela ser incluída a generalidade dos litígios relativos a liquidação de tributos (inclusivamente os praticados pelos contribuintes) e de fixação de valores patrimoniais que podem ser apreciados em processo de impugnação judicial e o reconhecimento de direitos e interesse legítimos em matéria tributária;

– no artigo 2.º do RJAT não se incluiu na arbitragem tributária o reconhecimento de direitos e interesse legítimos em matéria tributária e estabeleceu-se no artigo 4.º, que a vinculação da Administração Tributária, que se reconduz a definição do âmbito da arbitrabilidade de litígios deveria ser efetuada por portaria;

– com a Lei n.º 64-B/2011, impôs-se que na portaria se indicassem o tipo e o valor máximo dos litígios, o que tem como corolário que nem todos os litígios abrangidos pelo artigo 2.º, n.º 1, do RJAT;

– a Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, limitou a vinculação aos serviços da Administração Tributária estadual e aos tribunais «que tenham por objecto a apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida», com várias exceções.

 

A intenção legislativa de restringir o âmbito da arbitragem tributária em relação ao que foi permitido pela autorização legislativa resulta com evidência destes diplomas e é explicada pelas justificadas dúvidas que, no início da arbitragem tributária, se suscitavam sobre o possível inadequado funcionamento de um meio inovador de resolução de litígios em matéria tributária, bem patentes nas preocupações sentidas pelo Senhor Conselheiro Santos Serra, Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, na sessão de apresentação do novo regime de arbitragem fiscal, que ocorreu em Lisboa, no dia 14-12-2010:

 

Assim, e logo à partida, é preciso que o regime de arbitragem tributária ora constituído consiga afastar receios de que, por via da arbitragem, as partes consigam contornar as imposições legais que sobre si recaem, e que façam letra morta dos princípios da legalidade e da igualdade entre contribuintes em matéria tributária, com a capacidade negocial diferenciada das partes a sobrepor-se ao princípio da tributação de acordo com a sua real capacidade contributiva.[9]

A consciência dos riscos como fundamento das limitações do âmbito foi expressamente explicada pelo Senhor Prof. Doutor Sérgio Vasques (que desempenhava as funções de Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais ao tempo em que foram emitidos o Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, e a Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março), em texto publicado na Newsletter n.º 1 do CAAD:

 

A arbitragem tributária, tal como contemplada no Regime da Arbitragem Tributária veio a apresentar âmbito mais estreito relativamente ao que figurava na autorização legislativa do orçamento do estado para 2010, pela consciência de que esta era, e continua a ser, uma experiência inovadora que não vai sem os seus riscos. Foi também com precaução que a Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, através da qual se vinculou a administração tributária ao regime, impôs vários limites desde logo atendendo à especificidade e ao valor das matérias em causa, associando-se deste modo a Administração Fiscal a este mecanismo de resolução alternativa de litígios nos estritos termos e condições estabelecidos na Portaria». [10]

 

Nos litígios em matéria de direito tributário está em causa o interesse público primacial de um Estado de Direito, que é a obtenção de receitas imprescindíveis ao próprio funcionamento global do Estado, o que justifica que na vinculação se tomassem cautelas.

A arbitragem tributária poderia vir a ser um meio generalizado alternativo de resolução de litígios fiscais, mas, antes de serem dadas provas reiteradas da qualidade e isenção das suas decisões, a necessidade de protecção do interesse público e de assegurar a efectividade dos princípios essenciais da legalidade e da igualdade tributária que o enformam nesta matéria recomendava em 2011 e recomenda actualmente que se avance com cuidado, sem entusiasmos desmedidos, não deixando ao arbítrio dos cidadãos a opção livre e ilimitada por esse meio de resolução de litígios.

Essa cautela é especialmente aconselhada quando, por razões de celeridade, se optou por restringir os meios de impugnação e recurso das decisões arbitrais e, por isso, é menor do que nos tribunais tributários a viabilidade de correção de possíveis erros de julgamento que sejam lesivos do interesse público.

Por isso se justificava em 2011 e se justifica ainda hoje que haja limitações ao acesso à arbitragem tributária, de forma de compatibilizar a utilização deste meio opcional de acesso à justiça com a obrigação estadual de proteger o interesse público, assegurar a legalidade e igualdade tributária e a arrecadação de receitas imprescindíveis para o funcionamento do Estado.

A esta luz, o artigo 4.º, n.º 1, do RJAT, ao estabelecer que o âmbito da vinculação seria definido por portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça, atribui-lhes um poder discricionário, para definirem a amplitude da vinculação da forma como entendam que melhor se prossegue o conjunto de interesses públicos cuja concretização está em causa, definição esta que não pode dispensar, naturalmente, a avaliação da verificação da existência das condições de ordem material e humana necessárias para a implementação deste novo regime.

Neste contexto em que havia uma evidente intenção de restringir o âmbito inicial da arbitragem tributária em relação à amplitude permitida pela lei de autorização legislativa, sendo consabido que a Constituição da República Portuguesa (CRP) e a Lei Geral Tributária (LGT) aludem a vários tipos de tributos, que designam como «impostos», «taxas» e «contribuições financeiras» [artigos 165.º, n.º 1, alínea i), da CRP] e 3.º, n.ºs 2 e 3, da LGT], a inclusão da palavra «impostos» na expressão «apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida» contrastando com a referência mas abrangente a «actos de liquidação de tributos» que foi usada na alínea a) do n.º 4 do artigo 24.º da Lei n.º 3-B/2010 (autorização legislativa) para definir o âmbito da autorização, tem de ser interpretada expressão precisa da restrição que se pretendeu efetuar.

Na verdade, assente que a intenção legislativa era restringir o âmbito da jurisdição arbitral, se foi utilizada uma expressão com alcance restritivo para indicar o âmbito da restrição, tem de pressupor-se, presumindo que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (como impõe o n.º 3 do artigo 9.º do Código Civil), que se pretendeu restringir nos precisos termos, se não houver razões que imponham que se conclua que houve alguma deficiência na expressão do pensamento legislativo. Uma norma com alcance restritivo deve, em princípio, ser interpretada em termos estritos e não extensivamente, pois a ampliação do seu alcance estará presumivelmente ao arrepio do pensamento legislativo que a interpretação jurídica visa reconstituir (artigo 9.º, n.º 1, do Código Civil).

Como se escreve no Acórdão n.º 539/2015, do Tribunal Constitucional:

«As contribuições financeiras constituem um tertium genus de receitas fiscais, que poderão ser qualificadas como taxas coletivas, na medida em que compartilham em parte da natureza dos impostos (porque não têm necessariamente uma contrapartida individualizada para cada contribuinte) e em parte da natureza das taxas (porque visam retribuir o serviço prestado por uma instituição pública a certo círculo ou certa categoria de pessoas ou entidades que beneficiam coletivamente de um atividade administrativa) (Gomes Canotilho/Vital Moreira, em “Constituição da República Portuguesa Anotada”, I vol., pág. 1095, 4.ª ed., Coimbra Editora).

As contribuições distinguem-se especialmente das taxas porque não se dirigem à compensação de prestações efetivamente provocadas ou aproveitadas pelo sujeito passivo, mas à compensação de prestações que apenas presumivelmente são provocadas ou aproveitadas pelo sujeito passivo, correspondendo a uma relação de bilateralidade genérica. Preenchem esse requisito as situações em que a prestação poderá beneficiar potencialmente um grupo homogéneo ou um conjunto diferenciável de destinatários e aquelas em que a responsabilidade pelo financiamento de uma tarefa administrativa é imputável a um determinado grupo que mantém alguma proximidade com as finalidades que através dessa atividade se pretendem atingir (sobre estes aspetos, Sérgio Vasques, ob. cit., pág. 221, e Suzana Tavares da Silva, em “As taxas e a coerência do sistema tributário”, pág. 89-91, 2.ª edição, Coimbra Editora)».

 

Por outro lado, quando foi emitida a Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, em que o Governo definiu o âmbito da vinculação à arbitragem tributária, a Autoridade Tributária e Aduaneira já administrava tributos com a designação de «contribuição» (designadamente, desde 2008, a contribuição de serviço rodoviário que aqui está em causa, e tinha já sido criada pelo artigo 141.º da Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro, a contribuição sobre o sector bancário), pelo que não se pode aventar, com pertinência, que não se colocasse, no momento da emissão daquela Portaria, a necessidade esclarecer com rigor se o âmbito da vinculação abrangia ou não tributos com a designação de «contribuições».

A intenção governamental de afastar da vinculação à arbitragem tributária as pretensões relativas a contribuições é confirmada pela alteração efetuada ao artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2001 pela Portaria n.º 287/2019, de 3 de Setembro, em que se manteve a referência restritiva a «impostos», em momento em que a Autoridade Tributária e Aduaneira já administrava vários tributos com a designação de «contribuições», como, além da CSR e da contribuição sobre o sector bancário, a contribuição extraordinária sobre o setor energético (criada pelo artigo 228.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de Dezembro) e a contribuição extraordinária sobre a indústria farmacêutica (criada pelo artigo 168.º da Lei n.º 82-B/2014, de 31 de Dezembro).

Por outro lado, utilizando a Constituição e a Lei designações específicas para classificar os vários tipos de tributos, terá de se presumir também que, para efeito da definição das competências dos tribunais arbitrais, se pretendeu aludir à classificação que a legislativamente foi adoptada em relação a cada tributo e não à que o intérprete poderá considerar-se mais apropriada, como base em considerações de natureza doutrinal. A classificação de tributos especiais, designadamente para apurar se devem ser ou não tratados constitucionalmente como impostos é, frequentemente, uma tarefa complexa, objeto de abundante jurisprudência do Tribunal Constitucional. Não há qualquer razão para crer, em termos de razoabilidade, que o legislador, que tem de se presumir que consagrou a solução mais acertada (artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil), tivesse optado por impor indagações com esse nível de dificuldade, incerteza de resultados e morosidade para definição da competência dos tribunais arbitrais, em vez de optar pela identificação clara e segura dos tributos a que pretendeu aludir através da designação que legislativamente foi considerada adequada que, além do mais, se compagina melhor com a celeridade de decisões que se visou atingir com a criação da arbitragem tributária.

Para além disso, nem se pode aceitar, à face da presunção de que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil), que fosse atribuída à CSR a designação de «contribuição» se legislativamente se pretendesse que ela fosse considerada como um «imposto» e não como uma das «demais contribuições financeiras a favor das entidades públicas» a que aludem o artigo 165.º, n.º 1, alínea i) da CRP e o artigo 3.º, n.º 2, da LGT. A expressão do pensamento em termos adequados faz-se necessariamente através da expressão correta e não uma outra que o dissimule.

Assim, em boa hermenêutica, é de concluir que o artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, quando se refere a «impostos», está a reportar-se apenas aos tributos a que legalmente é atribuída tal designação (como, por exemplo, o IVA, o IRC e o IRS) e àqueles que, embora tenham outra designação, a própria lei explicitamente considerada «impostos» (como sucede com as «contribuições especiais que assentam na obtenção pelo sujeito passivo de benefícios ou aumentos de valor dos seus bens em resultado de obras públicas ou da criação ou ampliação de serviços públicos ou no especial desgaste de bens públicos ocasionados pelo exercício de uma atividade», que o n.º 3 do artigo 4.º da LGT identifica e expressamente considera «impostos»). E, paralelamente, aquele artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011 não se estará a reportar a tributos que pela lei são denominados como «taxas» ou «contribuições financeiras a favor das entidades públicas», que não se enquadrem na definição das referidas «contribuições especiais», mesmo que, após análise aprofundada das suas características pelo tribunal previamente definido como competente, se possa concluir que devem ser considerados como impostos especiais, designadamente para efeitos de aplicação das exigências constitucionais relativas a impostos.

No caso da CSR, é manifesto que não se está perante uma «contribuição especial» enquadrável no conceito definido no n.º 3 do artigo 4.º da LGT, pois não assenta «na obtenção pelo sujeito passivo de benefícios ou aumentos de valor dos seus bens em resultado de obras públicas ou da criação ou ampliação de serviços públicos ou no especial desgaste de bens públicos ocasionados pelo exercício de uma actividade», pelo que não há suporte literal mínimo para que seja considerada, na perspetiva legislativa, um dos «impostos» a que alude o artigo 2.º da Portaria n.º 112-/2011.

Por outro lado, da relegação da definição do âmbito da vinculação para diploma de natureza regulamentar depreende-se que, subjacente à restrição que se pretendeu efectuar estarão também razões pragmáticas relacionadas com a criação das condições práticas para implementação do novo regime, que normalmente se reservam para diplomas de natureza executiva, como são as relativas à disponibilidade de meios humanos da Administração Tributária com formação adequada para a representarem adequadamente nos processos tributários que exijam formação mais especializada. Neste caso, pelas limitações ao âmbito da jurisdição arbitral que se fazem nas alíneas c) e d) do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, quanto a litígios relacionados com matéria aduaneira, entrevê-se que estarão razões desse tipo subjacentes a essas restrições à arbitrabilidade de litígios.

Tendo o poder discricionário para definir o âmbito da vinculação sido atribuído aos membros do Governo indicados no artigo 4.º, n.º 1, da Portaria n.º 112-A/2011 e não aos tribunais arbitrais, não podem estes substituir-se àqueles na definição do âmbito da jurisdição arbitral. Desde logo porque os tribunais não possuem o conhecimento de todos os elementos de natureza operacional que podem ter levado os membros do Governo que emitiram a Portaria n.º 112-A/2011. E, depois, porque foi a esses membros do Governo e não aos tribunais arbitrais que a lei atribuiu o poder de definir o âmbito da vinculação.

Pelo exposto, a interpretação correta, alicerçada no teor literal deste artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011 e nas regras interpretativas que constam do n.º 3 do artigo 9.º do Código Civil, mas tendo também em conta as «circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada» (artigo 9.º, n.º 1, do Código Civil), é a de que se pretendeu restringir a vinculação da Autoridade Tributária e Aduaneira aos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD a litígios em que estejam em causa tributos legislativamente classificados como impostos ou explicitamente como tal considerados (como sucede com as «contribuições especiais» referidas no n.º 3 do artigo 4.º da LGT), com as exceções arroladas naquela norma.

Assim, é de concluir que não é abrangida pela vinculação da Autoridade Tributária e Aduaneira, a apreciação de litígios que tenham por objeto a apreciação das pretensões relativas à CSR.

Pelo que se refere no acórdão arbitral proferido no processo n.º 146/2019-T, a falta de vinculação não implica incompetência absoluta, em razão da matéria, a que alude o artigo 16.º do CPPT, aplicável aos processos arbitrais tributários por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, pois a competência para apreciação da generalidade de actos de liquidação de tributos se insere nas competências dos tribunais arbitrais definidas no artigo 2.º do RJAT.

Mas, está-se perante incompetência relativa por falta do acordo necessário para a constituição de tribunal arbitral, a que se reporta o artigo 18.º da Lei de Arbitragem Voluntária [Lei n.º 63/2011, de 14 de Dezembro, aplicável aos processos arbitrais tributários por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT e artigo 181.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos ( [11] )], acordo esse que, relativamente à arbitragem tributária, é genericamente exigido e definido no que concerne à Autoridade Tributária e Aduaneira através da vinculação, prevista no artigo 4.º do RJAT.

Tendo esta incompetência sido arguida tempestivamente, na Resposta (artigo 18.º, n.º 4, da LAV), tem de concluir-se que procede, com esta fundamentação, a exceção de incompetência suscitada pela Autoridade Tributária e Aduaneira.

Esta interpretação do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011 é compaginável com a Constituição, como já decidiu o Tribunal Constitucional no acórdão n.º 545/2019, de 16-10-2019, proferido no processo n.º 1067/2018.

Razões pela qual voto vencido, quanto a procedência da exceção e em consequência julgaria totalmente improcedente o pedido de pronúncia arbitral.

 

 

Pedro Guerra Alves

 

 

 



[1] Dispõe o n.º 1 do artigo 4.º do RJAT o seguinte: “A vinculação da administração tributária à jurisdição dos tribunais constituídos nos termos da presente lei depende de portaria […]”.

[2] V. Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.

[3] V. decisões dos processos arbitrais n.ºs 31/2023-T, 508/2023-T, 520/2023-T e 675/2023-T.

[4] De referir ainda, a título de exemplo, as decisões arbitrais dos processos 564/2020-T, 629/2021-T, 305/2022-T, 644/2022-T, 665/2022-T,  702/2022-T, 24/2023-T, 113/2023-T, 294/2023-T, 332/2023-T e 410/2023-T.

[5] V. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 7/2019.

[6] V. Manual de Direito Fiscal, 2.ª edição, Almedina, 2019, p. 399.

[7] Desta forma, a lei implica (e pressupõe) que o repercutido legal é titular de um interesse legalmente protegido, condição exigida para que possa intervir em juízo (vide artigo 9.º, n.ºs 1 e 4 do CPPT), não o fazendo, porém, em relação ao mero repercutido de facto, pelo que, neste caso, a repercussão tem de ser demonstrada, não se podendo presumir.

[8] De referir que a alteração legislativa do Código dos IEC, ocorrida em dezembro de 2022, que passou a consagrar a repercussão nos IEC, além de não ser subsidiariamente aplicável à CSR, por falta de norma remissiva, mesmo que o fosse, não poderia reger a situação em análise porque é posterior à data dos factos. Esta conclusão não resulta afastada pela atribuição de natureza interpretativa pelo legislador (artigo 6.º da Lei n.º 24-E/2022, de 30 de dezembro), pois a retroatividade inerente às leis interpretativas “é necessariamente material e, caso esteja em causa a interpretação legal de normas fiscais, não pode deixar de estar abrangida pela proibição da retroatividade consagrada no artigo 103.º, n.º 3, da Constituição.” (v. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 751/2020, de 16 de dezembro de 2020).

 

[9] Texto reproduzido no Guia da Arbitragem Tributária, 2.ª edição, página 192.

[10] Publicado em https://www.caad.pt/files/documentos/newsletter/Newsletter-CAAD_out_2011.pdf.

[11] No sentido da aplicação subsidiária da Lei de Arbitragem Voluntária à arbitragem tributária, pode ver-se, entre vários, o acórdão do Pleno do Supremo Tribunal Administrativo de e 21-04-2021, processo n.º 101/19.1BALSB.