SUMÁRIO: O ganho decorrente da alienação onerosa de prédio que, à data da entrada em vigor do Código do IRS, não era sujeito a tributação em sede de Imposto de Mais-Valias, é excluído de tributação em sede de IRS por força da aplicação do regime transitório da Categoria G previsto no artigo 5.º, do Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30 de novembro, independentemente da alteração da sua qualificação (destaque e terreno para construção) na data em que foi alienado.
DECISÃO ARBITRAL
I. RELATÓRIO
1. A..., NIF..., natural da freguesia de ..., concelho de Lisboa, residente na Rua ..., n.º..., ...-... Lisboa (“Requerente”), requereu a constituição de Tribunal Arbitral Tributário e apresentou pedido de pronúncia arbitral (“PPA”), ao abrigo dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, n.º 2, alínea a), 6.º, n.º 1, e 10.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (“RJAT”), e da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, tendo em vista a declaração de ilegalidade do ato de liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (“IRS”) n.º 2021..., relativa ao ano de 2020, e anulação parcial no valor de € 35.976,52. Mais peticionou pelo reembolso do imposto indevidamente pago, bem como pelo pagamento de juros indemnizatórios. A título subsidiário, peticiona pela emissão de uma nova liquidação de IRS que reflita nos seus cálculos que o valor de aquisição do usufruto do Requerente é igual ao valor patrimonial atribuído ao usufruto pela Autoridade Tributária, com consequente restituição do imposto no valor de € 26.693,29, acrescidos de juros indemnizatórios.
2. O Requerente fundamenta o PPA, em síntese, nos seguintes termos:
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Em 01 de Julho de 1987, o Requerente adquiriu, por escritura de doação outorgada pelos seus pais, B... e C..., a seu favor, o prédio rústico sito na ..., na União de freguesias de ... e ..., concelho de Condeixa-a-Nova, que actualmente se encontra descrito sob o número... da freguesia de ... e inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo... da União das freguesias de ... e ..., sendo, desde 21/12/2015, titular do usufruto vitalício sobre o referido prédio.
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Por certidão, posteriormente rectificada, emitida pela Câmara Municipal de Condeixa-a-Nova, foi autorizado o destaque de uma parcela de terreno com a área de 29.760,m2 do referido prédio rústico, parcela essa destacada e autonomizada daquele prédio, composta por terreno de construção, que foi inscrita na matriz predial urbana sob o artigo ..., da união das freguesias de ... e ... e descrita na CRP de Condeixa-a- Nova sobre a descrição... da freguesia de ... .
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Em 31 de Janeiro de 2020, o Requerente vendeu o usufruto da parcela de terreno para construção urbana com a área de 29.760,00m2 (parcela destacada), à sociedade D..., Unipessoal, Lda., que a comprou, pelo preço de 160.704,00€.
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O Requerente preencheu o Anexo G referente às Mais-Valias e outros incrementos patrimoniais, no Modelo 3 de IRS referente ao ano de 2020, no qual, erradamente, inseriu, no quadro 4 com o título “alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis”, o rendimento de 160.704,00€ obtido com a venda do usufruto da parcela destacada, que deu origem ao tributo no montante de 63.492,83€.
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A parcela de terreno (artigo .../destaque), cujo usufruto o Requerente vendeu por 160.704,00€ e cujo rendimento obtido com a venda declarou através da declaração de IRS referente ao ano de 2020, resultou da operação de destaque (autonomização) daquela parcela de terreno do prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial de Condeixa-a-Nova sob o número ... da freguesia de ... e inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo ... da União das freguesias de ... e ... e, portanto, deste provem, só passando a existir após essa autonomização/destaque.
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Até à data da emissão da certidão do destaque (23/05/2019) o prédio urbano não existia, por não estar autonomizado e se tratar do mesmo único prédio adquirido como rústico em 1987 (antes da entrada em vigor do CIRS) pelo Requerente.
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Assim, porque o prédio foi adquirido em data anterior à entrada em vigor do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (CIRS) e ainda por manter a sua natureza rústica na data da entrada em vigor daquele CIRS (01/01/1989), os ganhos obtidos com a venda da parcela destacada do prédio rústico, designadamente o usufruto, não são, nem podem ser, tributados em sede de IRS, por daquela tributação estarem excluídos.
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A parcela de terreno que compõe o prédio actualmente urbano (parcela destacada) não existia, nem em 1987, nem em 1989, pois integrava, e continuou a integrar até 23 de Maio de 2019, o prédio rústico (prédio mãe), pelo que, naquelas datas (1987 e 1989), apenas se pode considerar o prédio rústico (artigo...) como o único existente, o qual, de facto, correspondia à então realidade física do prédio.
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À data de aquisição do imóvel pelo ora Requerente, em 01 de Julho de 1987, encontrava-se em vigor o Código do Imposto das Mais- Valias (CIM), que determinava que a tributação em sede de imposto de mais valias apenas incidia, no que trata a transmissão de bens imóveis, sobre os ganhos obtidos com a transmissão onerosa de terrenos para construção, qualquer que seja o título por que se opere quando dela resultem ganhos não sujeitos a encargo de mais-valias previstos no artigo 17º da Lei nº 2030, de 22/01/48 ou no artigo 4º do DL nº 41.616 de 10/05/58 e que não tenham a natureza de rendimentos tributáveis em contribuição industrial, o que não é o caso, pois como se disse já o prédio era rústico.
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Portanto, como o prédio destacado em 01 de Julho de 1987 ainda não existia quer fisicamente, quer registralmente, não podia ser considerado como terreno para construção, mas sim como prédio com natureza rústica, estando, portanto, excluído de tributação em sede de imposto de mais valias nos termos do Código do Imposto de Mais-Valias (Decreto-Lei nº 46373, de 9 de Junho de 1965), então em vigor.
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Em 01/01/1989, através do Decreto-Lei nº 442-A/88 de 30 de 11, entrou em vigor o Código do IRS que veio revogar o Código do imposto de mais-valias (Decreto-Lei nº 46373, de 9 de Junho de 1965), passando as mais-valias a ser reguladas e tributadas de acordo com o novo CIRS, na categoria G (Mais - Valias).
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O nº 1 do artigo 5º do Decreto-Lei nº 442-A/88 de 30 de 11 (CIRS) estabeleceu o regime transitório da Categoria G (Mais-valias), nos seguintes termos: “1 – Os ganhos que não eram sujeitos ao imposto de mais – valias, criado pelo código aprovado pelo Decreto-Lei nº 46373, de 09 de Junho de 1965, só ficam sujeitos ao IRS se a aquisição dos bens ou direitos de cuja transmissão provêm se houver efectuado depois da entrada em vigor deste Código.
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Ora, face ao exposto dúvidas não existem que o prédio aqui em causa foi adquirido como rústico (pois daquele fez parte integrante, como prédio um único prédio rústico até à sua desanexação) em 01 de Julho de 1987 pelo ora Requerente, ou seja, antes da entrada em vigor do Código do IRS e que, nos termos do nº 1 do artigo 1º do Código do Imposto das Mais-Valias (Decreto-Lei nº 46373, de 09 de Junho de 1965), não estava sujeito a imposto de mais valias.
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E também dúvidas não há de que o prédio em causa à data da entrada em vigor do CIRS (01/01/1989) mantinha a natureza de rústico, pelo que se lhe aplica o regime transitório disposto no nº 1 do artigo 5º do CIRS, não estando, portanto, a sua transmissão onerosa sujeita a tributação.
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As operações de destaque não são formas de aquisição e direitos sobre bens, mas antes operações urbanísticas, ou seja, operações materiais de utilização de edifícios ou do solo.
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Neste sentido, veja-se o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 11/10/2023, proferido no processo nº 0834/09.0BELRS disponível para consulta em www.dgsi.pt, cujo sumário se transcreve:
“I - Nem a operação de destaque de uma parte de um logradouro de um prédio pertencente ao sujeito passivo nem o ato de inscrição da matriz do prédio assim destacado constituem aquisição de bens ou direitos para efeitos do disposto no artigo 5.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30 de novembro;
II - Para a aplicação do regime transitório a que alude o número anterior releva a qualidade que o bem detinha no momento da entrada em vigor do Código do IRS.”
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No caso de se vir a entender que a transmissão do prédio em causa não se encontra excluída de tributação, o que não se aceita e apenas por mera hipótese de trabalho se considera, sempre nessa tributação dos ganhos obtidos com a transmissão onerosa do prédio urbano (parcela destacada), em qualquer caso, a Autoridade Tributária deveria considerar – e não considerou – o valor patrimonial tributário fixado na avaliação do imóvel aquando da sua passagem a prédio urbano ocorrida em 23/05/2019, resultado do destaque, que é de 137.856,23€, como sendo o valor de aquisição do mesmo pelo ora Requerente.
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Tendo o usufruto do Requerente o valor patrimonial de 41.356,87€ e dado que o mesmo o vendeu pelo preço de 160.704,00€, o Requerente obteve ganhos com a referida venda no montante de cerca de 119.347,13€, e não no montante de 160.596,00€ (preço de venda de 160.704,00€ – valor de aquisição do prédio rústico de 108,00€), o que, a ser considerado, e que não se aceita, como se disse já, sempre resultaria para o ora Requerente um imposto de IRS no montante de 36.799,54€, inferior em 26.693,29€, ao anteriormente liquidado e pago (63.492,83€).
3. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral feito em 23 de janeiro de 2024 foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira (“AT” ou “Requerida”).
4. O Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea a) e do artigo 11.º, n.º 1, alínea a), ambos do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou o signatário como árbitro do Tribunal Arbitral, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável. As partes foram notificadas dessa designação em 12 de março de 2024, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.
5. Em conformidade com o disposto no artigo 11.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, o Tribunal Arbitral ficou constituído em 2 de abril de 2024, sendo que no dia 3 de abril de 2024 foi a Requerida notificada para apresentar a sua resposta.
6. Em 4 de junho de 2024, a Requerida apresentou resposta e juntou aos autos o processo administrativo.
7. Em 14 de junho de 2024, o Requerente apresentou requerimento a solicitar o desentranhamento da resposta apresentada pela Requerida, por considerar ser a mesma extemporânea.
8. Por despacho arbitral de 27 de setembro de 2024, o Tribunal Arbitral determinou a prorrogação do prazo do artigo 21.º, n.º 1, do RJAT, por dois meses.
9. Em 15 de outubro de 2024, teve lugar a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT, tendo aí sido inquirida a testemunha arrolada pelo Requerente, E..., sendo que o Requerente declarou prescindir da outra testemunha por si arrolada, F... . Ainda na mesma reunião, o Tribunal Arbitral notificou notificado o Requerente e a Requerida para, por esta ordem e de modo sucessivo, apresentarem alegações escritas no prazo de 10 dias.
10. Em 23 de outubro de 2024, o Requerente apresentou as suas alegações escritas, nas quais reiterou a sua posição inicial.
11. Em 24 de outubro de 2024, a Requerida apresentou as suas alegações escritas, em que defendeu a improcedência do pedido de pronúncia arbitral e a sua absolvição do pedido, apresentando, em síntese, a seguinte fundamentação:
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Na presente situação não está em causa a transmissão de nenhum terreno para construção, mas sim de um prédio urbano inscrito na matriz bem depois da entrada em vigor do CIRS.
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O que ocorreu foi o destaque de uma parcela do terreno que, atento o seu destino, passou a constituir um prédio urbano. Mas um novo prédio urbano.
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Isto mesmo reiterou a testemunha arrolada pelo A.
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E tratando-se de prédio novo, posterior à entrada em vigor do CIRS, não se aplica aos rendimentos auferidos pela constituição de usufruto sobre ele o regime plasmado no nº 1 do art. 5º do DL nº 442- A/88, de 30/12.
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De acordo, aliás, com a jurisprudência do STA, vertida no Acórdão proferido em 21-10-2015 no processo que ali correu termos sob o nº 01339/14 e cujo sumário se transcreve:
“I - Constitui jurisprudência pacífica deste STA que de harmonia com o disposto no artigo 5.º do Dec. Lei n.º 442- A/88 não são tributados em sede de IRS os ganhos obtidos com a transmissão onerosa de prédios não qualificados como “terrenos para construção”, adquiridos antes da entrada em vigor do Código do IRS e que ainda conservavam essa natureza no momento da entrada em vigor do Código do IRS, pese embora tenham, posteriormente, adquirido a natureza de terrenos para construção e sido alienados como tal.
II - Não se verifica, porém, tal exclusão tributária, se o prédio alienado com mais valia apenas surgiu na esfera jurídica do alienante após a conclusão das obras de edificação, ocorrida após 1 de janeiro de 1989, obras essas que deram origem a um novo prédio urbano, com inscrição na matriz diversa das préexistentes e substitutiva daquelas.”
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A única diferença em relação à situação sobre a qual se debruçou o Acórdão supra identificado é que o novo prédio urbano não teve uma inscrição na matriz substitutiva da pré existente porquanto, tratando-se de um destaque, o prédio rústico donde tal destaque foi efetuado continuou a existir factualmente, ainda que com área menor.
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Tudo visto, é manifesto que o imóvel sobre o qual a requerente alienou o usufruto constitui um prédio urbano independente e autónomo, inscrito na matriz após a entrada em vigor do CIRS.
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Uma vez que, à data dos factos, a Administração tributária fez a aplicação da lei nos termos em que está adstrita constitucionalmente, não se pode falar em erro dos serviços nos termos do disposto no artigo 43º da LGT.
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Devendo improceder o pedido de juros indemnizatórios
II. SANEAMENTO
12. O Tribunal Arbitral é materialmente competente, foi regularmente constituído e o pedido é tempestivo nos termos dos artigos 2.º, 5.º e 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT. As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e estão regularmente representadas, em conformidade com o disposto nos artigos 4.º e 10.º, n.º 2, ambos do RJAT, e dos artigos 1.º a 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março. O processo não enferma de nulidades, nem existem outras exceções ou questões prévias que cumpram conhecer e que obstem à apreciação do mérito da causa.
III. MATÉRIA DE FACTO
§1 – Factos provados
13. Analisada a prova produzida nos presentes autos, com relevo para a decisão da causa consideram-se provados os seguintes factos:
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Em 01 de Julho de 1987, o Requerente adquiriu, por escritura de doação outorgada pelos seus pais, B... e C..., a seu favor, o prédio rústico sito na ..., na União de freguesias de ... e ..., concelho de Condeixa-a-Nova, que actualmente se encontra descrito sob o número ... da freguesia de ... e inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo ... da União das freguesias de ... e ...- cf. Documentos n.ºs 1 a 3 juntos ao PPA.
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Em 21 de Dezembro de 2015, o Requerente doou a nua propriedade em comum e partes iguais, do referido prédio rústico, aos seus filhos, A... e G..., para si reservando o usufruto do mesmo prédio - cf. Documento n.º 4 junto ao PPA.
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Por certidão emitida em 23 de Maio de 2019 pela Câmara Municipal de Condeixa-a-Nova, foi autorizado o destaque de uma parcela de terreno com a área de 25.000,m2 do referido prédio rústico, parcela essa que foi inscrita na matriz predial urbana sob o artigo..., da união das freguesias de ... e ... e descrita na Conservatória do Registo Predial de Condeixa-a- Nova sobre a descrição ... da freguesia de ...- cf. Documentos n.ºs 5 a 8 juntos ao PPA.
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Por escritura pública de compra e venda celebrada em 31 de Janeiro de 2020, o Requerente vendeu o usufruto da parcela de terreno para construção urbana com a área de 29.760,00m2 (parcela destacada), à sociedade D..., Unipessoal, Lda., que a comprou, pelo preço de 160.704,00€, tendo os seus filhos vendido a respetiva nua propriedade da referida parcela destacada - cf. Documento n.º 9 junto ao PPA.
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Em 4 de Dezembro de 2020, por escritura de retificação, o Requerente e seus filhos, na qualidade de vendedores, e a sociedade D..., Unipessoal, Lda. na qualidade de compradora, retificaram a compra e venda entre eles celebrada em 31 de Janeiro de 2020, no sentido de passar a constar que destacaram do prédio rústico não uma parcela de 25.000m2, mas uma parcela com a área de 29.760,m2, pelo que, por força da alteração da área do prédio vendido, os outorgantes retificaram o preço de venda da parcela destacada, sendo que, no que se refere ao Requerente, passou a constar que este vendeu o usufruto de que era titular pelo preço de 160.704,00€ - cf. Documento n.º 10 junto ao PPA.
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Em 15 de Julho de 2021, o Requerente submeteu a declaração Modelo 3 de IRS, relativa ao ano de 2020, na qual preencheu o Anexo G referente às Mais-Valias e outros incrementos patrimoniais, no Modelo 3 de IRS referente ao ano de 2020, em cujo quadro 4, com o título “alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis”, declarou o rendimento de 160.704,00€ obtido com a venda do usufruto da parcela destacada - cf. Documento n.º 11 junto ao PPA.
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No seguimento da submissão da declaração de IRS, a AT emitiu a demonstração de liquidação de IRS n.º 2021..., da qual resultou um imposto a pagar no valor de € 63.492,83 - cf. Documento n.º 12 junto ao PPA.
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Em 29 de Junho de 2023, o Requerente entregou uma reclamação graciosa contra liquidação de IRS n.º 2021..., referente ao ano de 2020 - cf. Documento n.º 14 junto ao PPA.
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A AT não emitiu decisão sobre a reclamação graciosa apresentada pelo Requerente - cfr. alegado no artigo 25.º do PPA e consta do processo administrativo junto aos autos.
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Em 23 de janeiro de 2024 foi apresentado o presente pedido de pronúncia arbitral.
§2 – Factos não provados
14. Com relevo para a decisão não existem outros factos alegados que devam considerar-se não provados.
§3 – Fundamentação da fixação da matéria de facto
15. Ao Tribunal Arbitral incumbe o dever de selecionar os factos que interessam à decisão da causa e discriminar os factos provados e não provados, não existindo um dever de pronúncia quanto a todos os elementos da matéria de facto alegados pelas partes, tal como decorre da aplicação conjugada do artigo 123.º, n.º 2, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”) e do artigo 607.º, n.º 3, do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.
16. Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram selecionados e conformados em função da sua relevância jurídica, determinada com base nas posições assumidas pelas partes e nas várias soluções plausíveis das questões de direito para o objeto do litígio, conforme decorre do artigo 596.º, n.º 1 do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.
17. Os factos dados como provados e não provados resultaram da análise da prova produzida no presente processo, designadamente da prova documental junta aos autos pelo Requerente e do processo administrativo junto aos autos pela Requerida, que foram apreciados pelo Tribunal Arbitral de acordo com o princípio da livre apreciação dos factos e tendo presente a ausência da sua contestação especificada pelas partes, conforme decorre do artigo 16.º, alínea e), do RJAT, e do artigo 607.º, n.ºs 4 e 5, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.
IV. MATÉRIA DE DIREITO
18. A questão a apreciar e decidir nos presentes autos prende-se com saber se o ganho resultante da venda, realizada em 2020, do usufruto de prédio urbano para construção adquirido pelo Requerente, por doação realizada pelos seus pais em 1 de julho de 1987, como prédio rústico, mantido como tal quando entrou em vigor o Código do IRS, do qual, posteriormente e após destaque, já em 2019, de que resultou o prédio urbano inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ..., alienado como tal em 2020, está sujeito a tributação em sede de IRS (a título de Mais-Valias), ou se está isento dessa tributação por se encontrar abrangido pelo regime transitório previsto no artigo 5.º/1 do Dec. Lei n.º 442-A/88.
O Decreto-Lei n.º 448‑A/88 de 30 de novembro, que aprovou o Código do IRS, estabeleceu um regime transitório aplicável aos rendimentos da categoria G (mais-valias), como forma de efetivar o princípio da segurança jurídica e acautelar aplicações retroativas da lei a rendimentos que até à entrada em vigor daquele código não estavam sujeitos a tributação. No artigo 5.º do referido Decreto-Lei determinou-se, para o efeito, o seguinte:
1 – Os ganhos que não eram sujeitos ao imposto de mais-valias, criado pelo código aprovado pelo Decreto-Lei n.º 46 373, de 9 de Junho de 1965, bem como os derivados da alienação a título oneroso de prédios rústicos afectos ao exercício de uma actividade agrícola ou da afectação destes a uma actividade comercial ou industrial, exercida pelo respectivo proprietário, só ficam sujeitos ao IRS se a aquisição dos bens ou direitos a que respeitam tiver sido efectuada depois da entrada em vigor deste Código.
2 – Cabe ao contribuinte a prova de que os bens ou valores foram adquiridos em data anterior à entrada em vigor deste Código, devendo a mesma ser efectuada, quanto aos valores mobiliários, mediante registo nos termos legalmente previstos, depósito em instituição financeira ou outra prova documental adequada e através de qualquer meio de prova legalmente aceite nos restantes casos.
3 – Quando, nos termos dos nºs 8 e 10 do artigo 10º do Código do IRS, haja lugar à valorização das participações sociais recebidas pelo mesmo valor das antigas, considera-se, para efeitos do disposto no n.º 1, data de aquisição das primeiras a que corresponder à das últimas.”.
Portanto, para que determinar se a alienação do imóvel objeto do presente processo estava abrangida por este regime de exclusão, revela-se necessário aferir se a mesma era sujeita a tributação em sede de Imposto de Mais-Valias (“IMV”), aprovado pelo Decreto-lei 46373, de 9 de junho de 1965. Ao que aqui importa, determinava-se o seguinte no artigo 1.º do código deste imposto:
“Artigo 1.º
O imposto de mais-valias incide sobre os ganhos realizados através dos actos que a seguir se enumeram:
1.º Transmissão onerosa de terreno para construção, qualquer que seja o título por que se opere, quando dela resultem ganhos não sujeitos aos encargos de mais-valia previstos no artigo 17.º da Lei 2030, de 22 de Junho de 1948, ou no artigo 4.º do Decreto-Lei 41616, de 10 de Maio de 1958, e que não tenham a natureza de rendimentos tributáveis em contribuição industrial.
2.º Transmissão onerosa, qualquer que seja o título por que se opere, de elementos do activo imobilizado das empresas ou de bens ou valores por elas mantidos como reserva ou para fruição.
3.º Traspasse de locais ocupados por escritórios ou consultórios afectos ao exercício de profissões constantes da tabela anexa ao Código do Imposto Profissional.
4.º Incorporação de reservas no capital das sociedades anónimas, em comandita por acções, ou por quotas e emissão de acções, com reserva de preferência para os accionistas, ou, no caso de transformação de sociedades por quotas em sociedades anónimas, para os sócios da sociedade na sua forma anterior.
§ 1.º Consideram-se rendimentos tributáveis em contribuição industrial os ganhos provenientes da transmissão a título oneroso de terreno para construção até decorridos dois anos sobre a data da aquisição, quando esta se haja operado a igual título.
§ 2.º São havidos como terrenos para construção os situados em zonas urbanizadas ou compreendidos em planos de urbanização já aprovados e os assim declarados no título aquisitivo.
§ 3.º Os ganhos a que respeita o n.º 2.º, quando realizados mediante transmissão onerosa de terreno para construção ou de acções ou outras participações sociais, só ficarão sujeitos a imposto por força do que dispõem, respectivamente, os n.ºs 1.º e 4.º”. (destaque nosso)
Da conjugação das referidas normas resulta que não podem beneficiar do regime transitório da categoria G os ganhos com a alienação de ativos imobiliários que já eram sujeitos a tributação em sede de IMV, isto é, os ganhos resultantes da alienação onerosa de (i) terrenos para construção, (ii) elementos do ativo imobilizado das empresas ou bens ou valores por elas mantidos como reserva ou fruição e (iii) do direito de arrendamento de escritórios e consultórios.
Assim, o prédio rústico que em 1987 adveio à propriedade do Requerente por doação não estava sujeito a imposto de mais valias e também não estava quando em 1 de janeiro de 1989 entrou em vigor o Código do IRS, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30 de novembro.
O critério determinante da aplicação do referido regime transitório é o da qualificação do bem no momento da entrada em vigor do diploma legal e não o da sua posterior transmissão.
Nessa linha de interpretação, o Supremo Tribunal Administrativo tem decidido, reiteradamente, que à luz do disposto no artigo 5.º do Dec. Lei n.º 442-A/88 não são tributados em sede de IRS os ganhos obtidos com a transmissão onerosa de prédio urbano adquirido como rústico antes da entrada em vigor do Código do IRS e que ainda conservava essa natureza no momento da entrada em vigor deste Código, pese embora tenha, posteriormente, adquirido a natureza de urbano (terreno para construção) e sido alienado como tal.
Seguindo-se de perto, nesta parte, a decisão arbitral de 29 de dezembro de 2023, proferida no Processo Arbitral 292/2023-T, diremos que este é, de resto, o entendimento que tem sido defendido na jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, designadamente no acórdão de 02 de Julho de 2014, proferido no âmbito do processo n.º 01396/13, onde se referiu o seguinte:
Importa agora analisar se este regime transitório da categoria G, previsto no citado n.° 1 do art.° 5°, do Decreto-Lei n.° 442-A/88, de 30 de Novembro, tem ou não aplicação na situação em apreço.
Sem dúvidas, deve afirmar-se que quando entrou em vigor o CIRS, (01/01/1989) inequivocamente, o prédio em questão não estava, em caso de transmissão, sujeito a imposto, no tocante a mais-valias, pois detinha a qualidade de rústico.
É um facto indiscutível e incontestável.
No caso do tributo ora sindicado, estamos perante um facto tributário de formação sucessiva, integrado por dois momentos: o da aquisição e o da transmissão. No momento da aquisição por via sucessória o prédio tinha a qualidade de rústico a qual se mantinha na data da transmissão que ocorreu após a entrada em vigor do CIRS. Não ocorre sujeição a imposto de mais valias pois que há que considerar a referida norma transitória do artº 5º do CIRS, não podendo aplicar-se retroactivamente a lei.
Neste sentido e por todos, o acórdão de 27 de Janeiro de 2010, do STA, proferido no Proc. nº 969/09, onde se refere, cuja fundamentação se destaca e para a qual se remete “O que é decisivo para a questão da tributação em IRS, dado que para saber se se verificam os pressupostos da tributação, releva a qualidade que o bem detinha no momento da entrada em vigor do CIRS, uma vez que, como se viu, no regime transitório estabelecido para a categoria G de IRS (regime previsto no nº 1 do art. 5º do citado DL 442-A/88), se estabelece que os ganhos que não eram sujeitos ao imposto de mais-valias, só ficam sujeitos ao IRS se a aquisição dos bens ou direitos de cuja transmissão provêm se houver efectuado depois da entrada em vigor deste Código.
Daí que careça de razão a recorrente ao alegar que os ganhos são sujeitos a IRS porque estamos perante a venda de um lote de terreno para construção urbana que já nos termos do disposto no nº 1 do CIMV era tributada (cfr. art. 7º das alegações de recurso). Como se sublinha no acórdão deste STA, de 12/12/06, rec. nº 1100/05, «o que se pretendeu com a mudança de regime de tributação operada a partir de 1989 foi tributar em IRS, categoria G, todas as transmissões onerosas sobre imóveis; todavia, para evitar efeitos retroactivos, estabeleceu-se que para serem tributadas tais transmissões era necessário que os bens abrangidos fossem adquiridos e alienados dentro da vigência da nova lei, com excepção daqueles que já eram antes tributados por força do CIMV, ou seja, os terrenos para construção, os quais passariam agora a ser tributados nos termos do Código do IRS». E também no ac. de 6/6/07, deste mesmo STA, rec. nº 179/07, se escreve, a este propósito, que a não tributação em IRS - a título de mais-valias - dos ganhos obtidos com a transmissão de terrenos que à data da entrada em vigor do CIRS eram qualificados como terrenos agrícolas (citado art. 5º do DL 442-A/88) se compreende «pelo facto de, tendo-se optado pelo cálculo dos ganhos tributáveis a título de mais-valias com base na diferença entre o valor da aquisição e o valor da transmissão, a tributação em IRS da valorização de terrenos agrícolas que haviam sido adquiridos antes da sua entrada em vigor incluiria, parcialmente, a aplicação retroactiva do novo regime de tributação a ganhos obtidos com a valorização dos prédios rústicos, pois forçosamente se iriam tributar, além dos ganhos correspondentes à valorização gerada na vigência do novo Código, também alguns correspondentes à valorização que, como prédios rústicos, pode ter tido ocorrido antes da sua entrada em vigor. Ora, essa aplicação retroactiva de normas de incidência tributária, que, a partir da revisão constitucional de 1997 é absolutamente proibida pela nova redacção dada ao art. 103°, nº 3, da CRP, só era tolerável anteriormente em situações especiais em que estivesse em causa o interesse geral (Essencialmente neste sentido, pode ver-se o acórdão do Tribunal Constitucional nº 216/90, de 20-6-1990, processo nº 203/89, publicado no Boletim do Ministério da Justiça nº 398, página 207), que não se vislumbram em matéria de tributação de mais-valias» (cf. ainda, no mesmo sentido, entre outros, os acs. de 4/2/09, rec. nº 872/08 e de 29/10/08, rec. nº 539/08 e de 13/2/08, rec. nº 763/07).” (destaque nosso)
Mais recentemente, reafirmando esta mesma jurisprudência, referiu o Supremo Tribunal Administrativo no acórdão de 11 de outubro de 2023, proferido no âmbito do processo n.º 0834/09.0BELRS, que:
“como o Supremo Tribunal Administrativo vem decidindo em jurisprudência constante, o que releva para a aplicação deste regime transitório é a qualidade que o bem detinha no momento da entrada em vigor do novo Código – ver, por todos, o acórdão de 8 de julho de 2015, no Recurso n.º 0584/15 e jurisprudência aí citada.
Assim, tratando-se de bem imóvel adquirido ainda na vigência do Código do Imposto de Mais-Valias, os ganhos provenientes da sua alienação só estarão sujeitos a imposto se, à data da entrada em vigor do novo Código, já pudesse ser qualificado como terreno para construção.
Está assente nos autos que o ganho em causa provém de uma parcela destacada de um logradouro adquirido em 1983.
No entanto, a operação de destaque só ocorreu em 2004, pelo que, à data da entrada em vigor do Código do IRS, o terreno era parte integrante do edifício de que foi, ulteriormente, destacado – ver o artigo 204.º, n.º 2, do Código Civil.
Assim, à data da entrada em vigor do Código de IRS, o terreno em causa ainda não tinha a natureza de terreno para construção. Porque as partes integrantes dos edifícios têm a mesma natureza dos edifícios a que estão ligados.
A natureza que tinha à data da alienação e em resultado da operação de destaque não releva para este efeito.”. (destaque nosso)
Aplicando estas considerações ao caso em juízo nos presentes autos, verifica-se que o prédio foi adquirido pelo Requerente em 1987 como prédio rústico, pelo que os ganhos resultantes da sua alienação não estavam sujeitos a imposto sobre as mais-valias. Na data da entrada em vigor do Código do IRS, em 1 de janeiro de 1989, o prédio mantinha o mesmo estatuto. A alteração qualitativa (destaque e terreno para construção) ocorreu já na vigência do Código do IRS.
Mas, como vimos, o que releva na norma transitória do artigo 5.º /1 do Decreto-Lei n.º 442-A/88 não é que a alteração qualitativa ocorra na vigência do Código do IRS, mas sim que a “...aquisição dos bens ou direitos a que respeitam tiver sido efetuada depois da entrada em vigor deste Código”.
Ora, como a aquisição do bem a que respeita foi efetuada antes da entrada
em vigor do Código do IRS, verifica-se que os ganhos resultantes da sua alienação em 2020 estão excluídos de tributação por força do disposto no artigo 5.º, n.º 1 do regime transitório da categoria G previsto no artigo 5.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 448-A/88 de 30 de novembro.
Ora, como a aquisição a qualidade de terreno rústico e como o mesmo não era objeto de tributação em sede de IMV, verificam-se que os ganhos resultantes da sua alienação em 2021 estão excluídos de tributação por força do disposto no artigo 5.º, n.º 1 do regime transitório da categoria G previsto no artigo 5.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 448-A/88 de 30 de novembro.
Perante o exposto, julga-se procedente o pedido formulado pela Requerente, impondo-se a anulação do ato de liquidação de IRS na concreta medida em que sujeita a tributação a mais-valia resultante da alienação descrita no ponto E da matéria de facto provada nos presentes autos.
Nessa medida, fica prejudicado, por ser inútil (artigos 130.º e 608.º, n.º 2, do CPC), o conhecimento da outra questão colocada pelo Requerente.
19. O Requerente pede ainda que lhe sejam pagos juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43.º, n.º 1, da LGT.
Tal obrigação de indemnizar depende da existência de erro imputável aos serviços. Ora, relativamente à liquidação impugnada, nenhum erro pode ser imputado aos serviços porquanto estes se limitaram a processar o declarado pelo Requerente. O erro dos serviços só acontece no momento em que a AT incumpre com a sua obrigação de reparar a situação em sede de procedimento administrativo, ou seja, no termo do prazo legal da decisão da reclamação, que foi incumprido, ou seja, desde 29/10/2023.
V. DECISÃO
Termos em que se decide:
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Julgar procedente o pedido arbitral e, em consequência, determinar a anulação do ato de liquidação contestado nos termos acima fixados;
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Condenar a Requerida a restituir o imposto que se venha a apurar ter sido pago em excesso pelo Requerente, acrescido de juros indemnizatórios sobre o mesmo, contados desde 29/10/2023;
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Condenar a Requerida no pagamento das custas do processo, em razão do decaimento.
VI. VALOR DO PROCESSO
Atendendo ao disposto no artigo 97.º-A do CPPT, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 35.976,52, indicado pelo Requerente e não contestado pela Requerida.
VII. CUSTAS
Nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, as custas são no valor de € 1.836,00, a cargo da Requerida, conforme o disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem.
Notifique-se.
Porto, 02 de dezembro de 2024
O Árbitro,
Francisco Melo