Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 625/2024-T
Data da decisão: 2024-11-13   Outros 
Valor do pedido: € 455.366,01
Tema: Contribuição sobre o Sector Rodoviário (CSR). Direito de União Europeia. Competência dos tribunais arbitrais. Ineptidão da petição. Legitimidade.
Versão em PDF

SUMÁRIO:

 

I - Não tendo o Tribunal de Justiça, no Despacho Vapo Atlantic (processo C-460/21) colocado em causa a qualificação da CSR como uma imposição indireta para efeitos do artigo 1.º, n.º 2 da Diretiva 2008/118/CE, conclui-se que aquele tributo é um desdobramento do ISP e, como tal, um imposto.

II – Assentando o regime jurídico da CSR num princípio de repercussão legal, as entidades adquirentes de combustível e que suportem o encargo do tributo gozam de legitimidade processual para impugnar judicialmente os atos de liquidação, nos termos do artigo 18.º, n.º 1, a) da LGT. Mesmo que se entenda que o regime jurídico da CSR não assenta num princípio de repercussão legal, há que reconhecer que o repercutido adquirente de combustíveis alega a titularidade de um interesse legalmente protegido para efeitos do artigo 9.º, n.º 1 do CPPT, tendo legitimidade para intervir no processo tributário nessa qualidade.

III – O regime jurídico da Contribuição de Serviço Rodoviário, constante da Lei n.º 55/2007, de 31 de Agosto, é incompatível com o Direito da União Europeia, mormente com artigo l.°, n.° 2, da Diretiva 2008/118/CE.

IV – A repercussão - legal ou não - e o pagamento de um imposto é uma questão de facto, sobre a qual não recai qualquer presunção, nem em benefício da AT, nem em benefício dos contribuintes. Não ficando demonstrada a repercussão e o montante do imposto pago, fica prejudicado o direito à restituição do imposto por parte do adquirente de combustível.

 

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

 

Os árbitros Jorge Lopes de Sousa (Árbitro-Presidente), Vítor Braz e Marta Vicente, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formarem Tribunal Arbitral, constituído em 15-07-2024, acordam no seguinte:

 

I – Relatório

 

1. A..., S.A., titular do n.º de identificação fiscal..., com domicílio fiscal no ..., ...-... ..., Santarém, B..., LDA., titular do n.º de identificação fiscal ..., com domicílio fiscal na Rua ..., s/n, ...-... ..., Leiria, C..., UNIPESSOAL LDA., titular do n.º de identificação fiscal..., com domicílio fiscal na ..., R/C – Rua ..., ...-... Torres Novas, Santarém, D..., UNIPESSOAL LDA., titular do n.º de identificação..., com domicílio fiscal na ..., n.º..., ...-... Santarém, e E..., LDA., titular do n.º de identificação fiscal ..., com domicílio fiscal na ..., n.º ...,  ..., ...-... Leiria (doravante, Requerentes), apresentaram, em 02-05-2024, pedido de constituição de Tribunal Arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º, n.º 1, a), e 10.º, n.ºs 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em matéria Tributária (doravante, RJAT), com as alterações subsequentes, e da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, alterada pela Portaria n.º 287/2019, de 3 de setembro, que vincula vários serviços e organismos do Ministério das Finanças e da Administração Pública à jurisdição do Centro de Arbitragem Administrativa.

 

2. No pedido de pronúncia arbitral, as Requerentes pedem:

(i) a anulação do ato de indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa apresentado em
02-10-2023, junto da Alfândega de Peniche (documento n.º 02, junto com o PPA);

(ii) a anulação dos atos de liquidação de CSR praticados pela Autoridade Tributária e Aduaneira, referentes ao período entre setembro de 2019 e dezembro de 2022, cujo encargo tributário foi repercutido nas suas esferas jurídicas pelo fornecedor, a F..., S.A.,[1] no montante total de € 455 366,61, relativos à aquisição de 4.102.291,46 litros de gasóleo, 29,78 litros de gasolina e 78,59 litros de GPL;

(iii) a condenação da Autoridade Tributária no reembolso do montante de € 455 366,61, indevidamente suportado pelas Requerentes, acrescido de juros indemnizatórios nos termos do artigo 43.º, n.º 3, c) da LGT.

 

3. É demandada a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante, AT ou Requerida).

 

4. Em 06-05-2024, o pedido de constituição de Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD e seguiu a sua normal tramitação com a notificação da AT.

 

5. As Requerentes não procederam à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, a) e do artigo 11.º, n.º 1, a), ambos do RJAT, o Exmo. Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do Tribunal Arbitral, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo devido. Em 16-05-2024, a Requerida apresentou requerimento, dirigido ao Exmo. Senhor Presidente do CAAD, solicitando a identificação dos atos de liquidação cuja apreciação se pretende.

 

6. Por requerimento de 03-06-2024, as Requerentes vieram exercer o contraditório quanto à necessidade de identificar os atos de liquidação impugnados na presente ação arbitral, alegando, em síntese, terem feito chegar ao processo toda a informação que estava na sua posse. Sendo esta insuficiente, deveria a AT adotar, ao abrigo do princípio do inquisitório (artigo 58.º da LGT), as diligências necessárias à revogação dos atos tributários sob contenda, oficiando, se necessário, o respetivo sujeito passivo a facultar informação que repute relevante.

 

7. Foram as partes notificadas da designação dos signatários, não tendo manifestado vontade de a recusar (cf. artigo 11, n.º 1, b) e c) do RJAT, em conjugação com o disposto nos artigos 6.º e 7 do Código Deontológico do CAAD), pelo que, ao abrigo da al. c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral ficou constituído em 15-07-2024. Nessa data, o Tribunal Arbitral proferiu Despacho ordenando a notificação da Requerida para apresentar Resposta, juntar cópia do Processo Administrativo e solicitar, querendo, a produção de prova adicional (cf. artigo 17.º do RJAT).

 

8. A Requerida apresentou resposta, em 17-09-2024, remetendo o Processo Administrativo. Em 20-09-2024, o Tribunal arbitral proferiu Despacho dispensando a realização da reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT bem como a produção de alegações escritas e conferindo 10 (dez) dias às Requerentes para se pronunciarem sobre a defesa por exceção deduzida pela AT – o que aconteceu, por requerimento com data de 04-10-2024. Por requerimento de 30-09-2024, as Requerentes juntaram aos autos processo de subestabelecimento sem reserva a favor de novo mandatário.

 

9. Por requerimento apresentado em 04-10-2024, as Requerentes pediram a junção aos autos de documentos comprovativos do pagamento dos montantes descritos nas faturas à sua fornecedora de combustível, no período compreendido entre setembro de 2019 e dezembro de 2022 (cf. documento n.º 01, partes 1, 2 e 3 juntos com aquele requerimento). Na mesma data, o Tribunal arbitral proferiu Despacho conferindo à Requerida o prazo de 10 dias para o exercício do contraditório. Contraditório que a AT exerceu por requerimento com data de 11-10-2024, pedindo o desentranhamento daqueles documentos, por violação do disposto no artigo 423.º do CPC e no artigo 108.º do CPPT, ex vi do artigo 29.º do RJAT. Alegou, com efeito, que os documentos não têm qualquer relevância para a boa decisão da causa e que o pedido formulado pela Requerente relativamente a esses documentos não reúne os pressupostos que o Código de Processo Civil exige para a sua aceitação na fase de tramitação processual em causa.

 

10. Por requerimento com data de 21-10-2024, as Requerentes submeteram processo de subestabelecimento com reserva a favor de novo mandatário e ofereceram resposta quanto ao pedido de desentranhamento formulado pela AT. Alegaram que as partes podem, até ao fim da fase de instrução do processo, apresentar documentos que considerem relevantes para a boa decisão da causa e que os documentos cuja junção se peticionou são complementares relativamente às faturas já constantes do processo, reforçando a prova de que foi a Requerente, enquanto adquirente de combustível, que suportou a CSR.

 

11. Sobre o pedido de desentranhamento recaiu, em 31-10-2024, Despacho do Tribunal arbitral, admitindo a junção dos documentos. O Tribunal destacou que a restrição de apresentação de documentos depois da reunião do artigo 18.º do RJAT não é um princípio absoluto e que a junção de documentos não provocaria, in casu, perturbação considerável da tramitação normal do processo à luz princípio da celeridade (artigos 16.º, alínea c) e 29.º, n.º 2, do RJAT). Tomou em consideração, adicionalmente, a virtualidade de os documentos poderem comprovar o pagamento efetivo, pela Requerente, dos montantes descritos nas faturas – facto impugnado pela AT. Estando reunidas as condições para o processo avançar para a fase de decisão, foi indicada como data para a prolação desta última o dia 29-11-2024.

 

12. Compulsado o PPA e as respostas, a posição das Partes é, em síntese, a seguinte:

 

(a) As Requerentes alegam que a sua fornecedora de combustíveis – a F..., S.A. – repercutiu nas respetivas faturas a CSR correspondente aos litros de combustível adquirido no período entre setembro de 2019 e dezembro de 2022, no montante global de € 455 366,61;

 

(b) A CSR, apesar da designação, é um imposto, não se detetando na sua estrutura e no seu regime jurídico qualquer contraprestação efetiva ou sequer presumivelmente provocada ou aproveitada pelos sujeitos passivos por ela onerados. A simples introdução no consumo de combustíveis não denota qualquer utilização, por parte dos sujeitos passivos do tributo, da rede rodoviária nacional. Olhando, depois, aos contribuintes sobre os quais o tributo recai, através do mecanismo da repercussão, constata-se que nem todos os utilizadores da rede rodoviária nacional são adquirentes destes combustíveis (pontos 24.º a 73.º do PPA).

 

(c) As Requerentes, enquanto suportadoras do encargo inerente à CSR, têm legitimidade para a propositura da presente ação arbitral, nos termos conjugados dos artigos 9.º, n.º 1, 95.º da LGT e do artigo 9.º, n.º 1 do CPPT, uma vez que têm um interesse legalmente protegido, independentemente de estar em causa repercussão obrigatória ou voluntária. A legitimidade no processo tributário não se confunde com a qualidade de sujeito passivo. Esta interpretação encontra respaldo, segundo as Requerentes, no Despacho Vapo Atlantic (processo C-460/21), do Tribunal de Justiça, e na nova redação do artigo 2.º do Código dos Impostos Especiais sobre o Consumo (CIEC), dada pela Lei n.º 24-E/2022, de 30 de dezembro (pontos 74.º a 105.º do PPA).

 

(d) Não obstante, se o que vem de ser dito não for suficiente para atestar que as Requerentes suportaram o encargo económico do imposto através de repercussão, estas solicitam ao Tribunal arbitral que, a coberto do princípio do inquisitório inscrito no artigo 99.º da LGT, oficie a F..., S.A., com vista a confirmar a ocorrência de repercussão. Ademais, a Lei n.º 5/2019, de 11 de janeiro, veio introduzir o dever, para o comercializador de combustível, de discriminar nas faturas as componentes relativas aos impostos e às taxas suportados pelo consumidor. As Requerentes alegam ainda que, do documento n.º 05 junto aos autos com o PPA, consta uma declaração da F..., S.A., no sentido de que o “valor de ISP indicado inclui taxa de carbono e contribuição para o serviço rodoviário” (pontos 106.º a 111.º do PPA).

 

(e) O regime jurídico da CSR, instituído pela Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto, é incompatível com o Direito da União Europeia (DUE), uma vez que o tributo, tal como recortado pelo legislador nacional, não tem subjacente “motivos específicos” na aceção do artigo 1.º, n.º 2 da Diretiva 2008/118/CE, tendo sido criado por razões puramente orçamentais. Esta conclusão foi atestada pelo Tribunal de Justiça no Despacho Vapo Atlantic (C-460/21). O preenchimento do conceito “motivos específicos” depende da demonstração da “existência de um nexo juridicamente relevante entre a finalidade da tributação e o destino das receitas dela provenientes ou, em alternativa, entre a finalidade da tributação e o efeito prático decorrente da sua imposição”, o que não acontece na CSR (pontos 112.º a 146.º do PPA).

 

(f) Portanto, atentos os princípios do primado e do efeito direto associados ao DUE (artigo 8.º, n.º 4 da CRP), estariam verificados os requisitos para que a AT tivesse, em sede do procedimento de revisão oficiosa (artigo 78.º, n.ºs 1 e 4 da LGT), anulado os atos tributários em crise, por se verificar um “erro imputável aos serviços”, mormente um erro de direito, por aplicação de normas de direito interno desconformes com o DUE, ou uma injustiça grave e notória (pontos 147.º a 151.º do PPA).

 

(g) A CSR viola a projeção do princípio da igualdade tributária no domínio dos impostos, expressa através do princípio da capacidade contributiva. Este reclama que todas as pessoas contribuam para o financiamento dos encargos públicos, na medida da sua capacidade económica, porquanto os impostos financiam bens e serviços acessíveis e aproveitáveis a todas as pessoas. Ora, o universo de sujeitos passivos que beneficia da atividade da Infraestruturas de Portugal, S.A. extravasa em muito o conjunto dos sujeitos passivos de CSR, de onde resulta que, ao fazer incidir um imposto sobre um leque limitado de sujeitos passivos, a Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto, está ferida de inconstitucionalidade material, por violação do princípio da igualdade tributária, ínsito no artigo 13.º da CRP. Sendo o regime jurídico da CSR inconstitucional, são também ilegais todas as liquidações de CSR a que com base nele se procedeu, o que implica a sua anulação, nos termos do artigo 163.º do CPA, com a consequente restituição dos montantes indevidamente pagos a título de CSR (pontos 152.º a 168.º do PPA).

 

(h) As Requerentes invocam ainda a inconstitucionalidade das normas extraídas dos artigos 18.º, n.º 4 da LGT e 9.º do CPPT, quando interpretadas no sentido de não ter o repercutido legitimidade processual para demandar diretamente a AT com vista ao reembolso do imposto suportado por repercussão, por violação do princípio da tutela jurisdicional efetiva e do princípio da efetividade, no pressuposto de que o ordenamento jurídico português não assegura ao repercutido meios jurisdicionais que lhe permitam reaver o imposto indevidamente pago em violação do DUE. Entendimento reforçado pelo acórdão Gabel Industria Tessile and Canavesi, processo C-316/22, do Tribunal de Justiça (pontos 169.º a 188.º do PPA).

 

(i) Finalmente, entendem as Requerentes que são devidos juros indemnizatórios, ao abrigo dos artigos 43.º, n.º 3, c) e 100.º da LGT (pontos 189.º a 189.º do PPA).

 

(j) A Requerida apresentou defesa por exceção e defesa por impugnação. Na sua resposta, suscita as exceções dilatórias da incompetência do tribunal em razão da matéria (com três fundamentos distintos), ilegitimidade processual e substantiva das Requerentes, ineptidão da petição inicial e caducidade do direito de ação (pontos 56.º a 213.º da Resposta).

 

(l) Quanto ao fundo, considera que as Requerentes não lograram fazer prova de ter adquirido e pago combustível e suportado o encargo do pagamento da CSR por repercussão. Atento o disposto no artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil, não incumbe à Requerida fazer a prova da não repercussão, nem é possível presumir a existência de repercussão quando se está perante uma repercussão meramente económica (pontos 214.º a 249.º da Resposta).

 

(m) Defende-se, ainda, argumentando que inexiste qualquer decisão judicial transitada em julgado – do Tribunal de Justiça ou de Tribunal nacional – que tenha declarado ou julgado a inconstitucionalidade ou ilegalidade do regime jurídico da CSR. Neste sentido, estando a AT sujeita ao princípio da legalidade, não poderia recusar-se a aplicar normas de direito interno com fundamento em inconstitucionalidade ou ilegalidade, sob pena de violação do princípio da separação de poderes (pontos 250.º a 260.º da Resposta).

 

(n) A Requerida contesta a apreciação do Tribunal de Justiça no sentido de que não estão subjacentes à CSR “motivos específicos” para efeitos do preceituado no artigo 1.º, n.º 2 da Diretiva 2008/118/CE. Finalmente, louvando-se no acórdão Danfoss (processo C-94/10), do Tribunal de Justiça, a AT relembra que um Estado-membro se pode opor a um pedido de reembolso de um imposto indevido, apresentado pelo adquirente/comprador sobre quem esse imposto tenha sido repercutido, desde que, à luz do direito desse Estado-membro, seja possível ao adquirente exercer uma ação civil de repetição do indevido e o reembolso dos montantes indevidamente suportados não se mostre, na prática, impossível ou excessivamente difícil (pontos 261.º a 272.º da Resposta).

 

II – Saneamento

 

13. O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído, à face do preceituado na al. e) do n.º 1 do artigo 2.º, e do n.º 1 do artigo 10.º, ambos do RJAT.

 

14. As partes estão devidamente representadas gozam de personalidade e capacidade judiciárias (artigo 4.º e n.º 2 do artigo 10.º, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

 

15. O processo não enferma de nulidades.

 

16. Tendo em consideração a matéria de exceção suscitada pela Requerida, importa apreciar preliminarmente estas matérias, começando pela da incompetência do Tribunal arbitral, que é de conhecimento prioritário (cf. artigo 13.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos aplicável ex vi do disposto no artigo 29.º, n.º 1, c), do RJAT).

 

  1. Questão da incompetência relativa do Tribunal Arbitral em razão da matéria

 

17. Na Resposta, a AT arguiu a exceção dilatória de incompetência relativa do Tribunal Arbitral em razão da matéria, nos termos dos artigos 576.º, n.º 1 e 577.º, a) do CPC, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, e) do RJAT (pontos 56.º a 69.º da Resposta). Entende, em síntese, que a CSR é uma contribuição financeira, estando a sua sindicância, por conseguinte, excluída da competência material dos tribunais arbitrais tributários, à luz do disposto no artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março. Foi intenção do legislador restringir a vinculação dos serviços e organismos ao CAAD no âmbito de pretensões que dizem respeito, especificamente, a impostos, aqui não se incluindo tributos de outra natureza, como as contribuições financeiras.

 

18. As Requerentes pugnaram pela improcedência da exceção de incompetência relativa, alegando que a CSR deve, apesar da designação, ser qualificada como um imposto, atento o seu caráter inequivocamente unilateral. O tributo não é contrapartida de qualquer prestação indireta ou presumivelmente aproveitada pelos respetivos sujeitos passivos, nem tão-pouco evidencia qualquer propósito extrafiscal na modelação do comportamento destes. As Requerentes concluem, por conseguinte, que todos os atos tributários relacionados com a CSR são plenamente arbitráveis, à luz do disposto no artigo 2.º do RJAT e no artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março (pontos 4.º a 14.º da pronúncia sobre as exceções).

 

Decidindo,

 

19. O âmbito da jurisdição arbitral tributária conhece as limitações impostas por lei e por Regulamento. Com efeito, segundo a al. a) do n.º 1 do artigo 2.º do RJAT, a competência dos tribunais arbitrais compreende a apreciação de pretensões de declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de retenção na fonte e de pagamento por conta. Por sua vez, o artigo 4.º do mesmo regime faz depender a vinculação da AT à jurisdição dos tribunais arbitrais de portaria dos membros do Governo responsáveis, onde se estabeleça, designadamente, “o tipo e o valor máximo dos litígios abrangidos”. Em cumprimento desta delegação legislativa, a Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, definiu o objeto da vinculação da AT à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD como abrangendo “as pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida”.

 

20. A referência aos “impostos” que se encontra no artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, pode ser interpretada de duas formas.

 

21. Para uma linha jurisprudencial, a designação relevante para efeitos de definição de competência é a designação adotada pelo legislador, e não aquela que o intérprete ou aplicador do direito possam reputar mais adequada. Pretende-se, com esta posição, obstar a que a jurisdição dos tribunais arbitrais se veja dependente da incerteza inerente às diversas perspetivas doutrinais sobre a destrinça entre taxa, imposto e contribuição financeira (cf. acórdão do CAAD de 29-05-2023, processo n.º 31/2023-T; e já antes, com idêntico entendimento, os acórdãos do CAAD de 22-07-2022, processo n.º 788/2021-T, e de 16-10-2018, processo n.º 115/2018-T). Ao passo que, num outro entendimento, a aferição da jurisdição dos tribunais arbitrais já dependerá do resultado que o intérprete alcance quanto à qualificação dos tributos, em função das suas caraterísticas e do seu regime jurídico (cf., por exemplo, acórdão do CAAD 05-01-2023, processo n.º 304/2022-T; e acórdão do CAAD de 15-01-2024, processo n.º 375/2023-T). Sobre esta questão, o Tribunal arbitral entende que, havendo jurisprudência que aponte para uma determinada classificação, não pode o intérprete e aplicador do direito deixar de daí retirar as devidas conclusões em matéria de jurisdição.

 

22. A Constituição refere-se abertamente a três modalidades de tributos – impostos, taxas e contribuições financeiras (artigo 165, n.º 1, i) da CRP). Para cada um destes tributos, em razão do tipo de ablação patrimonial que representam para o contribuinte, prevê a Constituição um acervo de regras formais, orgânicas e materiais distinto, embora com semelhanças no plano dos tributos bilaterais (taxas e as contribuições financeiras).

 

23. A divisão tripartida dos tributos afirmou-se com a revisão constitucional de 1997, por oposição à summa divisio, até aí vigente, entre impostos e taxas. Com a inclusão de um segundo tipo de tributos bilaterais (as contribuições financeiras), o teste da bilateralidade – segundo qual os tributos rigorosamente bilaterais seriam taxas e os tributos não rigorosamente bilaterais seriam impostos – deixou de ser determinante no processo de qualificação. Se antes da revisão de 1997 o processo de qualificação não era simples, uma vez que uma plêiade de tributos merecia uma qualificação distinta daquela para que remeteria o seu nomen iuris (princípio da irrelevância do nomen iuris), o contencioso constitucional da qualificação dos tributos tornou-se, a partir dessa data, ainda mais complexo, atenta a proliferação de tributos híbridos, a meio-caminho entre taxas e impostos.

 

24. Assim, o imposto é uma prestação pecuniária e coativa, com estrutura unilateral. Cada um é chamado a contribuir para os encargos da comunidade independentemente de receber algo em troca, na medida da sua força económica ou da sua capacidade de pagar (princípio da capacidade contributiva). Os impostos pretendem arrecadar receitas para custear as despesas públicas gerais do Estado (artigo 5.º, n.º 1 da LGT). Coerentemente, visto que os impostos agridem o património do particular de forma mais intensa que outros tributos, a Constituição sujeita-os a um regime formal e orgânico bastante rigoroso (reserva de lei integral), colocando sob a alçada do legislador parlamentar todo o regime jurídico de cada um dos impostos. 

 

25. Já as contribuições financeiras são prestações pecuniárias coativas, assentes numa estrutura comutativa, exigidas como contrapartida de uma prestação administrativa de que presumivelmente os respetivos sujeitos passivos, por integrarem um determinado grupo homogéneo, beneficiaram ou causaram.

 

26. A constitucionalização das contribuições financeiras, promovida pela revisão de 1997, visou abarcar uma categoria de tributos que, embora não possuíssem uma estrutura unilateral, não compartilhavam da bilateralidade rigorosa das taxas. Todavia, a circunstância de o legislador de revisão ter optado por subordinar as contribuições financeiras a um regime formal e orgânico semelhante ao das taxas é suficientemente revelador de que a estrutura e a finalidade das contribuições financeiras se aproximam mais dos tributos bilaterais do que dos tributos unilaterais.

 

27. Como se esclarece no acórdão n.º 344/19, do Tribunal Constitucional, a propósito da “taxa” SIRCA:

 

A criação de tributos dirigidos à compensação de prestações presumidas e admissibilidade de um quadro amplo de incidência das taxas torna mais diluída a fronteira entre as diferentes categorias de tributos e muito mais delicada a respetiva qualificação. Se atendermos à «natureza» que assume a prestação do ente público, a linha de fronteira entre as diferentes categorias de tributos públicos pode demarcar-se do seguinte modo: se o pressuposto de facto gerador do tributo é alheio a qualquer prestação administrativa ou se traduz numa prestação meramente eventual, estamos perante um imposto; se o facto gerador do tributo consubstancia uma prestação administrativa presumivelmente provocada ou aproveitada por um grupo em que o sujeito passivo se integra, estamos perante uma contribuição; se o facto gerador do tributo é constituído por uma prestação administrativa de que o sujeito passivo seja efetivo causador ou beneficiário, ou por um facto que, de acordo com as regras da experiência, constitui um indicador seguro da existência daquela prestação, estamos perante uma taxa”.

 

28. A diferença decisiva entre imposto e contribuição financeira é dada, portanto, pela identificação expressa ou implícita de uma prestação administrativa – ainda que grupal ou presumida, no caso das contribuições financeiras. Em termos coadjuvantes, a jurisprudência constitucional reconhece igualmente a importância do critério finalístico, admitindo que a consignação da receita do tributo – por oposição ao financiamento das despesas públicas gerais – pode constituir uma orientação relevante (ainda que não determinante) no esclarecimento da sua natureza. Como se lê no acórdão n.º 268/2021, do Tribunal Constitucional, a propósito da Contribuição sobre o setor bancário:

 

A distinção entre as três categorias tributárias parte da consideração simultânea de um critério finalístico a par de um critério estrutural ou do pressuposto e da finalidade do tributo (...). Em linha com a conclusão que antecede, tem sido sublinhada pela jurisprudência do Tribunal a importância de atender, ainda, ao elemento teleológico do tributo (critério finalístico), na medida em que este pode constituir um indicador determinante no esclarecimento da sua natureza (...). Nesta perspetiva, a consignação de receitas à entidade pública competente para financiar as prestações subjacentes aos tributos que as geram constitui, por regra, «uma qualidade reveladora da natureza comutativa destes tributos, por tal consignação significar que a receita não pode ser desviada para o financiamento de despesas públicas gerais» (Acórdãos nºs 539/2015, 320/2016, 7/2019, 255/2020). (v. Acórdãos n.ºs 344/2019 e 255/2020)”.

 

29. Com base nestes critérios, o Tribunal Constitucional qualificou como contribuições financeiras tributos tão variados como as taxas de regulação e supervisão económica (acórdão n.º 365/2008), a taxa pela utilização do espectro radioelétrico (acórdão n.º 152/2013), as penalizações pela emissão de carbono (acórdão n.º 80/2014), a Contribuição extraordinária sobre o setor energético (acórdão n.º 7/2019), a taxa de segurança alimentar mais (acórdão n.º 539/2015) ou a contribuição sobre o setor bancário (acórdão n.º 268/2021). Foram ainda qualificadas como contribuições financeiras a contribuição extraordinária sobre a indústria farmacêutica (cf. acórdão do STA de 10.05.2023, processo n.º 0191/20.4BEVIS), assim como a taxa de promoção e de coordenação do Instituto da Vinha e do Vinho (cf. acórdão do STA de 26.09.2018, processo n.º 0299/13.2BEVIS 01007/17), ou a taxa anual devida pelo exercício da atividade de fornecedor de redes e serviços de comunicações eletrónicas (acórdão do TCA de 29.09.2022, Processo n.º 21/13.3 BELRS).

 

30. Uma vez denotada a estrutura comutativa do tributo, as eventuais inconsistências ou incoerências do seu regime jurídico deverão ser tratadas no âmbito do princípio da igualdade material, tomado como critério de equivalência, ferindo de inconstitucionalidade material as normas do regime jurídico do tributo que o contrariem (cf., neste sentido, os acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 344/2019, sobre a taxa SIRCA, e n.º 101/2023, sobre a Contribuição extraordinária do setor energético, quando aplicada aos operadores do setor do gás).

 

31. Ora, a Contribuição de Serviço Rodoviário visa financiar a rede rodoviária nacional a cargo da EP — Estradas de Portugal, E.P.E. (artigo 1.º da Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto) e constitui “a contrapartida pela utilização da rede rodoviária nacional, tal como esta é verificada pelo consumo dos combustíveis” (artigo 3.º, n.º 1). Por financiamento da rede rodoviária entende-se “a respetiva conceção, projeto, conservação, exploração, requalificação e alargamento” (artigo 3.º, n.º 2).

 

32. A incidência objetiva do tributo coincide com a do ISP, ou seja, o tributo incide sobre a gasolina e o gasóleo rodoviário sujeitos ao Imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos (ISP) e dele não isentos (artigo 4.º, n.º 1). E o mesmo sucede com a incidência subjetiva, uma vez que os sujeitos passivos do tributo coincidem com os sujeitos passivos do ISP (artigo 5.º, n.º 1). Além disso, é aplicável à sua liquidação, cobrança e pagamento o disposto no Código dos Impostos Especiais de Consumo (CIEC), na lei geral tributária e no Código de Procedimento e Processo Tributário, com as devidas adaptações (artigo 5.º, n.º 1). Finalmente, o produto da CSR constitui receita própria da concessionária da rede rodoviária nacional, a EP – Estradas de Portugal, E.P.E, que, entretanto, passou a denominar-se Infraestruturas de Portugal, S.A (artigo 6.º).

 

33. Destarte, não obstante a operação “cosmética” que o legislador ensaia na Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto, ao identificar como facto tributário a utilização da rede rodoviária nacional, consignando a receita do tributo à respetiva concessionária – a Infraestruturas de Portugal – a CSR aproxima-se de um simples desdobramento do ISP, partilhando com este a incidência objetiva e subjetiva, bem como os aspetos da liquidação e cobrança (cf. Sérgio Vasques, Manual de Direito Fiscal, 2.º ed., reimpressão, Almedina, 2021, p. 384, nota n.º 8).[2]

 

Como se lê no acórdão do CAAD de 13-11-2023, processo n.º 410/2023-T, não existe “qualquer nexo específico entre o benefício emanado da actividade da entidade pública titular da contribuição e o grupo dos sujeitos passivos”. Na verdade, «o financiamento da rede rodoviária nacional é assegurado pelos respectivos utilizadores, que são os beneficiários da actividade pública desenvolvida pela EP - Estradas de Portugal, E. P. E. (agora IP), verificando-se, no entanto, que a contribuição de serviço rodoviário é devida pelos sujeitos passivos do imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos, que, nos termos do artigo 4.º, n.º 1, alínea a), do CIEC, são os “depositários autorizados” e os “destinatários registados”. Falta à CSR, portanto, a estrutura comutativa ou de bilateralidade difusa que subjaz às contribuições financeiras e que as distingue dos impostos.

 

34. Esta conclusão é corroborada pelo Despacho Vapo Atlantic, processo C-460/21, o qual, em razão dos princípios da interpretação conforme e do primado do Direito da União Europeia, se projeta como elemento determinante na qualificação do tributo. Efetivamente, segundo a jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, a qualificação de uma tributação, um imposto, uma taxa ou um direito, à luz do Direito da União Europeia, compete ao Tribunal de Justiça, em função das caraterísticas objetivas de imposição, independentemente da qualificação que lhe é dada pelo direito nacional (cf. acórdãos Istituto di Ricovero e Cura a Carattere Scientifico (IRCCS) — Fondazione Santa Lucia, processo C-189/15, §29; e Test Claimants in the FII Group Litigation, processo C-446/04, §107, entre outros).

 

35. É certo que, no processo arbitral que motivou o pedido de reenvio prejudicial ao Tribunal de Justiça (Processo n.º 564/2020-T), o Tribunal qualificou a CSR como um imposto, formulando as questões prejudiciais com base nesse pressuposto. Entende o Tribunal arbitral, todavia, que na decisão em que culminou esse pedido de reenvio – o Despacho Vapo Atlantic, processo C-460/21 – o Tribunal de Justiça não colocou em causa essa qualificação, precisamente por considerar que, pela sua estrutura e regime jurídico, a CSR preenchia as caraterísticas de uma imposição indireta, concretamente, de um imposto indireto sobre os produtos petrolíferos. Por outras palavras, foi o legislador português que, não obstante apelidar o tributo “contribuição”, definiu a respetiva incidência subjetiva, objetiva, liquidação e cobrança em termos análogos às do ISP. Em condições que levaram o Tribunal de Justiça a assumir que a CSR teria uma finalidade exclusivamente orçamental para efeitos do artigo 1.º, n.º 2 da Diretiva 2008/118/CE, e que poderia entravar as trocas comerciais pondo em causa o efeito útil da harmonização levada a cabo pela Diretiva no domínio do imposto sobre produtos petrolíferos (Despacho Vapo Atlantic, §26).

 

36. Não constituindo a qualificação da CSR uma questão puramente interna, há que concluir que a CSR é um imposto indireto para efeitos da Diretiva 2008/118/CE e, consequentemente, também para efeitos da legislação portuguesa que se enquadre no âmbito de aplicação da Diretiva, como é o caso da Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto. Ou seja, se o Tribunal de Justiça tratou a CSR como um desdobramento do ISP, não pode o intérprete e aplicador português deixar de fazer o mesmo, procurando uma interpretação e aplicação uniformes do Direito da União.

 

37. Termos que se julga improcedente a exceção dilatória de incompetência do Tribunal Arbitral em razão da matéria.

 

38. A AT alega, ainda, que as Requerentes vêm, através do PPA, arguir a inconstitucionalidade do regime jurídico da CSR. Contudo, “a fiscalização da constitucionalidade de normas não está incluída nas competências do tribunal arbitral previstas no artigo 2.º do RJAT”, afigurando-se inconstitucional uma interpretação que determine que o artigo 2.º do RJAT inclui a apreciação de tal pedido, “quando a letra e o espírito da norma não o permitem”. Já as Requerentes contra-argumentam dizendo que o objeto da presente ação arbitral não é a impugnação da Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto (nem a sua declaração de ilegalidade ou de inconstitucionalidade), mas sim a decisão (de indeferimento tácito) do pedido de revisão oficiosa (ponto 10.º da pronúncia sobre exceções) e os atos de liquidação de CSR que o motivaram.

 

Decidindo,

 

39. A exceção dilatória invocada pela AT não procede.

 

40. As Requerentes não pedem a declaração de ilegalidade do regime jurídico onde está consagrada a CSR (Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto). Pedem, na verdade, a anulação do ato de indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa e, bem assim, a anulação dos atos de liquidação de CSR e dos atos de repercussão do tributo sobre a sua esfera jurídica. Fazem assentar, porém, a anulação das liquidações num vício de ilegalidade abstrata, por oposição à ilegalidade concreta, porquanto o que está em causa é a ilegalidade do tributo (por desconformidade do ato legislativo que o criou com a CRP ou por incompatibilidade com o DUE), e não a ilegalidade do ato que faz aplicação da lei ao caso concreto (cf. acórdão do STA de 20-03-2019, processo n.º 0558/15.0BEMDL 0176/18).

 

41. O controlo incidental ou concreto da constitucionalidade das normas assenta, precisamente, na destrinça entre questão principal e questão de constitucionalidade. Como se lê no artigo 204.º da CRP, pedra angular do modelo de fiscalização concreta português, “nos feitos submetidos a julgamento não podem os tribunais aplicar normas contrárias à Constituição”.

 

42. In casu, mesmo que a inconstitucionalidade ou a incompatibilidade com o DUE seja o catalisador da impugnação, o feito submetido a julgamento não é a inconstitucionalidade da Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto, nem tão-pouco a sua incompatibilidade com o Direito da União, mas a ilegalidade dos atos de liquidação de CSR (artigo 99.º do CPPT).

 

43. A idiossincrasia do modelo português de fiscalização concreta é a de que todos os juízes, em todos os tribunais, têm não só o poder-dever de verificar a conformidade constitucional das normas legais aplicáveis (poder-dever de exame), mas também de recusar a sua aplicação caso concluam pela sua inconstitucionalidade (poder-dever de rejeição). Não podendo, então, o juiz, nos termos do artigo 204.º CRP da Constituição, aplicar normas inconstitucionais, ele fica obrigado a decidir, seja a pedido das partes seja oficiosamente, a referida questão de constitucionalidade, isto é, tem de decidir previamente se a norma em causa é ou não inconstitucional. “E, como o Tribunal Constitucional tem também vindo a afirmar, os Tribunais Arbitrais (necessários ou voluntários) são também tribunais, dispondo do poder-dever de verificar a conformidade constitucional de normas aplicáveis no decurso de um processo arbitral e de recusar a aplicação das que considerem inconstitucionais” (cfr. acórdão do CAAD de 13-11-2023, processo n.º 410/2023-T).

 

44. Aliás, num modelo como o português, que não conhece a figura da ação direta de constitucionalidade, entendida como o direito dos cidadãos de pedirem ao Tribunal Constitucional a declaração de inconstitucionalidade de normas, a possibilidade de os particulares, nos feitos submetidos a julgamento, suscitarem a questão de constitucionalidade é imprescindível para assegurar o direito fundamental de acesso à justiça constitucional e a uma tutela jurisdicional efetiva em matéria constitucional. Por essa razão, não poderia o RJAT – agora sim, sob pena de inconstitucionalidade – deixar de consagrar a figura do recurso de constitucionalidade quando, na decisão arbitral, se recuse a aplicação de qualquer norma com fundamento em inconstitucionalidade ou se aplique norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada no processo (artigo 24.º, n.º 1 do RJAT).

 

45. Idêntico raciocínio é aplicável, mutatis mutandis, à incompatibilidade com o Direito da União. Também aqui, por força do princípio do efeito direto, conjugado com o princípio do primado, estão todos os tribunais nacionais, nos feitos submetidos a julgamento, sob o dever de desaplicar as normas de direito interno incompatíveis com o Direito da União. Não podendo um tal dever ficar na dependência de regras internas que atribuam aos tribunais superiores competência exclusiva para afastar a aplicação dessas normas. Foi esse o dito do Tribunal de Justiça no acórdão Simmenthal, processo C-106/77: “[Q]ualquer juiz nacional tem o dever de, no âmbito das suas competências, aplicar integralmente o direito comunitário e proteger os direitos que este confere aos particulares, considerando inaplicável qualquer disposição eventualmente contrária ao direito interno, quer seja esta anterior ou posterior à norma comunitária” (§21).

 

46. Acrescenta a AT, nos pontos 74.º a 79.º da Resposta, que os atos de repercussão não integram o âmbito material de competência dos tribunais arbitrais tributários, tal como definido no artigo 2.º, n.º 1 do RJAT. Pelo que ainda que o Tribunal arbitral devesse considerar-se competente para a apreciação da validade dos atos de liquidação de CSR, nunca poderia debruçar-se sobre a validade de atos de repercussão, que não são atos tributários, nem correspondem, in casu, a uma situação de repercussão legal.

 

47. Também aqui não assiste razão à Requerida. O pedido de pronúncia arbitral não tem por objeto a anulação de atos de repercussão per se, mas antes a anulação dos atos de liquidação de CSR posteriormente repercutida sobre os adquirentes de combustível. Neste sentido, caso a anulação das liquidações venha a ser julgada procedente, impõe-se à AT, nos termos do artigo 100.º da LGT, “a reposição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade” e, nessa medida, também a eliminação dos atos de repercussão, sem a qual não haverá reposição da situação atual hipotética.

 

48. Termos em que julga improcedente a exceção dilatória de incompetência do tribunal arbitral em razão da matéria.

 

  1. Questão da ilegitimidade das Requerentes

 

49. A AT pugna, nos pontos 80.º a 151.º da sua defesa por exceção, pela ilegitimidade processual ativa das Requerentes, o que, nos termos dos artigos 576.º, n.º 1 e 2 e 577.º, a) CPC, aplicáveis ex vi do artigo 29.º, n.º 1, e) RJAT, consubstancia uma exceção dilatória. Exceção que, se verificada, implica a absolvição da Requerida da instância.

 

50. Segundo a AT, atento o regime especial previsto nos artigos 15.º e 16.º do CIEC, só o sujeito passivo que declarou os produtos para consumo e a quem foi liquidado o imposto tem legitimidade para requerer a revisão oficiosa e, consequentemente, para apresentar o pedido de pronúncia arbitral. Ora, o sujeito passivo da CSR é o sujeito passivo do ISP, aplicando-se as mesmas regras em termos de liquidação e cobrança (artigo 5.º da Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto). Portanto, os múltiplos adquirentes dos produtos não têm legitimidade para efeitos de solicitação da revisão do ato tributário e consequente pedido de reembolso do imposto porque não integram a relação jurídica tributária relativa à liquidação originada pela DIC.

 

51. Por outro lado, a AT alega que as Requerentes carecem de legitimidade à luz do disposto no artigo 18.º, n.º 4, a) da LGT, porquanto no caso concreto não estará em causa uma situação de repercussão legal, mas de mera repercussão económica ou de facto. A repercussão económica depende da decisão dos sujeitos passivos de, no âmbito das suas relações comerciais, regidas pelo direito civil, procederem, ou não, à transferência parcial ou total da carga fiscal para os seus clientes (ponto 118.º da Resposta). As Requerentes não só não conseguem demonstrar que o valor pago pelos combustíveis que adquiriram às suas fornecedoras inclui o montante pago a título de CSR pelo sujeito passivo que introduziu o combustível no mercado, como não conseguem demonstrar que não o repassaram no preço dos serviços prestados aos seus clientes ou consumidores finais (ponto 133.º da Resposta).

 

52. O documento n.º 05 contém uma indicação genérica, da parte da F..., S.A., a informar o consumidor de que no valor do ISP está incluída a CSR. Contudo, não permite demonstrar que efetivamente houve repercussão e em que termos. E sem a possibilidade de identificar os atos de liquidação subjacentes às transações posteriores a Requerida poderia, no limite, ser sucessivamente condenada a pagar os mesmos montantes de CSR a todo e qualquer operador económico interveniente na cadeia comercial (ponto 149.º da Resposta).

 

53. As Requerentes reputam de incoerente a posição assumida pela AT, uma vez que esta, nas ações de impugnação intentadas pelos sujeitos passivos de CSR, sustenta que a legitimidade processual pertence aos adquirentes de combustível que suportaram o imposto através de repercussão legal, ao passo que nas ações intentadas pelos adquirentes de combustível, afirma que a legitimidade processual pertence, afinal, aos sujeitos passivos do tributo. Posição que consideram “reprovável”, à luz do princípio da boa-fé e da proteção da confiança (pontos 19.º e 20.º da pronúncia sobre exceções).

 

54. Invocam, de igual modo, que são parte legítima do procedimento e processo tributários, seja nos termos do artigo 9.º, n.º 1 do CPPT, uma vez que, tendo suportado o encargo do tributo, são titulares de um interesse legalmente protegido na obtenção da anulação das liquidações de CSR, seja nos termos do artigo 18.º, n.º 4, a) da LGT. Entendem que o legislador pretendeu onerar, única e exclusivamente, o consumidor de combustível (enquanto putativo utilizador da rede rodoviária nacional) e não quem está a montante (os fornecedores de combustível) ou a jusante desta transação, designadamente os adquirentes dos bens e serviços dos consumidores de combustível. Asserção, aliás, atestada pela entrada em vigor do artigo 2.º do CIEC, na redação dada pela Lei n.º 24-E/2022, de 30 de dezembro, que corresponde ao “reconhecimento pelo legislador tributário de que a repercussão sempre foi obrigatória (i.e decorrente da lei) nos impostos especiais sobre o consumo, nos quais se inseria (ainda que ilegalmente) a CSR” (ponto 45.º da pronúncia sobre exceções).

 

55. O direito português – avançam as Requerentes – não prevê a possibilidade de o repercutido (consumidor final) obter junto do sujeito passivo do imposto a sua devolução, não se mostrando uma ação cível de repetição do indevido adequada e efetiva para o exercício de tal direito. Assim, qualquer interpretação das disposições conjugadas dos artigos 18.º, n.º 3 e 78.º da LGT e do artigo 9.º do CPPT que conclua no sentido da ilegitimidade das Requerentes constitui uma violação do princípio da efetividade, no quadro do DUE, uma vez que será impossível ou excessivamente difícil obter o reembolso do tributo indevidamente suportado diretamente junto do fornecedor de combustível (pontos 59.º e 60.º da pronúncia sobre exceções). Subsistindo dúvidas quanto a uma eventual violação do princípio da efetividade, deverá o Tribunal arbitral efetuar um reenvio prejudicial, ao abrigo do artigo 267.º do TFUE (ponto 63.º da pronúncia sobre exceções).

 

Ademais, “sempre serão inconstitucionais as normas extraídas dos artigos 18.º, n.º 4, e 9.º da Lei Geral Tributária e 9.º do CPPT, se interpretadas no sentido de não terem os repercutidos legitimidade processual para demandar diretamente a Autoridade Tributária e Aduaneira com vista ao reembolso dos tributos por si efetivamente suportados, por violação do princípio da tutela jurisdicional efetiva e, bem assim, do princípio da efetividade, consagrados nos artigos 20.º e 268.º, n.º 4, da CRP” (ponto 62.º da pronúncia sobre exceções).

 

Decidindo,

 

56. A legitimidade é a qualidade de ser parte ativa ou passiva num procedimento ou processo tributários. Trata-se de um requisito cuja verificação condiciona a apreciação da questão de fundo e não de uma condição de procedência do pedido. Razão pela qual, nesta fase, se atende à configuração da relação jurídica tal como alegada pelo autor, sem cuidar de saber se o direito invocado efetivamente existe na sua esfera jurídica [Jorge Lopes de Sousa, CPPT anotado e comentado, vol. I, 2006, p. 120 (anotação ao art. 9.º)].

 

57. A lei tributária parte de um conceito amplo de legitimidade, que não coincide plenamente com a qualidade de sujeito ativo ou passivo na relação jurídica tributária, abrangendo a AT, os contribuintes, os substitutos, os responsáveis, outros obrigados tributários e “quaisquer outras pessoas que provem interesse legalmente protegido” (artigo 9.º, n.º 1 do CPPT). Neste sentido, estão abrangidos tantos quantos possam dizer-se afetados pelo que venha a ser decidido no procedimento ou processo tributários, ou seja, que tenham nele um interesse económico a defender (Rui Duarte Morais, Manual de procedimento e processo tributário, Almedina, 2012, p. 58). Por outro lado, o artigo 18.º, n.º 4, a) da LGT, embora privando quem suporte o imposto por repercussão legal da qualidade de sujeito passivo da relação jurídica tributária, estende ao repercutido legal as garantias dos contribuintes, concretamente o direito de reclamação, impugnação ou de pedido de pronúncia arbitral.

 

58. Entende o Tribunal arbitral que, seja pela via do artigo 9.º, n.º 1 do CPPT, seja pela via do artigo 18.º, n.º 1, a) da LGT, as Requerentes têm legitimidade processual para apresentar a presente ação. É certo que o CIEC não continha, até à entrada em vigor da Lei n.º 24-E/2022, 30 de dezembro, uma norma semelhante à do artigo 37.º do CIVA, ou seja, uma norma que previsse expressamente o dever de incluir no preço a pagar pelo adquirente dos bens a importância de imposto liquidada pela AT. Todavia, entende o Tribunal arbitral que a referência à “repercussão legal” inscrita no artigo 18.º, n.º 4, a) da LGT terá de abranger todos aqueles casos em que a lei, direta ou indiretamente, faz assentar o regime jurídico do tributo num princípio de repercussão legal do imposto, ou seja, em que a lei pretende que a ablação patrimonial do imposto seja suportada, não pelo sujeito passivo, mas pelo titular da manifestação de capacidade contributiva que lhe dá causa.

 

59. É o que sucede com a CSR, que, como dispõe o artigo 3.º, n.º 1 da Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto, constitui “a contrapartida pela utilização da rede rodoviária nacional, tal como esta é verificada pelo consumo de combustíveis”. A manifestação de capacidade contributiva que dá causa à CSR – e que o legislador entendeu tributar – não é a introdução dos combustíveis no mercado, mas o próprio consumo de combustíveis por parte dos utilizadores da rede rodoviária nacional.

 

60. A nova redação do artigo 2.º do CIEC, introduzida pelo artigo 6.º da Lei n.º 24-E/2022, 30 de dezembro, limita-se a reconhecer abertamente aquilo que já resultava do regime jurídico dos IEC na versão anterior, ou seja, que o ISP e a (entretanto extinta) CSR assentam num princípio da repercussão legal.[3]

 

61. O alcance subjetivo do artigo 18.º, n.º 4, a) da LGT encontra igualmente reconhecimento na doutrina jus tributária. Neste sentido, Jorge Lopes de Sousa escreveu, ainda antes da alteração legislativa de que resultou a atual redação do artigo 2.º do CIEC:

 

Nos casos de repercussão legal do imposto, apesar de aquele que suporta o encargo do imposto não ser sujeito passivo, é-lhe assegurado o do direito de reclamação, recurso e impugnação [art. 18º, nº 4, da LGT]. São casos de repercussão legal os do IVA e dos impostos especiais de consumo, pois, em face dos respetivos regimes legais, a lei exige o pagamentos dos tributos aos intervenientes no processo de comercialização dos bens ou serviços, visando fazer com que eles venham a ser pagos pelos consumidores finais, que são os titulares da capacidade contributiva que se pretende Tributar” [Jorge Lopes de Sousa, CPPT anotado e comentado, vol. I, 2006, p. 106 (anotação ao art. 9.º)].

 

62. Também Sérgio Vasques pugna pela indistinção, para efeitos da aplicação do n.º 2 do artigo 54.º da LGT (“As garantias dos contribuintes previstas no presente capítulo aplicam-se também à autoliquidação, retenção na fonte ou repercussão legal a terceiros da dívida tributária, na parte não incompatível com a natureza destas figuras”), entre a repercussão prevista para o IVA e a repercussão que vale para os impostos especiais sobre o consumo:

 

“O artigo 54.º, n.º 2 da LGT acrescenta ainda que as garantias dos contribuintes se aplicam também à autoliquidação, retenção na fonte ou repercussão legal a terceiros da dívida tributária, “na parte não incompatível com a natureza destas figuras”. A. Lima Guerreiro (2001), 254, observa a propósito que as normas de procedimento da LGT se aplicam à repercussão obrigatória que podemos dizer existir no contexto do IVA em virtude da obrigação geral da menção em factura, e a uma repercussão facultativa, que mais frequentemente encontramos na área dos impostos especiais sobre o consumo, taxas e contribuições. E, bem vistas as coisas, faltam razões para distinguir entre uma e outra modalidade de repercussão, quando está em jogo facultar defender o repercutido contra a exigência de tributo superior ao devido (...)” [Sérgio Vasques, Manual de Direito Fiscal, Almedina, 2021, p. 402, nota n.º 35].

 

63. Independentemente da leitura que se faça do artigo 18.º, n.º 4, a) da LGT, a legitimidade processual das Requerentes resulta, também, do artigo 9.º, n.ºs 1 e 4 do CPPT e do conceito amplo de legitimidade que aí se sufraga (Bruno Botelho Antunes, “Impugnação judicial em retenções na fonte – uma nova perspetiva sobre o interesse processual”, Fiscalidade, n.º 37, 2009, pp. 101-112). Ou seja, mesmo que se entenda que o regime jurídico da CSR não assenta num princípio de repercussão legal, há que reconhecer que o adquirente de combustíveis alega a titularidade de um interesse legalmente protegido para efeitos do artigo 9.º, n.º 1 do CPPT, podendo intervir no processo tributário nessa qualidade (cfr., neste sentido, o acórdão do CAAD de 13-11-2023, processo n.º 410/2023-T, a decisão do CAAD de 08-11-2023, Processo n.º 294/2023-T). Isto independentemente da repercussão se achar provada nos autos, já que a questão da prova da repercussão será apreciada posteriormente, na matéria de facto.

 

64. Mostra-se, por estes motivos, improcedente a exceção dilatória relativa à ilegitimidade processual das Requerentes.

 

 

  1. Questão da ineptidão da petição inicial

 

65. A Requerida alega a ineptidão da petição inicial, com a consequente nulidade de todo o processo, ao abrigo dos artigos 186.º, n.º 1, 576.º, n.ºs 1 e 2 e 577.º, al. b) do CPC, aplicáveis ex vi do artigo 29.º, n.º 1, al. e) do RJAT (pontos 152.º a 189.º da Resposta).

 

66. Acrescenta que o PPA não cumpre os pressupostos vertidos no artigo 10.º, n.º 2 do RJAT porquanto não identifica o ato ou atos tributários objeto do pedido de pronúncia arbitral, nem as declarações de introdução no consumo que deram origem às liquidações de CSR por parte da AT. E, acrescenta, a AT não tem forma de suprir esta omissão, atenta a impossibilidade de estabelecer qualquer correspondência entre os atos de liquidação de CSR junto do fornecedor de combustível e as faturas de aquisição de combustível apresentadas pelas Requerentes. Isto acontece porque os sujeitos passivos declaram a introdução de combustível no mercado em múltiplas alfândegas, submetendo as exigidas DIC, combustível esse destinado a múltiplos clientes e depois revendido a outros tantos. Portanto, as transações de combustível em que a CSR terá sido alegadamente repercutida não têm por base um ato de liquidação específico (ponto 173.º da Resposta).

 

67. A Requerida alega, ademais, que não é possível fazer qualquer correspondência entre as quantidades de produtos introduzidas no consumo e as quantidades de produto adquiridas pelas Requerentes à sua fornecedora, por a liquidação de CSR ter como referência uma base tributável (artigo 91.º, n.º 1 do CIEC) que não é mantida nas vendas subsequentes (ponto 168.º da Resposta). Destarte, o valor efetivamente recebido pela AT seria sempre, em caso de procedência do pedido, inferior ao montante que as Requerentes pretendem que lhes seja devolvido.

 

68. As Requerentes, na resposta às exceções arguidas pela Requerida, argumentam que os atos de repercussão estão identificados nos autos e que, quanto aos atos de liquidação da CSR, carrearam para o processo todos os elementos de que dispunham (e poderiam dispor), cumprindo, por isso, o disposto no artigo 10.º, n.º 2, b) do RJAT. Juntaram, concretamente, as faturas que atestam a aquisição de combustível e os comprovativos de pagamento. Em situações como a presente, em que as Requerentes suportam o tributo por intermédio de repercussão legal, e não têm na sua posse os atos de liquidação, cabe à AT, através dos meios ao seu dispor e dos poderes de indagação, mormente à luz do Regime Complementar do Procedimento de Inspeção Tributária, averiguar a correlação entre os atos de repercussão legal e os atos de liquidação de CSR que os antecedem, solicitando, se necessário, a coadjuvação do sujeito passivo (ponto 75.º da pronúncia sobre as exceções).

 

Portanto, “será inconstitucional, por violação do princípio da tutela jurisdicional efetiva, decorrente do artigo 268.º, n.º 4, da CRP, a interpretação normativa da norma extraída do artigo 108.º, n.º 1, do CPPT, que permita à Administração Tributária ou aos Tribunais judiciais ou arbitrais, sem encetar as diligências necessárias e adequadas, ainda que junto de terceiros, com vista à identificação do ato tributário de liquidação de CSR objeto de reclamação graciosa, revisão oficiosa ou impugnação judicial ou arbitral, abster-se de conhecer do pedido de declaração de ilegalidade formulado nesses procedimentos pelo repercutido, por falta de identificação do ato impugnado”.

 

Decidindo, 

 

69. O RJAT não contém regime próprio em matéria de exceções e nulidades processuais, aplicando-se, nesta matéria, a título subsidiário, o disposto no CPPT, no CPTA e no CPC, como decorre do previsto no artigo 29.º, n.º 1, a), c) e e) do RJAT (respetivamente).

 

70. A ineptidão da petição inicial é uma exceção dilatória cuja verificação conduz à abstenção de conhecimento do mérito da causa e à absolvição do réu da instância (artigo 278.º, n.º 1, al. b) do CPC). Trata-se de uma exceção de conhecimento oficioso, conforme preceituado no artigo 196.º do CPC e também no artigo 89.º, n.ºs 2 e 4, al. b), do CPTA e no artigo 98.º, n.º 1, al. a) e n.º 2 do CPPT.

 

71. Do artigo 186.º, n.º 1 do CPC consta uma lista fechada de situações geradoras de ineptidão da petição inicial: a) Quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir; b) Quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir; c) Quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis. De acordo com o n.º 3 do mesmo dispositivo, ainda que os factos essenciais alegados sejam insuficientes, se a ré contestar, decorrendo da contestação que interpretou convenientemente a petição inicial e os pedidos, impugnando expressamente o que foi alegado pelo Autor e, em consequência, requerendo a sua absolvição daqueles, não procede a arguição de ineptidão da petição inicial que eventualmente seja arguida.

 

72. Ora, a exceção relacionada com a ineptidão da petição inicial não procede, porquanto não se verifica nenhuma das situações elencadas no artigo 186.º do CPC. 

 

73. Quanto à questão da identificação dos atos de liquidação impugnados, a que alude a al. b) do n.º 2 do artigo 10.º do RJAT, importa referir que, não sendo as Requerentes sujeitos passivos do imposto, nem os diretos responsáveis pela sua liquidação, mas apenas as entidades que alegadamente suportam o encargo por efeito da repercussão, não lhes compete o ónus de identificação e de comprovação dos atos de liquidação repercutidos. Era sobre a Autoridade Tributária que impendia o ónus de realizar, no âmbito do procedimento de revisão oficiosa, as diligências que permitiriam verificar a existência dos atos de liquidação do imposto, ao abrigo do princípio do inquisitório e do dever de colaboração com os contribuintes (cfr. acórdão do CAAD de 14-05-2024 relativo ao Processo n.º 790/2023-T, §15-16).

A eventual dificuldade que a AT possa ter na identificação das liquidações a que ela própria procedeu junto dos fornecedores de combustíveis é um problema de organização dos seus serviços, que não pode ser imputado nem trazer desvantagem às Requerentes (cfr. acórdão do CAAD de 13-11-2023 relativo ao Processo n.º 410/2023-T).

As Requerentes fizeram tudo quanto poderiam ter feito, juntando os documentos que tinham à sua disposição. Exigir às Requerentes a identificação dos atos de liquidação numa situação com este recorte, em que o adquirente de combustível não tem meios para proceder a essa identificação nem ela se assume como imprescindível para a apurar da legalidade da liquidação de CSR que as faturas coonestam, constituiria uma interpretação dos normativos sob apreciação em desalinho com o direito a uma tutela jurisdicional efetiva, consagrado nos artigos 20.º, n.º 1 e 268.º, n.º 4 da CRP (cf. acórdão do CAAD de 13-11-2023 relativo ao Processo n.º 410/2023-T).

 

74. Nestes termos, entende o Tribunal Arbitral que improcede a alegada exceção de ineptidão da petição inicial.

 

  1. Questão da caducidade do direito de ação

 

75. A AT invoca, seguidamente, vários argumentos relacionados com a tempestividade do pedido de revisão oficiosa, cuja anulação se peticiona, e consequentemente com a tempestividade do pedido arbitral (pontos 190.º a 213.º da Resposta).

 

76. Argumenta, em primeiro lugar, que não logrando as Requerentes a identificação dos atos de liquidação impugnados, não é possível apurar da tempestividade do pedido de revisão oficiosa recebido em 03-10-2023 e, consequentemente, a tempestividade do PPA ora apreciado (ponto 193.º da Resposta).

 

77. Depois, ainda que superado este obstáculo, é entendimento da AT que o pedido de revisão é intempestivo, não sendo aplicável o prazo de quatro anos previsto no artigo 78.º, n.º 1 da LGT, uma vez que inexiste “erro imputável aos serviços”. Ao proceder às liquidações de CSR impugnadas, a AT manteve-se fiel ao princípio da legalidade da administração, estando-lhe vedado atuar de forma diversa (ponto 198.º da Resposta). Tão-pouco estão verificados os pressupostos de que depende a revisão oficiosa em caso de injustiça grave e notória (artigo 78.º, n.º 4 LGT), uma vez que não foi cobrado qualquer imposto superior ao previsto na lei (ponto 204.º da Resposta).

 

78. Alega, finalmente, que o artigo 15.º do CIEC, onde estão previstas regras gerais de reembolso em caso de erro na liquidação, expedição ou exportação dos produtos sujeitos a imposto, é lex specialis relativamente ao artigo 78.º da LGT. De acordo com aquele normativo, só os sujeitos passivos que tenham procedido à introdução do consumo dos produtos em território nacional têm, no prazo de três anos a contar da liquidação do imposto, legitimidade para apresentar o pedido de reembolso (artigo 15.º, n.ºs 2 e 3 do CIEC). Prazo que, em 03-10-2023, data da receção do pedido de revisão oficiosa, já estaria terminado, pelo menos no que respeita à impugnação de liquidações anteriores a 03-10-2020 (ponto 209.º da Resposta).

 

79. Assim, sendo a caducidade do direito de ação uma exceção dilatória nos termos do artigo 89.º, n.ºs 1, 2 e 4, k) do CPTA, deve nessa medida, a Requerida ser absolvida do pedido ou da instância (ponto 213.º da Resposta).

 

80. As Requerentes argumentam que, mesmo admitindo (por cautela) que a CSR é uma contribuição financeira, e não um imposto, a revisão oficiosa é um meio procedimental idóneo para reagir contra a ilegalidade de liquidação de qualquer tributo, inclusivamente da CSR. O prazo de revisão oficiosa deve contar-se, nestes casos, por referência à data da tomada de conhecimento da liquidação do tributo (pontos 86.º a 96.º da pronúncia sobre exceções). O prazo aplicável é o prazo de 4 anos a contar da data da liquidação, constante do n.º 1 do artigo 78.º da LGT, uma vez que a AT, ao liquidar a CSR, incorreu em “erro imputável aos serviços”, em especial num erro de direito, aplicando normas contrárias ao Direito da União.

 

Decidindo,

 

81. É entendimento do Tribunal Arbitral que também esta exceção deve ser julgada improcedente.

 

82. O artigo 15.º do CIEC contém um conjunto de disposições comuns às várias modalidades de reembolso previstas no Código, seja o reembolso por erro (artigo 16.º), o reembolso na expedição (artigo 17.º), o reembolso na exportação (artigo 18.º), reembolso na retirada do mercado (artigo 19.º) e outros casos de reembolso (artigo 20.º), nos seguintes termos:

 

Artigo 15.º

Regras gerais do reembolso

1 - Constituem fundamento para o reembolso do imposto pago, desde que devidamente comprovados, o erro na liquidação, a expedição ou exportação dos produtos sujeitos a imposto, bem como a retirada dos mesmos do mercado, nos termos e nas condições previstas no presente Código.

2 - Podem solicitar o reembolso os sujeitos passivos referidos no n.º 1 e na alínea a) do n.º 2 do artigo 4.º que tenham procedido à introdução no consumo dos produtos em território nacional e provem o pagamento do respectivo imposto.

3 - O pedido de reembolso deve ser apresentado na estância aduaneira competente no prazo de três anos a contar da data da liquidação do imposto, sem prejuízo do disposto na alínea a) do artigo 17.º e na alínea a) do artigo 18.º.

4 - O reembolso só pode ser efectuado desde que o montante a reembolsar seja igual ou superior a (euro) 25.

 

83. Ora, como se lê no acórdão do CAAD de 14-05-2024, referente ao Processo n.º 790/2023-T, o regime especial previsto nos artigos 15.º e seguintes do CIEC vale para o reembolso com fundamento em erro na liquidação ou em caso de expedição ou exportação. Ora, no presente processo o que está em causa não é um pedido de reembolso tout court, mas uma declaração de ilegalidade de atos de liquidação de um imposto, à qual se pode seguir, verificados os demais pressupostos, a condenação da AT na restituição do imposto indevidamente pago.

 

84. Resulta, por outro lado, do n.º 1 do artigo 78.º da LGT que a revisão do ato tributário prevista naquele dispositivo constitui um meio de correção de erros na liquidação de tributos levado a cabo pela própria administração tributária (a revisão é da competência de quem praticou o ato tributário), e que pode partir da iniciativa do sujeito passivo, no prazo da reclamação administrativa (reclamação graciosa) e com fundamento em qualquer ilegalidade, ou da iniciativa da administração, no prazo de 4 anos após a liquidação ou a todo o tempo se o tributo ainda não tiver sido pago, com fundamento em erro imputável aos serviços.

 

85. É entendimento pacífico da jurisprudência do STA que, para efeitos do n.º 1 do artigo 78.º da LGT e em face da teleologia que subjaz ao instituto da revisão, este não abrange apenas os pedidos de revisão oficiosa da iniciativa da administração tributária, mas também a revisão do ato de liquidação requerida pelo sujeito passivo e como tal abrangida pelo prazo alargado de 4 anos. A revisão é, portanto, um afloramento do dever de revogação de atos tributários ilegais, que encontra arrimo nos princípios da legalidade, da justiça, da igualdade e da imparcialidade, que são princípios fundamentais da atividade administrativa (cf. artigo 266.º, n.º 2 CRP e artigo 55.º da LGT). E «face a tais princípios, não se vê como possa a Administração demitir-se legalmente de tomar a iniciativa de revisão do acto quando demandada para o fazer através de pedido dos interessados já que tem o dever legal de decidir os pedidos destes» (acórdão do STA, 11-05-2005, processo n.º 0319/05).

 

86. Neste sentido, a revisão do ato tributário prevista no n.º 1 do artigo 78.º da LGT é um modo de reação complementar aos meios administrativos e contenciosos gerais e especiais (cf. decisão arbitral do CAAD de 24.06.2021, processo n.º 500/2020-T). Como se lê no acórdão do STA de 08-06-2022, processo n.º 0174/19.7BEPDL, “[e]m função do respetivo, integral, conteúdo normativo, o art. 78.º da LGT consubstancia, no âmbito da proteção dum Estado de Direito, um depósito de garantias, acrescidas, de defesa e reposição da legalidade, concedidas aos sujeitos de relações jurídico-tributárias”.

 

87. Assim, ainda que versassem sobre a mesma matéria, os mecanismos de reembolso previstos nos artigos 15.º e ss. do CIEC não afastam a aplicação do artigo 78.º da LGT ao caso sub judice. O procedimento de revisão oficiosa assume-se, tanto pela sua localização sistemática (na LGT), como pelo substrato teleológico que lhe preside, como uma garantia dos contribuintes que acresce às previstas no CIEC ou noutra legislação especial.

 

88. Esta modalidade de revisão do ato tributário só é possível nas situações em que haja “erro imputável aos serviços”, aqui compreendido não só o lapso, o erro material ou o erro de facto, como, também, o erro de direito, do qual tenha resultado, para o contribuinte, uma liquidação de imposto superior ao devido. Essa imputabilidade aos serviços é independente da demonstração da culpa dos funcionários envolvidos na emissão da liquidação afetada pelo erro (cf., entre outras, a decisão arbitral do CAAD de 24-03-2022, processo n.º 615/2021-T, e, entre outros, os acórdãos do STA de 12-02-2001, recurso n.º 26233, de 11-05-2005, recurso n.º 0319/05, de 26-04-2007, recurso n.º 39/07, de 14-03-2012, recurso n.º 01007/11 e de 18-11-2015, recurso n.º 1509/13).

 

89. Como se lê no acórdão do STA de 12-02-2001, recuperado no acórdão do STA de 03-06-2020, «havendo erro de direito na liquidação, por aplicação de normas nacionais que violem o direito comunitário e sendo ela efetuada pelos serviços, é à administração tributária que é imputável esse erro, sempre que a errada aplicação da lei não tenha por base qualquer informação do contribuinte (...)» (cf. acórdão do STA de 03-06-2020, processo n.º 018/10). E não valerá a pena invocar que, ao contrário dos tribunais – que têm, nos termos do artigo 204.º da CRP, “acesso direto” à Constituição – não goza a Administração Tributária do poder-dever de desaplicar normas inconstitucionais e normas contrárias ao direito da União. Com efeito, desde a prolação do acórdão Fratelli Costanzo, pelo Tribunal de Justiça, existe jurisprudência constante no sentido de que o princípio do primado – e o seu corolário prático, o princípio do efeito direto – estende à administração pública o dever de desaplicar as disposições de direito nacional contrárias a uma norma de direito da União que goze de efeito direto (acórdão Fratelli Costanzo, processo 103/88, em particular § 31).

 

90. Assim, alegado o erro imputável aos serviços, o prazo para apresentar o pedido de revisão oficiosa é de 4 anos após a liquidação, e não de 120 dias, como sustenta a AT. Dado que o referido pedido de revisão respeita ao período compreendido entre setembro de 2019 e dezembro de 2022, tendo sido apresentado em 02-10-2023 e recebido a 03-10-2023, deverá ser considerado tempestivo (cf. documento n.º 04 junto com o PPA, bem como o processo administrativo). Não sendo as Requerentes sujeitos passivos de ISP/CSR, nem sendo estas responsáveis pelo pagamento do imposto ao Estado, a contagem do prazo para a apresentação de pedido de revisão oficiosa só pode tomar como referente a data constante das faturas de aquisição de combustível juntas aos autos com o PPA (cf. documento n.º 01, partes 1 e 2, de onde constam faturas de aquisição de combustível à F..., S.A. pelas Requerentes, no período compreendido entre setembro de 2019 e dezembro de 2022).

 

91. Por outro lado, o indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa formou-se a partir de 03-02-2024, ou seja, decorridos os quatro meses em que a AT fica constituída no dever de decidir (artigo 57.º, n.º 1 da LGT). Por conseguinte, o PPA, apresentado em 02-05-2024, é também tempestivo (artigo 10.º, n.º 1, a) do RJAT).

 

92. Pelo que, pelas razões expostas, improcede a exceção relacionada com a caducidade do direito de ação.

 

III – Matéria de facto

 

  1. Factos provados

 

93. Consideram-se provados os seguintes factos:

 

  1. As Requerentes são sociedades comerciais portuguesas que se dedicam ao transporte rodoviário de passageiros e à exploração de transportes de mercadorias.
  2. No período compreendido entre setembro de 2019 e dezembro de 2022, as Requerentes adquiriram à F..., S.A. 4.102.291,46 litros de gasóleo, 29,78 litros de gasolina e 78,59 litros de GPL (cf. as faturas juntas sob o documento n.º 01, partes 1 e 2, e os documentos comprovativos desses pagamentos juntos com o requerimento de 04-10-2024).
  3. A F..., S.A detinha o estatuto de sujeito passivo de ISP/CSR no período a que se reportam as faturas.
  4. Em 02-10-2023, as Requerentes apresentaram, perante a Alfândega de Peniche, um pedido de revisão oficiosa dos atos de liquidação da Contribuição de Serviço Rodoviário, referentes ao período entre setembro de 2019 e dezembro de 2022, invocando que o encargo da CSR foi repercutido na sua esfera jurídica pela sua fornecedora de combustível, a F..., S.A.
  5. O pedido de revisão oficiosa foi recebido em 03-10-2023.
  6. A Autoridade Tributária e Aduaneira não emitiu decisão quanto ao pedido de revisão oficiosa até 02-05-2024, data em que deu entrada o pedido de pronúncia arbitral.

 

 

  1. Factos não provados

 

94. Não se considera provado o valor da CSR repercutido e pago pelas Requerentes. 

 

  1. Fundamentação da decisão da matéria de facto

 

95. No tocante à matéria de facto provada, a convicção do Tribunal Arbitral fundou-se, para além da livre apreciação das posições assumidas pelas Partes, no teor dos documentos juntos aos autos pelas Requerentes e pela Requerida.

 

96. Os factos dos pontos A, B, D, E e F resultam da prova documental junta aos autos, mormente dos documentos n.ºs 01, 02, 03 e 04, juntos com o PPA, e do processo administrativo. O facto do ponto C foi alegado pela Requerida no ponto 13.º da resposta, e não foi contraditado pelas Requerentes.

 

97. A repercussão e pagamento de um imposto não se presume mesmo quando seja legalmente exigida a incorporação do imposto no preço de venda dos bens (repercussão legal), ou mesmo que, habitualmente, no domínio do comércio, o imposto seja parcial ou totalmente repercutido. Neste sentido, para o Tribunal de Justiça, a repercussão tributária – legal ou não – é uma questão de facto, que depende de fatores inerentes a cada transação comercial e será mais ou menos provável consoante as caraterísticas do mercado, mormente a sua elasticidade ou inelasticidade (Despacho Vapo Atlantic, processo C-460/21, §44; Weber’s Wine, processo C-147/01, §96).[4]

 

98. Assim, entende o Tribunal arbitral que, não recaindo presunção sobre a ocorrência de repercussão e pagamento do imposto, os meios de prova são insuficientes para formar uma convicção segura, atentas as especificidades das transações comerciais envolvidas, de que, no presente caso, a entidade que introduziu o combustível no consumo e o alienou às Requerentes terá efetivamente repercutido, integralmente, sobre essas os montantes que lhe foram liquidados a título de CSR. Para tanto não é suficiente o documento extraído do site da F..., S.A. (documento n.º 05 junto com o PPA), porque este, para além de genérico, isto é, não visando as operações comerciais em que foram partes as Requerentes, se reporta a dados em vigor “a partir de 1 de julho de 2022”. Termos em que para efeitos da restituição da CSR indevidamente liquidada e paga, revela-se essencial prova que demonstre que os SP repercutiram a totalidade do imposto às Requerentes e, neste caso, o rigoroso montante do imposto repercutido e pago na qualidade de contribuintes de facto – contribuintes lesados.

 

 

IV – Fundamentação de direito

 

  1. Da ilegalidade das liquidações: a questão da violação do Direito da União

 

99. A questão que vem colocada é a de saber se a Contribuição de Serviço Rodoviário, criada pela Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto, que constitui um imposto incidente sobre os combustíveis rodoviários também sujeitos ao Imposto sobre Produtos Petrolíferos, e que se encontra enquadrada pela Diretiva n.º 2008/118/CE, tem um “motivo específico” na aceção do artigo 1.º, n.º 2, dessa Diretiva.

 

100. A AT defende-se por impugnação contrariando a asserção de que a CSR não tem um “motivo específico” na aceção do 1.º, n.º 2 da Diretiva 2008/118/CE (pontos 276.º a 298.º da Resposta). Invoca que o contrato de concessão da rede rodoviária nacional adstringe a CSR à prossecução de objetivos não orçamentais, mormente de redução da sinistralidade e de sustentabilidade ambiental. Insiste que inexiste qualquer decisão judicial transitada em julgado – do Tribunal de Justiça ou de outro Tribunal – que tenha declarado ou julgado a inconstitucionalidade ou ilegalidade do regime jurídico da CSR. Destarte, estando a AT adstrita ao princípio da legalidade, não existe “erro imputável aos serviços”, seja para efeitos do pedido de revisão oficiosa, seja para efeitos da condenação em juros indemnizatórios. 

 

101. As Requerentes, louvando-se no Despacho do Tribunal de Justiça, Vapo Atlantic, processo C-460/21, e em jurisprudência anterior do mesmo Tribunal, alegam que não preside à CSR qualquer “motivo específico”, distinto do subjacente ao ISP. Solicitam, por conseguinte, ao Tribunal arbitral que, em linha com o princípio do primado do Direito da União, ínsito no artigo 8.º, n.º 4 da CRP, desaplique as normas da Lei n.º 55/2017, de 31 de agosto, e declare a ilegalidade dos atos de liquidação de CSR (pontos 111.º e seguintes do PPA).

 

102. Importa, num primeiro momento, atentar nos efeitos do Despacho Vapo Atlantic. As decisões do Tribunal de Justiça em sede de reenvio prejudicial (artigo 267.º TFUE) têm valor declarativo, definindo o sentido a atribuir a uma norma de DUE (originário ou derivado) desde o momento em que esta entrou em vigor. A interpretação declarada pelo Tribunal de Justiça passa a ser parte integrante da norma de DUE. Como é sabido, o Tribunal de Justiça não é competente para, em sede de reenvio prejudicial, declarar a ilegalidade de atos de direito interno. Essa é uma competência do órgão jurisdicional nacional. Todavia, uma vez que o instituto do reenvio prejudicial procura assegurar o princípio da interpretação e aplicação uniformes do DUE, as interpretações do Tribunal de Justiça vinculam todos os demais órgãos jurisdicionais nacionais chamados a interpretar e aplicar aquela norma.

 

103. Naquele Despacho, foi o Tribunal de Justiça chamado a responder, entre outras, à seguinte questão: “O artigo 1.°, n.º 2, da Diretiva [2008/118], e designadamente a exigência de “motivos específicos”, deve ser interpretado no sentido de que a finalidade de um imposto é meramente orçamental quando a sua criação é feita com o objetivo de financiar empresa pública concessionária da rede nacional de estradas, por ocasião da renovação da sua concessão, e à qual a receita do imposto fica genericamente afetada, e a sua estrutura não atesta a intenção de desmotivar um qualquer consumo?”.

 

104. Entendeu o Tribunal de Justiça que a resposta à questão prejudicial poderia ser claramente deduzida da jurisprudência ou não suscitava qualquer dúvida razoável, pelo que estariam verificados os pressupostos para que pudesse pronunciar-se através de Despacho fundamentado, nos termos do artigo 99.º do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça.

 

105. O que aconteceu, em termos que o Tribunal Arbitral sintetiza da seguinte forma (§§ 20-36):

a)    A Diretiva 2008/118/CE não se opõe a que os Estados-membros estabeleçam outras imposições indiretas para além do imposto especial sobre o consumo mínimo. Mister é que tais imposições, no sentido de não entravar as trocas comerciais, sejam cobradas por “motivos específicos” e sejam conformes com as normas fiscais da União aplicáveis ao imposto especial de consumo e ao imposto sobre o valor acrescentado no que diz respeito à determinação da base tributável, à liquidação, à exigibilidade e ao controlo do imposto (artigo 1.º, n.º 2 da Diretiva).

b)    O facto de um imposto ter uma finalidade orçamental não obsta a que possa ter uma finalidade específica na aceção da Diretiva. Mas a existência de um motivo ou finalidade específicos pressupõe que se possa estabelecer, a partir do regime jurídico do tributo, uma relação direta entre a utilização das receitas e a finalidade da imposição em causa.

c)    A alocação da receita do tributo ao financiamento de atribuições administrativas, em particular a adjudicação da receita da CSR ao financiamento da concessionária da rede rodoviária nacional, constitui um elemento relevante, ainda que insuficiente, para que se logre identificar um motivo específico.

d)    Para que se considere que a imposição indireta prossegue efetivamente uma finalidade específica, mormente de redução da sinistralidade e de sustentabilidade ambiental, é necessário que o produto desse imposto seja obrigatoriamente utilizado para reduzir os custos sociais e ambientais associados à utilização da rede rodoviária nacional. O que não acontece com a CSR, cuja receita se destina, mais amplamente, a assegurar o financiamento da atividade de conceção, projeto, construção, exploração, requalificação e alargamento da rede rodoviária nacional. Acresce que a estrutura da CSR, nomeadamente a matéria coletável ou a taxa de tributação, não espelha, em termos suficientemente precisos, o propósito de reduzir a sinistralidade, dissuadir os sujeitos passivos do tributo de utilizarem a rede rodoviária nacional ou incentivar a adoção de comportamentos menos nocivos para o ambiente.

e)    A CSR tem uma finalidade puramente orçamental, na aceção da Diretiva 2008/118/CE.

 

106. É certo que, em sede de reenvio prejudicial de interpretação, o Tribunal de Justiça se limita a esclarecer o modo como devem ser interpretadas as disposições de Direito da União (originário ou derivado) pertinentes para a resolução do caso concreto, não se debruçando sobre a questão principal do processo, que é reduto de competência do órgão jurisdicional nacional.

 

107. Contudo, no Despacho analisado, o Tribunal de Justiça afirma claramente que as finalidades específicas apontadas pela AT – a redução da sinistralidade e a sustentabilidade ambiental – não se mostram suficientemente respaldadas na estrutura do tributo, em termos de matéria coletável ou da taxa de tributação aplicável. Esta asserção não é infirmada pelo que eventualmente resulte do clausulado do contrato de concessão da rede rodoviária nacional, ao contrário do que sugere a Requerida. O Tribunal de Justiça é muito claro no sentido de que não se prova uma relação direta entre a utilização das receitas e a finalidade da imposição em causa só porque a entidade a quem está legalmente alocada a respetiva receita assumiu compromissos no âmbito da redução da sinistralidade ou da proteção do ambiente. Não tendo sido alegados elementos que permitam chegar a outra conclusão, entende o Tribunal arbitral que a CSR é uma imposição indireta que não prossegue um motivo específico na aceção da Diretiva 2008/118/CE.

 

108. O Tribunal de Justiça tem declarado reiteradamente que os Estados-membros estão, em princípio, obrigados a restituir os impostos cobrados por um Estado-membro em violação do Direito da União. Esta obrigação conhece apenas uma exceção, reiterada no Despacho Vapo Atlantic: um Estado-membro só se pode opor ao reembolso de um imposto indevidamente cobrado à luz do direito da UE quando as autoridades nacionais provarem que o imposto foi suportado na íntegra por pessoa diferente do sujeito passivo e que o reembolso do imposto implicaria um enriquecimento sem causa deste último (Despacho Vapo Atlantic, §39-42; acórdão Weber’s Wine, processo C-147/01, §93-94).

 

109. Como se adiantou supra, a repercussão tributária – legal, ou não – é uma questão de facto, que depende de fatores inerentes a cada transação comercial e será mais ou menos provável consoante as caraterísticas do mercado, mormente a sua elasticidade ou inelasticidade (Despacho Vapo Atlantic, processo C-460/21, §44; Weber’s Wine, processo C-147/01, §96).

 

110 Mesmo quando se prove a ocorrência de repercussão, a restituição do imposto ao sujeito passivo não consubstancia necessariamente um enriquecimento sem causa, porquanto o sujeito passivo pode sofrer prejuízos associados à diminuição das suas vendas, por comparação com produtos sucedâneos não sujeitos a idêntica imposição. A circunstância de a lei prever a repercussão não dispensa a AT ou o particular (consoante os casos) de demonstrar que essa repercussão ocorreu, cabendo a decisão ao órgão jurisdicional nacional decidir, a partir da livre apreciação dos elementos de prova que lhe tenham sido submetidos (Despacho Vapo Atlantic, processo C-460/21, §44).

 

111. Acontece que, no presente caso, e pelas razões expostas supra, o Tribunal arbitral não deu como provada a repercussão da CSR sobre as Requerentes. Na ausência de prova bastante de que tenha havido lugar à repercussão, não têm as Requerentes direito à restituição do imposto, pelo que o pedido arbitral se mostra improcedente.

 

  1. Reembolso do imposto indevidamente pago e juros indemnizatórios

 

112. Face à improcedência do pedido principal, fica necessariamente prejudicado o conhecimento do pedido acessório de reembolso do imposto pago e de pagamento de juros indemnizatórios.

 

  1. Quanto à constitucionalidade do regime jurídico da CSR

 

113. As Requerentes suscitaram a inconstitucionalidade do regime jurídico da CSR, por violação dos princípios da igualdade tributária e da capacidade contributiva (artigo 13.º CRP). A questão de constitucionalidade deve ser relevante para a decisão da questão principal do processo. Ora, a decisão que este tribunal arbitral venha a proferir sobre a constitucionalidade daquele diploma não poderá projetar-se sobre a questão principal do processo, que leva pressuposta a ocorrência de repercussão e a consolidação, na esfera jurídica das Requerentes, do direito ao reembolso do imposto. Em conformidade, não é de conhecer da questão de constitucionalidade.

 

V- Decisão

O Tribunal Arbitral decide:

a)    Julgar improcedentes as exceções dilatórias e perentórias invocadas;

b)    Julgar improcedente o pedido arbitral e manter na ordem jurídica os atos de liquidação impugnados, bem como a decisão de indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa;

c) Julgar prejudicado o conhecimento do pedido acessório de reembolso do imposto pago e de pagamento de juros indemnizatórios.

d) Não conhecer da questão de constitucionalidade alegada pelas Requerentes;

 

 

Valor da causa: € 455 366,01 nos termos do disposto no artigo 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem.

 

Custas: Nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 24.º, n.º 4, do RJAT, e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e Tabela I anexa a esse Regulamento, fixa-se o montante das custas em € 7.344,00, a cargo das Requerentes.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 13 de novembro de 2024

 

Os Árbitros

 

 

 

 

 Jorge Lopes de Sousa

(Presidente do Tribunal arbitral, vencido conforme declaração em anexo)

 

 

 

Vítor  Braz

(Árbitro Adjunto)

 

Marta Vicente

(Árbitro Adjunto e relatora)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Processo n.º 625/2024-T

 

Voto de vencido

 

Votei vencido quanto às questões da incompetência por falta de vinculação da Autoridade Tributária e Aduaneira e da prova da repercussão pelas razões que seguem:

 

  1. Questão da incompetência por falta de vinculação

 

O artigo 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril, que autorizou o Governo a legislar no sentido de instituir a arbitragem como forma alternativa de resolução jurisdicional de conflitos em matéria tributária, fixou como possível âmbito da arbitragem «os actos de liquidação de tributos, incluindo os de autoliquidação, de retenção na fonte e os pagamentos por conta, de fixação da matéria tributável, quando não dêem lugar a liquidação, de indeferimento total ou parcial de reclamações graciosas ou de pedidos de revisão de actos tributários, os actos administrativos que comportem a apreciação da legalidade de actos de liquidação, os actos de fixação de valores patrimoniais e os direitos ou interesses legítimos em matéria tributária».

O Decreto-Lei n.º 10/2011 (RJAT), emitido ao abrigo da autorização legislativa, não estendeu o âmbito da jurisdição arbitral tributária a todo o tipo de litígios permitidos pela autorização legislativa, limitando a competência dos tribunais arbitrais à «declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta», à «declaração de ilegalidade de actos de determinação da matéria tributável, de actos de determinação da matéria colectável e de actos de fixação de valores patrimoniais» e à «apreciação de qualquer questão, de facto ou de direito, relativa ao projecto de decisão de liquidação, sempre que a lei não assegure a faculdade de deduzir a pretensão referida na alínea anterior».

A Lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro, restringiu ainda mais o âmbito da arbitragem tributária, eliminado a possibilidade de recurso à arbitragem para declaração de ilegalidade de actos de fixação da matéria tributável quando dêem origem à liquidação de qualquer tributo, e para apreciação de qualquer questão, de facto ou de direito, relativa ao projecto de decisão de liquidação.

No entanto, o artigo 4.º, n.º 1, do RJAT, ao estabelecer que «a vinculação da administração tributária à jurisdição dos tribunais constituídos nos termos da presente lei depende de portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça», veio admitir que, no âmbito das competências dos tribunais arbitrais, o âmbito da arbitragem tributária fosse limitado de harmonia com a vinculação.

Foi em concretização deste desígnio legislativo que foi emitida a Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, que definiu o «objecto da vinculação» e os «termos da vinculação» da seguinte forma:

 

Artigo 1.º

Vinculação ao CAAD

 

      Pela presente portaria vinculam-se à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam, nos termos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, no CAAD — Centro de Arbitragem Administrativa os seguintes serviços do Ministério das Finanças e da Administração Pública:

a) A Direcção -Geral dos Impostos (DGCI); e

b) A Direcção -Geral das Alfândegas e dos Impostos Especiais sobre o Consumo (DGAIEC).

 

Artigo 2.º

Objecto da vinculação

 

      Os serviços e organismos referidos no artigo anterior vinculam-se à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD que tenham por objecto a apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida referidas no n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, com excepção das seguintes:

a) Pretensões relativas à declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário;

b) Pretensões relativas a actos de determinação da matéria colectável e actos de determinação da matéria tributável, ambos por métodos indirectos, incluindo a decisão do procedimento de revisão;

c) Pretensões relativas a direitos aduaneiros sobre a importação e demais impostos indirectos que incidam sobre mercadorias sujeitas a direitos de importação; e

d) Pretensões relativas à classificação pautal, origem e valor aduaneiro das mercadorias e a contingentes pautais, ou cuja resolução dependa de análise laboratorial ou de diligências a efectuar por outro Estado membro no âmbito da cooperação administrativa em matéria aduaneira.

 

Artigo 3.º

Termos da vinculação

 

      1 – A vinculação dos serviços e organismos referidos no artigo 1.º está limitada a litígios de valor não superior a € 10 000 000.

      2 – Sem prejuízo dos requisitos previstos no Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, a vinculação dos serviços referidos no artigo 1.º está sujeita às seguintes condições:

a) Nos litígios de valor igual ou superior a € 500 000, o árbitro presidente deve ter exercido funções públicas de magistratura nos tribunais tributários ou possuir o grau de mestre em Direito Fiscal;

b) Nos litígios de valor igual ou superior a € 1 000 000, o árbitro presidente deve ter exercido funções públicas de magistratura nos tribunais tributários ou possuir o grau de doutor em Direito Fiscal.

      3 – Em caso de impossibilidade de designar árbitros com as características referidas no número anterior cabe ao presidente do Conselho Deontológico do CAAD a designação do árbitro presidente.

 

              Desta legislação e regulamentação conclui-se que houve uma preocupação em limitar o âmbito da arbitragem tributária:

– na alínea a) do n.º 4 do artigo 124.º da Lei de autorização legislativa admitia-se a possibilidade de nela ser incluída a generalidade dos litígios relativos a liquidação de tributos (inclusivamente os praticados pelos contribuintes) e de fixação de valores patrimoniais que podem ser apreciados em processo de impugnação judicial e o reconhecimento de direitos e interesse legítimos em matéria tributária;

– no artigo 2.º do RJAT não se incluiu na arbitragem tributária o reconhecimento de direitos e interesse legítimos em matéria tributária e estabeleceu-se no artigo 4.º, que a vinculação da Administração Tributária, que se reconduz a definição do âmbito da arbitrabilidade de litígios deveria ser efectuada por portaria;

– com a Lei n.º 64-B/2011, impôs-se que na portaria se indicassem o tipo e o valor máximo dos litígios, o que tem como corolário que nem todos os litígios abrangidos pelo artigo 2.º, n.º 1, do RJAT;

– a Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, limitou a vinculação aos serviços da Administração Tributária estadual e aos tribunais «que tenham por objecto a apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida», com várias excepções.

 

A intenção legislativa de restringir o âmbito da arbitragem tributária em relação ao que foi permitido pela autorização legislativa resulta com evidência destes diplomas e é explicada pelas justificadas dúvidas que, no início da arbitragem tributária, se suscitavam sobre o possível inadequado funcionamento de um meio inovador de resolução de litígios em matéria tributária, bem patentes nas preocupações sentidas pelo Senhor Conselheiro Santos Serra, Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, na sessão de apresentação do novo regime de arbitragem fiscal, que ocorreu em Lisboa, no dia 14-12-2010:

 

Assim, e logo à partida, é preciso que o regime de arbitragem tributária ora constituído consiga afastar receios de que, por via da arbitragem, as partes consigam contornar as imposições legais que sobre si recaem, e que façam letra morta dos princípios da legalidade e da igualdade entre contribuintes em matéria tributária, com a capacidade negocial diferenciada das partes a sobrepor-se ao princípio da tributação de acordo com a sua real capacidade contributiva.[5]

A consciência dos riscos como fundamento das limitações do âmbito foi expressamente explicada pelo Senhor Prof. Doutor Sérgio Vasques (que desempenhava as funções de Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais ao tempo em que foram emitidos o Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, e a Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março), em texto publicado na Newsletter n.º 1 do CAAD:

 

A arbitragem tributária, tal como contemplada no Regime da Arbitragem Tributária veio a apresentar âmbito mais estreito relativamente ao que figurava na autorização legislativa do orçamento do estado para 2010, pela consciência de que esta era, e continua a ser, uma experiência inovadora que não vai sem os seus riscos. Foi também com precaução que a Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, através da qual se vinculou a administração tributária ao regime, impôs vários limites desde logo atendendo à especificidade e ao valor das matérias em causa, associando-se deste modo a Administração Fiscal a este mecanismo de resolução alternativa de litígios nos estritos termos e condições estabelecidos na Portaria». [6]

 

Nos litígios em matéria de direito tributário está em causa o interesse público primacial de um Estado de Direito, que é a obtenção de receitas imprescindíveis ao próprio funcionamento global do Estado, o que justifica que na vinculação se tomassem cautelas.

A arbitragem tributária poderia vir a ser um meio generalizado alternativo de resolução de litígios fiscais, mas, antes de serem dadas provas reiteradas da qualidade e isenção das suas decisões, a necessidade de protecção do interesse público e de assegurar a efectividade dos princípios essenciais da legalidade e da igualdade tributária que o enformam nesta matéria recomendava em 2011 e recomenda actualmente que se avance com cuidado, sem entusiasmos desmedidos, não deixando ao arbítrio dos cidadãos a opção livre e ilimitada por esse meio de resolução de litígios.

Essa cautela é especialmente aconselhada quando, por razões de celeridade, se optou por restringir os meios de impugnação e recurso das decisões arbitrais e, por isso, é menor do que nos tribunais tributários a viabilidade de correcção de possíveis erros de julgamento que sejam lesivos do interesse público.

Por isso se justificava em 2011 e se justifica ainda hoje que haja limitações ao acesso à arbitragem tributária, de forma de compatibilizar a utilização deste meio opcional de acesso à justiça com a obrigação estadual de proteger o interesse público, assegurar a legalidade e igualdade tributária e a arrecadação de receitas imprescindíveis para o funcionamento do Estado.

A esta luz, o artigo 4.º, n.º 1, do RJAT, ao estabelecer que o âmbito da vinculação seria definido por portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça, atribui-lhes um poder discricionário, para definirem a amplitude da vinculação da forma como entendam que melhor se prossegue o conjunto de interesses públicos cuja concretização está em causa, definição esta que não pode dispensar, naturalmente, a avaliação da verificação da existência das condições de ordem material e humana necessárias para a implementação deste novo regime.

Neste contexto em que havia uma evidente intenção de restringir o âmbito inicial da arbitragem tributária em relação à amplitude permitida pela lei de autorização legislativa, sendo consabido que a Constituição da República Portuguesa (CRP) e a Lei Geral Tributária (LGT) aludem a vários tipos de tributos, que designam como «impostos», «taxas» e «contribuições financeiras» [artigos 165.º, n.º 1, alínea i), da CRP] e 3.º, n.ºs 2 e 3, da LGT], a inclusão da palavra «impostos» na expressão «apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida» contrastando com a referência mas abrangente a «actos de liquidação de tributos» que foi usada na alínea a) do n.º 4 do artigo 24.º da Lei n.º 3-B/2010 (autorização legislativa) para definir o âmbito da autorização, tem de ser interpretada expressão precisa da restrição que se pretendeu efectuar.

Na verdade, assente que a intenção legislativa era restringir o âmbito da jurisdição arbitral, se foi utilizada uma expressão com alcance restritivo para indicar o âmbito da restrição, tem de pressupor-se, presumindo que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (como impõe o n.º 3 do artigo 9.º do Código Civil), que se pretendeu restringir nos precisos termos, se não houver razões que imponham que se conclua que houve alguma deficiência na expressão do pensamento legislativo. Uma norma com alcance restritivo deve, em princípio, ser interpretada em termos estritos e não extensivamente, pois a ampliação do seu alcance estará presumivelmente ao arrepio do pensamento legislativo que a interpretação jurídica visa reconstituir (artigo 9.º, n.º 1, do Código Civil).

Como se escreve no Acórdão n.º 539/2015, do Tribunal Constitucional:

«As contribuições financeiras constituem um tertium genus de receitas fiscais, que poderão ser qualificadas como taxas coletivas, na medida em que compartilham em parte da natureza dos impostos (porque não têm necessariamente uma contrapartida individualizada para cada contribuinte) e em parte da natureza das taxas (porque visam retribuir o serviço prestado por uma instituição pública a certo círculo ou certa categoria de pessoas ou entidades que beneficiam coletivamente de um atividade administrativa) (Gomes Canotilho/Vital Moreira, em “Constituição da República Portuguesa Anotada”, I vol., pág. 1095, 4.ª ed., Coimbra Editora).

As contribuições distinguem-se especialmente das taxas porque não se dirigem à compensação de prestações efetivamente provocadas ou aproveitadas pelo sujeito passivo, mas à compensação de prestações que apenas presumivelmente são provocadas ou aproveitadas pelo sujeito passivo, correspondendo a uma relação de bilateralidade genérica. Preenchem esse requisito as situações em que a prestação poderá beneficiar potencialmente um grupo homogéneo ou um conjunto diferenciável de destinatários e aquelas em que a responsabilidade pelo financiamento de uma tarefa administrativa é imputável a um determinado grupo que mantém alguma proximidade com as finalidades que através dessa atividade se pretendem atingir (sobre estes aspetos, Sérgio Vasques, ob. cit., pág. 221, e Suzana Tavares da Silva, em “As taxas e a coerência do sistema tributário”, pág. 89-91, 2.ª edição, Coimbra Editora)».

 

Por outro lado, quando foi emitida a Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, em que o Governo definiu o âmbito da vinculação à arbitragem tributária, a Autoridade Tributária e Aduaneira já administrava tributos com a designação de «contribuição» (designadamente, desde 2008, a contribuição de serviço rodoviário que aqui está em causa, e tinha já sido criada pelo artigo 141.º da Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro, a contribuição sobre o sector bancário), pelo  que não se pode aventar, com pertinência, que não se colocasse, no momento da emissão daquela Portaria, a necessidade esclarecer com  rigor se o âmbito da vinculação abrangia ou não tributos com a designação de «contribuições».

A intenção governamental de afastar da vinculação à arbitragem tributária as  pretensões relativas a contribuições é confirmada pela alteração efectuada ao artigo 2.º da  Portaria n.º 112-A/2001 pela Portaria n.º 287/2019, de 3 de Setembro, em que se manteve a referência restritiva a «impostos», em momento em que a Autoridade Tributária e Aduaneira já administrava vários tributos com  a designação de «contribuições», como, além da CSR e da contribuição sobre o sector bancário, a contribuição extraordinária sobre o setor energético (criada pelo artigo 228.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de Dezembro) e a contribuição extraordinária sobre a indústria farmacêutica  (criada pelo artigo 168.º da Lei n.º 82-B/2014, de 31 de Dezembro).

Por outro lado, utilizando a Constituição e a Lei designações específicas para classificar os vários tipos de tributos, terá de se presumir também que, para efeito da definição das competências dos tribunais arbitrais, se pretendeu aludir à classificação que a legislativamente foi adoptada em relação a cada tributo e não à que o intérprete poderá considerar-se mais apropriada, como base em considerações de natureza doutrinal. A classificação de tributos especiais, designadamente para apurar se devem ser ou não tratados constitucionalmente como impostos é, frequentemente, uma tarefa complexa, objecto de abundante jurisprudência do Tribunal Constitucional. Não há qualquer razão para crer, em termos de razoabilidade, que o legislador, que tem de se presumir que consagrou a solução mais acertada (artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil), tivesse optado por impor indagações com esse nível de dificuldade, incerteza de resultados e morosidade para definição da competência dos tribunais arbitrais, em vez de optar pela identificação clara e segura dos tributos a que pretendeu aludir através da designação que legislativamente foi considerada adequada que, além do mais, se compagina melhor com a celeridade de decisões que se visou atingir com a criação da arbitragem tributária.

Para além disso, nem se pode aceitar, à face da presunção de que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil), que fosse atribuída à CSR a designação de «contribuição» se legislativamente se pretendesse que ela fosse considerada como um «imposto» e não como uma das «demais contribuições financeiras a favor das entidades públicas» a que aludem o artigo 165.º, n.º 1, alínea i) da CRP e o artigo 3.º, n.º 2, da LGT. A expressão do pensamento em termos adequados faz-se necessariamente através da expressão correcta e não uma outra que o dissimule.

Assim, em boa hermenêutica, é de concluir que o artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, quando se refere a «impostos», está a reportar-se apenas aos tributos a que legalmente é atribuída tal designação (como, por exemplo, o IVA, o IRC e o IRS) e àqueles que, embora tenham outra designação, a própria lei explicitamente considerada «impostos» (como sucede com as «contribuições especiais que assentam na obtenção pelo sujeito passivo de benefícios ou aumentos de valor dos seus bens em resultado de obras públicas ou da criação ou ampliação de serviços públicos ou no especial desgaste de bens públicos ocasionados pelo exercício de uma actividade», que o n.º 3 do artigo 4.º da LGT identifica e expressamente considera «impostos»). E, paralelamente, aquele artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011 não se estará a reportar a tributos que pela lei são denominados como «taxas» ou «contribuições financeiras a favor das entidades públicas», que não se enquadrem na definição das referidas «contribuições especiais», mesmo que, após análise aprofundada das suas características pelo tribunal previamente definido como competente, se possa concluir que devem ser considerados como impostos especiais, designadamente para efeitos de aplicação das exigências constitucionais relativas a impostos.

No caso da CSR, é manifesto que não se está perante uma «contribuição especial» enquadrável no conceito definido no n.º 3 do artigo 4.º da LGT, pois não assenta «na obtenção pelo sujeito passivo de benefícios ou aumentos de valor dos seus bens em resultado de obras públicas ou da criação ou ampliação de serviços públicos ou no especial desgaste de bens públicos ocasionados pelo exercício de uma actividade», pelo que não há suporte literal mínimo para que seja considerada, na perspectiva legislativa, um dos «impostos» a que alude o artigo 2.º da Portaria n.º 112-/2011.

Por outro lado, da relegação da definição do âmbito da vinculação para diploma de natureza regulamentar depreende-se que, subjacente à restrição que se pretendeu efectuar estarão também razões pragmáticas relacionadas com a criação das condições práticas para implementação do novo regime, que normalmente se reservam para diplomas de natureza executiva, como são as relativas à disponibilidade de meios humanos da Administração Tributária com formação adequada para a representarem adequadamente nos processos tributários que exijam formação mais especializada. Neste caso, pelas limitações ao âmbito da jurisdição arbitral que se fazem nas alíneas c) e d) do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, quanto a litígios relacionados com matéria aduaneira, entrevê-se que estarão razões desse tipo subjacentes a essas restrições à arbitrabilidade de litígios.

Tendo o poder discricionário para definir o âmbito da vinculação sido atribuído aos membros do Governo indicados no artigo 4.º, n.º 1, da Portaria n.º 112-A/2011 e não aos tribunais arbitrais, não podem estes substituir-se àqueles na definição do âmbito da jurisdição arbitral. Desde logo porque os tribunais não possuem o conhecimento de todos os elementos de natureza operacional que podem ter levado os membros do Governo que emitiram a Portaria n.º 112-A/2011. E, depois, porque foi a esses membros do Governo e não aos tribunais arbitrais que a lei atribuiu o poder de definir o âmbito da vinculação.

Pelo exposto, a interpretação correcta, alicerçada no teor literal deste artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011 e nas regras interpretativas que constam do n.º 3 do artigo 9.º do Código Civil, mas tendo também em conta as «circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada» (artigo 9.º, n.º 1, do Código Civil), é a de que se pretendeu restringir a vinculação da Autoridade Tributária e Aduaneira aos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD a litígios em que estejam em causa tributos legislativamente classificados como impostos ou explicitamente como tal considerados (como sucede com as «contribuições especiais» referidas no n.º 3 do artigo 4.º da LGT), com as excepções arroladas naquela norma.

Assim, é de concluir que não é abrangida pela vinculação da Autoridade Tributária e Aduaneira, a apreciação de litígios que tenham por objecto a apreciação das pretensões relativas à CSR.

Pelo que se refere no acórdão arbitral proferido no processo n.º 146/2019-T, a falta de vinculação não implica incompetência absoluta, em razão da matéria, a que alude o artigo 16.º do CPPT, aplicável aos processos arbitrais tributários por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, pois a competência para apreciação da generalidade de actos de liquidação de tributos se insere nas competências dos tribunais arbitrais definidas no artigo 2.º do RJAT.

Mas, está-se perante incompetência relativa por falta do acordo necessário para a constituição de tribunal arbitral, a que se reporta o artigo 18.º da Lei de Arbitragem Voluntária [Lei n.º 63/2011, de 14 de Dezembro, aplicável aos processos arbitrais tributários por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT e artigo 181.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos ( [7] )], acordo esse que, relativamente à arbitragem tributária, é genericamente exigido e definido no que concerne à Autoridade Tributária e Aduaneira através da vinculação, prevista no artigo 4.º do RJAT.

Tendo esta incompetência sido arguida tempestivamente, na Resposta (artigo 18.º, n.º 4, da LAV), tem de concluir-se que procede, com esta fundamentação, a excepção de incompetência suscitada pela Autoridade Tributária e Aduaneira.

Esta interpretação do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011 é compaginável com a Constituição, como já decidiu o Tribunal Constitucional no acórdão n.º 545/2019, de 16-10-2019, proferido no processo n.º 1067/2018, e no acórdão n.º 524/2024, de 02-07-2024, processo n.º 1347/23.

 

  1. Questão da prova da repercussão

 

No que concerne à repercussão da CSR na Requerente, considero que é de presumir, à face das regras da experiência que os Árbitros devem aplicar na apreciação dos factos, de harmonia com o disposto no artigo 16.º, alínea c), do RJAT, em situações em que os fornecedores de combustíveis são sujeitos passivos de ISP.

A repercussão da CSR nos consumidores de combustíveis é manifestamente pretendida pela lei, ao estabelecer que o financiamento da rede rodoviária nacional «é assegurado pelos respectivos utilizadores» e que «a contribuição de serviço rodoviário constitui a contrapartida pela utilização da rede rodoviária nacional, tal como esta é verificada pelo consumo dos combustíveis» (artigos 2.º e 3.º do CIEC na redacção anterior à Lei n.º 24-E/2022, de 30 de Dezembro).

A obrigatoriedade da repercussão é confirmada pelo artigo 2.º do CIEC, na redacção da Lei n.º 24-E/2022, de 30 de Dezembro, ao dizer que "os impostos especiais de consumo obedecem ao princípio da equivalência, procurando onerar os contribuintes na medida dos custos que estes provocam, designadamente nos domínios do ambiente e da saúde pública, sendo repercutidos nos mesmos, em concretização de uma regra geral de igualdade tributária".

O artigo 6.º da mesma Lei atribui natureza interpretativa à nova redacção, pelo que que se impõe a conclusão de que se está perante uma situação de repercussão legal, não só pretendida mas até imposta por lei, e que, quanto à CSR, já como tal se devia considerar antes da Lei n.º 24-E/2022, não só por resultar das anteriores redacções dos artigos 2.º e 3.º desta Lei, mas por essa natureza legal da repercussão ser reforçada pela natureza interpretativa atribuída à nova redacção do artigo 2.º do CIEC.  

Assim, numa situação em que o fornecedor é um sujeito passivo de ISP a quem a Autoridade Tributária e Aduaneira não imputa falta e pagamento da CSR, a existência de repercussão do tributo no consumidor final é de presumir, pois a lei impõe-lhe que efectue a repercussão dos tributos suportados, como sucede com a CSR, pois trata-se de uma situação normal, à face das regras da experiência que os árbitros devem aplicar na fixação da matéria de facto [artigo 16.º, alínea e) do RJAT], é o que corresponde ao andamento natural das coisas, ao quod plerumque accidit, que é fundamento das presunções naturais ou judiciais. ( [8] ) A força destas presunções pode ser arredada por simples contraprova, mas, neste caso, nenhuma foi efectuada.

Neste contexto, deve dizer-se que a presunção de que ocorreu efectivamente repercussão quando ela é imposta por lei e não há qualquer facto que permita duvidar da correspondência do facto presumido à realidade, não é incompatível com o Direito da União, designadamente à face do Despacho do TJUE de 07-02-2022, proferido no processo C-460/21, que se refere à relevância de presunções, neste contexto da CSR.

O que aí se refere, relativamente a prova de uma situação de enriquecimento sem causa, que constitui excepção ao direito ao reembolso de quantias cobradas em violação do Direito da União,  é que «o direito da União exclui assim que se aplique toda e qualquer presunção ou regra em matéria de prova destinada a fazer recair sobre o operador em causa o ónus de provar que os impostos indevidamente pagos não foram repercutidos noutras pessoas e que visem impedir a apresentação de elementos de prova destinados a contestar uma pretensa repercussão (Acórdão de 21 de setembro de 2000, Michaïlidis, C-441/98 e C-442/98, EU:C:2000:479, n.º 42)».

Isto é, o que o TJUE considera incompatível com o Direito da União é a utilização exclusiva de uma presunção de repercussão para prova de uma situação excepcional de enriquecimento sem causa, derivada de omissão de repercussão, impedindo ao operador que devia fazer a repercussão a apresentação de elementos de prova destinados a demonstrar que não ocorreu.

Mas, no caso em apreço, o que esta em causa não é a prova de uma situação de excepção, mas sim a prova da situação normal de ter existido a repercussão pretendida por lei e não há obstáculos a que seja apresentada prova de que a repercussão não ocorreu, abalando a operacionalidade da referida presunção natural. O que sucede, é que nenhuma prova foi apresentada que permita entrever que a repercussão não tenha ocorrido.

Por outro lado, é manifesta a acrescida dificuldade de prova positiva da repercussão, em situação em que a Requerente apenas tem na sua posse as facturas em que apenas se indica o preço em que se presume estar incluída a CSR e, por isso, essa acentuada dificuldade deverá ter como corolário, por força do princípio constitucional da proporcionalidade, uma menor exigência probatória por parte do aplicador do direito, dando relevo a provas menos relevantes e convincentes que as que seriam exigíveis se tal dificuldade não existisse, aplicando a máxima latina "iis quae difficilioris sunt probationis leviores probationes admittuntur". ( [9] )

Para além disso, «a administração tributária deve, no procedimento, realizar todas as diligências necessárias à satisfação do interesse público e à descoberta da verdade material, não estando subordinada à iniciativa do autor do pedido» (artigo 58.º da LGT), pelo que tinha o dever de diligenciar, na sequência da apresentação do pedido de revisão oficiosa, no sentido de apurar quais as liquidações que ela própria emitiu e os pagamentos que recebeu relativas ao pagamento de CSR pela fornecedora de combustíveis e confirmar ou não se foram ou não efectuados os pagamentos das facturas pela Requerente, se necessário através de exame à contabilidade da Requerente e informações bancárias.

É apenas nas situações em que, após a produção das provas e a realização de diligências necessárias para apurar a factualidade relevante para a decisão, subsistem dúvidas sobre factos em que deve assentar a decisão que funcionam as regras do ónus da prova, valorando procedimentalmente as dúvidas contra aquele a quem é atribuído o ónus da prova.

As regras do ónus da prova, no procedimento tributário e no processo tributário  não significam que seja sobre a parte à qual ele é atribuído que recai o dever de trazer ao processo os meios de prova dos factos relevantes para decisão, dispensando a parte contrária de tal tarefa, pois a Administração Tributária nunca está dispensada de, em cumprimento do princípio do inquisitório, antes de aplicar as regras do ónus da prova, «realizar todas as diligências necessárias à satisfação do interesse público e à descoberta da verdade material, não estando subordinada à iniciativa do autor do pedido», por força do artigo 58.º da LGT.

«No procedimento, o órgão instrutor utilizará todos os meios de prova legalmente previstos que sejam necessários ao correcto apuramento dos factos, podendo designadamente juntar actas e documentos, tomar declarações de qualquer natureza do contribuinte ou outras pessoas e promover a realização de perícias ou inspecções oculares» (artigo 50.º do CPPT), independentemente de o ónus da prova recair ou não sobre o contribuinte.

              A expressão «todas as diligências necessárias» não dá margem para interpretação restritiva quanto aos deveres de realização de diligências que a lei impõe a AT.

O princípio do inquisitório, enunciado este artigo 58.º da LGT, situa-se a montante do ónus de prova (acórdão do STA de 21-10-2009, processo n.º 0583/09), só operando as regras do ónus da prova quando, após o devido cumprimento daquele princípio, se chegar a uma situação de dúvida (non liquet) sobre os factos relevantes para a decisão do procedimento tributário, situação esta em que a matéria de facto é decidida contra a parte a quem é imposto tal ónus.

              Por isso, não podem aplicar-se as regras do ónus da prova contra o sujeito passivo, valorando contra ele as dúvidas sobre a matéria de facto, em situação em que não foi cumprido adequadamente pela Autoridade Tributária e Aduaneira o princípio do inquisitório: se houve omissão absoluta de diligências no procedimento que tinham potencialidade para esclarecer os factos relevantes para a apreciação da causa, a falta de prova tem de ser valorada contra a Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

Lisboa, 13-11-2024

 

O Árbitro

 

 

 

 

(Jorge Lopes de Sousa)

 

 



[1] Hoje,  F..., Lda.

[2] Cf., igualmente, os acórdãos do CAAD de 13-11-2023, processo n.º 410/2023-T; de 03-08-2022, processo n.º 629/2021-T; de 16-01-2023, processo n.º 305/2022-T; de 09-02-2024, processo n.º 490/2023-T; de 01-02-2024, processo n.º 332/2023-T; de 14-05-2024, processo n.º 790/2023-T, entre outros.

[3] O artigo 2.º do CIEC tem agora a seguinte redação: “Os impostos especiais de consumo obedecem ao princípio da equivalência, procurando onerar os contribuintes na medida dos custos que estes provocam, designadamente nos domínios do ambiente e da saúde pública, sendo repercutidos nos mesmos, em concretização de uma regra geral de igualdade tributária”. Conclusão para que já antes apontava o artigo 93.º-A do CIEC, que se refere abertamente ao “imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos suportado pelas empresas de transporte de mercadorias e de transporte coletivo de passageiros”.  

[4] “(...) o Tribunal de Justiça sublinhou, designadamente, que, mesmo que a legislação nacional conceba as imposições indirectas de modo a que estas sejam repercutidas no consumidor final e, habitualmente, no domínio do comércio, tais imposições indirectas sejam parcial ou totalmente repercutidas, não é possível afirmar, em geral, que a imposição é de facto repercutida em todos os casos. Na verdade, a repercussão efectiva, parcial ou total, depende de vários factores próprios a cada transacção comercial e que a diferenciam de outras situações, noutros contextos. Consequentemente, o problema da repercussão ou não de cada imposição indirecta constitui uma questão de facto que é da competência do órgão jurisdicional nacional, o qual aprecia livremente os elementos de prova que lhe são submetidos” (Weber’s Wine, processo C-147/01, §96).

[5] Texto reproduzido no Guia da Arbitragem Tributária, 2.ª edição, página 192.

[6] Publicado em https://www.caad.pt/files/documentos/newsletter/Newsletter-CAAD_out_2011.pdf.

[7] No sentido da aplicação subsidiária da Lei de Arbitragem Voluntária à arbitragem tributária, pode ver-se, entre vários, o acórdão do Pleno do Supremo Tribunal Administrativo de e 21-04-2021, processo n.º 101/19.1BALSB. 

[8] MANUEL DE ANDRADE, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, páginas 215-216.

[9] Acórdão do Pleno do Supremo Tribunal Administrativo de 17-12-2008, processo n.º 0327/08.

Essencialmente neste sentido, pode ver-se MANUEL DE ANDRADE, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, página 203, cujos ensinamentos são seguidos no Assento do Supremo Tribunal de Justiça n.º 4/83, de 11-7-1983, publicado no Diário da República, I Série, de 27-8-1983, e nos acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 17-12-2008, processo n.º 0327/08, e do respectivo Pleno do Pleno de 17-10-2012, processo n.º 0414/12.