Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 511/2024-T
Data da decisão: 2024-11-07   Outros 
Valor do pedido: € 11.539,73
Tema: Contribuição sobre o Sector Rodoviário (CSR). Direito de União Europeia. Competência dos tribunais arbitrais. Ineptidão da petição. Legitimidade.
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SUMÁRIO:

 

I - Não tendo o Tribunal de Justiça, no Despacho Vapo Atlantic (processo C-460/21) colocado em causa a qualificação da CSR como uma imposição indireta para efeitos do artigo 1.º, n.º 2 da Diretiva 2008/118/CE, conclui-se que aquele tributo é um desdobramento do ISP e, como tal, um imposto.

II – Assentando o regime jurídico da CSR num princípio de repercussão legal, as entidades adquirentes de combustível e que suportem o encargo do tributo gozam de legitimidade processual para impugnar judicialmente os atos de liquidação, nos termos do artigo 18.º, n.º 1, a) da LGT.

III – O regime jurídico da Contribuição de Serviço Rodoviário, constante da Lei n.º 55/2007, de 31 de Agosto, é incompatível com o Direito da União, mormente com artigo l.°, n.° 2, da Diretiva 2008/118/CE.

IV – A repercussão de um imposto – legal ou não – é uma questão de facto, sobre a qual não recai qualquer presunção nem em benefício da AT nem em benefício dos contribuintes. Não ficando a repercussão demonstrada, fica prejudicado o direito à restituição do imposto por parte do adquirente de combustível.

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

I – Relatório

 

1. A..., titular do n.º de identificação fiscal ..., com domicílio fiscal na..., ...-... ..., Porto (doravante, Requerente), apresentou, em 08-04-2024, pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º, n.º 1, al. a), e 10.º, n.ºs 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em matéria Tributária (doravante, RJAT), com as alterações subsequentes, e da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, alterada pela Portaria n.º 287/2019, de 3 de setembro, que vincula vários serviços e organismos do Ministério das Finanças e da Administração Pública à jurisdição do Centro de Arbitragem Administrativa.

 

2. No pedido de pronúncia arbitral, a Requerente pede:

(i) a anulação do ato de indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa apresentado em 06-09-2023 junto da Alfândega do Freixieiro, e que deu entrada em 07-09-2023 (documento n.º 05 e o processo administrativo);

(ii) a anulação dos atos de liquidação de CSR subjacentes às faturas de aquisição de combustível referentes ao período entre setembro de 2019 e dezembro de 2022, identificadas sob os documentos n.ºs 01 a 04;

(ii) a condenação da Autoridade Tributária no reembolso do montante de €11.539,73, indevidamente suportado pela Requerente, acrescidos de juros indemnizatórios nos termos dos artigos 43.º, n.º 1 e 100.º da LGT.

 

3. É demandada a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante, AT ou Requerida).

 

4. Em 09-04-2024, o pedido de constituição de tribunal arbitral foi aceite pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD e seguiu a sua normal tramitação com a notificação da AT.

 

5. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, al. a) e do artigo 11.º, n.º 1, al. a), ambos do RJAT, o Exmo. Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou a signatária como árbitro do Tribunal Arbitral, que comunicou a aceitação do encargo no prazo devido. Em 16-04-2024, a Requerida apresentou Requerimento, dirigido ao Exmo. Senhor Presidente do CAAD, solicitando a identificação dos atos de liquidação cuja legalidade a Requerente pretende ver apreciada. A necessidade dessa identificação será analisada infra, por ocasião da defesa por exceção apresentada pela Requerida na sua resposta.

 

6. Foram as partes notificadas dessa designação, em 31-05-2024, não tendo manifestado vontade de a recusar (cf. artigo 11, n.º 1, al. b) e c) do RJAT, em conjugação com o disposto nos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD), pelo que, ao abrigo da al. c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral ficou constituído em 19-06-2024.

 

7. Em 21-06-2024, o Tribunal Arbitral proferiu Despacho, notificado na mesma data, ordenando a notificação da Requerida para apresentar Resposta, juntar cópia do Processo Administrativo e solicitar, querendo, a produção de prova adicional (cf. artigo 17.º do RJAT).

 

8. A Requerida apresentou resposta, em 21-08-2024, remetendo o Processo Administrativo. Em 22-08-2024, o Tribunal arbitral proferiu Despacho conferindo 10 (dez) dias à Requerente para se pronunciar sobre a defesa por exceção deduzida pela AT – o que aconteceu, por requerimento com data de 06-09-2024. Considerando o PPA e a Resposta oferecida pela Requerente, o Tribunal Arbitral proferiu Despacho, em 10-09-2024, dispensando a reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT, bem como a produção de alegações escritas.

 

9. Compulsado o PPA e as respostas, a posição das partes é, em síntese, a seguinte:

(a) A Requerente alega que os fornecedores a quem adquiriu combustível entre 2019 e 2022 incorporaram os valores liquidados a título de ISP/CSR no preço do combustível, repercutindo-os sobre a Requerente, no montante global de €11 454, 45.

 

(b) O regime jurídico da CSR é incompatível com o Direito da União, tal como clarificado pelo Despacho Vapo Atlantic, do Tribunal de Justiça, pelo que, em homenagem ao princípio do primado e ao princípio da colaboração leal, acolhidos nos artigos 7.º, n.º 5 e 6 e 8.º, n.º 4 da CRP, deve ser desaplicado tanto pelos tribunais nacionais, como pela AT. Neste sentido, é também ilegal o ato de indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa submetido pela Requerente junto da Alfândega do Freixieiro, por às liquidações estar subjacente erro imputável aos serviços, nos termos do disposto no artigo 78.º, n.º 1 da LGT. Existe, de igual modo, “injustiça grave e notória”, porque ostensiva e inequívoca, na aceção do artigo 78.º, n.º 4 da LGT (pontos 1.º a 69.º do PPA).

 

(c) A Requerente argumenta que o Tribunal arbitral é competente em razão da matéria para ajuizar do pedido arbitral, uma vez que a CSR, apesar da designação conferida pelo legislador, constitui um verdadeiro imposto, ao qual falta uma contraprestação administrativa aproveitada ou causada por um grupo homogéneo, como é caraterístico das contribuições financeiras (pontos 70.º a 128.º do PPA).

 

(d) Independentemente da modalidade de repercussão – legal ou voluntária – a Requerente é titular de um interesse legalmente protegido em obter a anulação dos atos de liquidação ilegais, referentes a imposto que suportou por repercussão, e tem legitimidade para intervir no procedimento e processo tributários, nos termos dos artigos 9.º, n.ºs 1 e 2, e 65.º da LGT, e 9.º, n.º 1, do CPPT. Este entendimento é reforçado pelo Despacho Vapo Atlantic (processo C-460/21), do Tribunal de Justiça, bem como pela nova redação do artigo 2.º do CIEC, introduzida pela Lei n.º 24-E/2022, de 30 de dezembro (pontos 129.º a 155.º do PPA).

 

(e) Não obstante, se o que vem de ser dito e demonstrado não for suficiente para atestar que a Requerente suportou o encargo económico do imposto através de repercussão, esta solicita ao Tribunal arbitral que, a coberto do princípio do inquisitório inscrito no artigo 99.º da LGT, oficie as entidades fornecedoras de combustível, com vista a confirmar a ocorrência de repercussão. Ademais, a Lei n.º 5/2019, de 11 da janeiro, veio introduzir o dever, para o comercializador de combustível, de discriminar nas faturas as componentes relativas aos impostos e às taxas suportados pelo consumidor, e sendo a página web dos comercializadores

obrigatoriamente comunicada à Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (cfr. artigo 15.º, n.º 1, do mesmo diploma), requer-se à Autoridade Tributária que oficie esta entidade a disponibilizar toda a informação relevante de que dispõe – e que não seja já possível consultar online – a qual inequivocamente atestará ter o encargo tributário em referência sido repercutido na esfera jurídica da Requerente.

 

(f) Acresce que o regime jurídico da CSR, para além de incompatível com o artigo 1.º, n.º 2 da Diretiva 2008/118/CE, é também inconstitucional, por violação do princípio da igualdade e do princípio da capacidade contributiva (artigo 13.º CRP). Efetivamente, aquele tributo, constituindo um imposto, onera em exclusivo (ou mais intensamente) alguns cidadãos ou setores de atividade, não obstante trazer benefícios a todos os cidadãos e entidades que operam em Portugal (pontos 195.º a 211.º do PPA).

 

(g) Por conseguinte, a Requerente peticiona o reembolso dos montantes indevidamente pagos a título de CSR, bem como a condenação da AT no pagamento de juros indemnizatórios, ao abrigo do artigo 43.º, n.º 3, c) da LGT (pontos 212.º a 217.º do PPA).

 

(h) A Requerida apresentou defesa por exceção e defesa por impugnação. Na sua resposta, suscita as exceções dilatórias da incompetência do tribunal em razão da matéria, incompetência do tribunal em razão da causa de pedir, ilegitimidade processual e substantiva da Requerente, ineptidão da petição inicial e caducidade do direito de ação.

 

(i) Quanto ao fundo, considera que a Requerente não logrou fazer prova de ter adquirido e pago combustível e suportado o encargo do pagamento da CSR por repercussão. De todas as fornecedoras de combustível da Requerente, no período entre 2019 e 2022, apenas a L..., S.A. detinha o estatuto fiscal de sujeito passivo do ISP. Muito embora as faturas sejam idóneas a comprovar a aquisição de combustível, nas quantidades e preços delas constantes, não são idóneas a demonstrar a ocorrência de repercussão da CSR. Atento o disposto no artigo 74.º, n.º 1 da LGT e no artigo 342.º, n.º 1 do Código Civil, não incumbe à Requerida fazer a prova da não repercussão, nem é possível presumir a existência de repercussão quando, no caso, estamos perante uma repercussão meramente económica. Exigir que fosse a Requerida a fazer prova de que houve repercussão, isto é, a fazer prova de um facto negativo, configuraria uma situação de prova diabólica, que a Requerida reputa inconstitucional, à luz do direito a uma tutela jurisdicional efetiva e do princípio da proporcionalidade (artigos 2.º e 20.º CRP).

 

(j) Defende-se, ainda, argumentando que inexiste qualquer decisão judicial transitada em julgado – do Tribunal de Justiça ou de outro Tribunal – que tenha declarado ou julgado a inconstitucionalidade ou ilegalidade do regime jurídico da CSR, e contestando a apreciação do Tribunal de Justiça de que não estão subjacentes àquele tributo “motivos específicos” para efeitos do preceituado no artigo 1.º, n.º 2 da Diretiva 2008/118/CE. Finalmente, louvando-se no acórdão Danfoss (processo C-94/10), do Tribunal de Justiça, a AT relembra que um Estado-membro se pode opor a um pedido de reembolso de um imposto indevido, apresentado pelo adquirente/comprador sobre quem esse imposto tenha sido repercutido, desde que, à luz do direito desse Estado-membro, seja possível ao adquirente exercer uma ação civil de repetição do indevido e o reembolso dos montantes indevidamente suportados não se mostre, na prática, impossível ou excessivamente difícil.

 

II – Saneamento

10. O tribunal arbitral foi regularmente constituído.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março). O processo não enferma de nulidades.

 

11. Tendo em consideração a matéria de exceção suscitada pela Requerida, importa apreciar preliminarmente estas matérias, começando pela da incompetência do Tribunal arbitral, que é de conhecimento prioritário (cf. artigo 13.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos aplicável ex vi do disposto no artigo 29.º, n.º 1, c), do RJAT).

 

 

  1. Questão da incompetência relativa do tribunal arbitral em razão da matéria

 

12. Na Resposta, a AT arguiu a exceção de incompetência relativa do tribunal arbitral em razão da matéria (pontos 41.º a 70.º). Entende, em síntese, que a CSR é uma contribuição financeira, estando a sua sindicância, por conseguinte, excluída da competência dos tribunais arbitrais tributários, à luz do disposto no artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março. A Requerente pugnou pela improcedência da exceção de incompetência relativa, alegando que a CSR deve, apesar da designação, ser qualificada como um imposto, pelo que não procede a exceção de incompetência do tribunal arbitral em razão da matéria (pontos 6.º a 15.º da pronúncia sobre matéria de exceção).

 

13. O âmbito da jurisdição arbitral tributária conhece as limitações impostas por lei e por Regulamento. Com efeito, segundo a al. a) do n.º 1 do artigo 2.º do RJAT, a competência dos tribunais arbitrais compreende a apreciação de pretensões de declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de retenção na fonte e de pagamento por conta. Por sua vez, o artigo 4.º do mesmo regime faz depender a vinculação da AT à jurisdição dos tribunais arbitrais de portaria dos membros do Governo responsáveis, onde se estabeleça, designadamente, “o tipo e o valor máximo dos litígios abrangidos”. Em cumprimento desta delegação legislativa, a Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, definiu o objeto da vinculação da AT à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD como abrangendo “as pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida”.

 

14. A referência aos “impostos” que se encontra no artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, pode ser interpretada de duas formas.

 

15. Para uma linha jurisprudencial, a designação relevante para efeitos de definição de competência é a designação adotada pelo legislador, e não aquela que o intérprete ou aplicador do direito possam reputar mais adequada. Pretende-se, com esta posição, obstar a que a jurisdição dos tribunais arbitrais se veja dependente da incerteza inerente às diversas perspetivas doutrinais sobre a destrinça entre taxa, imposto e contribuição financeira (cf. acórdão do CAAD de 29-05-2023, processo n.º 31/2023-T; e já antes, com idêntico entendimento, os acórdãos do CAAD de 22-07-2022, processo n.º 788/2021-T, e de 16-10-2018, processo n.º 115/2018-T). Ao passo que, num outro entendimento jurisprudencial, a aferição da jurisdição dos tribunais arbitrais já dependerá do entendimento que o intérprete alcance através da qualificação dos tributos em função das suas caraterísticas e do seu regime jurídico (cf., por exemplo, acórdão do CAAD de 05-01-2023, processo n.º 304/2022-T; e acórdão do CAAD de 15-01-2024, processo n.º 375/2023-T). Sobre esta questão, o Tribunal arbitral entende que, havendo jurisprudência que aponte para uma determinada classificação, não pode o intérprete e aplicador do direito deixar de daí retirar as devidas conclusões em matéria de jurisdição.

 

16. A Constituição refere-se abertamente a três modalidades de tributos – impostos, taxas e contribuições financeiras (artigo 165, n.º 1, al. i) da CRP). Para cada um destes tributos, em razão do tipo de ablação patrimonial que representam para o contribuinte, prevê a Constituição um acervo de regras formais, orgânicas e materiais distinto, embora com semelhanças no plano dos tributos bilaterais (taxas e as contribuições financeiras).

 

17. A divisão tripartida dos tributos afirmou-se com a revisão constitucional de 1997, por oposição à summa divisio, até aí vigente, entre impostos e taxas. Com a inclusão de um segundo tipo de tributos bilaterais (as contribuições financeiras) o teste da bilateralidade, segundo o qual os tributos rigorosamente bilaterais seriam taxas e os tributos não rigorosamente bilaterais seriam impostos, deixou de ser determinante no processo de qualificação. Se antes da revisão de 1997 o processo de qualificação não era simples, uma vez que uma plêiade de tributos merecia uma qualificação distinta daquela para que remeteria o seu nomen iuris (princípio da irrelevância do nomen iuris), o contencioso constitucional da qualificação dos tributos tornou-se, a partir dessa data, ainda mais complexo, atenta a proliferação de tributos híbridos, a meio-caminho entre taxas e impostos.

 

18. Assim, o imposto é uma prestação pecuniária e coativa, com estrutura unilateral. Cada um é chamado a contribuir para os encargos da comunidade independentemente de receber algo em troca, na medida da sua força económica ou da sua capacidade de pagar (princípio da capacidade contributiva). Os impostos pretendem arrecadar receitas para custear as despesas públicas gerais do Estado (artigo 5.º, n.º 1 da LGT). Coerentemente, visto que os impostos agridem o património do particular de forma mais intensa do que outros tributos, a Constituição sujeita-os a um regime formal e orgânico bastante rigoroso (reserva de lei integral), colocando sob a alçada do legislador parlamentar todo o regime jurídico de cada um dos impostos. 

 

19. Já as contribuições financeiras são prestações pecuniárias coativas, assentes numa estrutura bilateral ou sinalagmática, exigidas como contrapartida de uma prestação administrativa de que presumivelmente os respetivos sujeitos passivos, por integrarem um determinado grupo homogéneo, beneficiaram ou causaram.

 

20. A constitucionalização das contribuições financeiras, promovida pela revisão constitucional de 1997, visou abarcar uma categoria de tributos que, embora não possuíssem uma estrutura unilateral, não compartilhavam da bilateralidade rigorosa das taxas. Todavia, a circunstância de o legislador de revisão ter optado por subordinar as contribuições financeiras a um regime formal e orgânico semelhante ao das taxas é suficientemente revelador de que a estrutura e a finalidade das contribuições financeiras se aproximam mais dos tributos bilaterais do que dos tributos unilaterais.

 

21. Como se esclarece no acórdão n.º 344/19, do Tribunal Constitucional, a propósito da “taxa” SIRCA:

 

A criação de tributos dirigidos à compensação de prestações presumidas e admissibilidade de um quadro amplo de incidência das taxas torna mais diluída a fronteira entre as diferentes categorias de tributos e muito mais delicada a respetiva qualificação. Se atendermos à «natureza» que assume a prestação do ente público, a linha de fronteira entre as diferentes categorias de tributos públicos pode demarcar-se do seguinte modo: se o pressuposto de facto gerador do tributo é alheio a qualquer prestação administrativa ou se traduz numa prestação meramente eventual, estamos perante um imposto; se o facto gerador do tributo consubstancia uma prestação administrativa presumivelmente provocada ou aproveitada por um grupo em que o sujeito passivo se integra, estamos perante uma contribuição; se o facto gerador do tributo é constituído por uma prestação administrativa de que o sujeito passivo seja efetivo causador ou beneficiário, ou por um facto que, de acordo com as regras da experiência, constitui um indicador seguro da existência daquela prestação, estamos perante uma taxa”.

 

22. A “prova do algodão” entre imposto e contribuição financeira é dada, portanto, pela identificação expressa ou implícita de uma prestação administrativa – ainda que grupal ou presumida, no caso das contribuições financeiras. Em termos coadjuvantes, a jurisprudência constitucional reconhece igualmente a importância do critério finalístico, admitindo que a consignação da receita do tributo – por oposição ao financiamento das despesas públicas gerais – pode constituir uma orientação relevante no esclarecimento da sua natureza. Como se lê no acórdão n.º 268/2021, do Tribunal Constitucional, a propósito da Contribuição sobre o setor bancário:

 

A distinção entre as três categorias tributárias parte da consideração simultânea de um critério finalístico a par de um critério estrutural ou do pressuposto e da finalidade do tributo (...). Em linha com a conclusão que antecede, tem sido sublinhada pela jurisprudência do Tribunal a importância de atender, ainda, ao elemento teleológico do tributo (critério finalístico), na medida em que este pode constituir um indicador determinante no esclarecimento da sua natureza (...). Nesta perspetiva, a consignação de receitas à entidade pública competente para financiar as prestações subjacentes aos tributos que as geram constitui, por regra, «uma qualidade reveladora da natureza comutativa destes tributos, por tal consignação significar que a receita não pode ser desviada para o financiamento de despesas públicas gerais» (Acórdãos nºs 539/2015, 320/2016, 7/2019, 255/2020). Todavia, o Tribunal Constitucional reconhece que a consignação da receita do tributo não constitui, por si só, um elemento determinante na qualificação de um tributo – não é uma condição nem necessária nem suficiente (v. Acórdãos n.ºs 344/2019 e 255/2020)”.

 

23. Com base nestes critérios, o Tribunal Constitucional qualificou como contribuições financeiras tributos tão variados como as taxas de regulação e supervisão económica (acórdão n.º 365/2008), a taxa pela utilização do espectro radioelétrico (acórdão n.º 152/2013), as penalizações pela emissão de carbono (acórdão n.º 80/2014), a Contribuição extraordinária sobre o setor energético (acórdão n.º 7/2019), a taxa de segurança alimentar mais (acórdão n.º 539/2015) ou a contribuição sobre o setor bancário (acórdão n.º 268/2021). Foram ainda qualificadas como contribuições financeiras a contribuição extraordinária sobre a indústria farmacêutica (cf. acórdão do STA de 10.05.2023, processo n.º 0191/20.4BEVIS), assim como a taxa de promoção e de coordenação do Instituto da Vinha e do Vinho (cf. acórdão do STA de 26.09.2018, processo n.º 0299/13.2BEVIS 01007/17), ou a taxa anual devida pelo exercício da atividade de fornecedor de redes e serviços de comunicações eletrónicas (acórdão do TCA de 29.09.2022, Processo n.º 21/13.3 BELRS).

 

24. Uma vez denotada a estrutura bilateral ou pelo menos comutativa do tributo, as eventuais inconsistências ou incoerências do seu regime jurídico – designadamente o facto de terem como sujeito passivo pessoas que não são presumíveis beneficiários ou causadores da prestação administrativa – deverão ser tratadas no âmbito do princípio da igualdade material, tomado como critério de equivalência, ferindo de inconstitucionalidade material as normas do regime jurídico do tributo que o contrariem (cf., neste sentido, os acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 344/2019, sobre a taxa SIRCA, e n.º 101/2023, sobre a Contribuição extraordinária do setor energético).

 

25. Ora, a Contribuição de Serviço Rodoviário visa financiar a rede rodoviária nacional a cargo da EP — Estradas de Portugal, E. P. E. (artigo 1.º da Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto) e constitui “a contrapartida pela utilização da rede rodoviária nacional, tal como esta é verificada pelo consumo dos combustíveis” (artigo 3.º, n.º 1). Por financiamento da rede rodoviária entende-se “a respetiva conceção, projeto, conservação, exploração, requalificação e alargamento” (artigo 3.º, n.º 2).

 

26. A incidência objetiva do tributo coincide com a do ISP, ou seja, o tributo incide sobre a gasolina e o gasóleo rodoviário sujeitos ao Imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos (ISP) e dele não isentos (artigo 4.º, n.º 1). E o mesmo sucede com a incidência subjetiva, uma vez que os sujeitos passivos do tributo coincidem com os sujeitos passivos do ISP (artigo 5.º, n.º 1). Além disso, é aplicável à sua liquidação, cobrança e pagamento o disposto no Código dos Impostos Especiais de Consumo (CIEC), na lei geral tributária e no Código de Procedimento e Processo Tributário, com as devidas adaptações (artigo 5.º, n.º 1). Finalmente, o produto da CSR constitui receita própria da concessionária da rede rodoviária nacional, a EP – Estradas de Portugal, E.P.E, que, entretanto, passou a denominar-se Infraestruturas de Portugal, S.A (artigo 6.º).

 

27. Não obstante a operação “cosmética” que o legislador ensaia na Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto, ao identificar como facto tributário a utilização da rede rodoviária nacional, consignando a receita do tributo à respetiva concessionária, a Infraestruturas de Portugal, a CSR aproxima-se de um simples desdobramento do ISP, partilhando com este a incidência objetiva e subjetiva, bem como os aspetos da liquidação e cobrança (cf. Sérgio Vasques, Manual de Direito Fiscal, 2.º ed., reimpressão, Almedina, 2021, p. 384, nota n.º 8).[1]

 

Como se lê no acórdão do CAAD de 13-11-2023, processo n.º 410/2023-T, não existe “qualquer nexo específico entre o benefício emanado da actividade da entidade pública titular da contribuição e o grupo dos sujeitos passivos”. Na verdade, «o financiamento da rede rodoviária nacional é assegurado pelos respectivos utilizadores, que são os beneficiários da actividade pública desenvolvida pela EP - Estradas de Portugal, E. P. E. (agora IP), verificando-se, no entanto, que a contribuição de serviço rodoviário é devida pelos sujeitos passivos do imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos, que, nos termos do artigo 4.º, n.º 1, alínea a), do CIEC, são os “depositários autorizados” e os “destinatários registados”. Falta à CSR, portanto, a estrutura comutativa ou de bilateralidade difusa que subjaz às contribuições financeiras e que as distingue dos impostos.

 

28. Esta conclusão é corroborada pelo Despacho Vapo Atlantic, processo C-460/21, o qual, em razão dos princípios da interpretação conforme e do primado do Direito da União Europeia, se projeta como elemento determinante na qualificação do tributo. Efetivamente, segundo a jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, a qualificação de uma tributação, um imposto, uma taxa ou um direito, à luz do Direito da União Europeia, compete ao Tribunal de Justiça, em função das caraterísticas objetivas de imposição, independentemente da qualificação que lhe é dada pelo direito nacional (cf. acórdãos Istituto di Ricovero e Cura a Carattere Scientifico (IRCCS) — Fondazione Santa Lucia, processo C-189/15, §29; e Test Claimants in the FII Group Litigation, processo C-446/04, §107, entre outros).

 

29. É certo que, no processo arbitral que motivou o pedido de reenvio prejudicial ao Tribunal de Justiça (Processo n.º 564/2020-T), o Tribunal nacional qualificou a CSR como um imposto, formulando as questões prejudiciais com base nesse pressuposto. Todavia, que na decisão em que culminou esse pedido de reenvio – o Despacho Vapo Atlantic, processo C-460/21 – o Tribunal de Justiça não colocou em causa essa qualificação, precisamente por considerar que, pela sua estrutura e regime jurídico, a CSR preenchia as caraterísticas de uma imposição indireta, concretamente, de um imposto indireto sobre os produtos petrolíferos. Por outras palavras, foi o legislador português que, não obstante apelidar o tributo como “contribuição”, definiu a respetiva incidência subjetiva, objetiva, liquidação e cobrança em termos análogos às do ISP. Em condições que levaram o Tribunal de Justiça a assumir que a CSR teria uma finalidade exclusivamente orçamental para efeitos do artigo 1.º, n.º 2 da Diretiva 2008/118/CE, e que poderia entravar as trocas comerciais pondo em causa o efeito útil da harmonização levada a cabo pela Diretiva no domínio do imposto sobre produtos petrolíferos (Despacho Vapo Atlantic, §26).

 

30. Não constituindo a qualificação da CSR uma questão puramente interna, há que concluir que a CSR é um imposto indireto para efeitos da Diretiva 2008/118/CE, e consequentemente, também para efeitos da legislação portuguesa que se enquadre no âmbito de aplicação da Diretiva, como é o caso da Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto. Ou seja, se o Tribunal de Justiça tratou a CSR como um desdobramento do ISP, não pode o intérprete e aplicador português deixar de fazer o mesmo, procurando uma interpretação e aplicação uniformes do Direito da União.

 

31. Termos que se julga improcedente a exceção de incompetência relativa do tribunal arbitral em razão da matéria.

 

  1. Exceção da incompetência do tribunal arbitral em razão da matéria (por outra via)

 

32. A AT suscita, na sua resposta, a incompetência do tribunal arbitral em razão da matéria, mas por outra via (em razão da causa de pedir), exceção dilatória cuja procedência acarreta a absolvição da ré da instância (artigo 576.º, n.ºs 1 e 2 e 577.º, a) do CPC, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, e) do RJAT). Sustenta que o pedido formulado pela Requerente, que passa pela declaração de ilegalidade de “todo” o regime da CSR (pontos 71.º a 79.º da Resposta), extravasa o âmbito da jurisdição arbitral tributária prevista no artigo 2.º do RJAT, que assenta num contencioso de mera anulação. Este não consente “o escrutínio sobre a integridade de normas emanadas no exercício da função político-administrativa do Estado” (ponto 75.º), “não sendo da competência do tribunal arbitral (...) a fiscalização da legalidade de normas em abstrato, sem enquadramento processual impugnatório de ato concreto de liquidação” (ponto 76.º). Uma interpretação do artigo 2.º do RJAT que permita a apreciação dos pedidos formulados pela Requerente seria, no entender da AT, inconstitucional, porquanto vedada pela letra e pelo espírito da lei (ponto 77.º da Resposta).

 

33. A Requerente contra-argumenta referindo que o objeto do pedido não é a apreciação da legalidade do regime jurídico da CSR, mas antes a declaração de ilegalidade dos atos tributários em causa e a consequente anulação, tendo por base a ilegalidade do regime jurídico da CSR. A verificação de uma ilegalidade abstrata por violação de norma constitucional é aferida através da fiscalização concreta ou do controlo difuso de constitucionalidade (pontos 15.º a 45.º da pronúncia sobre matéria de exceção).

 

34. Entende o Tribunal arbitral que a exceção dilatória invocada pela AT não procede. Vejamos.

 

35. A Requerente não pede a declaração de ilegalidade do regime jurídico onde está consagrada a CSR (Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto). Pede, na verdade, a anulação do ato de indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa e, bem assim, a anulação dos atos de liquidação de CSR inerentes às faturas juntas com o PPA. Faz assentar, porém, a anulação das liquidações num vício de ilegalidade abstrata, por oposição à ilegalidade concreta, porquanto o que está em causa é a ilegalidade do tributo (por desconformidade do ato legislativo que o criou com a CRP ou por incompatibilidade com o Direito da União Europeia), e não a ilegalidade do ato que faz aplicação da lei ao caso concreto (cf. acórdão do STA de 20-03-2019, processo n.º 0558/15.0BEMDL 0176/18).

 

36. O controlo incidental ou concreto da constitucionalidade das normas assenta, precisamente, na destrinça entre questão principal e questão de constitucionalidade. Como se lê no artigo 204.º da CRP, pedra angular do modelo de fiscalização concreta português, “nos feitos submetidos a julgamento não podem os tribunais aplicar normas contrárias à Constituição”.

 

37. In casu, mesmo que a inconstitucionalidade ou a incompatibilidade com o DUE seja o catalisador da impugnação, o feito submetido a julgamento não é a inconstitucionalidade da Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto, nem tão-pouco a sua incompatibilidade com o Direito da União, mas a ilegalidade dos atos de liquidação de CSR (artigo 99.º do CPPT).

 

38. A idiossincrasia do modelo português de fiscalização concreta é a de que todos os juízes, em todos os tribunais, têm não só o poder-dever de verificar a conformidade constitucional das normas legais aplicáveis (poder-dever de exame), mas também de recusar a sua aplicação caso concluam pela sua inconstitucionalidade (poder-dever de rejeição). Não podendo, então, o juiz, nos termos do artigo 204.º CRP da Constituição, aplicar normas inconstitucionais, ele fica obrigado a decidir, seja a pedido das partes seja oficiosamente, a referida questão de constitucionalidade, isto é, tem de decidir previamente se a norma em causa é ou não inconstitucional.

 

39. Aliás, num modelo como o português, que não conhece a figura da ação direta de constitucionalidade, entendida como o direito dos cidadãos de pedirem ao Tribunal Constitucional a declaração de inconstitucionalidade de normas, a possibilidade de os particulares, nos feitos submetidos a julgamento, suscitarem a questão de constitucionalidade é imprescindível para assegurar o direito fundamental de acesso à justiça constitucional e a uma tutela jurisdicional efetiva em matéria constitucional. Por essa razão, não poderia o RJAT – agora sim, sob pena de inconstitucionalidade – deixar de consagrar a figura do recurso de constitucionalidade quando, na decisão arbitral, se recuse a aplicação de qualquer norma com fundamento em inconstitucionalidade ou se aplique norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada no processo (artigo 24.º, n.º 1 do RJAT).

 

40. Idêntico raciocínio é aplicável, mutatis mutandis, à incompatibilidade com o Direito da União. Também aqui, por força do princípio do efeito direto, conjugado com o princípio do primado, estão todos os tribunais nacionais, nos feitos submetidos a julgamento, sob o dever de desaplicar as normas de direito interno incompatíveis com o Direito da União. Não podendo um tal dever ficar na dependência de regras internas que atribuam aos tribunais superiores competência exclusiva para afastar a aplicação dessas normas. Foi esse o dito do Tribunal de Justiça no acórdão Simmenthal, processo C-106/77: “[Q]ualquer juiz nacional tem o dever de, no âmbito das suas competências, aplicar integralmente o direito comunitário e proteger os direitos que este confere aos particulares, considerando inaplicável qualquer disposição eventualmente contrária ao direito interno, quer seja esta anterior ou posterior à norma comunitária” (§21).

 

41. A sustentar o seu argumento, a AT invoca os acórdãos do STA (ponto 49.º da Resposta), proferidos no âmbito dos processos n.ºs 01390/17 e 0637/15, e um acórdão do TCA Norte, proferido no âmbito do processo n.º 00502/15.4BEPRT. Mas também aqui sem acerto.

 

Com efeito, o que estava em causa no primeiro daqueles arestos era uma ação popular administrativa na forma de providência cautelar de suspensão de eficácia do disposto na norma do artigo 11.º do Código do Imposto sobre Veículos, na redação introduzida pelo artigo 217.º da Lei n.º 42/2016, de 29 de dezembro, que aprovou o Orçamento de Estado para 2017. Já no segundo, o STA limitou-se a declarar a incompetência absoluta para a apreciação da legalidade de atos emitidos no exercício da função político-legislativa (artigo 4.º, n.º 2, a) do ETAF), ajuizando que o ato em causa – um decreto-lei – apesar da sua natureza individual e concreta, não continha um ato administrativo sob a forma legislativa que o Tribunal pudesse apreciar. E no terceiro, o TCA Norte reiterou não ter competência para declarar a ilegalidade e consequente nulidade das normas públicas inseridas em atos legislativos que fixaram a introdução de portagens em autoestradas. O que, como facilmente se percebe, nada tem que ver com um pedido de ilegalidade de um ato de liquidação de um imposto, que não é um ato da função político-legislativa, mas um ato caraterístico da função administrativa.

 

42. Acrescenta a AT, nos pontos 80.º a 92.º da Resposta, que os atos de repercussão não integram o âmbito material de competência dos tribunais arbitrais tributários, tal como definido no artigo 2.º, n.º 1 do RJAT. Pelo que ainda que o Tribunal arbitral devesse considerar-se competente para a apreciação da validade dos atos de liquidação de CSR, nunca poderia debruçar-se sobre a validade de atos de repercussão, que não são atos tributários, nem correspondem, in casu, a uma situação de repercussão legal. A Requerente, nos pontos 46.º a 49.º da pronúncia sobre matéria de exceção, explica que o que se pede ao tribunal arbitral é a apreciação da legalidade dos atos de liquidação de CSR, cujo encargo tributário suportou por repercussão, e não a apreciação da legalidade dos atos de repercussão.

 

43. Também aqui não assiste razão à Requerida. Como antecipa a Requerente, o pedido de pronúncia arbitral não tem por objeto a anulação de atos de repercussão per se, mas antes a anulação dos atos de liquidação de CSR posteriormente repercutida sobre os adquirentes de combustível. Neste sentido, caso a anulação das liquidações venha a ser julgada procedente, impõe-se à AT, nos termos do artigo 100.º da LGT e do artigo 22.º da CRP, “a reposição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade” e, nessa medida, também a eliminação dos atos de repercussão, caso se mostre provado que esta existiu, sem a qual não haverá reposição da situação atual hipotética.

 

44. Termos em que julga improcedente a exceção dilatória de incompetência absoluta do tribunal arbitral em razão da matéria (causa de pedir).

 

  1. Questão da ilegitimidade da Requerente

 

45. A AT pugna, nos pontos 93.º a 157.º da sua defesa por exceção, pela ilegitimidade processual ativa da Requerente, o que, nos termos dos artigos 576.º, n.º 1 e 2 e 577.º, a) CPC, aplicáveis ex vi do artigo 29.º, n.º 1, e) RJAT, consubstancia uma exceção dilatória, que, se verificada, implica a absolvição da Requerida da instância.

 

46. Segundo a AT, atento o regime especial previsto nos artigos 15.º e 16.º do CIEC, só o sujeito passivo que declarou os produtos para consumo e a quem foi liquidado o imposto tem legitimidade para requerer a revisão oficiosa e, consequentemente, para apresentar o pedido de pronúncia arbitral. Ora, o sujeito passivo da CSR é o sujeito passivo do ISP, aplicando-se as mesmas regras em termos de liquidação e cobrança (artigo 5.º da Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto). Portanto, os múltiplos adquirentes dos produtos não têm legitimidade para efeitos de solicitação da revisão do ato tributário e consequente pedido de reembolso do imposto porque não integram a relação jurídica tributária relativa à liquidação originada pela DIC.

 

47. Por outro lado, a AT alega que a Requerente carece de legitimidade à luz do disposto no artigo 18.º, n.º 4, a) da LGT, porquanto no caso concreto não estará em causa uma situação de repercussão legal, mas de mera repercussão económica ou de facto. A repercussão económica depende da decisão dos sujeitos passivos de, no âmbito das suas relações comerciais, regidas pelo direito civil, procederem, ou não, à transferência parcial ou total da carga fiscal para os seus clientes (ponto 124.º da Resposta).

 

A Requerente não só não consegue demonstrar que o valor pago pelos combustíveis que adquiriu às suas fornecedoras inclui o montante pago a título de CSR pelo sujeito passivo que introduziu o combustível no mercado, como não consegue demonstrar que não o repassou no preço dos serviços prestados aos seus clientes ou consumidores finais (ponto 142.º da Resposta). A repercussão meramente económica não se pode presumir, devendo ser provada, ónus não observado pela Requerente nos presentes autos, porquanto as faturas apresentadas não corporizam atos de repercussão de CSR, nem atestam que tal tributo foi suportado pela Requerente. Acresce que, sem a possibilidade de identificar os atos de liquidação subjacentes às transações posteriores, a Requerida poderia, no limite, ser sucessivamente condenada a pagar os mesmos montantes de CSR a todo e qualquer operador económico interveniente na cadeia comercial (pontos 154.º da Resposta).

 

48. A Requerente considera reveladora de má-fé a posição assumida pela AT, uma vez que esta, nas ações de impugnação intentadas pelos sujeitos passivos de CSR, sustenta que a legitimidade processual pertence aos adquirentes de combustível que suportaram o imposto através de repercussão legal, ao passo que nas ações intentadas pelos adquirentes de combustível, afirma que a legitimidade processual pertence, afinal, aos sujeitos passivos do tributo (ponto 61.º da pronúncia sobre matéria de exceção).

 

49. Invoca, de igual modo, que é parte legítima do procedimento e processo tributários, seja nos termos do artigo 9.º, n.º 1 do CPPT, uma vez que, tendo suportado o encargo do tributo, é titular de um interesse legalmente protegido na obtenção da anulação das liquidações de CSR, seja nos termos do artigo 18.º, n.º 4, a) da LGT. Entende que em qualquer situação de repercussão, legal ou económica, se verifica uma diminuição do património pessoal do repercutido, que é quem suporta o encargo do imposto. Neste sentido, não se descortinam razões para distinguir entre repercussão legal e repercussão de facto para efeitos de determinação de legitimidade procedimental ou processual do repercutido. Na verdade, com a CSR, o legislador pretendeu onerar os consumidores de combustíveis, enquanto presumidos utilizadores da rede rodoviária nacional. Asserção, aliás, atestada pela entrada em vigor do artigo 2.º do CIEC, na redação dada pela Lei n.º 24-E/2022, de 30 de dezembro, que corresponde ao “reconhecimento pelo legislador tributário de que a repercussão sempre foi obrigatória (i.e decorrente da lei) nos impostos especiais sobre o consumo, nos quais se inseria (ainda que ilegalmente) a CSR” (pontos 51.º a 97.º da pronúncia sobre matéria de exceção).

 

50. Assim, “restringir aos sujeitos passivos da relação jurídico-tributária a legitimidade para reagir destes atos de liquidação da CSR, comportaria uma grave violação do direito fundamental de acesso ao direito e a uma tutela jurisdicional efetiva, plasmado nos artigos 20.º e 268.º da CRP, uma vez que, quem vê a sua capacidade contributiva onerada é o repercutido” (ponto 58.º da pronúncia sobre matéria de exceção).

 

Decidindo,

 

51. A legitimidade é a qualidade de ser parte ativa ou passiva num procedimento ou processo tributários. Trata-se de um requisito cuja verificação condiciona a apreciação da questão de fundo e não de uma condição de procedência do pedido. Razão pela qual, nesta fase, se atende à configuração da relação jurídica tal como alegada pelo autor, sem cuidar de saber se o direito invocado efetivamente existe na sua esfera jurídica [Jorge Lopes de Sousa, CPPT anotado e comentado, vol. I, 2006, p. 120 (anotação ao art. 9.º)].

 

52. A lei tributária parte de um conceito amplo de legitimidade, que não coincide plenamente com a qualidade de sujeito ativo ou passivo na relação jurídica tributária, abrangendo a AT, os contribuintes, os substitutos, os responsáveis, outros obrigados tributários e “quaisquer outras pessoas que provem interesse legalmente protegido” (artigo 9.º, n.º 1 do CPPT). Neste sentido, estão abrangidos tantos quantos possam dizer-se afetados pelo que venha a ser decidido no procedimento ou processo tributários, ou seja, que tenham nele um interesse económico a defender (Rui Duarte Morais, Manual de procedimento e processo tributário, Almedina, 2012, p. 58). Por outro lado, o artigo 18.º, n.º 4, a) da LGT, embora privando quem suporte o imposto por repercussão legal da qualidade de sujeito passivo da relação jurídica tributária, estende ao repercutido legal as garantias dos contribuintes, concretamente o direito de reclamação, impugnação ou de pedido de pronúncia arbitral.

 

53. Entende o Tribunal arbitral que, seja pela via do artigo 9.º, n.º 1 do CPPT, seja pela via do artigo 18.º, n.º 1, a) da LGT, a Requerentes tem legitimidade processual para apresentar a presente ação. É certo que o CIEC não continha, até à entrada em vigor da Lei n.º 24-E/2022, 30 de dezembro, uma norma semelhante à do artigo 37.º do CIVA, ou seja, uma norma que previsse expressamente o dever de incluir no preço a pagar pelo adquirente dos bens a importância de imposto liquidada pela AT ao sujeito passivo. Todavia, entende o Tribunal arbitral que a referência à “repercussão legal” inscrita no artigo 18.º, n.º 4, a) da LGT terá de abranger todos aqueles casos em que a lei, direta ou indiretamente, faz assentar o regime jurídico do tributo num princípio de repercussão legal do imposto, ou seja, em que a lei pretende que a ablação patrimonial do imposto seja suportada, não pelo sujeito passivo, mas pelo titular da manifestação de capacidade contributiva que lhe dá causa.

 

54. É o que sucede com a CSR, que, como dispõe o artigo 3.º, n.º 1 da Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto, constitui “a contrapartida pela utilização da rede rodoviária nacional, tal como esta é verificada pelo consumo de combustíveis”. A manifestação de capacidade contributiva que dá causa à CSR – e que o legislador entendeu tributar – não é a introdução dos combustíveis no mercado, mas o próprio consumo de combustíveis por parte dos utilizadores da rede rodoviária nacional.

 

55. A nova redação do artigo 2.º do CIEC, introduzida pelo artigo 6.º da Lei n.º 24-E/2022, 30 de dezembro, limita-se a reconhecer abertamente aquilo que já resultava do regime jurídico dos IEC na versão anterior, ou seja, que o ISP e a (entretanto extinta) CSR assentam num princípio da repercussão legal.[2]

 

56. O alcance subjetivo do artigo 18.º, n.º 4, a) da LGT encontra igualmente reconhecimento na doutrina jus tributária. Neste sentido, Jorge Lopes de Sousa escreveu, ainda antes da alteração legislativa de que resultou a atual redação do artigo 2.º do CIEC:

 

Nos casos de repercussão legal do imposto, apesar de aquele que suporta o encargo do imposto não ser sujeito passivo, é-lhe assegurado o do direito de reclamação, recurso e impugnação [art. 18º, nº 4, da LGT]. São casos de repercussão legal os do IVA e dos impostos especiais de consumo, pois, em face dos respetivos regimes legais, a lei exige o pagamentos dos tributos aos intervenientes no processo de comercialização dos bens ou serviços, visando fazer com que eles venham a ser pagos pelos consumidores finais, que são os titulares da capacidade contributiva que se pretende Tributar” [Jorge Lopes de Sousa, CPPT anotado e comentado, vol. I, 2006, p. 106 (anotação ao art. 9.º)].

 

57. Também Sérgio Vasques pugna pela indistinção, para efeitos da aplicação do n.º 2 do artigo 54.º da LGT (“As garantias dos contribuintes previstas no presente capítulo aplicam-se também à autoliquidação, retenção na fonte ou repercussão legal a terceiros da dívida tributária, na parte não incompatível com a natureza destas figuras”), entre a repercussão prevista para o IVA e a repercussão que vale para os impostos especiais sobre o consumo:

 

“O artigo 54.º, n.º 2 da LGT acrescenta ainda que as garantias dos contribuintes se aplicam também à autoliquidação, retenção na fonte ou repercussão legal a terceiros da dívida tributária, “na parte não incompatível com a natureza destas figuras”. A. Lima Guerreiro (2001), 254, observa a propósito que as normas de procedimento da LGT se aplicam à repercussão obrigatória que podemos dizer existir no contexto do IVA em virtude da obrigação geral da menção em factura, e a uma repercussão facultativa, que mais frequentemente encontramos na área dos impostos especiais sobre o consumo, taxas e contribuições. E, bem vistas as coisas, faltam razões para distinguir entre uma e outra modalidade de repercussão, quando está em jogo facultar defender o repercutido contra a exigência de tributo superior ao devido (...)” [Sérgio Vasques, Manual de Direito Fiscal, Almedina, 2021, p. 402, nota n.º 35].

 

58. Independentemente da leitura que se faça do artigo 18.º, n.º 4, a) da LGT, a legitimidade processual das Requerentes resulta, também, do artigo 9.º, n.ºs 1 e 4 do CPPT e do conceito amplo de legitimidade que aí se sufraga (Bruno Botelho Antunes, “Impugnação judicial em retenções na fonte – uma nova perspetiva sobre o interesse processual”, Fiscalidade, n.º 37, 2009, pp. 101-112). Ou seja, mesmo que se entenda que o regime jurídico da CSR não assenta num princípio de repercussão legal, há que reconhecer que o adquirente de combustíveis alega a titularidade de um interesse legalmente protegido para efeitos do artigo 9.º, n.º 1 do CPPT, podendo intervir no processo tributário nessa qualidade (cfr., neste sentido, o acórdão do CAAD de 13-11-2023, processo n.º 410/2023-T, a decisão do CAAD de 08-11-2023, Processo n.º 294/2023-T). Isto independentemente da repercussão se achar provada nos autos, já que a questão da prova da repercussão será apreciada posteriormente, na matéria de facto.

 

59. A Autoridade Tributária refere ainda que a Requerente, não sendo sujeito passivo do imposto, carece não apenas de legitimidade processual, mas também de legitimidade substantiva, que constitui uma exceção perentória e conduz à absolvição do pedido, nos termos dos artigos 576.º, n.ºs 1 e 3 e 579.º do CPC, aplicáveis ex vi do artigo 29.º, n.º 1, e) do RJAT (ponto 157.º da Resposta).

 

Decidindo,

 

60. Também neste ponto não assiste razão à Requerida. A chamada legitimidade substancial ou substantiva tem que ver com a efetividade da relação jurídica material, interessando já ao mérito da causa e, nesse sentido, constitui um requisito da procedência do pedido e não uma condição para a apreciação do mérito.

 

Neste sentido, a legitimidade substantiva só pode ser analisada em função dos factos que sejam dados como provados ou não provados, ou seja, aquando da apreciação do mérito do pedido, não consubstanciando, em coerência, uma exceção perentória (cfr. acórdão do CAAD de 14-05-2024, referente ao Processo n.º 790/2023-T).

 

  1. Questão da ineptidão do pedido de pronúncia arbitral

 

61. A Requerida alega, nos pontos 158.º a 203.º da sua defesa, a ineptidão da petição inicial, com a consequente nulidade de todo o processo, ao abrigo dos artigos 98.º, n.º 1, b) do CPPT e 186.º, n.º 1, 576, n.ºs 1 e 2 e 577.º, al. b) do CPC, aplicáveis ex vi do artigo 29.º, n.º 1, al. c) e e) do RJAT, respetivamente.

 

62. Acrescenta que o PPA não cumpre os pressupostos vertidos no artigo 10.º, n.º 2 do RJAT porquanto não identifica “o ato ou atos tributários objeto do pedido de pronúncia arbitral”. Destarte, apesar de identificar as faturas de aquisição dos combustíveis, a Requerente não identifica as declarações de introdução no consumo que deram origem às liquidações de CSR por parte da AT.

 

63. A AT não tem forma de suprir esta omissão, atenta a impossibilidade de estabelecer qualquer correspondência entre os atos de liquidação de CSR e as faturas de aquisição de combustível apresentadas pela Requerente (ponto 180.º). Isto acontece porque é habitual os sujeitos passivos de ISP / CSR apresentarem as suas DIC em mais do que uma alfândega. Sendo que, após a introdução no consumo e consequente liquidação das imposições, podem ainda existir vários intervenientes na cadela de comercialização até ao consumidor final. Por outro lado, nunca seria possível fazer qualquer correspondência entre as quantidades de produtos introduzidas no consumo e as quantidades de produto adquiridas pela Requerente à sua fornecedora, por a liquidação de CSR ter como referência uma base tributável (artigo 91.º, n.º 1 do CIEC) que não é mantida nas vendas subsequentes (pontos 182.º a 186.º da Resposta).  

 

64. Existe, finalmente, no entender da AT, contradição entre o pedido e a causa de pedir, por não ser possível inferir a partir da alegada ilegalidade das liquidações a ilegalidade das repercussões de CSR. O Tribunal arbitral pode pronunciar-se sobre a legalidade de liquidações, que são atos tributários, mas não pode pronunciar-se sobre a legalidade de fenómenos de repercussão económica, que não são atos tributários. Dito de outro modo, o Tribunal arbitral pode pronunciar-se sobre o pedido, mas não com uma tal causa de pedir (pontos 192.º a 203.º da resposta).

 

65. A Requerente, na resposta às exceções arguidas pela Requerida, alega que juntou ao pedido de revisão oficiosa e ao pedido de pronúncia arbitral todas as faturas de aquisição de combustível, contendo todos os elementos essenciais deste tipo de documento, incluindo a identificação das fornecedoras. Neste contexto, caberia à Requerida, no decurso do procedimento tributário, à luz dos princípios da colaboração e do inquisitório, efetuar todas as diligências que se afigurassem necessárias para a descoberta da verdade material. Outro entendimento, para além de manifestamente insustentável, conflituaria com o direito fundamental de acesso ao direito e a uma tutela jurisdicional efetiva (pontos 98.º a 117.º da pronúncia em matéria de exceções).

 

Decidindo,

 

66. O RJAT não contém regime próprio em matéria de exceções e nulidades processuais, aplicando-se, nesta matéria, a título subsidiário, o disposto no CPPT, no CPTA e no CPC, como decorre do previsto no artigo 29.º, n.º 1, a), c) e e) do RJAT.

 

67. A ineptidão da petição inicial é uma exceção dilatória cuja verificação conduz à abstenção de conhecimento do mérito da causa e à absolvição do réu da instância (artigo 278, n.º 1, al. b) do CPC). Trata-se de uma exceção de conhecimento oficioso, conforme preceituado no artigo 196.º do CPC e também no artigo 89.º, n.ºs 2 e 4, al. b), do CPTA e no artigo 98.º, n.º 1, al. a) e n.º 2 do CPPT.

 

68. Do artigo 186.º, n.º 1 do CPC consta uma lista fechada de situações geradoras de ineptidão da petição inicial: a) Quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir; b) Quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir; c) Quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis. De acordo com o n.º 3 do mesmo dispositivo, ainda que os factos essenciais alegados sejam insuficientes, se a ré contestar, decorrendo da contestação que interpretou convenientemente a petição inicial e os pedidos, impugnando expressamente o que foi alegado pelo Autor e, em consequência, requerendo a sua absolvição daqueles, não procede a arguição de ineptidão da petição inicial que eventualmente seja arguida.

 

69. Ora, a exceção relacionada com a ineptidão da petição inicial não procede, porquanto não se verifica nenhuma das situações elencadas no artigo 186.º do CPC. Ora, a exceção relacionada com a ineptidão da petição inicial não procede, porquanto não se verifica nenhuma das situações elencadas no artigo 186.º do CPC. Ao contrário do alegado, não existe contradição entre o pedido e a causa de pedir. A Requerente pede a anulação do ato de indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa, o qual por sua vez incidiu sobre os atos de liquidação de CSR referentes ao período entre 2019 e 2022, suportada pela Requerente através de repercussão legal. A causa de pedir não é a repercussão de um tributo inválido, antes a liquidação de um tributo incompatível com o direito da União, a cujo reembolso o adquirente de combustível tem direito na medida em fique demonstrada a repercussão. Anuladas as liquidações, eliminam-se, igualmente, as consequências que com base nelas se hajam produzido, mormente os atos de repercussão legal na esfera jurídica das Requerentes.

 

70. Quanto à questão da identificação dos atos de liquidação impugnados, a que alude a al. b) do n.º 2 do artigo 10.º do RJAT, importa referir que, não sendo a Requerente o sujeito passivo do imposto, nem o direto responsável pela sua liquidação, mas apenas a entidade que alegadamente suporta o encargo por efeito da repercussão, não lhe compete o ónus de identificação e de comprovação dos atos de liquidação repercutidos.

 

71. Sendo antes sobre a Autoridade Tributária que impendia o ónus de realizar, no âmbito do procedimento de revisão oficiosa, as diligências que permitiriam verificar a existência dos atos de liquidação do imposto (cf. acórdão do CAAD de 14-05-2024 relativo ao Processo n.º 790/2023-T, §15-16). A eventual dificuldade que a AT possa ter na identificação das liquidações a que ela própria procedeu junto dos fornecedores de combustíveis é um problema de organização dos seus serviços, que não pode ser imputado nem trazer desvantagem à Requerente. A Requerente fez tudo quanto poderia ter feito, juntando os documentos que tinha à sua disposição. Exigir à Requerente a identificação dos atos de liquidação numa situação com este recorte, em que o repercutido não tem meios para proceder a essa identificação nem ela se assume como imprescindível para a apurar da legalidade da liquidação de CSR, constituiria uma interpretação dos normativos sob apreciação em desalinho com o direito a uma tutela jurisdicional efetiva, consagrado nos artigos 20.º, n.º 1 e 268.º, n.º 4 da CRP (cfr. acórdão do CAAD de 13-11-2023, relativo ao Processo n.º 410/2023-T).

 

72. Improcede, portanto, a exceção de ineptidão da petição inicial, com quaisquer dos fundamentos invocados.

 

  1. Questão da caducidade do direito de ação 

 

73. A AT invoca, seguidamente, vários argumentos relacionados com a tempestividade do pedido de revisão oficiosa, que foi objeto de indeferimento tácito e cuja anulação se peticiona (pontos 204.º a 229.º).

 

74. Argumenta, em primeiro lugar, que não logrando a Requerente a identificação dos atos de liquidação impugnados, não é possível apurar da tempestividade do pedido de revisão oficiosa recebido em 07-09-2023 e, consequentemente, a tempestividade do PPA ora apreciado (ponto 205.º).

 

75. Depois, ainda que superado este obstáculo, é entendimento da AT que o pedido de revisão é intempestivo, não sendo aplicável o prazo de quatro anos previsto no artigo 78.º, n.º 1 da LGT, uma vez que inexiste in casu “erro imputável aos serviços”, antes o prazo de 120 dias, que vale para a reclamação graciosa. Ao proceder às liquidações de CSR impugnadas, a AT manteve-se fiel ao princípio da legalidade da administração, estando-lhe vedado atuar de forma diversa daquela através da qual atuou (ponto 212.º da Resposta). O prazo de 3 anos previsto no artigo 78.º, n.º 4 da LGT também não é aplicável, porquanto não existe, no entender da AT, injustiça grave e notória. Com efeito, não se vislumbra “qualquer tributação manifestamente exagerada e desproporcionada com a realidade, uma vez que o valor da CSR cobrado atendeu ao legalmente disposto e o seu “quantum” não varia de acordo com o rendimento do consumidor, mas sim de acordo com a quantidade de combustível adquirido” (ponto 220.º da Resposta).

 

76. Alega, finalmente, que o artigo 15.º do CIEC, onde estão previstas regras gerais de reembolso em caso de erro na liquidação, expedição ou exportação dos produtos sujeitos a imposto, é lex specialis relativamente ao artigo 78.º da LGT. De acordo com aquele normativo, só os sujeitos passivos que tenham procedido à introdução do consumo dos produtos em território nacional têm, no prazo de três anos a contar da liquidação do imposto, legitimidade para apresentar o pedido de reembolso. Prazo que, em 07-09-2023, data da receção do pedido de revisão oficiosa, já se encontrava esgotado pelo menos no que se refere a todas as aquisições efetuadas pela Requerente em data anterior a 07-09-2020.

 

77. A Requerente respondeu argumentando que o prazo aplicável é o prazo de 4 anos constante do n.º 1 do artigo 78.º da LGT, uma vez que a AT, ao liquidar a CSR, incorreu em “erro imputável aos serviços”. Existe, além disso, injustiça grave e notória para efeitos do n.º 4 do artigo 78.º da LGT: “a injustiça verificada é grave porque tratamos aqui da imposição de um encargo patrimonial em clara violação do Direito europeu e da CRP” (ponto 155.º da pronúncia sobre matéria de exceção).

 

78. É entendimento do Tribunal Arbitral que também esta exceção, relacionada com a caducidade do direito de ação, deve ser julgada improcedente.

 

79. O artigo 15.º do CIEC contém um conjunto de disposições comuns às várias modalidades de reembolso previstas no Código, seja o reembolso por erro (artigo 16.º), o reembolso na expedição (artigo 17.º), o reembolso na exportação (artigo 18.º), reembolso na retirada do mercado (artigo 19.º) e outros casos de reembolso (artigo 20.º). Dispõe o seguinte:

 

Artigo 15.º

Regras gerais do reembolso

1 - Constituem fundamento para o reembolso do imposto pago, desde que devidamente comprovados, o erro na liquidação, a expedição ou exportação dos produtos sujeitos a imposto, bem como a retirada dos mesmos do mercado, nos termos e nas condições previstas no presente Código.

2 - Podem solicitar o reembolso os sujeitos passivos referidos no n.º 1 e na alínea a) do n.º 2 do artigo 4.º que tenham procedido à introdução no consumo dos produtos em território nacional e provem o pagamento do respectivo imposto.

3 - O pedido de reembolso deve ser apresentado na estância aduaneira competente no prazo de três anos a contar da data da liquidação do imposto, sem prejuízo do disposto na alínea a) do artigo 17.º e na alínea a) do artigo 18.º.

4 - O reembolso só pode ser efectuado desde que o montante a reembolsar seja igual ou superior a (euro) 25.

 

80. Ora, como se lê no acórdão do CAAD de 14-05-2024 referente ao Processo n.º 790/2023-T, o regime especial previsto nos artigos 15.º e seguintes do CIEC vale para o reembolso com fundamento em erro na liquidação ou em caso de expedição ou exportação. Ora, no presente processo o que está em causa não é um pedido de reembolso tout court, mas uma declaração de ilegalidade de atos de liquidação de um imposto, à qual se pode seguir, verificados os demais pressupostos, o reembolso do imposto pago indevidamente.

 

81. Resulta do n.º 1 do artigo 78.º da LGT que a revisão do ato tributário prevista naquele dispositivo constitui um meio de correção de erros na liquidação de tributos levado a cabo pela própria administração tributária (a revisão é da competência de quem praticou o ato tributário), e que pode partir da iniciativa do sujeito passivo, no prazo da reclamação administrativa (reclamação graciosa) e com fundamento em qualquer ilegalidade, ou da iniciativa da administração, no prazo de 4 anos após a liquidação ou a todo o tempo se o tributo ainda não tiver sido pago, com fundamento em erro imputável aos serviços.

 

82. É entendimento pacífico da jurisprudência do STA que, para efeitos do n.º 1 do artigo 78.º da LGT e em face da teleologia que subjaz ao instituto da revisão, este não abrange apenas os pedidos de revisão oficiosa da iniciativa da administração tributária, mas também a revisão do ato de liquidação requerida pelo sujeito passivo e como tal abrangida pelo prazo alargado de 4 anos. A revisão é, portanto, um afloramento do dever de revogação de atos tributários ilegais, que encontra arrimo nos princípios da legalidade, da justiça, da igualdade e da imparcialidade, que são princípios fundamentais da atividade administrativa (cf. artigo 266.º, n.º 2 CRP e artigo 55.º da LGT). E «face a tais princípios, não se vê como possa a Administração demitir-se legalmente de tomar a iniciativa de revisão do acto quando demandada para o fazer através de pedido dos interessados já que tem o dever legal de decidir os pedidos destes» (acórdão do STA, 11.05.2005, processo n.º 0319/05).

 

83. Neste sentido, tal como este Tribunal arbitral a compreende, a revisão do ato tributário prevista no n.º 1 do artigo 78.º da LGT é um modo de reação complementar aos meios administrativos e contenciosos gerais e especiais, que tem o seu campo primordial de aplicação naquelas situações em que já não é possível a impugnação do ato tributário, ou seja, em todos os casos em que o contribuinte, não logrou lançar mão, por sua iniciativa, dos processos impugnatórios previstos na lei (cf. decisão arbitral do CAAD de 24.06.2021, processo n.º 500/2020-T). Como se lê no acórdão do STA de 08.06.2022, processo n.º 0174/19.7BEPDL, “[e]m função do respetivo, integral, conteúdo normativo, o art. 78.º da LGT consubstancia, no âmbito da proteção dum Estado de Direito, um depósito de garantias, acrescidas, de defesa e reposição da legalidade, concedidas aos sujeitos de relações jurídico-tributárias”.

 

84. Os mecanismos de reembolso previstos nos artigos 15.º e ss. do CIEC não constituem lex specialis que afaste a aplicação do artigo 78.º da LGT ao caso sub judice. O procedimento de revisão oficiosa assume-se, tanto pela sua localização sistemática (na LGT), como pelo substrato teleológico que lhe preside, como uma garantia dos contribuintes que acresce às previstas no CIEC ou noutra legislação especial.

 

85. Esta modalidade de revisão do ato tributário só é possível nas situações em que haja “erro imputável aos serviços”, aqui compreendido não só o lapso, o erro material ou o erro de facto, como, também, o erro de direito, do qual tenha resultado, para o contribuinte, uma liquidação de imposto superior ao devido. Essa imputabilidade aos serviços é independente da demonstração da culpa dos funcionários envolvidos na emissão da liquidação afetada pelo erro (cf., entre outras, a decisão arbitral do CAAD de 24.03.2022, processo n.º 615/2021-T, e, entre outros, os acórdãos do STA de 12.02.2001, recurso n.º 26233, de 11.05.2005, recurso n.º 0319/05, de 26.04.2007, recurso n.º 39/07, de 14.03.2012, recurso n.º 01007/11 e de 18.11.2015, recurso n.º 1509/13).

 

86. Como se lê no acórdão do STA de 12.02.2001, recuperado recentemente no acórdão do STA de 03.06.2020, «havendo erro de direito na liquidação, por aplicação de normas nacionais que violem o direito comunitário e sendo ela efetuada pelos serviços, é à administração tributária que é imputável esse erro, sempre que a errada aplicação da lei não tenha por base qualquer informação do contribuinte (...)» (cf. acórdão do STA de 03.06.2020, processo n.º 018/10).

 

87. E não valerá a pena invocar que, ao contrário dos tribunais – que têm, nos termos do artigo 204.º da CRP, acesso direto à Constituição – não tem a Administração Tributária o poder-dever de desaplicar normas inconstitucionais e, por maioria de razão, normas contrárias ao direito da União. Com efeito, desde a prolação do acórdão Fratelli Costanzo, pelo Tribunal de Justiça, existe jurisprudência constante no sentido de que o princípio do primado – e o seu corolário prático, o princípio do efeito direto – estende à administração pública o dever de desaplicar as disposições de direito nacional contrárias a uma norma de direito da União que goze de efeito direto (acórdão Fratelli Costanzo, processo 103/88, em particular, § 31).

 

88. Assim, havendo erro imputável aos serviços, o prazo para apresentar o pedido de revisão oficiosa é de 4 anos após a liquidação, e não de 120 dias, como sustenta a AT. O pedido de revisão oficiosa foi recebido pela AT em 07-09-2023 (cf. documento n.º 05 junto com o PPA), tendo por objeto atos de liquidação de CSR relativos a faturas emitidas pela aquisição de combustível no período entre setembro de 2019 e dezembro de 2022. Não sendo a Requerente sujeito passivo de ISP / CSR, nem sendo responsável pelo pagamento do imposto ao Estado, a contagem do prazo para a apresentação de pedido de revisão oficiosa só pode tomar como referente a data constante das faturas de aquisição de combustível juntas aos autos com o PPA. Logo, o pedido foi apresentado tempestivamente, isto é, antes de decorridos quatro anos desde a data da liquidação, que é o prazo que releva à luz do n.º 1 do artigo 78.º da LGT, em face da ocorrência de “erro imputável aos serviços”.

 

89. O indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa formou-se a partir de 07-01-2024, ou seja, quatro meses após a AT ficar constituída no dever de decidir (artigo 57.º, n.º 1 da LGT). Por conseguinte, o PPA, apresentado em 08-04-2023, é também tempestivo. 

 

90. Pelo que, pelas razões expostas, improcede a exceção relacionada com a caducidade do direito de ação.

 

III – Matéria de facto

 

  1. Factos provados

 

91. Consideram-se provados os seguintes factos:

 

  1. A Requerente é uma associação com o escopo principal a proteção de pessoas e bens, designadamente o socorro de feridos, doentes ou náufragos e a extinção de incêndios, devendo e mantendo, para esse efeito, um corpo de bombeiros voluntários ou misto, destinado, precisamente à efetivação desse socorro, bem como a proteger, por qualquer forma, vidas humanas, bens naturais e natureza.
  2. No período compreendido entre setembro de 2019 e dezembro de 2022, a Requerente adquiriu no âmbito da sua atividade, 103.193,24 litros de gasóleo e 980,21 litros de gasolina às sociedades B... LDA., C... LDA., D..., S.A., E... UNIPESSOAL, LDA., F... LDA., G...- SOCIEDADE UNIPESSOAL LDA., H..., S.A., I..., LIMITADA, J..., LDA., K..., S.A., L..., S.A., M... LDA., N... LDA – cf. faturas identificadas sob os documentos n.ºs 1, 2, 3 e 4 juntos com o PPA.
  3. De entre os fornecedores de combustível da Requerente, só a L..., S.A. detinha o estatuto de sujeito passivo de ISP/CSR no período a que se reportam as faturas.
  4. Em 06-09-2023, a Requerente apresentou, perante a Alfândega de Freixieiro, um pedido de revisão oficiosa dos atos de liquidação da Contribuição de Serviço Rodoviário, referentes ao período de setembro de 2019 a dezembro de 2019, invocando que o encargo tributário foi repercutido na sua esfera jurídica pelos respetivos fornecedores – cf. documento n.º 05, junto com o PPA, e o processo administrativo.
  5. O pedido de revisão oficiosa foi recebido em 07-09-2023.
  6. A Autoridade Tributária e Aduaneira não emitiu decisão quanto ao pedido de revisão oficiosa no prazo legalmente cominado para o efeito.
  7. O pedido arbitral deu entrada em 08-04-2024.

 

  1. Factos não provados

92. Não sendo os fornecedores de combustível da Requerente (à exceção da L..., S.A.) sujeitos passivos de ISP/CSR, não ficou provado que tenham apresentado à AT as declarações de introdução no consumo (DIC) nos períodos a que se reportam as faturas juntas com o PPA, nem ficou demonstrado que tenham sido emitidas quaisquer liquidações de CSR relativamente às vendas que efetuaram. Tão-pouco se considera provado que o valor da CSR tenha sido repercutido sobre a Requerente, pelas razões seguidamente enunciadas.

 

  1. Fundamentação da decisão da matéria de facto

 

93. Os factos dos pontos A, B, D, E, F e G resultam da prova documental junta aos autos, mormente dos documentos n.ºs 01, 02, 03, 04 e 05. O facto do ponto C foi alegado pela Requerida (pontos 32.º e 234.º da Resposta), não contraditado pela Requerente.

 

94. A repercussão de um imposto não se presume mesmo quando seja legalmente exigida a incorporação do imposto no preço de venda dos bens (repercussão legal), ou mesmo que, habitualmente, no domínio do comércio, o imposto seja parcial ou totalmente repercutido. Neste sentido, para o Tribunal de Justiça, a repercussão tributária – legal ou não – é uma questão de facto, que depende de fatores inerentes a cada transação comercial e será mais ou menos provável consoante as caraterísticas do mercado, mormente a sua elasticidade ou inelasticidade (Despacho Vapo Atlantic, processo C-460/21, §44; Weber’s Wine, processo C-147/01, §96).

 

95. Ora, no caso das faturas emitidas por fornecedores que não são sujeitos passivos de CSR (à exceção de três faturas emitidas pela L..., S.A, constantes dos documentos n.º 02 e 04), desconhece-se a quem terão adquirido o combustível que forneceram à Requerente e se terão suportado CSR nessa aquisição (cf., neste sentido, Processo n.º 410/2023-T, acórdão do CAAD com data de 13-11-2023). A cadeia comercial assume, nesta hipótese, maior complexidade, inviabilizando ou dificultando a reconstituição da ocorrência de repercussão e os seus exatos termos. Entende-se, por outra banda, que, não recaindo presunção sobre a ocorrência de repercussão, os meios de prova que foram juntos ao processo são insuficientes para o Tribunal arbitral formar a convicção segura, atentas as especificidades das transações comerciais envolvidas, de que, no presente caso, a entidade que introduziu o combustível no consumo (in casu, apenas a L..., S.A.) e o alienou à Requerente terá efetivamente repercutido sobre esta os montantes que lhe foram liquidados a título de CSR.

 

IV – Fundamentação de direito

 

  1. Da ilegalidade das liquidações: a questão da violação do Direito da União

 

96. A questão que vem colocada é a de saber se a Contribuição de Serviço Rodoviário, criada pela Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto, que constitui um imposto incidente sobre os combustíveis rodoviários também sujeitos ao Imposto sobre Produtos Petrolíferos, e que se encontra enquadrada pela Diretiva n.º 2008/118/CE, tem um “motivo específico” na aceção do artigo 1.º, n.º 2, dessa Diretiva.

 

97. Na processo de reenvio prejudicial que originou o Despacho Vapo Atlantic, processo C-460/21, o Tribunal de Justiça foi chamado a responder à seguinte questão: “O artigo 1.°, n.º 2, da Diretiva [2008/118], e designadamente a exigência de “motivos específicos”, deve ser interpretado no sentido de que a finalidade de um imposto é meramente orçamental quando a sua criação é feita com o objetivo de financiar empresa pública concessionária da rede nacional de estradas, por ocasião da renovação da sua concessão, e à qual a receita do imposto fica genericamente afetada, e a sua estrutura não atesta a intenção de desmotivar um qualquer consumo?”.

 

98. Entendeu o Tribunal de Justiça que a resposta à questão prejudicial poderia ser claramente deduzida da jurisprudência ou não suscitava qualquer dúvida razoável, pelo que estariam verificados os pressupostos para que pudesse pronunciar-se através de Despacho fundamentado, nos termos do artigo 99.º do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça. O que aconteceu, em termos que o Tribunal arbitral sintetiza da seguinte forma (§§ 20-36):

 

a)    A Diretiva 2008/118/CE não se opõe a que os Estados-membros estabeleçam outras imposições indiretas para além do imposto especial sobre o consumo mínimo. Mister é que tais imposições, no sentido de não entravar as trocas comerciais, sejam cobradas por “motivos específicos” e sejam conformes com as normas fiscais da União aplicáveis ao imposto especial de consumo e ao imposto sobre o valor acrescentado no que diz respeito à determinação da base tributável, à liquidação, à exigibilidade e ao controlo do imposto (artigo 1.º, n.º 2 da Diretiva).

b)    O facto de um imposto ter uma finalidade orçamental não obsta a que possa ter uma finalidade específica na aceção da Diretiva. Mas a existência de um motivo ou finalidade específicos pressupõe que se possa estabelecer, a partir do regime jurídico do tributo, uma relação direta entre a utilização das receitas e a finalidade da imposição em causa.

c)    A alocação da receita do tributo ao financiamento de atribuições administrativas, em particular a adjudicação da receita da CSR ao financiamento da concessionária da rede rodoviária nacional, constitui um elemento relevante, ainda que insuficiente, para que se logre identificar um motivo específico.

d)    Para que se considere que a imposição indireta prossegue efetivamente uma finalidade específica, mormente de redução da sinistralidade e de sustentabilidade ambiental, é necessário que o produto desse imposto seja obrigatoriamente utilizado para reduzir os custos sociais e ambientais associados à utilização da rede rodoviária nacional. O que não acontece com a CSR, cuja receita se destina, mais amplamente, a assegurar o financiamento da atividade de conceção, projeto, construção, exploração, requalificação e alargamento da rede rodoviária nacional. Acresce que a estrutura da CSR, nomeadamente a matéria coletável ou a taxa de tributação, não espelha, em termos suficientemente precisos, o propósito de reduzir a sinistralidade, dissuadir os sujeitos passivos do tributo de utilizarem a rede rodoviária nacional ou incentivar a adoção de comportamentos menos nocivos para o ambiente.

e)    A CSR tem uma finalidade puramente orçamental, na aceção da Diretiva 2008/118/CE.

 

99. É certo que, em sede de reenvio prejudicial de interpretação, o Tribunal de Justiça se limita a esclarecer o modo como devem ser interpretadas as disposições de Direito da União (originário ou derivado) pertinentes para a resolução do caso concreto, não se debruçando sobre a questão principal do processo, que é reduto de competência do órgão jurisdicional nacional.

 

100. Contudo, no Despacho analisado, o Tribunal de Justiça afirma claramente que as finalidades específicas apontadas pela AT – a redução da sinistralidade e a sustentabilidade ambiental – não se mostram suficientemente respaldadas na estrutura do tributo, em termos de matéria coletável ou da taxa de tributação aplicável. Esta asserção não é infirmada pelo que eventualmente resulte do clausulado do contrato de concessão da rede rodoviária nacional, ao contrário do que sugere a Requerida. O Tribunal de Justiça é muito claro no sentido de que não se prova uma relação direta entre a utilização das receitas e a finalidade da imposição em causa só porque a entidade a quem está legalmente alocada a respetiva receita assumiu compromissos no âmbito da redução da sinistralidade ou da proteção do ambiente. Não tendo sido alegados elementos que permitam chegar a outra conclusão, entende o Tribunal arbitral que a CSR é uma imposição indireta que não prossegue um motivo específico na aceção da Diretiva 2008/118/CE.

 

101. O Tribunal de Justiça tem declarado reiteradamente que os Estados-membros estão, em princípio, obrigados a restituir os impostos cobrados por um Estado-membro em violação do Direito da União. Esta obrigação conhece apenas uma exceção, reiterada no Despacho Vapo Atlantic: um Estado-membro só se pode opor ao reembolso de um imposto indevidamente cobrado à luz do direito da UE quando as autoridades nacionais provarem que o imposto foi suportado na íntegra por pessoa diferente do sujeito passivo e que o reembolso do imposto implicaria um enriquecimento sem causa deste último (Despacho Vapo Atlantic, §39-42; acórdão Weber’s Wine, processo C-147/01, §93-94).

 

102. Como se adiantou supra, a repercussão tributária – legal, ou não – é uma questão de facto, que depende de fatores inerentes a cada transação comercial e será mais ou menos provável consoante as caraterísticas do mercado, mormente a sua elasticidade ou inelasticidade (Despacho Vapo Atlantic, processo C-460/21, §44; Weber’s Wine, processo C-147/01, §96).

 

103. Mesmo quando se prove a ocorrência de repercussão, a restituição do imposto ao sujeito passivo não consubstancia necessariamente um enriquecimento sem causa, porquanto o sujeito passivo pode sofrer prejuízos associados à diminuição das suas vendas, por comparação com produtos sucedâneos não sujeitos a idêntica imposição. A circunstância de a lei prever a repercussão não dispensa a AT ou o particular (consoante os casos) de demonstrar que essa repercussão ocorreu, cabendo a decisão ao órgão jurisdicional nacional decidir, a partir da livre apreciação dos elementos de prova que lhe tenham sido submetidos (Despacho Vapo Atlantic, processo C-460/21, §44).

 

104. Acontece que, no presente caso, e pelas razões expostas supra, o Tribunal arbitral não deu como provada a repercussão da CSR sobre a Requerente. Na ausência de prova bastante de que tenha havido lugar à repercussão, não tem a Requerente direito à restituição do imposto, pelo que o pedido arbitral se mostra improcedente.

 

  1. Reembolso do imposto indevidamente pago e juros indemnizatórios

 

105. Face à improcedência do pedido principal, fica necessariamente prejudicado o conhecimento do pedido acessório de reembolso do imposto pago e de pagamento de juros indemnizatórios.

 

  1. Quanto à constitucionalidade do regime jurídico da CSR

 

106. Fica também prejudicado o conhecimento da questão de constitucionalidade, incidente sobre o regime jurídico da CSR, por violação dos princípios da igualdade tributária e da capacidade contributiva (artigo 13.º CRP). A questão de constitucionalidade deve ser relevante para a decisão da questão principal do processo. Ora, a decisão que este tribunal arbitral venha a proferir sobre a constitucionalidade daquele diploma não poderá projetar-se sobre a questão principal do processo, que leva pressuposta a ocorrência de repercussão e a consolidação, na esfera jurídica da Requerente, do direito ao reembolso do imposto. A questão de constitucionalidade só seria relevante para o caso concreto se verificadas esta conjugação de circunstâncias.

 

V- Decisão

O Tribunal Arbitral decide:

a)    Julgar improcedentes as exceções dilatórias e perentórias invocadas;

b)    Julgar improcedente o pedido arbitral e manter na ordem jurídica os atos de liquidação impugnados, bem como a decisão de indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa;

d)    Julgar prejudicado o conhecimento do pedido acessório de reembolso do imposto pago e de pagamento de juros indemnizatórios.

e) Não conhecer da questão de constitucionalidade alegada pela Requerente;

 

 

Valor da causa: € 11.539,73 nos termos do disposto no artigo 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem.

 

Custas: Nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 24.º, n.º 4, do RJAT, e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e Tabela I anexa a esse Regulamento, fixa-se o montante das custas em € 918,00, a cargo da Requerente.

 

Notifique-se.

 

CAAD, 07 de novembro de 2024

 

 

O Árbitro

 

(Marta Vicente)

 

 



[1] Cf., igualmente, os acórdãos do CAAD de 13-11-2023, processo n.º 410/2023-T; de 03-08-2022, processo n.º 629/2021-T; de 16-01-2023, processo n.º 305/2022-T; de 09-02-2024, processo n.º 490/2023-T; de 01-02-2024, processo n.º 332/2023-T; de 14-05-2024, processo n.º 790/2023-T, entre outros.

[2] O artigo 2.º do CIEC tem agora a seguinte redação: “Os impostos especiais de consumo obedecem ao princípio da equivalência, procurando onerar os contribuintes na medida dos custos que estes provocam, designadamente nos domínios do ambiente e da saúde pública, sendo repercutidos nos mesmos, em concretização de uma regra geral de igualdade tributária”. Conclusão para que já antes apontava o artigo 93.º-A do CIEC, que se refere abertamente ao “imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos suportado pelas empresas de transporte de mercadorias e de transporte coletivo de passageiros”. Apesar da controvérsia constitucional em torno das leis interpretativas em matéria fiscal, nem todas as leis a que o legislador atribua natureza interpretativa serão retroativas e, consequentemente, inconstitucionais. No acórdão n.º 121/2023, tirado em Plenário, o Tribunal Constitucional consolidou a distinção entre leis “genuinamente” interpretativas, que são aquelas que vêm fixar um do sentidos possíveis de uma norma controvertida e que, por isso, não frustram as legítimas expetativas dos contribuintes, e as leis “falsamente” interpretativas, ou seja, leis às quais o legislador atribui caráter interpretativo, mas que têm conteúdo inovador desfavorável para o contribuinte, que são proibidas à luz do artigo 103.º, n.º 3 da CRP.