SUMÁRIO:
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A utilização de valores de preços de transferência não conformes com o princípio da plena concorrência em operações vinculadas determina a possibilidade legal de exigir juros compensatórios e moratórios por atraso no pagamento da dívida tributária, uma vez definido por via legal o correto valor aplicável.
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A não utilização de valores de preços de transferência adequados é responsabilidade fiscal da empresa dominante.
DECISÃO ARBITRAL
Os árbitros Conselheiro Carlos Alberto Fernandes Cadilha (Presidente), Dra. Elisabete Flora Louro Martins Cardoso e Prof. Doutor Vasco António Branco Guimarães (relator), árbitros designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formar o Tribunal Arbitral, constituído em 04-06-2024, deliberam o seguinte:
1. Relatório
A..., SGPS, S.A., com o número único de matrícula e identificação fiscal..., com sede social na ..., n.º ..., ...-... Lisboa, doravante designada por “A... SGPS” ou “requerente”, sociedade dominante de grupo (o “Grupo B...” ou o “Grupo Fiscal B...”) sujeito em 2015, 2016 e 2017 ao regime especial de tributação dos grupos de sociedades previsto, desde 2010 até hoje, nos artigos 69.º (e, anteriormente, de 2004 a 2009, nos artigos 63.º) e seguintes do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (“CIRC”), e estando abrangida pelos serviços periféricos locais do Serviço de Finanças de Lisboa ..., (doravante designada por “Requerente”), apresentou, ao abrigo do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (doravante “RJAT”) pedido de pronúncia arbitral tendo em vista a declaração de ilegalidade dos seguintes atos objeto do pedido de pronúncia do Tribunal Arbitral:
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O indeferimento da reclamação graciosa (cuja cópia se juntou como Documento n.º 1) contra os atos tributários de liquidação adicional de IRC, na parte referente aos juros, n.º 2022... (junto como Documento n.º 2), n.º 2022 ... (junto como Documento n.º 3) e n.º 2022... (junto como Documento n.º 4), respeitantes aos períodos de tributação de 2015, 2016 e 2017, respetivamente e, consequentemente (e em termos finais ou últimos), os atos tributários de liquidação adicional de IRC na parte referente aos juros que aqui está em causa, do Grupo Fiscal B..., relativos aos exercícios de 2015, 2016 e 2017, na medida em que estas liquidações adicionais enfermam de ilegalidade por incluírem juros compensatórios e juros de mora indevidamente suportados sobre parte de IRC em falta, posteriormente liquidado pelo Grupo B..., e ilegalidade no que respeita ao montante de € 587.359,73 (incluindo € 331.404,53 relativamente a juros compensatórios e € 255 955,38 relativos a juros de mora).
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Termina solicitando que: Deve ser declarada a ilegalidade do indeferimento da RECLAMAÇÃO GRACIOSA supra melhor identificado e, bem assim, a ilegalidade das liquidações de juros (compensatórios e de mora) relativas aos exercícios de 2015, 2016 e 2017 DO GRUPO FISCAL B..., NOS MONTANTES DE € 203.144,59, DE € 216 440,72 E DE € 167.774,42, RESPETIVAMENTE, NO TOTAL DE € 587.359,73, COM A SUA CONSEQUENTE ANULAÇÃO NESTES MONTANTES, POR VIOLAÇÃO DE LEI E DO PRINCÍPIO DA LEGALIDADE, COM TODAS AS CONSEQUÊNCIAS LEGAIS, DESIGNADAMENTE:
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O REEMBOLSO DO MONTANTE TOTAL DE €587.359,73, ACRESCIDO DE JUROS INDEMNIZATÓRIOS À TAXA LEGAL CONTADOS DESDE (I) 29.03.2023 RELATIVAMENTE AO MONTANTE DE IMPOSTO INDEVIDAMENTE SUPORTADO DE € 419.585,31 (RESPEITANTE AOS EXERCÍCIOS DE 2015 E 2016), e,
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DESDE 14.04.2023 RELATIVAMENTE AO MONTANTE DE IMPOSTO INDEVIDAMENTE SUPORTADO DE € 167.774,42 (RESPEITANTE AO EXERCÍCIO DE 2017), ATÉ INTEGRAL REEMBOLSO DESTES MONTANTES.
É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA.
O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 22-03-2024.
Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral os acima referidos, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
Em 14-05-2024 foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º n.º 1 alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral coletivo foi constituído em 04-06-2024.
A Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou resposta em que defendeu que os pedidos devem ser julgados improcedentes por exceção e impugnação.
Por despacho de 27-09-2024, foi dispensada a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT bem como as alegações escritas, tendo já sido exercido o contraditório em relação às exceções.
O tribunal arbitral foi regularmente constituído, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro.
As partes estão devidamente representadas gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
O processo não enferma de nulidades.
2. Matéria de facto
2.1. Factos provados
Consideram-se provados os seguintes factos com relevância para a decisão da causa:
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A Requerente, A..., SGPS, S.A., com o número único de matrícula e identificação fiscal..., com sede social na ..., n.º ..., ...-... Lisboa, é a sociedade dominante do grupo sujeito ao RETGS denominado “Grupo B...” ou o “Grupo Fiscal B... .
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As liquidações que aqui se contestam: n.º 2022..., n.º 2022 ... e n.º 2022..., respeitantes aos períodos de tributação de 2015, 2016 e 2017, relacionam-se com diversas correções, quer ao nível do apuramento do lucro tributável, quer ao nível do apuramento do imposto por si a pagar, todas acrescidas de juros compensatórios e de mora.
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As correções do lucro e do imposto a pagar foram determinadas pela não dedutibilidade fiscal de gastos suportados pela requerente com operações de financiamento intra-grupo, em concreto decorrentes de financiamentos obrigacionistas e papel comercial subscrito pela sua participada C... BV, sociedade residente para efeitos fiscais nos Países Baixos e filial 100% detida pela Requerente.
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Os montantes corrigidos pela Requerida foram efetuados em cumprimento das ordens de serviço n.º OI2018..., OI2018...e OI201..., tiveram originariamente a seguinte expressão:
Operações de financiamento intragrupo (artigo 63º do Código do IRC) Montante (€)
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2015 - 6.037.786,68
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2016 - 6.485.911,00
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2017 - 10.130.220,00
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Através do Procedimento Amigável, as autoridades tributárias de ambos os Estados acordaram uma repartição de remuneração a adotar na relação entre a A... SGPS e a C... BV distinta daquela que havia sido inicialmente acordada entre as partes, tendo desta forma a A... SGPS visto reduzir os seus custos referentes àquelas operações intra-grupo nos seguintes montantes:
Operações de financiamento intragrupo (artigo 63º do Código do IRC) Montante (€)
2015 - 4.309.148,00
2016 - 4.244.453,00
2017 - 4.830.640,00
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Destas correções resultaram novas liquidações e acertos de contas que foram aceites pela Requerente do PPA.
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Para efeitos do pagamento, pela requerente, dos valores de imposto adicional que resultaram do acordo alcançado no âmbito da Convenção de Arbitragem, foram emitidos pela UGC documentos únicos de cobrança (“DUC”) para os períodos de tributação de 2015, 2016 e 2017 (conforme Documentos n.ºs 14 a 16 do PPA), os quais refletem, para além do montante de IRC em falta e respetivos juros compensatórios e também juros de mora e outros encargos.
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A Requerente liquidou os DUCs emitidos pela Requerida nos prazos fixados.
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A Requerente reclamou graciosamente da liquidação e cobrança dos juros compensatórios e moratórios e teve a reclamação indeferida.
2.2. Factos não provados e fundamentação da fixação da matéria de facto
Os factos provados baseiam-se nos documentos juntos pela Requerente e os que constam do processo administrativo.
Não se retiram outros factos relevantes dos articulados por serem citações de textos legais, acórdãos ou posições de parte sem conteúdo fáctico.
3. Matéria de direito
As questões de mérito que são objeto deste processo são:
- Decidir se são devidos juros compensatórios e/ou moratórios no pagamento de impostos que resultam da correção dos lucros entre empresas associadas deliberados pela aplicação da Convenção de Arbitragem de 23 de julho de 1990.
3.1. Posições das Partes
A Requerente defende o seguinte, em suma:
- O resultado da aplicação de arbitragem resolve o litígio entre as Partes e não deve dar lugar ao pagamento de juros.
A AT defende:
- A liquidação corretiva que resulta da deliberação arbitral não inclui juros mas estes são devidos, ope legis, pelo atraso provocado no recebimento.
3.2. Apreciação da questão. Saneamento do processo.
Em sede de saneamento do processo importa, desde logo, apreciar as alegadas exceções colocadas na Resposta pela Requerida.
Aí, são apontadas as seguintes exceções: i) incompetência material do tribunal arbitral; ii) intempestividade da impugnação dos exercícios de 2015 e 2016; iii) não impugnabilidade dos atos de liquidação corretiva de IRC dos anos 2015, 2016, 2017; iv) incompetência material do TA para questões de execução de julgados – impugnabilidade de liquidações corretivas; v) incompetência material do TA para apreciação de atos praticados em processo de execução fiscal.
Vejamos: o PPA que é objeto de análise tem como pedido a anulação por erro da cobrança de juros compensatórios e moratórios de uma liquidação dos anos 2015, 2016 e 2017 referente a IRC, onde houve correção de custos de financiamento pagos a uma subsidiária holandesa 100% detida pela Requerente. Os custos de financiamento declarados foram corrigidos pela AT tendo o seu valor final sido fixado por via de uma decisão arbitral europeia prevista para garantir o equilíbrio do ajustamento correlativo. Este processo terminou na efetivação de novas liquidações que, como é de lei, são impugnáveis. O objeto da impugnação são as liquidações acima referidas que estão no âmbito da competência deste Tribunal logo, improcedem todas as exceções alegadas pela Requerida i) por se referirem a realidades que não estão no processo ou ii) foram objeto de alterações determinadas antes ou depois das correções que determinaram a existência das liquidações impugnadas.
O Tribunal é competente e não existem exceções que obstem à apreciação da questão colocada à apreciação deste Tribunal.
3.3. Juros compensatórios.
Dispõe o n.º 1 do artigo 35.º da LGT:
1 - São devidos juros compensatórios quando, por facto imputável ao sujeito passivo, for retardada a liquidação de parte ou da totalidade do imposto devido ou a entrega de imposto a pagar antecipadamente, ou retido ou a reter no âmbito da substituição tributária.
No caso em apreço houve retardamento da liquidação devida? Afigura-se-nos que sim porque a Requerente declarou numa operação vinculada valores de custo de financiamento superiores aos corretos. Isto determinou que as liquidações de 2015, 2016 e 2017 em IRC só puderam ser feitas em 2022, depois de correções e reclamações sobre as mesmas. Se a Requerente tivesse declarado um valor correto e aceitável de valor de plena concorrência dos custos de financiamento não teria havido necessidade de correção, nem atraso na liquidação. A demora é imputável à Requerente e os juros compensatórios são devidos.
3.4. Juros moratórios.
Dispõe o artigo 44.º da LGT:
1 - São devidos juros de mora quando o sujeito passivo não pague o imposto devido no prazo legal.
2* - Os juros de mora aplicáveis às dívidas tributárias são devidos até à data do pagamento da dívida.
Resulta provado dos autos que os valores da dívida referente aos anos de 2015, 2016 e 2017 só foram pagos em 2022. Este atraso não é imputável à Requerida, mas sim à prática da Requerente na fixação dos valores das operações de financiamento vinculadas. A manipulação dos preços de transferência em operações vinculadas entre empresas com relações especiais não pode determinar uma vantagem para quem a pratica.
Isto implicou que a Requerente não tenha pagado no prazo legal o imposto devido para cada um dos anos em apreciação. São em consequência devidos juros de mora por aplicação do preceito legal invocado.
4. Decisão.
Nos termos e com os fundamentos expostos, o Tribunal Arbitral decide julgar improcedente o pedido de pronúncia arbitral, não determinando a anulação do indeferimento da reclamação graciosa nem das liquidações de juros aqui impugnadas.
Valor do processo: Fixa-se o valor do processo em € 587.359,73 (quinhentos e oitenta e sete, trezentos e cinquenta e nove mil euro e setenta e três cêntimos), nos termos do artigo 97.º -A, n.º 1, alínea a do CPPT, aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e artigo n.º 2 do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
Custas: Vai a Requerente condenada em custas por ser sua a responsabilidade da ilegalidade existente, sendo o seu montante fixado em 8.874,00 Euro (oito mil oitocentos e setenta e quatro euro).
Lisboa, 29 de novembro de 2024.
Os Árbitros
Conselheiro Carlos Alberto Fernandes Cadilha (Presidente),
Dra. Elisabete Flora Louro Martins Cardoso
Prof. Doutor Vasco António Branco Guimarães (relator)