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Sumário:
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Gestão de fundos comuns de investimento – conceito para efeitos de isenção de IVA ao abrigo do n.º1 do artigo 135.º da Diretiva IVA (Diretiva 2006/112/CE, de 28 de novembro de 2006).
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IVA indevidamente liquidado – Reembolso de Imposto entregue em excesso.
Decisão Arbitral
O árbitro Júlio Tormenta, designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formar o Tribunal Arbitral, constituído em 28 de maio de 2024, acorda no seguinte:
1.Relatório
A... - Sociedade Gestora de Organismos de Investimento Coletivo, S.A., com o número de identificação fiscal n.º ... e sede na ..., nº ...-..., ...- ... Lisboa, doravante abreviadamente designada por “Sociedade Gestora” ou “A...” vem, na qualidade de sociedade gestora (e, por conseguinte, representante fiscal) dos seguintes fundos de investimento mobiliário abertos, aqui requerentes (coletivamente designados doravante por “Fundos” ou “Requerentes”):
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Fundo de Investimento Mobiliário Aberto Flexível B... (no qual foi fusionado o fundo de investimento alternativo aberto flexível C...), com o número de identificação fiscal...;
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D...- Fundo de Investimento Mobiliário Aberto do Mercado Monetário (anteriormente designado E...- Fundo de Investimento Imobiliário Aberto), com o número de identificação fiscal...;
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F...- Fundo de Investimento Mobiliário Aberto, com o número de identificação fiscal ...;
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G... - Fundo de Investimento Mobiliário Aberto, com o número de identificação fiscal ...;
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H...- Fundo de Investimento Mobiliário Aberto, com o número de identificação fiscal ...;
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I...- Fundo de Investimento Mobiliário Aberto, com o número de identificação fiscal ...;
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J...- Fundo de Investimento Mobiliário Aberto, com o número de identificação fiscal ...;
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K...- Fundo de Investimento Mobiliário Aberto, com o número de identificação fiscal ...;
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L...- Fundo de Investimento Mobiliário Aberto, com o número de identificação fiscal ...;
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M...- Fundo de Investimento Mobiliário Aberto (anteriormente designado N...- Fundo de Investimento Imobiliário Aberto), com o número de identificação fiscal ...;
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O...- Fundo de Investimento Mobiliário Aberto, com o número de identificação fiscal ...;
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P...- Fundo de Investimento Aberto de Ações, com o número de identificação fiscal...;
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Q...- Fundo de Investimento Aberto de Ações, com o número de identificação fiscal ...;
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R...-Fundo de Investimento Aberto de Ações, com o número de identificação fiscal...;
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S...- Fundo de Investimento Aberto de Poupança Reforma (anteriormente designado T...- Fundo de Investimento Aberto de Poupança Reforma), com o número de identificação fiscal...;
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U...- Fundo de Investimento Aberto de Poupança Reforma, com o número de identificação fiscal ...;
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V...- Fundo de Investimento Aberto de Ações, com o número de identificação fiscal ...;
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W...- Fundo de Investimento Mobiliário Aberto Flexível, com o número de identificação fiscal...;
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X...- Fundo De Investimento Aberto de Poupança Reforma (aqui se incluem os seus compartimentos Y... Ciclo de Vida - 45 -54 / Z... Ciclo de Vida - 35 -44 / AA... Ciclo de Vida - 55 com os números de identificação fiscal: .../ ... / ... / ...;
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Fundo de Investimento Mobiliário Aberto do Mercado Monetário -BB..., com o número de identificação fiscal ...;
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Fundo de Investimento Mobiliário Aberto CC..., com o número de identificação fiscal...;
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Fundo de Investimento Mobiliário Aberto de Obrigações DD..., com o número de identificação fiscal ...;
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EE...- Fundo de Investimento Aberto de Acções, com o número de identificação fiscal ...;
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FF...- Fundo de Investimento Aberto de Acções, com o número de identificação fiscal...;
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GG...- Fundo de Investimento Aberto de Ações (anteriormente designado HH...- Fundo de Investimento Aberto de Ações), com o número de identificação fiscal ...;
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II...- Fundo de Investimento Mobiliário Aberto do Mercado Monetário, com o número de identificação fiscal...;
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JJ... - Fundo de Investimento Mobiliário Aberto, com o número de identificação fiscal ...
vem, nos termos do Decreto-Lei n.º 20/2011, de 20 de janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária ou “RJAT”) apresentar pedido de pronúncia arbitral (doravante designado de PPA) tendo em vista a anulação dos atos tributários de (auto)liquidação de Imposto sobre o Valor Acrescentado (“IVA”) efetuados pela entidade que prestou aos Requerentes/Fundos serviços de administração e gestão de fundos de investimento, durante os períodos de tributação de janeiro a dezembro de 2020, materializados na submissão das Declarações Periódicas referentes a tais períodos, no âmbito dos quais os Requerentes/Fundos suportaram um montante de IVA superior ao legalmente devido e, por conseguinte procederam ao pagamento de imposto em excesso no montante de € 25 147,05, bem como da (i)legalidade da decisão de indeferimento do Pedido de Revisão Oficiosa, datado de 12 de dezembro de 2023, emitida pela Autoridade Tributária e Aduaneira (“AT”) no âmbito do processo n.º ...2023..., apresentado pelos Requerentes/Fundos.
É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (doravante também identificada por “AT” ou simplesmente “Administração Tributária”).
O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT em 21.03.2024.
O signatário comunicou a aceitação do exercício das funções no prazo aplicável.
Em 08.05.2024, as Partes foram notificadas da designação do árbitro, não tendo manifestado vontade de recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1 alíneas a) e b), do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o tribunal arbitral coletivo foi constituído em 28.05.2024.
Em 29.05.2024 foi proferido o despacho ao abrigo do artigo 17.º do RJAT.
Em 03.07.2024 a AT apresentou Resposta defendendo a improcedência do pedido de pronúncia arbitral, tendo igualmente apresentado o Processo Administrativo.
Em 12-07-2024, foi proferido despacho ao abrigo do artigo 18.º do RJAT, dispensando-se a reunião prevista naquela norma, e, facultando-se às partes a possibilidade de, querendo, apresentarem alegações escritas.
As Partes apresentaram alegações escritas.
O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído, à face do preceituado na alínea e) do n.º 1 do artigo 2.º, e do n.º 1 do artigo 10.º, ambos do RJAT, e é competente.
As partes estão devidamente representadas gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (artigo 4.º e n.º 2 do artigo 10.º, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
O processo não enferma de nulidades processuais, nem existem exceções dilatórias ou perentórias ou questões prévias que obstem à apreciação do mérito da causa.
2.Matéria de facto
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Factos provados
Consideram-se provados os seguintes factos:
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A Sociedade Gestora dos Requerentes/A..., como entidade responsável pela administração dos Requerentes/Fundos, externaliza parte dos serviços necessários e indispensáveis à gestão e administração do portfólio de ativos que integram o património dos Requerentes/Fundos.
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Os Requerentes/Fundos incorrem em custos referentes à aquisição de serviços necessários e indispensáveis à referida atividade de gestão, designadamente, serviços de tesouraria, faturação, contabilidade, auditora e revisão legal e contas. Para cumprir as obrigações necessárias à gestão e administração dos Requerentes/Fundos, a Sociedade Gestora/A... recorreu a uma empresa especializada em serviços de tesouraria, faturação, contabilidade, auditoria e revisão legal e contas –KK..., S. A. ( doravante designada por KK...) celebrando um contrato de prestação de serviços [CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS DE REVISÃO LEGAL DE CONTAS E DE AUDITORIA] relativo à revisão legal de contas e de auditoria cobrindo os exercícios de 2018 a 2020, cfr Doc 2 anexo ao PPA.
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Ao abrigo do contrato mencionado em B. a sociedade prestadora dos serviços contratualizados emitiu as correspondentes faturas relativas ao exercício de 2020 aos Requerentes/Fundos liquidando IVA à taxa de 23%, cfr Doc 3 anexo ao PPA.
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A Sociedade Gestora/A... deduziu um Pedido de Revisão Oficiosa contra os atos tributários de autoliquidação de IVA, ao abrigo da alínea c) do n.º1 do artigo 54.º e 78.º, ambos da LGT, respeitantes aos períodos de imposto compreendidos entre janeiro e dezembro de 2020 submetidos pela entidade KK..., SA através da liquidação de IVA à taxa de 23%, que foi repercutido aos Requerentes/Fundos, no montante de € 25.147,05, nas faturas relativas aos serviços contratualizados constantes no ponto B. Entende que não deveria ter sido liquidado imposto, uma vez que às operações relativas à administração e gestão de fundos, se deve aplicar o disposto na subalínea g), da alínea 27, do artigo 9.º do CIVA e, por isso, houve liquidação de imposto em excesso por parte da KK..., tendo os Requerentes/Fundos suportado imposto indevidamente. Assim, vêm requerer a anulação dos atos de autoliquidação de IVA levados a cabo pela KK... e, consequentemente, a restituição do imposto por si indevidamente suportado. Por ofício datado de 12.12.2023 correspondente ao procedimento n.º ...2023... e Informação n.º 200-ISC/2023 (cujo teor se dá como inteiramente reproduzido), que consta como Doc. 1 anexo ao PPA. A Sociedade Gestora/A... foi notificada para exercer o contraditório através do exercício do direito de audição prévia, não o tendo exercido. A AT veio indeferir a pretensão da Sociedade Gestora/A... .
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Por carta datada de 27.11.2023, endereçada à KK... (registo RH ... PT, tendo a mesma sido entregue em 04.12.2023), veio pedir a anulação das faturas emitidas no período entre agosto de 2019 e dezembro de 2022, onde se compreende as faturas correspondentes ao período controvertido (janeiro a dezembro de 2020), emissão de novas faturas nas quais se aplicava a isenção prevista na subalínea g), da alínea 27, do artigo 9.º do CIVA com fundamento em legislação da TJUE (Acórdão do TJUE de 17 de junho de 2021, proferido nos processos apensos C-58/20 e C-59/20) e a correspondente restituição do IVA indevidamente suportado, cfr Doc 4 anexo ao PPA[1].
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A KK..., por carta datada de 1.02.2024, recusou corrigir as faturas emitidas, cfr Doc 5 anexo ao PPA.
2.2.Factos não provados
Não há factos com relevância para a decisão que não se tenham provado.
2.3.Fundamentação da decisão da matéria de facto
Cabe ao Tribunal Arbitral selecionar os factos relevantes para a decisão, em função da sua relevância jurídica considerando as várias soluções plausíveis das questões de Direito, bem como discriminar a matéria provada e não provada (cf. n.º 2 artigo 123.º do CPPT e n.ºs 3 e 4 do artigo 607.º, do CPC, aplicáveis ex vi alíneas a) e e) n.º 1 do artigo 29.º, do RJAT).
Segundo o princípio da livre apreciação dos factos, o Tribunal baseia a sua decisão, quanto à matéria de facto, na sua íntima e prudente convicção, formada a partir do exame e avaliação dos meios de prova trazidos ao processo, e de acordo com as regras da experiência de vida (cf. alínea e) artigo 16.º, do RJAT, e n.º 4 do artigo 607.º, do CPC, aplicável ex vi alínea e) n.º 1do artigo 29.º, do RJAT).
Consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados como factos provados, tendo por base a análise crítica e conjugada dos documentos juntos aos autos.
3.Questão a decidir
A KK... emitiu faturas de serviços de auditoria e revisão legal de contas relativos ao exercício de 2020 prestados aos Requerentes/Fundos com autoliquidação de IVA à taxa normal (23%).
A Sociedade Gestora/A... dos Requerentes/Fundos entende que os serviços acima referidos estão isentos ao abrigo da subalínea g), da alínea 27, do artigo 9.º do CIVA, pelo que deveriam ter sido debitados aos Requerentes/Fundos sem liquidação de IVA, tendo por isso ocorrido erro de direito, consubstanciado num erróneo enquadramento jurídico-tributário das operações em causa por parte do prestador de serviços. Assim, houve liquidação de imposto em excesso, vindo requerer a anulação parcial dos mencionados atos de autoliquidação de IVA, através de pedido de revisão oficiosa, com a consequente restituição do imposto indevidamente suportado pelos Requerentes/Fundos no montante de €25.147,05 e juros indemnizatórios.
A AT não concorda com a garantia impugnatória administrativa usada pela Sociedade Gestora/A... para valer as suas pretensões, neste caso concreto e entende que não houve imposto indevidamente faturado/liquidado e pago em excesso.
4.Matéria de direito
Tendo em conta a factualidade assente, para se analisar o mérito da questão a decidir, há que ter em conta a posição das partes.
4.1.Posições das Partes
Posição da Sociedade Gestora/A...
A Sociedade Gestora/A... defende o seguinte, em suma:
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O artigo 135.º, n.º 1, da Diretiva IVA[2], estabelece que:
«Os Estados-Membros isentam as seguintes operações:
[…]
g) A gestão de fundos comuns de investimento, tal como definidos pelos Estados-Membros; […]»
encontrando-se a isenção supra plasmada na legislação interna portuguesa na subalínea g) da alínea 27) do artigo 9.º do Código do IVA. Assim, a letra do referido preceito legal dispõe o seguinte:
«Estão isentas do imposto:
[…]
27) As operações seguintes:
[…]
g) A administração ou gestão de fundos de investimento; […]».
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Na legislação fiscal portuguesa não se escontra previsto o conceito de “fundos de investimento”, estando o mesmo definido no Regime da Gestão de Ativos, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 27/2023, de 28 de abril (doravante designado por “RGA”).
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De acordo com o RGA, os fundos de investimento, enquanto organismos de investimento coletivo (OIC) são patrimónios autónomos, sem personalidade jurídica, pertencentes aos participantes no regime geral de comunhão. As principais características dos fundos de investimento são:
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Em primeiro lugar, são patrimónios autónomos, isto é, os fundos de investimento só respondem pelas suas próprias dívidas, não podendo estas afetar o património geral do seu titular ou da entidade gestora, nos termos do artigo 12.º do RGA;
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Em segundo lugar, os fundos de investimento, assumindo a forma contratual, nos termos da alínea b) do artigo 3.º do RGA, carecem de personalidade jurídica, sendo nesse sentido insuscetíveis de serem titulares de direitos e obrigações. Desta característica resulta, nomeadamente, que a sua gestão é delegada num terceiro – a entidade/sociedade gestora;
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Por último, o estatuto jurídico do participante é representado por uma quota-parte ideal sobre o património do organismo, denominada de «unidade de participação», nos termos do artigo 14.º do RGA;
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A entidade reguladora é a CMVM que define os fundos de investimento como “instrumentos financeiros que reúnem, por regra, capital de vários investidores, constituindo um património autónomo, gerido por profissionais (sociedades gestoras)”.
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O TJUE pronunciou-se sobre o conceito de “fundos comuns de investimento”, cfr artigo 64.º do PPA, podendo-se concluir que os Requerentes/Fundos são elegíveis para efeitos de aplicação da isenção prevista na da alínea g) do n.º 1 do artigo 135.º da Diretiva IVA.
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Adicionalmente uma Sociedade Gestora, ao abrigo do Anexo II e n.º1 do artigo 2.º da Diretiva 2009/65/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, 13 de julho de 2009 (Diretiva OICVM), pode desempenhar diferentes funções na atividade de gestão dos fundos de investimento, conforme identificado nos artigos 71.º, 72.º e ss. do PPA, onde se destacam os “Serviços jurídicos e de contabilidade de gestão do fundo” e “Controlo da observância da regulamentação”, entre outros. Assim, a aquisição de serviços de tesouraria, faturação, contabilidade, auditoria e revisão legal de contas tendentes à gestão e administração dos fundos de investimento mobiliário, como é o caso dos Requerentes/Fundos, encontram-se previstos na previsão expressa no anexo II da Diretiva OICVM enquanto “serviços jurídicos e de contabilidade de gestão do Fundo; e Controlo da observância da regulamentação”. Deste modo, a isenção prevista na alínea g) do n.º 1 do artigo 135.º da Diretiva IVA transposta para o ordenamento português através da subalínea g) da alínea 27 do artigo 9.º do CIVA é aplicável aos serviços supra porque os mesmos se enquadram nas prestações de serviços de “administração ou gestão de fundos comuns de investimento”.
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De acordo com jurisprudência do TJUE, aos serviços referidos no ponto anterior, prestados quer por uma Sociedade Gestora quer sejam externalizados (contratados a terceiros), os mesmos gozam da isenção prevista na legislação europeia[3] , conforme pronuncia do TJUE no Acórdão Abbey National relativo ao processo C-169/04, de 4 de maio de 2006. Adicionalmente, mais recentemente, o TJUE nos Acórdão K processo C-58/20 (doravante designado por processo C-58/20) e Acórdão DBKAG processo C-59/20 (doravante designado por processo C-59/20) veio-se pronunciar no sentido de “resulta do exposto que prestações de serviços, como tarefas fiscais que consistem em assegurar que os rendimentos do fundo obtidos pelos participantes são tributados de acordo com a lei nacional e a cedência de um direito de utilização de um software destinado a efetuar cálculos essenciais à gestão do risco e à avaliação do desempenho, são abrangidas pela isenção prevista no artigo 135.º, n.º 1, alínea g), da Diretiva IVA, desde que tenham um nexo intrínseco com a gestão de fundos comuns de investimento e sejam exclusivamente fornecidas para efeitos da gestão desses fundos”.
Também importante é saber qual o critério para se aferir se os serviços prestados por terceiros (externalização de serviços) a Sociedades Gestoras de Fundos Comuns de Investimento (como é o caso dos Requerentes/Fundos), reúnem os requisitos para que aos mesmos seja aplicada a isenção prevista na Diretiva IVA (alínea g) n.º1 do artigo 135.º)[4].
O TJUE pronunciou-se nos processos C-58/20 e C-59/20 no sentido de “ (…) para saber se prestações de serviços fornecidas por terceiros a sociedades de gestão de fundos comuns de investimento são abrangidas pela isenção prevista no artigo 135.º, n.º1, alínea g), da Diretiva IVA, importa apreciar se esses serviços formam um conjunto distinto, apreciado de modo global” e “(…) o requisito relativo ao caráter «distinto» não pode ser interpretado no sentido de que, para ser abrangida pela isenção prevista no artigo 135.º, n.º 1, alínea g), da Diretiva IVA, uma prestação de serviços, específica e essencial à gestão de fundos comuns de i“(…) o requisito relativo ao caráter «distinto» não pode ser interpretado no sentido de que, para ser abrangida pela isenção prevista no artigo 135.º, n.º 1, alínea g), da Diretiva IVA, uma prestação de serviços, específica e essencial à gestão de fundos comuns de investimento, deve ser totalmente externalizada”. O TJUE chama à atenção nos processos C-58/20 e C-59/20 que a mera externalização de serviços por si só, não é condição suficiente para que esses serviços sejam elegíveis para efeitos da isenção prevista na Diretiva IVA, mas que “(…) para determinar se prestações de serviços fornecidas por terceiros a sociedades de gestão de fundos comuns de investimento, (…) são abrangidas pela isenção prevista no artigo 135.º, n.º 1, alínea g), da Diretiva IVA, importa apreciar se esses serviços são específicos e essenciais à gestão de fundos comuns de investimento”
e
“(…) para determinar se as prestações fornecidas por um terceiro a uma sociedade de gestão são abrangidas pela isenção prevista no artigo 135.º, n.º 1, alínea g), da Diretiva IVA, há que investigar se o serviço prestado por esse terceiro tem um nexo intrínseco com a atividade específica de uma sociedade de gestão, de tal forma que tenha o efeito de preencher as funções específicas e essenciais da gestão de um fundo comum de investimento”
e
“(…) são abrangidos pelo conceito de «gestão» de um fundo comum de investimento na aceção do artigo 135.º, n.º 1, alínea g), da Diretiva IVA não apenas a gestão de investimentos que implica a escolha e a cessão de ativos que são objeto dessa gestão mas também as prestações de administração e de contabilidade (…)”.
Deste modo, a Sociedade Gestora/A... defende que “Neste sentido, atente-se aos contractos celebrados entre os Requerentes e a KK..., onde os serviços de tesouraria, faturação, contabilidade, auditoria e revisão legal de contas acarretam uma índole essencial e específica à atividade de gestão dos organismos de investimento mobiliário administrados pela A... . Com efeito, através dos serviços supra elencados, a KK... presta aos Requerentes, serviços de tal forma essenciais e possuidores de um nexo intrínseco com a atividade de gestão e administração de fundos de investimento mobiliário, que, sem os mesmos, tal atividade não seria possível ser prosseguida. A contratação de serviços de tesouraria, faturação, contabilidade, auditoria e revisão legal de contas circunscrevem-se única e simplesmente ao cumprimento das obrigações legais e contratuais inerentes à Sociedade Gestora, no que à boa gestão de um fundo de investimento (como sucede in casu) diz respeito, bem como ao cumprimento da política de investimento dos Fundos, com a única particularidade de que a sociedade gestora optou por externalizar tais funções através da contratação dos serviços em apreço, algo que, conforme anteriormente se concluiu, é uma opção que em nada obsta à aplicação da isenção ora sob apreciação. Defende que se encontram abrangidos pela aplicação da isenção de IVA prevista na subalínea g) da alínea 27) do artigo 9.º do Código do IVA os serviços prestados sempre que, formando um conjunto distinto, tenham um notório nexo intrínseco com as funções legal ou contratualmente obrigatórias para a gestão e administração da carteira e/ou do fundo de investimento”. Assim, a Sociedade Gestora/A... defende que os serviços prestados pela KK... reúne requisitos acima expostos, pelo que aos mesmos deve ser aplicada a isenção prevista na subalínea g) da alínea 27) do artigo 9.º do Código do IVA.
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Igualmente não concorda com a posição defendida pela Requerida segundo a qual “o que está em causa nos autos é o exercício do direito a regularização do imposto a favor dos sujeitos passivos”, afirmando ainda que “as autoliquidações não estão erradas porquanto devem refletir as faturas emitidas e os respetivos registos contabilísticos efetuados pelo sujeito passivo”
e
“estar-se-á perante uma situação de inexatidão de fatura relevante para efeitos de passível correção nos termos do n.º 1 e 3 do artigo 78.º do CIVA, quando o valor tributável da operação, ou o respetivo imposto nela mencionado, não forem os corretos, face aos factos apurados e ao direito aplicável”
e
“impunha-se que as faturas emitidas, nas quais foi incluído IVA à taxa de 23%, fossem corrigidas, nos termos legais, para que passasse a constar das mesmas a menção e justificação para a aplicação da isenção de imposto nos termos do disposto no n.º 5 do artigo 36.º do CIVA, que entende, a Requerente, ser o enquadramento legalmente correto.”,
uma vez que no Acórdão de 8 de dezembro de 2022 proferido no processo C-378/21, o TJUE se pronunciou no sentido de que
“resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que o artigo 203.º da Diretiva IVA visa eliminar o risco de perda de receitas fiscais que possa resultar do direito à dedução previsto nesta diretiva”
e
“[n]uma situação em que uma parte do IVA foi erradamente faturada, o artigo 203.º da referida diretiva só é aplicável ao montante do IVA que excede o montante devidamente faturado, (…) neste último caso, há um risco de perda de receitas fiscais, uma vez que um sujeito passivo destinatário dessa fatura pode ser levado a exercer o seu direito a dedução a título desse IVA sem que a Administração Fiscal competente esteja em condições de determinar se estão preenchidas as condições para exercer esse direito”
e
“o artigo 203.º da Diretiva IVA deve ser interpretado no sentido de que um sujeito passivo, que prestou um serviço e que mencionou na sua fatura um montante de IVA calculado com base numa taxa errada, não é devedor, por força desta disposição, da parte do IVA faturado erradamente se não houver um risco de perda de receitas fiscais pelo facto de os beneficiários desse serviço serem exclusivamente consumidores finais que não beneficiam do direito à dedução do IVA pago a montante”.
Uma vez que os Requerentes/Fundos são sujeitos passivos isentos não podendo deduzir IVA a seu favor, e não o fizeram no período de janeiro a dezembro de 2020, não existe qualquer possibilidade de risco de perda de receita fiscal, uma vez que não deduziram IVA relativamente aos serviços prestados pela KK... . Deste modo, o mecanismo de regularização proposto pela AT através de uma emissão de uma nota de crédito para correção do imposto indevidamente suportado pelos Requerentes/Fundos, se mostraria irrelevante, na medida em que o efeito prático da necessidade de emissão de novo documento seria nulo face à factualidade descrita, uma vez que estes, conforme mencionado, apresentam-se, para efeitos de IVA, como um sujeito passivo cujo exercício do direito à dedução, quanto à tipologia de serviços sub judice, nunca foi exercido, inexistindo qualquer risco de perda de receita fiscal. Os Requerentes/Fundos tentaram obter junto do fornecedor (prestador de serviços) a retificação das faturas, mas sem êxito.
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Por outro lado, defende, com respaldo em jurisprudência do STA, que na situação controvertida se está perante um erro de Direito porque os serviços adquiridos pelos Requerentes/Fundos foram enquadrados pelo prestador de serviços, KK..., como sujeitos a IVA e dele não isentos, quando deveriam ter sido enquadrados como sujeitos a IVA, mas isentos ao abrigo da subalínea g) da alínea 27) do artigo 9.º do CIVA. Havendo erro de Direito, não lhe é aplicável o regime previsto no artigo 78.º do CIVA que incide sobre faturas inexatas, erro material e de cálculo, mas, sim, o regime do artigo 98.º do CIVA ao abrigo do qual o prestador de serviços, KK..., terá um prazo de quatro anos previsto no n.º2 do normativo em causa para regularizar o imposto que liquidou indevidamente e entregou ao Estado, como manifestação do principio da neutralidade fiscal.
Igualmente defende que a Decisão Arbitral proferida a 30 de março de 2023 no âmbito do Processo 484/2002 no sentido de “não tendo havido correcções das facturas nem demonstrada a impossibilidade de utilização das facturas para exercício do direito a dedução, não se está perante uma situação em que seja permitida a anulação das autoliquidações, como, aliás, decorre do teor expresso do n.º 3 do artigo 97.º do CIVA”, uma vez que a factualidade analisada nesta Decisão (Processo 484/2002) é distinta da situação controvertida.
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Também defende que dos princípios da neutralidade, efetividade e eficácia implicam que o imposto indevidamente liquidado e faturado possa ser regularizado e que o próprio TJUE se pronunciou no sentido de
“os Estados-Membros devem prever os instrumentos e as vias processuais necessárias para permitir ao destinatário recuperar o imposto indevidamente facturado, de modo a que o princípio da efectividade seja respeitado” - cf. Acórdão do TJUE de 15 de março de 2007, prolatado no processo C-35/05.
e
“desde que o reembolso, por parte do vendedor em causa no processo principal a[o] (…) adquirente do bem em causa, do IVA indevidamente faturado seja impossível ou excessivamente difícil (…) [o adquirente do bem] deve poder pedir a devolução diretamente à autoridade tributária” - cf. Acórdão do TJUE de 26 de abril de 2017, proferido no processo C-564/15,
pelo que concluem que a anulação (parcial) das liquidações subjacentes ao pedido e restituição do imposto indevidamente suportado no montante de €25.147,05, é a forma de dar cumprimento ao direito da União Europeia em termos de princípios da neutralidade e efetividade que regem o sistema comum de IVA.
Pugnam por juros indemnizatórios porque entendem que por parte da AT foi feita uma errónea interpretação e aplicação de uma norma de incidência tributária, e que ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º1 e do n.º5 do artigo 24.º do RJAT e dos artigos 43.º e 100.º da LGT, lhe são devidos.
Na hipótese de não considerar claro que, tal como interpretado os acórdãos do TJ UE aqui mencionados, o direito da União Europeia se opõe à não aplicação da isenção de IVA às prestações de serviços aqui em escrutínio aos Fundos e, bem assim, ao meio adequado à obtenção do reembolso aos Requerentes/Fundos do IVA que suportaram em excesso por erro (no enquadramento da operação) que o fornecedor se recusou a corrigir mediante a emissão de notas de crédito com IVA e de novas faturas contemplando a isenção aqui discutida, o Tribunal Arbitral é obrigado a submeter estas questões ao Tribunal de Justiça enviando-lhe o processo a título prejudicial.
Em conclusão peticiona a procedência do PPA, e, em consequência:
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Anular parcialmente os atos tributários de autoliquidação de IVA relativos aos períodos de tributação de janeiro a dezembro de 2020, materializados na apresentação das Declarações Periódicas referentes a tais períodos pela referida entidade prestadora de serviços de tesouraria, faturação, contabilidade, auditoria e revisão legal de contas, no montante total de € 25 147,05;
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Anular a respetiva decisão de indeferimento do Pedido de Revisão Oficiosa sub judice, porque manifestamente ilegal;
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Condenar a AT à restituição aos Requerentes do valor do IVA pago em excesso ao seu prestador e refletido nas supra referidas declarações periódicas de imposto, no montante global de € 25 147,05;
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Condenar a AT a pagar aos Requerentes os juros indemnizatórios legalmente devidos, por estarem preenchidos os pressupostos do artigo 43.º da LGT.
Posição da AT
AT, na Resposta defende o seguinte, em síntese:
a.O indeferimento do Pedido de Revisão Oficiosa fundamenta-se pela impropriedade do meio usado pela Sociedade Gestora/A... (na qualidade de representante legal dos Requerentes/Fundos) “por não se encontrarem preenchidos os pressupostos legalmente previstos para o efeito (tempestividade, propriedade do meio e legitimidade), não se vislumbrando que seja admissível a sua convolação noutro qualquer meio impugnatório.” – conforme informação n.º 200-ISC/2023, de 12-12-2023, na qual foi exarado o referido despacho de rejeição liminar.
b.O meio procedimental do artigo 78.º da LGT - da revisão oficiosa dos atos tributários - não tem por objeto a retificação ou a restituição do IVA liquidado em faturas emitidas, até porque esta garantia impugnatória não se sobrepõe às normas especiais do direito à regularização, previstas no artigo 78.º do Código do IVA, que prevê o mecanismo idóneo para a correção, pelo sujeito passivo, deste tipo de erros, em cumprimento do disposto no n.º 1 do art.º 37.º do Código do IVA, uma vez que houve imposto repercutido. O instituto da revisão oficiosa constante do artigo 78.º da LGT não é o meio próprio e adequado para a anulação de autoliquidações de IVA, quando o sujeito passivo não proceda à emissão de documentos retificativos das faturas, regularizando o imposto a seu favor, de modo a poder reembolsar, subsequentemente, ele próprio, o adquirente do IVA pago, sob pena, desde logo, de risco de duplo reembolso. O n.º 7 do artigo 29.º do Código do IVA impõe que deve ser emitido documento retificativo de fatura quando o valor tributável de uma operação ou imposto correspondente sejam alterados por qualquer motivo.
c. Igualmente defende que a Sociedade Gestora/A... parece admitir a imprescindibilidade desse mecanismo de recuperação próprio, previsto no artigo 78.º do Código do IVA, uma vez que, tal como indicado no procedimento de revisão oficiosa, procedeu posteriormente a diligências junto da prestadora dos serviços para que esta anulasse as faturas e emitisse outras novas faturas com isenção do IVA, com a consequente restituição do imposto aos Fundos, com fundamento no acórdão do TJUE de 17 de junho de 2021, C-58/20 e C-59/20. Contudo, a prestadora dos serviços em causa recusou-se a seguir o procedimento proposto. Nestes termos, na situação concreta, caberia à prestadora retificar a fatura mediante a emissão de nota de crédito a favor dos Fundos, conforme estatuído no n.º 7 do artigo 29.º do Código do IVA. Que a regularização pelo prestador de serviços tem caráter facultativo, dentro do prazo previsto no n.º 3 do art.º 78.º do Código do IVA, sendo a sua devolução ao cliente, efetuada de forma voluntária ou, através de instauração de competente ação cível, a interpor pelo lesado. Assim, a pretensão da Requerente não se enquadra no âmbito do instituto jurídico da revisão oficiosa, devendo a decisão impugnada manter-se na ordem jurídica.
d.Adicionalmente, no que diz respeito às autoliquidações de IVA da entidade prestadora dos serviços externalizados, - independentemente do enquadramento jurídico-tributário das operações -, a AT encontra-se impossibilitada a proceder à sua anulação, nos termos do n.º 3 do artigo 97.º do Código do IVA, que impede a anulação das liquidações quando existe imposto repercutido (“as liquidações só podem ser anuladas quando esteja provado que o imposto não foi incluído na fatura passada ao adquirente nos termos do artigo 37.º”).
e.Existe jurisprudência arbitral - Decisão arbitral n.º 484/2022-T, de 30-03-2023 - cujo entendimento se afigura ser, de facto, aplicável à situação vertente, uma vez que está em causa a impossibilidade de anulação de liquidações por falta da prévia correção de faturas por parte do emitente.
f.Em matéria de pedidos de restituição de impostos, cabe ao ordenamento jurídico interno de cada Estado Membro prever as condições em que esses pedidos podem ser exercidos. Por outo lado, cabe também aos Estados Membros determinar as condições em que o IVA indevidamente faturado pode ser regularizado. Adicionalmente, o TJUE reconheceu que um sistema em que, por um lado, o fornecedor do bem que pagou por erro o IVA às autoridades tributárias pode exigir o seu reembolso e, por outro, o adquirente do bem pode intentar uma ação cível para repetição do indevido contra esse fornecedor respeita, os princípios da neutralidade e da efetividade. Reforça a sua posição respaldado em jurisprudência do TJUE segundo a qual
“ (…) o adquirente que suportou o encargo do imposto faturado por erro obter o reembolso dos montantes pagos indevidamente (acórdãos de 15 de março de 2007, Reemtsma Cigarettenfabriken, C 35/05, EU:C:2007:167, n.º 38 e 39, e de 26 de abril 2017, Farkas, C-564/15, EU:C:2017:302, n.º 51).”
(cfr artigo 27.º da Resposta)
e
“se o reembolso do IVA se tornar impossível ou excessivamente difícil, designadamente em caso de insolvência do fornecedor, o princípio da efetividade pode exigir que o adquirente do bem em questão possa requerer o reembolso diretamente às autoridades tributárias. Por conseguinte, os Estados Membros devem prever os instrumentos e as vias processuais necessárias para permitir ao referido adquirente recuperar o imposto indevidamente faturado, de modo a que o princípio da efetividade seja respeitado”.
(cfr artigo 28.º da Resposta)
g.Assim, tendo em conta o acima exposto em termos de jurisprudência do
TJUE, conclui que no caso em apreço não estamos perante uma
“regulamentação nacional ou prática nacional que conduza a recusar ao adquirente de bens o reembolso do IVA a montante que lhe foi indevidamente faturado e que pagou em excesso aos seus fornecedores”, em violação dos princípios da neutralidade do IVA e da efetividade, porquanto, por um lado existem normas específicas previstas no Código do IVA para esse efeito, nomeadamente, o artigo 78.º do Código do IVA, não se aplicando o art.º 98.º, n.º 2 do mesmo Código, que estabelece um prazo de caducidade do direito à dedução.
h.Por outro lado, não se encontra comprovado nos presentes autos que se trate efetivamente de imposto indevidamente faturado e pago em excesso.
i.Relativamente ao Acórdão do STA n.º 02315/14.1BELRS, a respetiva jurisprudência também não é de aplicar ao caso vertente, pois naquele processo encontrava-se confirmada a legítima aplicação da isenção do artigo 9.º do Código do IVA, através de uma informação vinculativa prestada pela AT ao sujeito passivo, encontrando-se em discussão, no plano judicial, apenas o prazo/norma aplicável para o prestador dos serviços poder regularizar a seu favor o imposto indevidamente liquidado, o que, igualmente, não é aqui o caso, pois na situação em apreço os Requerentes/Fundos são os repercutidos, uma vez que são os destinatários dos serviços prestados pela KK..., e, não têm na sua posse a validação dos enquadramentos em sede de IVA das operações realizadas pela prestadora dos serviços externalizados.
j. Quanto ao pedido de reenvio prejudicial o mesmo não deve, igualmente, proceder, porque, conforme o TJUE tem afirmado, é aos tribunais nacionais que incumbe verificar se a legislação nacional abrange todas as situações em que, de acordo com o n.° 1 do artigo 90.º da Diretiva IVA, as formalidades a cumprir pelos sujeitos passivos perante as autoridades fiscais, para o exercício do direito a uma redução do valor tributável do IVA, se limitam às que permitem justificar que, depois de efetuada a operação, não receberão, definitivamente, uma parte ou a totalidade da contraprestação (processo C-146/19).
Em conclusão peticiona a improcedência total do PPA e, em consequência, a AT seja absolvida de todos os pedidos.
4.2.Apreciação da questão
O artigo 135.º, n.º 1, alínea g), da Diretiva n.º 2006/112/CE do Conselho, de 28-11- 2006, estabelece que os Estados-Membros isentam de IVA as operações «gestão de fundos comuns de investimento, tal como definidos pelos Estados–Membros».
Na linha desta Diretiva, a subalínea g) da alínea 27) do artigo 9.º do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado (CIVA) estabelece que estão isentas do imposto «a administração ou gestão de fundos de investimento».
O TJUE interpretou esta isenção com o alcance de abranger as «prestações de serviços fornecidas por terceiros a sociedades de gestão de fundos comuns de investimento, como tarefas fiscais que consistem em assegurar que os rendimentos do fundo obtidos pelos participantes são tributados de acordo com a lei nacional (...) desde que tenham um nexo intrínseco com a gestão de fundos comuns de investimento e sejam exclusivamente fornecidas para efeitos da gestão desses fundos, independentemente de serem totalmente externalizadas» (n.º 68 do acórdão do TJUE de 17-06-2021, proferido nos processos K-58/20, e DBKAG, C-59/20).
No caso controvertido, aos serviços prestados pela KK... era aplicável o regime de isenção para efeitos de IVA previsto no artigo 135.º, n.º 1, alínea g), da Diretiva n.º 2006/112/CE do Conselho, de 28-11- 2006, que estabelece que os Estados-Membros isentam de IVA as operações «gestão de fundos comuns de investimento, tal como definidos pelos Estados–Membros» e na subalínea g) da alínea 27) do artigo 9.º do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado (CIVA) estabelece igualmente que estão isentas do imposto «a administração ou gestão de fundos de investimento»[5].
Como ficou provado, a KK... emitiu faturas relativos a serviços em que liquidou IVA, à taxa de 23%, tendo o mesmo sido repercutido aos Requerentes/Fundos, não tendo o mesmo sido objeto de correção ou regularização de IVA por parte da KK..., pelo que o IVA é devido pela KK..., independentemente de ser ou não aplicável a isenção, pois, por força do disposto no artigo 203.º da Diretiva n.º 2006/112/CE «o IVA é devido por todas as pessoas que mencionem esse imposto numa factura», mesmo que essa menção seja indevida, como acentua a alínea c) do n.º 1 do artigo 2.º do CIVA, entendimento confirmado pelo TJUE no acórdão de 31-01-2013, proferido no processo C-643/11, onde se refere que «o imposto sobre o valor acrescentado mencionado numa fatura por uma pessoa é por ela devido, independentemente da existência efetiva de uma operação tributável».
A obrigação consagrada no artigo 203.º da Diretiva visa eliminar o risco de perda de receitas fiscais que pode resultar do direito a dedução (acórdãos do TJUE de 18-06-2009, Stadeco, C-566/07, n.º 28, e de 31-01-2013, LVK - 56 EOOD, processo C-643/11,n.º 36), pelo que deve ser interpretada, em sintonia com o que o TJUE, aquela obrigação «é limitada pela possibilidade, que os Estados-Membros podem consagrar nas suas ordens jurídicas, de se corrigir o imposto indevidamente faturado, desde que o emitente da fatura demonstre estar de boa-fé ou quando, em tempo útil, tiver eliminado completamente o risco de perda de receitas fiscais (v., neste sentido, acórdão Genius, já referido, n.° 18. e acórdãos de 19 de setembro de 2000, Schmeink & Cofreth e Strobel, C-454/98, Colet., p. I-6973, n.ºs 56 a 61 e 63, e de 6 de novembro de 2003, Karageorgou e o., C-78/02 a C-80/02, Colet., p. I-13295, n.°
50)» (acórdão de 31-01-2013, proferido no processo C-643/11, n.º 37).
É em consonância com este regime da Diretiva IVA, de valor superior ao direito ordinário (artigo 8.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa), que tem de ser aplicada a isenção
prevista na subalínea g) da alínea 27) do artigo 9.º do CIVA.
No caso em apreço, não tendo havido correções das faturas emitidas pela KK..., não se está perante uma situação em que seja permitida a anulação das autoliquidações, como, aliás, decorre do teor expresso do n.º 3 do artigo 97.º do CIVA, que estabelece que «as liquidações só podem ser anuladas quando esteja provado que o imposto não foi incluído na fatura passada ao adquirente nos termos do artigo 37.º».
Adicionalmente, no caso concreto, é convicção deste Tribunal Arbitral que se está perante uma situação de inexatidão de fatura relevante para efeitos de passível correção nos termos dos n.ºs 1 e 3 do artigo 78.º do CIVA, uma vez que o imposto liquidado não é o correto. De facto, nas faturas emitidas pela KK... não deveria ter sido liquidado IVA (23%), e, por esse motivo, as faturas não estão de acordo com o regime de IVA aplicável aos serviços controvertidos, como acima se referiu, pelo que estamos perante faturas desconformes com o regime previsto no CIVA, tendo as mesmo sido registadas na contabilidade dos Requerentes/Fundos. O n.º 3 do artigo 78.º do CIVA prevê que ”nos casos de faturas inexatas que já tenha dado lugar ao registo referido no artigo 45.º, a retificação é obrigatória quando houver imposto liquidado a menos, podendo ser efectuada sem qualquer penalidade até ao final do período seguinte àquele a que respeita a fatura a retificar, e é facultativa, quando houver imposto a mais, mas apenas pode ser efetuada no prazo de dois anos”, não se devendo esquecer o cumprimento do previsto nos n.ºs 4 e 5 do artigo supra. Assim impunha-se que as faturas emitidas, nas quais foi incluído IVA à taxa de 23%, fossem corrigidas, nos termos legais, e que nas mesmas constasse a menção e justificação para a aplicação da isenção de imposto nos termos do disposto no número 5 do artigo 36.º do CIVA, o que não aconteceu como ficou provado, uma vez que a entidade prestadora de serviços se recusou a fazê-lo. O que aconteceu foi a emissão de faturas inexatas com liquidação indevida de imposto (IVA), i.e., com imposto superior ao devido, que enquanto não for retificado, o mesmo é devido ao Estado por parte da entidade prestadora de serviços. Ora, acontece que o n.º7 do artigo 29.º do CIVA prevê que “quando o valor tributável de uma operação ou o imposto correspondente sejam alterados por qualquer motivo, incluindo inexatidão, deve ser emitido documento retificativo da fatura”, o que não aconteceu no caso controvertido, uma vez que a entidade prestadora dos serviços não emitiu documentos retificativos, a pedido da Sociedade Gestora/A... em representação dos Requerentes/Fundos, cfr Doc 4 e 5 anexos ao PPA. Repare-se que caso fosse adotado o procedimento previsto no artigo 78.º do CIVA, os Requerentes/Fundos seriam ressarcidos do imposto indevidamente suportado através da restituição do mesmo.
Pelo exposto, tem de se concluir que, no atual contexto, as autoliquidações impugnadas não podem ser anuladas. Quanto à decisão do pedido de revisão oficiosa, este Tribunal Arbitral acompanha a posição da AT com os fundamentos invocados nos considerandos 32 a 115 do ponto V.II – Apreciação do Ofício, datado de 12.12.2023, proferido pela AT, que consta nos autos como Doc 1 anexo ao PPA. Deste modo, o pedido de pronúncia arbitral tem necessariamente de improceder.
5.Pedidos de reembolso e juros indemnizatórios
Improcedendo o pedido de anulação das autoliquidações, por o imposto ser devido, improcedem necessariamente os pedidos de reembolso de imposto e juros indemnizatórios que, neste contexto, pressupõem um pagamento indevido e uma decisão anulatória favorável ao sujeito passivo (artigos 43.º, n.º 1, e 100.º da LGT).
6.Decisão
Nestes termos, acorda este Tribunal Arbitral em:
-
Julgar improcedente o pedido de pronúncia arbitral;
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Absolver a Autoridade Tributária e Aduaneira de todos os pedidos.
-
Custas devidas pela Sociedade Gestora/A...
7.Valor do processo
De harmonia com o disposto nos artigos 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 25.147,05, valor indicado pela Sociedade Gestora/A... e não contestado pela Requerida.
8.Custas
Nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, as custas são no valor de 1.530,00 euros, a cargo da Sociedade Gestora/A..., conforme ao disposto no artigo 12.º n.º 2, e artigo 22.º n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º n.º 5, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem.
Notifique.
Lisboa, 27-11-2024
O Árbitro
Júlio Tormenta
[1] No Doc. 4 anexo ao PPA pede-se a anulação das faturas emitidas à A... e a emissão de novas faturas sem liquidação IVA, mas, deve ter sido lapso de escrita, uma vez que as faturas emitidas, que constam como Doc 3 anexo ao PPA, foram emitidas pela KK... aos Requerentes/Fundos e não à Sociedade Gestora/A... .
[2] Diretiva IVA – Diretiva 2006/112/CE, de 28 de novembro de 2006.
[3] Diretiva IVA (al.g) do n.º1 do artigo 135.º da Diretiva 2006/112/UE) e [(alínea d) n.º6 do artigo 13.ºB da Diretiva 77/388/CEE, de 17 de maio de 1977- Sexta Diretiva].
[4] Segundo jurisprudência do TJUE, a isenção abrange tanto os serviços prestados aos Requerentes/Fundos pelas sociedades que se dedicam diretamente à sua gestão (como é o caso nos serviços prestados pela A... aos Requerentes/Fundos), como aos serviços externalizados, prestados por terceiros contratados para cumprirem parte das obrigações de gestão dos fundos de investimento.
[5] A AT, em sede de Pedidos de Informação Vinculativa (PIV): PIV n.º 25781 de 23/3/2024, PIV n.º 25597, de 29/2/2024 e PIV n.º 26848, de 30/10/2024 já se pronunciou, tendo em conta jurisprudência do TJUE, sobre o conteúdo plasmado no artigo 135.º, n.º 1, alínea g), da Diretiva n.º 2006/112/CE do Conselho, de 28-11- 2006 e a subalínea g) da alínea 27) do artigo 9.º do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado (CIVA).
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