Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 363/2024-T
Data da decisão: 2024-11-25  IVA  
Valor do pedido: € 8.379,44
Tema: IVA – Liquidação oficiosa de IVA – Regime especial de isenção – Artigo 53.º, n.º 4 do Código do IVA – Volume de negócios anual correspondente.
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Sumário:

  1. Para garantir a igualdade e uniformização de tratamento dos sujeitos passivos, a isenção prevista no artigo 53.º do Código do IVA depende do volume de negócios anual. Por esse motivo, sempre que o período de referência seja inferior a um ano civil, segundo a lei, deve realizar-se a conversão do respetivo montante para o montante correspondente a 12 meses.
  2. A falta de notificação prevista no n.º 4 do artigo 58.º do Código do IVA gera uma mera irregularidade.
  3. Os princípios da legalidade, da justiça e da verdade material permitem a correção do enquadramento tributário do sujeito passivo em sede de IVA pela AT.

 

 

DECISÃO ARBITRAL

I. RELATÓRIO 

 

  1. A..., titular do número de identificação fiscal..., com residência na Rua ..., n.º ..., ..., ..., ...-... ... (doravante, o “Requerente”), veio nos termos e para os efeitos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, n.º 2, 6.º, n.º 1 e 10.º e seguintes do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (doravante, “RJAT”), bem como dos artigos 95.º, n.º 1 e n.º 2, alíneas a) e d) da Lei Geral Tributária (doravante, “LGT”) e do artigo 99.º, alínea a) do Código de Procedimento e de Processo Tributário (doravante, “CPPT”), requerer a constituição do tribunal arbitral, com a intervenção de árbitro singular, em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante, a “Requerida” ou “AT”), tendo em vista a anulação da presunção de indeferimento tácito da reclamação graciosa apresentada em 15 de setembro de 2023, bem como das liquidações oficiosas  de Imposto sobre o Valor Acrescentado (doravante, “IVA”) dos períodos de janeiro de 2019 a dezembro de 2022, com os n.ºs 2023..., 2023..., 2023..., 2023..., 2023..., 2023..., 2023..., 2023..., 2023..., 2023..., 2023..., 2023..., 2023..., 2023..., 2023... e 2023... e respetivas liquidações de juros compensatórios, dos quais resultou um montante total a pagar de € 8.379,44.
  2. De acordo com os artigos 5.º, n.º 2, alínea a) e 6.º, n.º 1, do RJAT, o Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (doravante, “CAAD”) designou como árbitro o signatário, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.
  3. O Tribunal Arbitral foi constituído no CAAD, em 28 de maio de 2024, conforme comunicação do Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD.
  4. Notificada para o efeito, a Requerida apresentou a sua resposta e o processo administrativo em 9 de julho de 2024.
  5. Em 5 de julho de 2024, por meio de Despacho do Subdiretor-Geral da AT, a Requerida procedeu à revogação parcial dos atos impugnados pelo Requerente no presente Pedido de Pronúncia Arbitral (doravante, “PPA”) – concretamente das liquidações oficiosas de IVA referentes aos anos de 2020, de 2021 e de 2022.
  6. Em 14 de agosto de 2024, o Tribunal arbitral proferiu despacho a notificar o Requerente para confirmar a manutenção de interesse no prosseguimento do processo arbitral, que o Requerente confirmou no dia 20 de agosto de 2024.
  7. Em 23 de agosto de 2024, o Tribunal arbitral proferiu despacho a dispensar a realização da reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT e a notificar as partes para, querendo, apresentarem alegações escritas, direito que o Requerente exerceu no dia 9 de setembro de 2024.

II. SÍNTESE DA POSIÇÃO DAS PARTES

 

  1. Para fundamentar a sua posição, o Requerente invocou, em suma:
  1. violação grosseira, por parte da AT, do dever de colaboração e esclarecimento do contribuinte no cumprimento das obrigações acessórias previsto no artigo 59.º da Lei Geral Tributária (“LGT”), visto que na declaração de registo para efeitos de IVA, submetida em 19 de maio de 2018, indicou, por lapso, o artigo 9.º do Código do IVA como motivo de isenção de IVA, não tendo a Requerida esclarecido que para a atividade declarada era impossível o enquadramento nas isenções do artigo 9.º do Código do IVA, motivo pelo qual passou o Requerente a emitir recibos com descritivos incompatíveis com aquela isenção, indicando sempre como motivo o artigo 53.º do Código do IVA, em vez do artigo 9.º do mesmo Código (erroneamente indicado);
  2. que entre 2018 e 2022 i) a emissão de recibos, através do portal das finanças, com a indicação do regime de isenção do artigo 53.º do Código do IVA, ii) o volume de negócios sempre abaixo do limite desse regime e iii) a ausência de qualquer comunicação ou notificação por parte da AT, criaram no contribuinte a convicção legítima da regularidade da sua situação tributária;
  3. que o enquadramento retroativo do Requerente no regime geral do IVA, com efeitos a partir de 2019, e a exigência retroativa da liquidação de IVA, que já não pode ser repercutida nos clientes, configura uma violação do artigo 103.º, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa (doravante, “CRP”);
  4. a afirmação de que o volume de negócios do Requerente em 2018 ultrapassou o limite de isenção do artigo 53.º é inexata, dado que o valor efetivamente faturado nesse ano foi de € 9,675; e
  5. ainda que se aceitasse que o limite de isenção tivesse sido ultrapassado em 2018, cabia à AT confirmar esse volume de negócios e notificar o Requerente do seu novo enquadramento a partir de 1 de janeiro de 2019, como exigido nos termos do n.º 4 do artigo 58º do Código do IVA.
  1. Por sua vez, a Requerida respondeu nos seguintes termos:
  1. o processo perdeu em parte o seu objeto, concretamente quanto ao pedido de anulação das liquidações oficiosas relativamente aos períodos de janeiro de 2020 a dezembro de 2022, assim como das respetivas liquidações de juros compensatórios e de mora, na medida em que, na pendência do processo, foi proferido um Despacho do Subdiretor-Geral da AT, com data de 5 de julho de 2024, que revogou esses atos de liquidação oficiosa, pelo que deve ser declarada a inutilidade superveniente da lide quanto aos referidos atos tributários;
  2. incumbe à AT proceder às correções necessárias em momento posterior à declaração de início/reinício de atividade, sempre que se verifique ter ocorrido uma desconformidade legal que implique o não pagamento ou pagamento de menos imposto do que aquele que seria devido;
  3. quando o período em referência relevante para a aferição da elegibilidade para o regime especial de isenção do artigo 53.º do Código do IVA for inferior ao ano civil, é, nos termos do n.º 4, feita a conversão para um volume de negócios anual, tendo em conta o número de meses de atividade exercida; e
  4. tendo, em 2018, nos meses de março a dezembro, sido atingido um volume de negócios anual de € 9.675,00, há que fazer a conversão desse valor em volume de negócios anual, sendo o valor de negócios a considerar de € 10.554,55, o que significa que o Requerente deixou de reunir condições para permanecer no regime especial de isenção no ano seguinte, motivo pelo qual as liquidações de IVA emitidas se afiguram legais.

III. SANEAMENTO

 

  1. O Tribunal Arbitral singular foi regularmente constituído e é materialmente competente para apreciar o pedido, que foi tempestivamente apresentado nos termos do previsto nos artigos 5.º e 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAT. As partes gozam de personalidade e de capacidade judiciárias, têm legitimidade e estão regularmente representadas, em conformidade com o disposto nos artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT, e dos artigos 1.º, 2.º e 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março. O processo arbitral não enferma de nulidades.

IV. MATÉRIA DE FACTO

A.1. Factos dados como provados

11. Analisada a prova produzida nos presentes autos, com relevo para a decisão da causa, consideram-se provados os seguintes factos:

  1. O Requerente teve atividade aberta entre junho de 2017 e março de 2018;
  2. Em 29 de maio de 2018, o Requerente reiniciou atividade, altura em que indicou como atividade o código residual 1519 da tabela de atividades a que se refere o artigo 151.º do Código do IVA – “outros prestadores de serviços”;
  3. Nessa altura o Requerente declarou, ainda, que a sua atividade estaria isenta de IVA ao abrigo do artigo 9.º do Código do IVA;
  4. Durante o ano de 2018, o Requerente emitiu recibos através do Portal das Finanças no montante de € 9.675, declarando nesses recibos o regime de isenção do artigo 53.º do Código do IVA;
  5. O volume de negócios do Requerente nos anos de 2019 a 2021 (€ 9.900,00 em 2019, € 8.561,00 em 2020 e € 11.020,00 em 2021), foi sempre inferior aos limites legalmente estabelecidos para a aplicação do regime especial de isenção do artigo 53.º do Código do IVA em cada um desses anos;
  6. Em 25 de janeiro de 2023, o Requerente procedeu à entrega da declaração de alterações prevista no artigo 32.º do Código do IVA, nos termos da alínea a) do n.º 2 do artigo 58.º do Código do IVA, por ter atingido, no ano de 2022, um volume de negócios superior ao limite de isenção do artigo 53.º do Código do IVA;
  7. Nessa altura o Requerente foi retroativamente enquadrado no regime normal, desde 1 de fevereiro de 2019, tendo sido emitidas as correspondentes liquidações oficiosas:
    1. Liquidação nº 2023... de 2019, no valor de € 450,00;
    2. Liquidação nº 2023... de 2019, no valor de € 450,00;
    3. Liquidação nº 2023... de 2019, no valor de € 450,00;
    4. Liquidação nº 2023... de 2019, no valor de € 450,00;
    5. Liquidação nº 2023... de 2020, no valor de € 476,25;
    6. Liquidação nº 2023... de 2020, no valor de € 476,25;
    7. Liquidação nº 2023... de 2020, no valor de € 476,25;
    8. Liquidação nº 2023... de 2020, no valor de € 476,25;
    9. Liquidação nº 2023... de 2021, no valor de € 498,75;
    10. Liquidação nº 2023... de 2021, no valor de € 498,75;
    11. Liquidação nº 2023... de 2021, no valor de € 498,75;
    12. Liquidação nº 2023... de 2021, no valor de € 498,75;
    13. Liquidação nº 2023... de 2022, no valor de € 528,75;
    14. Liquidação nº 2023... de 2022, no valor de € 528,75;
    15. Liquidação nº 2023... de 2022, no valor de € 528,75;
    16. Liquidação nº 2023... de 2022, no valor de € 528,75;
  8. Em 15 de setembro de 2023, o Requerente deduziu Reclamação Graciosa contra aquelas liquidações, tendo-se formado presunção de indeferimento tácito, nos termos do n.º 4 do artigo 57.º da LGT; e
  9. Em 5 de julho de 2024, após a apresentação do pedido de constituição de tribunal arbitral que originou os presentes autos, foram revogados os atos de liquidação oficiosa de IVA referentes aos quatro períodos dos anos de 2020, 2021 e 2022 (n.ºs 2023..., 2023..., 2023..., 2023..., 2023..., 2023..., 2023..., 2023..., 2023..., 2023..., 2023... e 2023...), através de Despacho do Subdiretor-Geral da AT.

A.2. Factos dados como não provados

Não existem factos relevantes para a decisão que não tenham sido considerados provados.

A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada 

12. Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT). 

13. Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. art. 596.º do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT). 

14. Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º, n.º 7, do CPPT, a prova documental e o Processo Administrativo juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados. 

 15. Não se deram como provadas nem não provadas as alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada. 

DO DIREITO

 

  1. QUESTÃO PRÉVIA – DA REVOGAÇÃO DE PARTE DOS ATOS TRIBUTÁRIOS CONTESTADOS

16. Como decorre da decisão arbitral n.º 796/2021-T, quer no decurso do processo de impugnação judicial, quer no da instância arbitral tributária, pode a AT proceder à anulação, total ou parcial dos atos tributários cuja legalidade é sindicada.  

17. De acordo com o disposto no artigo 10.º do RJAT, a instância arbitral tributária inicia-se com a apresentação do pedido de constituição do tribunal arbitral, tendo o legislador consagrado no artigo 13.º, n.º 1, do RJAT, um prazo de 30 dias para o “arrependimento” da AT (cf. CARLA CASTELO TRINDADE , Regime Jurídico da Arbitragem Tributária Anotado, Almedina, Coimbra, 2016, pp. 327 e ss.) ainda na fase do procedimento arbitral, ou seja, antes da constituição do tribunal arbitral nos termos dos artigos 11.º, n.º 8, e 15.º, do RJAT.  

18. Após o termo do prazo para o arrependimento, a AT fica “(…) impossibilitada de praticar novo ato tributário relativamente ao mesmo sujeito passivo ou obrigado tributário, imposto e período de tributação, a não ser com fundamento em factos novos”, conforme decorre do n.º 3 do artigo 13.º, do RJAT. Porém, deverá entender-se que ocorrendo a revogação parcial do ato impugnado, e decorrido o prazo de 30 dias a que se refere o artigo 13.º, n.º 1, do RJAT, já após constituição do tribunal arbitral, se produzirá o mesmo efeito jurídico previsto no artigo 13.º, n.º 2, do RJAT (ou seja, o processo arbitral manterá o seu curso se o Requerente nada disser) por aplicação subsidiária do artigo 112.º, n.º 3, do CPPT, ex vi alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT.  

19. No caso dos autos:  

  1. em 14 de março de 2024 foi apresentado pelo Requerente o pedido de constituição de tribunal arbitral;  
  2. em 21 de março de 2024 a AT foi notificada da apresentação do pedido;
  1. em 5 de julho de 2024 foi proferido Despacho pelo Subdiretor Geral da Direção de Serviços do Imposto sobre o Valor Acrescentado que determinou a revogação das liquidações de IVA dos anos de 2020 (liquidação n.º 2023..., liquidação n.º 2023..., liquidação n.º 2023... e liquidação n.º 2023..., cada uma no valor de € 476,25), de 2021 (liquidação n.º 2023..., liquidação n.º 2023..., liquidação n.º 2023 ... e liquidação n.º 2023..., cada uma no valor de € 498,75) e de 2022 (liquidação n.º 2023..., liquidação n.º 2023..., liquidação n.º 2023 ... e liquidação n.º 2023..., cada uma no valor de € 528,75); e
  1. na resposta apresentada pela Requerida, foi dado conhecimento da referida revogação dos atos de liquidação de IVA, tendo sido comprovado que foi dado conhecimento ao mandatário do Requerente, através do Ofício n.º... de 05.07.2024.  

20. Refira-se que a revogação dos atos tributários dos anos de 2020, 2021 e 2022 foi motivada pelo reconhecimento de que naqueles anos o volume de negócios do Requerente não ultrapassou os limites previstos no artigo 53.º do Código do IVA. A AT reconheceu na Informação que sustenta o Despacho do Subdiretor Geral da Direção de Serviços do Imposto sobre o Valor Acrescentado, de 5 de julho de 2024, que “(…) no caso em apreço, observa-se que os volumes de negócios auferidos nos anos de 2019 a 2021(€ 9.900,00 em 2019, € 8.561,00 em 2020 e € 11.020,00 em 2021), são sempre inferiores aos limites legalmente estabelecidos, para esses anos, para a aplicação do REI 53.

E quando ultrapassado esse limite, em 2022 (volume de negócios de € 24.512,00), o Requerente procedeu à entrega da declaração de alterações, passando o enquadramento para o regime normal de tributação em IVA a partir de fevereiro de 2023, encontrando-se, atualmente (ano de 2024), com enquadramento no REI 53 em virtude de o volume de negócios de 2023 ter ascendido a € 7.649,00.

Assim, considerando os volumes de negócios mencionados nos pontos 37 e 38, constata-se que o Requerente poderia beneficiar do REI nos anos de 2020, 2021 e 2022, pelo que se propõe o seguinte:

a) A elaboração de um BAO com vista ao enquadramento do ora Recorrente no REI 53 de 1 de janeiro de 2020 a 31 de janeiro de 2023 e enquadramento no regime normal trimestral de 1 de fevereiro 2023 a 31 de dezembro de 2023;

b) A anulação das LO de IVA emitidas para os anos de 2020, 2021 e 2022”.

21. Do exposto resulta que a revogação de doze dos dezasseis atos de liquidação de IVA cuja legalidade o Requerente sindica ocorreu após a apresentação do pedido de constituição de tribunal arbitral e após o prazo previsto no n.º 1 do artigo 13.º do RJAT para o direito ao arrependimento da AT.  

22. No que concerne aos atos de liquidação de IVA n.º 2023..., n.º 2023..., n.º 2023..., n.º 2023..., n.º 2023..., n.º 2023..., n.º 2023..., n.º 2023..., n.º 2023..., n.º 2023..., n.º 2023... e n.º 2023..., dos anos de 2020, de 2021 e de 2022 - revogados pela AT -, verifica-se uma integral satisfação da pretensão do Requerente conducente à inutilidade superveniente da lide quanto a esta parte do objeto do pedido. Neste contexto, determina-se a extinção parcial da instância quanto a esta parte, nos termos do artigo 277.º, alínea e), do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, alínea e), do RJAT. 

23. No que concerne aos atos de liquidação de IVA n.ºs 2023..., 2023..., 2023... e 2023..., todos do ano de 2019 - não revogados pela AT -, não se verifica a satisfação da pretensão do Requerente, que confirmou a manutenção do seu interesse no prosseguimento do processo, motivo pelo qual se apreciarão os vícios que lhes são imputados pelo Requerente. 

 

  1. DA VIOLAÇÃO DO DEVER DE COLABORAÇÃO

24. O Requerente principia por invocar a violação do princípio da colaboração, previsto no artigo 59.º da LGT. De acordo com o Requerente, quando apresentou a declaração de reinício de atividade em 2018 declarou, por lapso, o regime de isenção de acordo com o artigo 9.º do Código do IVA, em vez de o regime de isenção nos termos do artigo 53.º do Código do IVA. Entende, por isso, que a AT deveria tê-lo esclarecido de que aquela isenção era impossível para a atividade declarada e promovido de imediato a regularização do regime de isenção.

25. O artigo 59.º da LGT consagra o princípio da colaboração, nos seguintes termos:

1 - Os órgãos da administração tributária e os contribuintes estão sujeitos a um dever de colaboração recíproco.
2 - Presume-se a boa fé da actuação dos contribuintes e da administração tributária.
3 - A colaboração da administração tributária com os contribuintes compreende, designadamente:
a) A informação pública, regular e sistemática sobre os seus direitos e obrigações;
b) A publicação, no prazo de 30 dias, das orientações genéricas sobre a interpretação e aplicação das normas tributárias;
c) A assistência necessária ao cumprimento dos deveres acessórios;
d) A notificação do sujeito passivo ou demais interessados para esclarecimento das dúvidas sobre as suas declarações ou documentos;
e) A prestação de informações vinculativas, nos termos da lei;
f) O esclarecimento regular e atempado das fundadas dúvidas sobre a interpretação e aplicação das normas tributárias;
g) O acesso, a título pessoal ou mediante representante, aos seus processos individuais ou, nos termos da lei, àqueles em que tenham interesse directo, pessoal e legítimo;
h) A criação, por lei, em casos justificados, de regimes simplificados de tributação e a limitação das obrigações acessórias às necessárias ao apuramento da situação tributária dos sujeitos passivos;
i) A publicação, nos termos da lei, dos benefícios ou outras vantagens fiscais salvo quando a sua concessão não comporte qualquer margem de livre apreciação da administração tributária;
j) O direito ao conhecimento pelos contribuintes da identidade dos funcionários responsáveis pela direcção dos procedimentos que lhes respeitem;
l) A comunicação antecipada do início da inspecção da escrita, com a indicação do seu âmbito e extensão e dos direitos e deveres que assistem ao sujeito passivo.
m) Informação ao contribuinte dos seus direitos e obrigações, designadamente nos casos de obrigações periódicas;
n) A interpelação ao contribuinte para proceder à regularização da situação tributária e ao exercício do direito à redução da coima, quando a administração tributária detecte a prática de uma infracção de natureza não criminal.
o) A disponibilização no Portal das Finanças dos formulários digitais, em formato que possibilite o seu preenchimento e submissão, para o cumprimento das obrigações declarativas previstas nos artigos 57.º e 113.º do Código do IRS e nos artigos 120.º e 121.º do Código do IRC, com uma antecedência mínima de 120 dias em relação à data limite do cumprimento da obrigação declarativa.
4 - A colaboração dos contribuintes com a administração tributária compreende o cumprimento das obrigações acessórias previstas na lei e a prestação dos esclarecimentos que esta lhes solicitar sobre a sua situação tributária, bem como sobre as relações económicas que mantenham com terceiros.
5 - A publicação dos elementos referidos nos alíneas a), b), e), f) e i) do n.º 3 é promovida por meios electrónicos.
6 - A administração tributária disponibiliza a versão electrónica dos códigos e demais legislação tributária actualizada.
7 - As comunicações previstas nas alíneas m) e n) do n.º 3 são efetuadas por via eletrónica.
8 - Sempre que a Autoridade Tributária e Aduaneira não cumpra o prazo mínimo de antecedência previsto na alínea o) do n.º 3, a data limite para o cumprimento da respetiva obrigação declarativa prorroga-se pelo mesmo número de dias
de atraso.

26. O princípio da colaboração ínsito no artigo citado desdobra-se em deveres da AT para com o contribuinte. Mas importa ter presente que este dever de colaboração é recíproco.

27. Ou seja, também impende sobre o contribuinte um dever de colaboração para com a AT, dever esse que em regra precede logicamente o da Administração uma vez que é o contribuinte que dá impulso ao procedimento tributário. Ora, no caso sub judice, o Requerente deveria ter procedido à correta declaração da isenção, dando cumprimento ao disposto no n.º 4 do artigo 59.º da LGT – e às normas relativas à incidência e isenção em sede de IVA. O que não fez, uma vez que a declaração de reinício de atividade continha um lapso na indicação da isenção aplicável – ou seja, uma errada subsunção de factos de cujo conhecimento dispunha às normas aplicáveis.

28. Esta reciprocidade quanto ao dever de colaboração é extremamente importante e implica, também, a sua própria elasticidade. Isto é, se um sujeito passivo declara incorretamente determinado elemento da sua situação tributária não se pode exigir um dever de acompanhamento permanente do Estado, ou seja, ser um dever jurídico que a AT deva constantemente, e em todos os casos, monitorizar e retificar essa sua situação à luz dos restantes elementos declarados ao longo do tempo. 

29. Podemos afirmar que existe uma co-responsabilização do sujeito passivo na decisão tributária, pois, como referido no artigo escrito com o Professor J. L. Saldanha Sanches, publicado na “Homenagem a José Guilherme Xavier de Basto”, «(…) num sistema cada vez mais marcado pelo self-assessment e pela atividade cooperativa do sujeito passivo em tendencialmente todos os momentos do procedimento tributário, o contribuinte não se limita, hoje, a ser ouvido pela Administração apenas antes da realização da liquidação: o sujeito passivo é, na verdade, “ouvido” durante todo o procedimento administrativo de liquidação, uma vez que é ele quem fornece os elementos principais para a determinação e quantificação da dívida fiscal, que, caso a sua atuação seja conforme com a lei, resulta diretamente e apenas da sua própria atividade. Tudo isto constitui uma forma de audição / participação do contribuinte, ou seja, de co-responsabilização e de atuação em conjunto no processo de formação da obrigação tributária, a qual vai resultar da lei e não da atividade da Administração»[1].

30. Transpondo esta co-responsabilização para o caso do Requerente, verifica-se que o seu erro na declaração de início de atividade tornou inexigível à AT que promovesse o seu correto enquadramento em sede de IVA. Com efeito, o tipo de lapso cometido – enquadramento isentivo ao abrigo do artigo 9.º – não é de molde a tornar exigível um acompanhamento permanente numa administração de massas.

31. Já não assim seria, por exemplo, se o Requerente tivesse declarado corretamente a isenção do artigo 53.º do Código do IVA. Neste caso entendemos que a AT estaria obrigada a informá-lo da ultrapassagem do limite legal aplicável e da sua sujeição a imposto. Aliás, provavelmente tal já deverá suceder na prática, devendo o sistema informático da AT gerar um alerta automático a este respeito, informando o sujeito passivo da alteração de enquadramento. Mas não foi isso que se passou aqui: tendo declarado a isenção do artigo 9.º do Código do IVA, não há elementos que tornem exigível à AT, num contexto de administração de massas, averiguar a real e concreta situação de modo que se lhe imponha a correção da isenção aplicável. Por este motivo, improcede o alegado pelo Requerente quanto a esta parte.

  1. DO VOLUME DE NEGÓCIOS A CONSIDERAR PARA EFEITOS DA ISENÇÃO DO ARTIGO 53.º DO CÓDIGO DO IVA

32.  De seguida, invoca o Requerente que a afirmação de que o volume de negócios em 2018 ultrapassou o limite de isenção do artigo 53.º do Código do IVA é inexata, dado que o valor efetivamente faturado nesse ano foi de € 9.675,00. Ou seja, apesar de no ano de 2018 o período de referência ser inferior ao ano civil – dado que apenas não exerceu atividade no mês de abril –, o Requerente pretende que o volume de negócios considerado para efeitos de isenção de IVA seja o efetivamente alcançado em vez do volume de negócios anual correspondente, como determinado pelo n.º 4 do artigo 53.º do Código do IVA.

Vejamos,

33. O regime de isenção aplicável ao Requerente encontra-se previsto no artigo 53.º do Código do IVA, do seguinte modo, na redação vigente no ano de 2019:

1 - Beneficiam da isenção do imposto os sujeitos passivos que, não possuindo nem sendo obrigados a possuir contabilidade organizada para efeitos do IRS ou IRC, nem praticando operações de importação, exportação ou actividades conexas, nem exercendo actividade que consista na transmissão dos bens ou prestação dos serviços mencionados no anexo E do presente Código, não tenham atingido, no ano civil anterior, um volume de negócios superior a (euro) 10 000.

2 - Não obstante o disposto no número anterior, são ainda isentos do imposto os sujeitos passivos com um volume de negócios superior a (euro) 10 000, mas inferior a (euro) 12 500, que, se tributados, preencheriam as condições de inclusão no regime dos pequenos retalhistas.

3 - No caso de sujeitos passivos que iniciem a sua actividade, o volume de negócios a tomar em consideração é estabelecido de acordo com a previsão efectuada relativa ao ano civil corrente, após confirmação pela Direcção-Geral dos Impostos.

4 - Quando o período em referência, para efeitos dos números anteriores, for inferior ao ano civil, deve converter-se o volume de negócios relativo a esse período num volume de negócios anual correspondente.

5 - O volume de negócios previsto nos números anteriores é o definido nos termos do artigo 42.º 

34. Resulta das normas citadas, em suma, como regra geral, que os sujeitos passivos que não tenham atingido no ano civil anterior um volume de negócios superior a € 10.000,00 beneficiam de isenção de IVA. Como especificidade para a determinação desta isenção, clarificou o legislador que, quando se trate do primeiro ano de atividade o volume de negócios a ter em consideração é estabelecido de acordo com uma previsão para esse mesmo ano. Previsão essa que deve ser confirmada pela AT.

35. Para além disso, quando o período a considerar para efeitos de determinação da isenção for inferior ao ano civil – i.e., inferior a 12 meses –, de acordo com o n.º 4 do artigo 53.º do Código do IVA, deve converter-se o volume de negócios no volume de negócios anual correspondente. A redação da norma é clara quanto à conversão em volume de negócios anual.

36. A interpretação literal que resulta do n.º 4 do artigo 53.º do Código do IVA coaduna-se com o seu espírito. Este regime de isenção tem como propósito “(…) simplificações administrativas que têm por objetivo reforçar a criação, a atividade e a competitividade das pequenas empresas, bem como manter um nexo razoável entre os encargos administrativos ligados ao controlo fiscal e as escassas receitas fiscais a cobrar. Assim, este regime tem por objetivo isentar tanto as pequenas empresas como as Administrações Fiscais desses encargos administrativos (v., neste sentido, Acórdão de 26 de outubro de 2010, Schmelz, C‑97/09, EU:C:2010:632, n.os 63 e 68)” (cf. Acórdão do TJUE de 2 de maio de 2019, processo C-265/18). O mesmo aresto refere que “Segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, como exceção ao sistema comum da Diretiva IVA, o regime especial das pequenas empresas só deve ser aplicado na medida necessária para alcançar o seu objetivo e deve ser interpretado de forma estrita (v., neste sentido, Acórdão de 28 de setembro de 2006, Comissão/Áustria, C‑128/05, EU:C:2006:612, n.o 22)”.

37. Ora, o objetivo do regime de isenção transposto para o artigo 53.º do Código do IVA é, assim, o de simplificar tanto os procedimentos aplicáveis para o sujeito passivo como para a administração fiscal, e, simultaneamente reforçar a competitividade das pequenas empresas. Como critério para determinar o limite máximo até ao qual o sujeito passivo fica isento de imposto adotou-se o volume anual de negócios, conforme decorre do n.º 1 do artigo 53.º do Código do IVA (bem como dos artigos 284.º a 287.º da Diretiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de novembro de 2006, relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado).

38. O n.º 4 do referido preceito legal visa garantir que o critério utilizado para determinar a referida isenção é aplicado de forma uniforme a todos os sujeitos passivos. Dentro de alguma margem que dispunha, o legislador optou por regular a situação do sujeito passivo que exercesse atividade por período inferior a um ano civil  aplicando um juízo de proporcionalidade. Pretendeu assim o legislador impedir que um sujeito passivo pudesse beneficiar de um limite proporcionalmente superior a outro sujeito passivo que exercesse atividade durante um ano completo. Assim, independentemente do volume de negócios efetivamente realizado, impõe-se a sua conversão para o volume de negócios anual (correspondente a 12 meses), como critério na determinação da referida isenção.

39. Diga-se que esta solução legislativa não é a única em abstrato possível, e que pode até não ser a mais justa uma vez que é demasiado formal – mas não nos parece que padeça de qualquer vício jurídico que nos permita afastá-la do sistema.

40. Todavia, pode colocar-se uma outra questão: quando o primeiro ano de atividade for inferior ao ano civil, a conversão para o volume de negócios anual deve incidir sobre o volume de negócios efetivo ou sobre o volume de negócios previsto?

Mas também a resposta a esta questão se afigura de simples resposta:

  1. quando se pretende determinar a aplicação da isenção no ano de início de atividade, a conversão anual incidirá sobre a previsão do volume de negócios, como resulta dos n.ºs 3 e 4 do artigo 53.º do Código do IVA; e
  2. quando se pretende determinar a aplicação da isenção no segundo ano de atividade, a conversão anual incidirá sobre o volume de negócios efetivo, como resulta dos n.ºs 1 e 4 do artigo 53.º do Código do IVA.

Escusado será referir que nos anos seguintes já não se coloca a questão da conversão para o volume de negócios anual porque no ano anterior a atividade já terá sido exercida durante um ano civil completo (i.e., 12 meses), sendo de aplicar apenas o n.º 1 do artigo 53.º do Código do IVA.

 

41. Neste mesmo sentido explica EMANUEL VIDAL LIMA que “(…) se a previsão efetuada respeitar a uma parte do ano civil, deverá a mesma ser convertida no volume de negócios anual correspondente, isto quer em cumprimento do que se dispõe no citado n.º 4 (obediência à letra da lei), quer do que decorre da própria razão de ser da norma invocada (interpretação do seu espírito). Na verdade, se assim não fosse, isto é, se não devesse converter-se em anual um volume de negócios correspondente a uma parte do ano, seria possível a um sujeito passivo, que num único mês (v.g. o início de atividade em Dezembro) atingisse 1500 contos [€ 10.000 na versão aplicável no caso sub judice], manter-se isento durante esse mês e nos 12 meses do ano seguinte. Sem prejuízo de se entender que possam contrariar o que agora se escreve, a verdade é que, sendo de todo em todo impossível aferir dessa sazonalidade, e dos seus efeitos em termos de um volume de negócios anual, teve o legislador de encontrar uma forma objetiva de tratar todos os sujeitos passivos por igual, isto é, admitindo a constância dos negócios ao longo do ano e, consequentemente, o pressuposto de que, no caso de inicio de atividade, o atingir-se X de volume de negócios em Y meses, isso significa que, em termos anuais, o volume de negócios correspondente deverá ser Z = X / / x 12” (cf. EMANUEL VIDAL LIMA, “IVA – Imposto sobre o Valor Acrescentado Comentado e Anotado”, Porto Editora, 9.ª Edição, p. 570).

42. Também PAULO MARQUES refere que “(…) quando o período de referência for inferior ao ano civil, deve converter-se o volume de negócios relativo a esse período num volume de negócios anual correspondente (n.º 4 do art.º 53.º) (…). O volume de negócios assim apurado, porque se trata de uma previsão, releva unicamente para efeitos de enquadramento em IVA aquando do início de atividade. Será o volume de negócios anual correspondente, convertido com base no volume efetivamente realizado nesse ano, que determina a continuação, ou não, no regime especial de isenção, no ano seguinte. Em qualquer das situações, quando o período em referência é inferior ao ano civil, a conversão efetuada tem como única finalidade determinar se o sujeito passivo pode, ou não, permanecer no ano seguinte, no regime especial de isenção estabelecido no art.º 53.º do CIVA. Esta conversão não altera o volume de negócios efetivamente realizado pelo sujeito passivo, definido nos termos do art.º 42.º do Código (n.º 5 do art.º 53.º), o qual releva, nomeadamente, para efeitos de IRS” (cf. PAULO MARQUES, “Regime especial de isenção do artigo 53.º do CIVA (I)”, em Revista Contabilista, n.º 261, Ano XXI, dezembro 2021, disponível online).

43. Voltando ao caso, recorde-se que:

  1. o Requerente iniciou atividade em 2018, durante período inferior ao ano civil; e
  2. estão em causa as liquidações de IVA de 2019 (o segundo ano de atividade).

44. Neste contexto, conclui-se que o volume de negócios a considerar para efeitos da isenção do artigo 53.º do Código do IVA, quando está em causa o segundo ano de atividade e o ano anterior (período de referência) é inferior ao ano civil, é o volume de negócios anual correspondente, adotando-se a fórmula: Volume de Negócios Isenção = Volume de Negócios Efetivo x 12 / Meses em Atividade.  

45. Assim, ainda que o Requerente no ano de 2018 (primeiro ano de atividade) tenha apurado um volume de negócios de € 9.675,00 (inferior ao limite de € 10.000,00), para determinar o limite da isenção aplicável em 2019, deve, nos termos da opção inequívoca do legislador, realizar-se a conversão deste valor em valor anual, como fez a AT. Ora, sendo o valor correspondente à conversão anual de € 10.554,55 (9.675,00 x 12 / 11) – superior ao limite de € 10.000,00 –, o Requerente não pode beneficiar do regime de isenção de IVA. Por este motivo, as liquidações de IVA do ano de 2019 respeitam o disposto no artigo 53.º do Código do IVA, pelo que não procede este vício invocado pelo Requerente.

  1. DA FALTA DE NOTIFICAÇÃO DO REQUERENTE NOS TERMOS DO N.º 4 DO ARTIGO 58.º DO CÓDIGO DO IVA

46. O Requerente invoca igualmente a violação do disposto no n.º 4 do artigo 58.º do Código do IVA, alegando que, ainda o limite da isenção tivesse sido ultrapassado, não foi notificado do novo enquadramento em sede de IVA a partir de 1 de janeiro de 2019 como se impunha.

47. É certo que o n.º 4 do artigo 58.º do Código do IVA prevê que “Sempre que a Direcção-Geral dos Impostos disponha de indícios seguros para supor que um sujeito passivo isento ultrapassou em determinado ano o limite de isenção, procede à sua notificação para apresentar a declaração a que se refere o artigo 30.º ou artigo 31.º, conforme os casos, no prazo de 15 dias, com base no volume de negócios que considerou realizado”.

48. Não obstante, não se pode ignorar que a alínea a) do n.º 2 do mesmo artigo 58.º dispõe “Quando se deixarem de verificar as condições de aplicação do regime de isenção do artigo 53.º, os sujeitos passivos são obrigados a apresentar a declaração de alterações prevista no artigo 32.º (…) Durante o mês de Janeiro do ano seguinte àquele em que tenha sido atingido um volume de negócios superior aos limites de isenção previstos no artigo 53.º”.

49. Ou seja, independentemente da notificação efetuada pela AT, é ao sujeito passivo que corresponde a obrigação de apresentação da declaração de alterações prevista no artigo 32.º do Código do IVA.

50. Assim, a confirmar-se a falta da aludida notificação originaria uma mera irregularidade, sem cominação jurídica e sem o condão de afetar a legalidade dos atos tributários sindicados. Motivo pelo qual improcede este vício invocado pelo Requerente.

  1. DA VIOLAÇÃO DO N.º 3 DO ARTIGO 103.º DA CRP E DA VIOLAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DA SEGURANÇA JURÍDICA E DA CONFIANÇA NA ATUAÇÃO DOS ÓRGÃOS DO ESTADO

51. Por último, sustenta o Requerido que os atos tributários de IVA do ano de 2019 são ilegais por violação do n.º 3 do artigo 103.º da CRP e por violação da segurança jurídica e da confiança na atuação dos órgãos do Estado. Em concreto, como o Requerente não foi notificado da alteração do regime que lhe era aplicável em sede de IVA, continuou convicto da sua permanência no regime da isenção do artigo 53.º do Código do IVA, continuando a emitir os recibos ao abrigo desse regime de isenção, sem qualquer advertimento por parte da AT, o que criou a convicção legítima de que se encontrava corretamente enquadrado em sede de IVA a coberto da aludida isenção. Para além disso, o Requerido entende que a tributação, nos termos em que foi realizada pela AT, configura uma aplicação retroativa do imposto expressamente proibida pelo artigo 103.º, n.º 3, da CRP, com a agravante de que já nem sequer seria possível a sua repercussão nos clientes.

52. Para fundamentar este vício o Requerente apoia-se no Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 03.12.2020, proferido no processo n.º 78/16.5BECTB, tendo citado o seguinte trecho:

“Já num caso, como o presente, em que o contribuinte cumpridor até procede à declaração de inicio de actividade, mas a ATA vem invocar, muito à posteriori ( no caso, apenas após ter iniciado uma acção inspectiva cujo termo final se reporta ao dia 21.12.2015, tendo apenas instado o s.p a proceder à alteração da declaração de inicio de actividade para efeitos de passar a proceder à liquidação do imposto, em 22.10.2015, mas pretendendo que tal regime se aplicaria desde o principio do ano de 2013 até à data da dita notificação- cfr pontos 2, 3,4 e 5, do probatório), que tal volume, estritamente previsional, não corresponde ao apurado, por operação de mera extrapolação do declarado em sede daqueloutro tributo para o estimado(?) válido para os anos vindouros, ignorando o verdadeiro volume de negócios apurados nos referidos anos, ainda que porventura dentro dos limites de isenção de imposto, no fundo não mais pretende do que perpectuar para futuro a inclusão do contribuinte em tal regime.

Note-se que aqui o legislador, ao determinar a confirmação da DGI do volume de negócios de acordo com a previsão, o que obviamente pretende é a sua aferição contemporânea ao ano em que o s.p iniciou actividade, e não à posteriori em resultado de uma real actividade do contribuinte, até porque tal resultava, numa verdadeira “aberratio ictus”, que era a de obrigar o contribuinte, após anos de enquadramento no regime de isenção, por não haver ultrapassado tal volume efectivo de negócios, a aplicar retroactivamente o regime de tributação normal, obrigando a pagar um imposto não liquidado violando o principio da confiança, sendo para mais certo que, não podendo sequer vir a beneficiar do regime de mudança de regime previsto em geral para todos os contribuintes no caso de , sendo obrigado a estar no regime normal, passar ao regime de isenção facultado no artº 56º do CIVA.”

53. Todavia, o entendimento citado pelo Requerente não é transponível para a sua situação fáctica. Como ficou demonstrado, as liquidações de IVA contestadas são do ano de 2019, que corresponde ao segundo ano de atividade do Requerente. Diversamente, no aresto do Tribunal Central Administrativo Sul apreciava-se uma situação em que estava em causa o primeiro ano de sujeito passivo. Ora, esta divergência nos factos, em concreto, no ano de atividade em apreço, tem extrema relevância para aplicação do regime jurídico porquanto no primeiro ano de atividade o regime de isenção de IVA é determinado na declaração de início de atividade com base numa estimativa anual do volume de negócios indicada pelo sujeito passivo e validada pela AT. Por sua vez, nos anos seguintes, o regime de isenção de IVA é determinado anualmente, com base no volume de negócios efetivo do ano anterior. E o volume de negócios efetivo corresponde a um dado objetivo, passível de ser confirmado em qualquer momento.

54. Assim, o que o Tribunal Central Administrativo Sul pretendeu salvaguardar naquele acórdão foi a expectativa do sujeito passivo, confirmando que no primeiro ano de atividade a base para a aferição da isenção do artigo 53.º do Código do IVA é a estimativa indicada pelo sujeito passivo e não o volume de negócios efetivo apurado a posteriori. De facto, tal é o que resulta do n.º 3 do artigo 53.º do Código do IVA. Mas, sublinhe-se, não é a situação dos presentes autos.

55. Estando em causa as liquidações de IVA de 2019 (segundo ano de atividade do Requerente), importa considerar o volume de negócios anual realizado no ano de 2018. Levantando-se a questão de saber se, de facto, a AT pode alterar o enquadramento do sujeito passivo em sede de IVA em momento posterior, ou se fica vinculada ao enquadramento efetuado no início do ano.

56. Se o argumento aduzido pelo Requerente – violação do artigo 103.º, n.º 3, da CRP, e dos princípios da segurança jurídica e da confiança da atuação dos órgãos do Estado – é válido. Não é menos válida a invocação dos princípios da legalidade, da justiça e da verdade material, ínsitos no artigo 55º da LGT.

57. Aliás, em abono da prevalência dos princípios da legalidade, da justiça e da verdade material, à qual se adere, já se tem pronunciado a jurisprudência tributária, nomeadamente o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 16.10.2016, proferido no processo n.º 01654/15, o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 03.11.2016, proferido no processo n.º 01648/15 e o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 11.10.2018, proferido no processo n.º 73/15.1BELLE. Esta posição fundamenta-se do seguinte modo: “(…) o facto de a AT validar a declaração do início de atividade por si apresentada, não impede que posteriormente o enquadramento para efeitos de IVA, regime de isenção ou regime normal, possa ser alterado ao abrigo dos princípios da legalidade, da justiça e da verdade material, cfr. artigo 55º da LGT.

A argumentação expendida pela recorrente teria acolhimento, ao abrigo dos princípios da boa fé e da cooperação, se a situação fosse reconduzível às situações previstas nos artigos 68º da LGT e 57º do CPPT que regulam a prestação de informações vinculativas por parte da AT, o que manifestamente não é o caso.

E também a concreta situação não é reconduzível à situação prevista no artigo 68º-A da LGT, por não se tratar aqui de qualquer informação genérica ou outra.
De todos os modos, tendo nós como assente que a intervenção da AT, no momento da declaração do início de atividade dos contribuintes, se funda na realidade que lhe é apresentada pelos interessados, incumbe-lhe sempre proceder às correções necessárias em momento posterior, sempre que verifique ter ocorrido uma desconformidade que implique o não pagamento, ou pagamento de menos imposto, do que aquele que seria devido.
Como bem se refere na sentença recorrida, o limite a tal correção será sempre o momento coincidente com o fim do prazo a que alude o artigo 45º da LGT, ou seja, o momento limite até ao qual a Lei permite à AT proceder à liquidação ou correção da liquidação do imposto respetivo (também no que toca às declarações de rendimentos referentes a determinado ano incumbe à AT valida-las após a sua apresentação, não ficando por essa razão impedida de posteriormente proceder à sua correção, se entender que existe fundamento de facto ou de direito que o imponha).”

58. Com efeito, sendo a situação material do Requerente em 2019 distinta da que se encontra registada em sede de IVA, deverá a mesma ser corrigida para fique conforme com a realidade, garantindo-se a boa aplicação do direito e a justiça e igualdade tributária.

59. Ao que acresce que a invocação do n.º 3 do artigo 103.º da CRP não tem cabimento na presente situação, visto que não se trata de um imposto retroativo, pois as regras de IVA aplicadas são as que se encontravam vigentes no ano em causa, não se colocando qualquer questão de potencial retroatividade. O que está em causa é um erro sobre os pressupostos de facto e um erro sobre os pressupostos de direito na interpretação das normas de isenção. Dito de outro modo, a correção de erros inevitavelmente sempre passados do contribuinte, através da aplicação de uma norma inequívoca e em vigor pela Administração ou por um Tribunal, num Estado de Direito, não configura uma violação do princípio da segurança jurídica – sendo aliás, precisamente, uma concretização do princípio da segurança jurídica, da legalidade, e da igualdade.

60. Neste contexto, improcede também este vício invocado pelo Requerente.

VI. DA DECISÃO

 

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral:

  1. julgar extinta a instância, nos termos do artigo 277.º, alínea e), do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, alínea e), do RJAT, quanto ao pedido de declaração de ilegalidade dos atos de liquidação oficiosa de IVA referentes aos quatro períodos dos anos de 2020, 2021 e 2022 (n.ºs 2023..., 2023..., 2023..., 2023..., 2023..., 2023..., 2023..., 2023..., 2023..., 2023..., 2023... e 2023...), no total de € 6.317,01; 
  1. julgar improcedente o pedido de declaração de ilegalidade dos atos de liquidação oficiosa de IVA n.ºs 2023..., 2023..., 2023... e 2023..., todos do ano de 2019, no total de € 2.062,43; 
  2. condenar a Requerida e a Requerente nas custas do processo, na proporção do respetivo decaimento

VII. VALOR DO PROCESSO

 

Não obstante a Requerida ter procedido à revogação os atos de liquidação oficiosa de IVA referentes aos quatro períodos dos anos de 2020, 2021 e 2022 (n.ºs 2023..., 2023..., 2023..., 2023..., 2023..., 2023..., 2023..., 2023..., 2023..., 2023..., 2023... e 2023...), que perfazem o total de € 6.317,01, para determinar o valor do processo, deve considerar-se o disposto no n.º 1, do artigo 299.º, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT, “(…) na determinação do valor da causa, deve atender-se ao momento em que a ação é proposta, exceto quando haja reconvenção ou intervenção principal”

Por conseguinte, fixa-se o valor do processo em € 8.379,44 nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.  

VIII. CUSTAS

Nos presentes autos verifica-se uma extinção parcial da instância por inutilidade superveniente da lide originada pela revogação de parte dos atos tributários contestados. Esta revogação foi promovida pela AT já no decurso do processo arbitral. Assim, nos termos do n.º 3 do artigo 536.º do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT, a Requerida deve ser responsável pelas custas na parte em que a inutilidade superveniente lhe for imputável.

No restante, de acordo com o artigo 627.º do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, e), do RJAT, foi o Requerente, como parte vencida, deu causa às custas.

Assim, fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 918,00 nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5, do citado Regulamento, pela Requerida na proporção de 75% e pelo Requerente na proporção de 25%.    

 

Notifique-se.

Lisboa, 25 de novembro de 2024

 

 

O Árbitro,

 

 

 

João Taborda da Gama

 



[1] “Audição – Participação – Fundamentação: A co-responsabilização do sujeito passive na decisão tributária”, em “Homenagem a José Guilherme Xavier de Basto”, Coimbra Editora, 2006, p. 274.