Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 353/2024-T
Data da decisão: 2024-11-25  IRS  
Valor do pedido: € 133.642,88
Tema: IRS. Residência habitual. Tributação de rendimentos obtidos no estrangeiro. Isenção de imposto (artigo 37.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais). Fundamentação por remissão.
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Sumário:

I - Preenche o critério de residência em território português a que refere a alínea b) do n.º 1 do artigo 16.º do CIRS, o sujeito passivo que, tendo permanecido mais de 180 dias em país estrangeiro, continuou a dispor de habitação em Portugal, no mesmo período de tempo, em termos de fazer supor a sua intenção de a manter e ocupar como residência habitual, pelo que a totalidade dos seus rendimentos, incluindo os obtidos fora do território nacional, estão sujeitos a tributação em IRS;

II – O Comité Internacional da Cruz Vermelha é uma instituição privada de cariz humanitário, caracterizada pela sua direção interna, que embora colabore com Estados e outras organizações internacionais na promoção do Direito Internacional Humanitário, não preenche os requisitos de uma organização de carácter público, ao serviço do Estado Português, para efeitos do artigo 16.º, n.º 1, alínea d), do CIRS, nem os de uma missão diplomática ou consular, para efeitos da isenção de imposto a que se refere o artigo 37.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais;

III - Os atos de liquidação adicional que tiveram por base os procedimentos de divergências relativamente às declarações de IRS apresentadas pelos sujeitos passivos, nos quais se declara, para efeito do exercício do direito de audição,  que, de acordo com a informação da Direção de Serviços IRS relativa a rendimentos declarados como isentos sujeitos a englobamento, as declarações não cumprem os requisistos do artigo 37.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais, encontram-se  fundamentados por remissão.

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

Acordam em tribunal arbitral

 

I – Relatório

 

  1. A..., contribuinte n.º..., residente em..., ..., ..., Sudão do Sul, e esposa B..., contribuinte n.º..., residente na Rua ..., n.º..., ..., ...-... Guimarães, vieram requerer a constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, para apreciar a legalidade dos actos de liquidação de IRS, de demonstração de liquidação de juros e da demonstração de acerto de contas, relativos aos  anos de 2019, 2020, 2021 e 2022, requerendo ainda a condenação da Autoridade Tributária no pagamento de juros indemnizatórios.

 

Fundamentam o pedido nos seguintes termos.

 

O Requerente marido desenvolve a sua atividade profissional em zonas de guerra, ao serviço do Comité Internacional da Cruz Vermelha e, nessa qualidade, desde 2019, não permaneceu em Portugal por mais de 183 dias, nem preenche qualquer outro requisito do artigo 16.º do Código do IRS.

 

Com efeito, o Requerente marido celebrou, em 18/06/2019, um contrato de trabalho com o Comité Internacional da Cruz Vermelha, com sede em Genebra, na Suíça, que teve início em 19/06/2019 sem data de termo.

 

Desde que celebrou o contrato, o Requerente marido esteve sempre a trabalhar e residir fora de Portugal, em sucessivas missões humanitárias.

 

Em 21/06/2019, foi destacado em missão para Aleppo na Síria, cuja missão foi estendida até 20/12/2020,  residindo, nesse período, em..., Aleppo, Síria.

 

De seguida,  em 11/10/2020, foi deslocado para Gaza, cuja missão foi estendida até 10/02/2022, residindo, nesse período, em ..., ..., ..., Palestina.

 

Posteriormente, em 16/01/2022,  foi enviado para Pemba, em Moçambique, cuja a missão foi estendida até 17/12/2023, residindo, nesse período, no Comité Internacional da Cruz Vermelha,  ..., ..., Moçambique.

 

Assim sendo, no ano de 2019, o Requerente marido esteve 49 dias no Líbano e Síria (de 21/06/2019 até 08/08/2019), 43 dias e 57 dias na Síria (de 4/08/2019 até 05/10/2019 e de 19/10/2019 até 14/12/2019) e passou 149 dias fora de Portugal em 2019 uma vez que apenas foi residente no país até 18/06/2019.

 

Em 2020, esteve 45 dias na Síria (entre 09/01/2020 e 19/02/2020), 91 dias, na Jordânia (de 20/02/2020 até 20/05/2020), 94 dias na Síria (de 21/05/2020 até 22/058/2020) e 73 dias na Faixa de Gaza (de 10/10/2020 até 21/12/2020), no total de 300 dias, residindo na Síria em ..., Aleppo, Síria.

Em 2021, esteve na Faixa de Gaza por períodos de 74 dias (de 08/01/2021 até 20/03/2021), 55 dias (de 08/04/2021 e 01/05/2021) 70 dias (de 13/09/2021 a 21/08/2021) e 97 dias (de 05/09/2021 até 10/12/2021), no total de 296 dias, residindo em..., Palestina.

 

 Em 2022, esteve em missão em Moçambique por períodos de 76 dias (de 17/01/2022 até 02/04/2022), de 48 dias (de 18/04/2022 a 04/06/2022, de 69 dias (de 20/06/2022 a 27/08/2022), de 53 dias (de 14/09/2022 a 05/11/2022), e de 28 dias (de 13/11/2022 a 10/12/2022. E esteve ainda em missão no Rwanda por 7 dias (06/11/2022 a 12/11/2022), tendo passado, assim, no ano de 2022, 281 dias fora do território português.

 

O Requerente marido não era, nos anos de 2019, 2020, 2021 e 2022, residente em Portugal, nem obteve rendimentos em Portugal, nem preenche os requisitos do artigo 16.º do Código do IRS, pelo que os rendimentos por este obtidos no estrangeiro não estão sujeitos a tributação em Portugal.

 

Acresce que o Requerente encontra-se, desde 18/06/2019, ao serviço do Comité Internacional da Cruz Vermelha, sendo que o Comité é uma organização humanitária, independente e neutra, que faz parte do Movimento Internacional da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho, pelo que, de acordo com o artigo 37.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais (EBF), os rendimentos auferidos pelo Requerente marido estão isentos de IRS,

 

Os Requerentes alegam ainda que os actos impugnados enfermam de vício de falta de fundamentação, visto que não basta a mera emissão e notificação da liquidação para que o ato se considere fundamentado e os documentos notificados pela Autoridade Tributária tornam-se impercetíveis para um destinatário normal, colocando em causa o direito de defesa.

 

A Autoridade Tributária, na sua resposta, refere, em síntese, o seguinte.

 

 Nas declarações Modelo 3 de IRS, entregues pelos Requerentes relativamente aos anos de 2019, 2020, 2021 e 2022, o Requerente marido surge como residente em território nacional com rendimentos isentos sujeitos a englobamento.

 

Na sequência dos procedimentos de divergência desencadeados por se verificar que não estavam preenchidos os requisitos de isenção, foram elaboradas declarações oficiosas, das quais resultaram as liquidações oficiosas que são objeto de impugnação.

 

Por consulta da informação constante do cadastro, verifica-se que o Requerente marido alterou a sua situação para residente em Portugal em 13/06/2018 e apenas mudou a sua situação para não residente em 21/05/2024, pelo que se presume, nos períodos de tributação em causa, que o Requerente tinha a sua residência em território nacional.

 

 Segundo o disposto nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 16.º do CIRS, “[s]ão residentes em território português as pessoas que, no ano a que respeitam os rendimentos, (a) hajam nele permanecido mais de 183 dias, seguidos ou interpolados, em qualquer período de 12 meses com início ou fim no ano em causa e (b) tendo permanecido por menos tempo, aí disponham, num qualquer dia daquele o período de tempo, de habitação em condições que façam supor intenção atual de a manter e ocupar como residência habitual.

 

E ainda que o Requerente trabalhe para uma organização estrangeira que o destaca em missões de trabalho para outros países, essa circunstância não afasta que o seu centro de interesses se situe em Portugal, onde se encontra o seu agregado familiar.

 

Quanto à isenção prevista no artigo 37.º do EBF, sustenta a Autoridade Tributária que esta disposição abrange apenas o pessoal das missões diplomáticas e consulares e das organizações estrangeiras ou internacionais, e, segundo a informação n.º 253/2021 da Direção de Serviços do IRS, o pessoal ao serviço dessas organizações apenas beneficia da isenção se esta decorrer expressamente de norma de direito internacional regularmente ratificada ou aprovada e pelo Estado Português.

 

Não existindo, no caso, norma que vincule internacionalmente o Estado ao Comité Internacional da Cruz Vermelha, não poderá o Requerente aproveitar da isenção mencionada no citado artigo 37.º, n.º 1, alínea b), do EBF.

 

No que concerne ao alegado vício de falta de fundamentação, a Requerida considera que o mesmo não se verifica, uma vez que as liquidações impugnadas resultaram de procedimentos de divergência no âmbito dos quais foi dada a oportunidade aos Requerentes participarem na formação dos atos, tendo por isso tomado conhecimento dos respetivos fundamentos.

 

            Conclui pela improcedência do pedido.

3. Por despacho arbitral de 18 de julho de 2024, foi agendada a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT, também destinada a produção de prova testemunhal, e notificada a Autoridade Tributária para se pronunciar sobre o documento comprovativo da alteração de morada com efeitos retroativos, a que se refere o artigo 61.º da petição inicial.

 

Por requerimento de 30 de julho seguinte, a Autoridade Tributária informou ter sido emitido despacho de indeferimento do pedido de alteração de morada com efeitos retroativos. Na sequência, por requerimento de 2 de setembro, os Requerentes informaram ter sido interposto recurso hierárquico, em 29 de agosto de 2024, do referido despacho de indeferimento, juntando o documento comprovativo.

 

Por requerimento de 18 de setembro de 2024, os Requerentes juntaram parecer ao abrigo do disposto no artigo 426.º do CPC.

 

Tendo sido notificadas para alegaram por prazo sucessivo, as partes apresentaram alegações em 11 e 26 de outubro, respetivamente.

 

 3. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira nos termos regulamentares.

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral coletivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

As partes foram oportuna e devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e dos artigos 6.° e 7.º do Código Deontológico.

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral coletivo foi constituído em 24 de maio de 2024.

O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 30.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

O processo não enferma de nulidades e não foram invocadas exceções.

Cabe apreciar e decidir.

 

 II – Fundamentação

 

Matéria de facto

4. A matéria de facto relevante para a decisão da causa é a seguinte.

 

  1. O Requerente marido celebrou, em 18 de junho de 2019, um contrato de trabalho sem termo com o Comité Internacional da Cruz Vermelha, com sede em Genebra, na Suíça, que teve início em 19 de junho seguinte (documento n.º 13 junto ao pedido arbitral).
  2. Ao contrato foi anexada uma Confirmação de Missão (Confirmation of Assigment) onde se designa, como local da missão, Allepo, na Síria (documento n.º 14 junto ao pedido arbitral)
  3. No cumprimento do contrato, em 21 de junho de 2019, o Requerente foi destacado em missão para Aleppo, na Síria, cujo termo inicial ocorria no dia 20 de junho de 2020, mas foi estendida até 20 de dezembro de 2020 (documentos n.ºs 14 e 15 juntos ao pedido arbitral).
  4. O Requerente foi deslocado em missão para Gaza, com início em 11 de outubro de 2020 e termo em 10 de outubro de 2021, e que foi estendida até 10 de fevereiro de 2022 (documentos n.ºs 16 e 17 juntos ao pedido arbitral).
  5. A deslocação para Gaza foi objecto de  uma Confirmação de Missão (Confirmation of Assigment) onde se designa Gaza como local do exercício da missão (documento n.º 16 junto ao pedido arbitral).
  6. O Requerente foi deslocado em missão para ..., em Moçambique, com início em 16 de janeiro de 2022 e termo em 15 de janeiro de 2023, e que foi estendida até 17 de julho de 2023, e, depois, até 17 de dezembro de 2023 (documentos n.ºs 18, 19 e 20 juntos ao pedido arbitral).
  7. A deslocação para Pemba foi objecto de  uma Confirmação de Missão (Confirmation of Assigment) onde se designa Pemba como local do exercício da missão (documento n.º 18 junto ao pedido arbitral).
  8. O Requerente juntou cópia dos passaportes, bem como os documentos de autorização de residência, com os carimbos de entrada e saída em cada um dos países para onde foi deslocado em missão (documentos n.ºs 21 e 22 juntos ao pedido arbitral).
  9. A Autoridade Tributária instaurou um processo de divergências relativamente à declaração de IRS Modelo 3 de 2019 apresentada pelos Requerentes, por considerar que, de acordo com a informação da Direção de serviços IRS relativa a rendimentos declarados como isentos sujeitos a englobamento, a declaração não cumpre os requisistos dos artigos 37.º e 39.º do EBF, tendo notificado os intereressados para exercerem o direito de audição quanto à intenção de se efectuar uma correcção no Anexo H, Quadro 4, Campo 402, corrigindo o valor declarado de € 37.500,00 para € 0,00, e no no Anexo J, Quadro 4, Campo 401, corrigindo o valor declarado de € 0,00 para € 37.500,00 (processo administrativo, anexo 03). 
  10. A Autoridade Tributária instaurou um processo de divergências relativamente à declaração de IRS Modelo 3 de 2020 apresentada pelos Requerentes, por considerar que, de acordo com a informação da Direção de serviços IRS relativa a rendimentos declarados como isentos sujeitos a englobamento, a declaração não cumpre os requisistos dos artigos 37.º e 39.º do EBF, tendo notificado os intereressados para exercerem o direito de audição quanto à intenção de se efectuar uma correcção no Anexo H, Quadro 4, Campo 402, corrigindo o valor declarado de € 102.416,00 para € 0,00, e no Anexo J, Quadro 4, Campo 401, corrigindo o valor declarado de € 0,00 para € 102.416,00 (processo administrativo, anexo 02). 
  11. A Autoridade Tributária instaurou um processo de divergências relativamente à declaração de IRS Modelo 3 de 2021 apresentada pelos Requerentes, por considerar que, de acordo com a informação da Direção de serviços IRS relativa a rendimentos declarados como isentos sujeitos a englobamento, a declaração não cumpre os requisistos dos artigos 37.º e 39.º do EBF, tendo notificado os intereressados para exercerem o direito de audição quanto à intenção de se efectuar uma correcção no Anexo H, Quadro 4, Campo 402, retirando desse campo o valor aí declarado, e  inscrevendo esse mesmo valor no Anexo J, Quadro 4, Campo 401 (processo administrativo, anexo 01). 
  12. A Autoridade Tributária instaurou um processo de divergências relativamente à declaração de IRS Modelo 3 de 2022 apresentada pelos Requerentes, por considerar que, de acordo com a informação da Direção de serviços IRS relativa a rendimentos declarados como isentos sujeitos a englobamento, a declaração não cumpre os requisistos dos artigos 37.º e 39.º do EBF, tendo notificado os intereressados para exercerem o direito de audição quanto à intenção de se efectuar uma correcção no Anexo H, Quadro 4, Campo 402, corrigindo o valor declarado de € 124.817,00 para € 0,00, e no no Anexo J, Quadro 4, Campo 401, corrigindo o valor declarado de € 0,00 para € 124.817,00 (processo administrativo, documento principal). 
  13. Os Requerentes foram notificados da liquidação de IRS n.º 2023..., relativa ao ano de 2019, com o valor a pagar de € 3.634,49 (documentos n.ºs 1 a 3 juntos ao pedido arbitral).
  14. Os Requerentes foram notificados da liquidação de IRS n.º 2023..., relativa ao ano de 2020, com o valor a pagar de € 37.262,87 (documentos n.ºs 4 a 6 juntos ao pedido arbitral).
  15. Os Requerentes foram notificados da liquidação de IRS n.º 2023..., relativa ao ano de 2021, com o valor a pagar de € 39.128,95 (documentos n.ºs 7 a 9 juntos ao pedido arbitral). 
  16. Os Requerentes foram notificados da liquidação de IRS n.º 2023..., relativa ao ano de 2022, com o valor a pagar de € 46.328,07 (documentos n.ºs 10 a 12 juntos ao pedido arbitral).
  17. Em cada uma das liquidações mencionadas nas alíneas antecedentes, consta a seguinte referência:

“Fica notificado(a) da liquidação de IRS relativa ao ano a que respitam os rendimentos, conforme nota discriminativa junta.

Poderá reclamar ou impugnar nos termos e prazos estabelecidos nos artigos 140.º do CIRS e 70.º e 102.º do Código de Procedimento e Processo Triibutário (CPPT)”.

  1. O Requerente marido solicitou à Autoridade Tributária, no dia 1 de março de 2024, a alteração do domicílio fiscal para ..., ..., ..., Palestina, com  efeitos de 11 de outubro de 2020 até 10 de fevereiro de 2022.
  2. Na sequência do pedido de alteração de morada com efeitos retroativos, o serviço de finanças de Guimarães ... informou o seguinte:

 “No seguimento da solicitação contida no mail infra, informa-se que o requerente exerceu o direito de audição, tendo sido proferido o despacho de indeferimento do pedido de alteração de morada com efeitos retroativos, em resultado da análise do referido direito.

 Isto porque o requerente não apresentou documentos comprovativos de residência no estrangeiro, emitidos pelas respetivas administrações fiscais, onde constasse expressamente os anos em que foi considerado residente no estrangeiro, conforme determinado na Instrução de Serviço N.º: .../2020 Série I 2020-02-12, dado que se verificou o registo no cadastro da AT, como residente em território português nos períodos em  causa, e constando como residente fiscal, nas declarações de rendimentos de IRS para os mesmos períodos.” (requerimento de 30 de julho da Autoridade Tributária junto ao processo arbitral).

  1. Os Requerentes, tendo sido notificados do indeferimento do pedido de alteração de morada em 1 de agosto de 2024, interpuseram recurso hierárquico da decisão, em 29 de agosto seguinte, conforme o documento junto ao requerimento de 2 de setembro junto ao processo arbitral, que aqui se dá como reproduzido.
  2. Por requerimento de 18 de setembro de 2024, os Requerentes juntaram um parecer, que aqui se dá como reproduzido.
  3. Em sede de execução fiscal, os Requerentes procederam ao pagamento das liquidações de IRS de 2019, 2020 e 2021, e, quanto ao ano de 2022, efetuaram o pagamento parcelar de €10.000 (documentos 23 a 26 juntos ao pedido arbitral).
  4. O pedido arbitral deu entrada em 12 de março de 2024.

 

 

Factos não provados

 

Embora se encontre provado que o Requerente marido se deslocou em missão humanitária, ao serviço do Comité Internacional da Cruz Vermelha, em 2019, 2020, 2021 e 2022, para Allepo, na Síria, para Gaza, na Palestina, e para..., em Moçambique, não está demonstrado que, no decurso dessas missões, tenha residido nos locais indicados nos artigos 27.º, 30.º e 33.º da petição inicial.

 

Não está provado que, no referido período de tempo, os Requerentes estivessem separados de facto, não fizessem refeições juntos ou não partilhassem o leito ou que as declarações de IRS daqueles anos devessem ter sido apresentadas apenas pela Requerente mulher, na condição de separada de facto.

 

Motivação da matéria de facto

 

Não existe prova documental de que o Requerente marido tivesse residido em ..., quando exerceu a sua missão em Aleppo, Síria, ou em ..., ..., quando se encontrou deslocado em Gaza City, Palestina, ou no Comité Internacional da Cruz Vermelha, Bairro Expansão, quando desempenhou a sua missão em ..., Moçambique. As testemunhas ouvidas em audiência também não fazem qualquer referência ao local de residência do Requerente marido quando este se encontrou deslocado nessas missões.

 

Por outro lado, a testemunha C..., cunhado do Requerente, demonstrando ter conhecimento de causa, afirmou, em audiência, que o Requerente tinha uma residência em Portugal onde se encontravam instalados a esposa e os filhos, e que de três em três ou quatro em quatro meses se deslocava ao país para estadias de curta duração, destinando esse tempo ao apoio à família. Em período de férias escolares, deslocava-se com a família para outros locais e, nos períodos de aulas, passava o tempo a prestar auxílio à esposa e aos filhos.

 

A testemunha D..., também cunhada do primeiro Requerente, revelando ter conhecimento da sua situação familiar, referiu que o Requerente vem ocasionalmente a Portugal de férias, em especial em agosto e no Natal, e, por vezes, saía com a família, nesses períodos, para fora do país.

 De onde é possível concluir que o Requerente marido tem uma residência em Portugal, onde residem a esposa e os filhos, desloca-se ao país, em várias ocasiões, para prestar apoio à família, e, por vezes, desloca-se com a família, em férias, para fora, nada permitindo concluir que exista uma situação de separação de facto entre os cônjuges ou um afastamento do Requerente em relação aos descendentes. Tanto mais que, nas deslocações a Portugal, o Requerente marido continua a frequentar a casa de morada da família.

 

Matéria de direito 

 

5. Os Requerentes deduziram pedido de pronúncia arbitral contra os atos de liquidação adicional de IRS relativos aos anos de 2019, 2020, 2021 e 2022, emitidos na sequência de procedimentos de divergência quanto às suas declarações de IRS Modelo 3,  por considerarem que o Requerente marido não era, nesse período de tempo, residente em Portugal, nem obteve rendimentos no país, e não preenche os requisitos de residência no território português a que se refere o artigo 16.º do Código do IRS.

 

Acrescentam que o Requerente marido encontra-se, desde 18 de junho de 2019, ao serviço do Comité Internacional da Cruz Vermelha, que é uma organização humanitária, independente e neutra, que faz parte do Movimento Internacional da Cruz Vermelha, pelo que os rendimentos auferidos a esse título encontram-se isentos de IRS nos termos do artigo 37.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais.

 

A Autoridade Tributária contrapõe que o Requerente marido alterou a sua situação para residente em Portugal em 13 de junho de 2018 e apenas mudou a sua situação para não residente em 21 de maio de 2024, pelo que se presume, nos períodos de tributação em causa, que tinha residência em território nacional.

 

E ainda que o Requerente trabalhe ao serviço de uma organização estrangeira, essa circunstância não afasta que o seu centro de interesses se situe em Portugal, onde se encontra o seu agregado familiar, encontrando-se abrangido pela regra do artigo 16.º, n.º 1, alínea b), do Código do IRS.

 

Quanto à isenção prevista no artigo 37.º do EBF, a Autoridade Tributária sustenta que esta disposição abrange apenas o pessoal das missões diplomáticas e consulares e das organizações estrangeiras ou internacionais, e o pessoal ao serviço dessas organizações apenas beneficia da isenção se esta decorrer expressamente de norma de direito internacional regularmente ratificada ou aprovada e pelo Estado Português.

 

 São estas as questões que cabe decidir.

 

Residência em território português

 

Na redação vigente à data dos factos, o artigo 16.º do Código de IRS, na parte que mais interessa considerar, dispunha o seguinte:

 

 

1 - São residentes em território português as pessoas que, no ano a que respeitam os rendimentos:

a) Hajam nele permanecido mais de 183 dias, seguidos ou interpolados, em qualquer período de 12 meses com início ou fim no ano em causa;
b) Tendo permanecido por menos tempo, aí disponham, num qualquer dia do período referido na alínea anterior, de habitação em condições que façam supor intenção atual de a manter e ocupar como residência habitual;

[…].

 

No que para o caso releva, o Código adotou dois conceitos alternativos de residência, um traduzido na permanência em território português, em mais de 183 dias do respetivo ano, outro consistente na existência de habitação permanente no território nacional, o que permite associar ao conceito de residente um elemento subjetivo, a vontade do sujeito passivo de residir em determinado Estado.

 

Segundo aquele primeiro critério, o elemento determinante do conceito de residente é a presença física no território nacional durante a maior parte do período em causa, sendo esse elemento de conexão que expressa a ligação económica entre uma pessoa e o Estado e legitima a tributação dos rendimentos independentemente do local onde os mesmos sejam obtidos (Rui Morais, Sobre o IRS, 2.ª edição, Coimbra, págs. 17 e 18).

 

O segundo critério pressupõe uma presença presumida, que implica uma relação económica (mesmo que seja a nível do consumo) e um certo grau de integração social (participação na vida da comunidade e desfrute dos bens e serviços proporcionados pelo Estado (idem, pág. 11).

 

Como refere, Paula Rosado Pereira, a residência é um conceito essencial para determinar o âmbito de sujeição pessoal ao IRS. 

 

“Relativamente aos residentes, o IRS incide sobre a totalidade dos seus rendimentos, incluindo os obtidos fora desse território (artigo 15.º, n.º 1, do CIRS). Os residentes encontram-se, portanto, sujeitos a um princípio de universalidade ou de tributação universal ou ilimitada pelo Estado da residência. Assim, podem ser tributados em Portugal todos os rendimentos obtidos por um residente, independentemente do local onde tais rendimentos sejam obtidos”.

 

“Em contrapartida, um não residente – pessoa singular que não preencha nenhum dos critérios de residência fiscal previstos no artigo 16.º do CIRS – encontra-se sujeito a IRS unicamente quanto aos rendimentos obtidos em território português (artigo 15.º, n.º 2, do CIRS). Os não residentes são tributados ao abrigo do elemento de conexão fonte do rendimento.” (Manual de IRS, 2.ª edição, Coimbra, págs. 60-61).

 

Interessa ainda distinguir entre o domicílio fiscal e a residência em território português.

Nos termos do artigo 19.º da Lei Geral Tributária, o domicílio fiscal do sujeito passivo, para as pessoas singulares, é, salvo disposição em contrário, o local da residência habitual (n.º 1). Além de que é obrigatória, nos termos da lei, a comunicação do domicílio do sujeito passivo à administração tributária (n.º 2), sendo ineficaz a mudança de domicílio enquanto não for comunicada à administração tributária (n.º 4).

 

Por outro lado, o artigo 43.º do Código de Procedimento e Processo Tributário (CPPT), sob a epígrafe “obrigação de participação de domicílio”, determina que “os interessados que intervenham ou possam intervir em quaisquer procedimentos ou processos nos serviços da administração tributária ou nos tribunais tributários comunicam, no prazo de 15 dias, qualquer alteração do seu domicílio, sede ou caixa postal eletrónica (n.º 1).

 

No que se refere à residência em território português, releva o disposto no artigo 15.º do CIRS. Sendo as pessoas residentes em território português, o IRS incide sobre a totalidade dos seus rendimentos, incluindo os obtidos fora desse território (n.º 1). Tratando-se de não residentes, o IRS incide unicamente sobre os rendimentos obtidos em território português (n.º 2).

 

Assim sendo, o conceito de residência, a que alude o artigo 15.º do CIRS, não se confunde com o conceito de domicílio fiscal a que se referem os artigos 19.º e 43.º da LGT, pois que o conceito de domicílio fiscal não tem em vista determinar a lei tributária aplicável a certa situação, mas tão só fixar territorialmente os serviços (locais e regionais) da administração tributária competentes para relacionamento com o contribuinte no que concerne à sua situação tributária. Ao contrário, o fator residência a que se refere o artigo 15.º do CIRS, é que determina quais as normas tributárias aplicáveis e delimita definitivamente o âmbito da incidência do imposto, demarcando a extensão das obrigações tributárias dos contribuintes, assumindo especial relevo como elemento de conexão entre as normas de vários Estados concorrentes (cfr. acórdão do TCA Norte de 17 de setembro de 2015, no Processo 00546/10).

 

Por isso se entende que o conceito de residência integra a hipótese de normas tributárias substantivas, determinantes da existência e da extensão da obrigação de imposto, ao passo que  questão do domicílio fiscal tem consequências processuais, daí se devendo concluir que aquele que  transferiu a sua residência para o estrangeiro não pode mais ser considerado residente em Portugal, mesmo que nos registos da administração fiscal continue a figurar como domiciliado em Portugal, mesmo que haja omissão do sujeito passivo em promover a necessária alteração (cfr. Acórdão proferido no Processo n.º 36/2022-T).

 

            6. Revertendo à situação do caso, o que se constata é que, nos períodos de tributação em referência, o Requerente marido, embora deslocado em missões humanitárias no estrangeiro ao serviço do Comité Internacional da Cruz Vermelha, manteve a sua residência habitual em Portugal, onde se deslocava ocasionalmente em gozo de férias e convivia com o seu agregado familiar. E só por requerimento de 1 de março de 2024, já após a emissão das liquidações de IRS impugnadas, é que o Requerente marido solicitou ao Chefe de Finanças de Guimarães ..., a alteração de residência para..., ..., ..., Palestina, com  efeitos retroactivos de 11 de outubro de 2020 até 10 de fevereiro de 2022.

 

O pedido de alteração de residência veio a ser indeferido, por despacho de 1 de agosto de 2024, por não terem sido apresentados documentos comprovativos de residência no estrangeiro, emitidos pelas respetivas administrações fiscais. O Requerente informou ainda ter interposto recurso hierárquico dessa decisão, em 29 de agosto seguinte.

 

O certo é que as liquidações foram legalmente emitidas, na medida em que, nos períodos de tributação em causa, o Requerente residia em Portugal e a pretendida alteração de residência para país não pode ter efeitos retroativos, mas apenas vigorar para futuro, caso o interessado venha a demonstre que efetivamente reside em país estrangeiro.  

 

Além de que, mesmo que tivesse declarado atempadamente a sua residência em país estrangeiro e permanecido mais de 180 dias nessa residência, o sujeito passivo continuaria a ser tido como residente em território português, na medida em que continuou a dispor de habitação em Portugal, no mesmo período, em termos de fazer supor a sua intenção de a manter e ocupar como residência habitual,

 

O Requerente marido preenche, por conseguinte, o critério de residência em território português que consta da alínea b) do n.º 1 do artigo 16.º do CIRS, pelo que a totalidade dos seus rendimentos, incluindo os obtidos fora do território nacional, estão sujeitos a tributação em IRS.

              

Isenção de IRS

 

7. O Requerente marido alega ainda que se encontra, desde 18 de junho de 2019, ao serviço do Comité Internacional da Cruz Vermelha, que é uma organização humanitária, independente e neutra, que faz parte do Movimento Internacional da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho, pelo que, de acordo com o artigo 37.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais, os rendimentos auferidos em missão no estrangeiro estão isentos de IRS.

 

É esta a questão que cabe agora analisar.

 

Segundo o disposto no artigo 16.º, n.º 1, alínea d), do CIRS, são residentes em território português, além de outras, as pessoas que, no ano a que respeitam os rendimentos,  desempenhem no estrangeiro funções ou comissões de carácter público, ao serviço do Estado Português.

 

O artigo 37.º do EBF, sob a epígrafe “Isenção do pessoal das missões diplomáticas e consulares e das organizações estrangeiras ou internacionais”, estatui ainda no seguinte sentido:

 

1 - Fica isento de IRS, nos termos do direito internacional aplicável, ou desde que haja reciprocidade:

  1. O pessoal das missões diplomáticas e consulares, quanto às remunerações auferidas nessa qualidade;
  2. O pessoal ao serviço de organizações estrangeiras ou internacionais, quanto às remunerações auferidas nessa qualidade.

2 - As isenções previstas no número anterior não abrangem, designadamente, os membros do pessoal administrativo, técnico, de serviço e equiparados, das missões diplomáticas e consulares, quando sejam residentes em território português e não se verifique a existência de reciprocidade.

3 - Os rendimentos isentos nos termos do n.º 1 são obrigatoriamente englobados para efeito de determinação da taxa a aplicar aos restantes rendimentos.
4 - O reconhecimento relativo ao preenchimento dos requisitos de isenção, quando necessário, é da competência do Ministro das Finanças. 

 

Ora, como se encontra provado, o Requerente marido não desempenha funções, no estrangeiro, ao serviço do Estado Português, mas ao serviço do Comité Internacional da Cruz Vermelha, que não pode ser classificado como uma organização internacional à luz do direito internacional.

 

Estas Organizações Internacionais são criadas e regulamentadas por tratados internacionais, ao passo que o Comité Internacional da Cruz Vermelha é uma instituição privada de cariz humanitário, caracterizada pela sua direção interna, e que embora colabore com Estados e outras organizações internacionais na promoção do Direito Internacional Humanitário, é uma associação regida pelos artigos 60.º e seguintes do Código Civil Suíço.

 

E, assim, não preenche os requisitos de uma organização de carácter público, ao serviço do Estado Português, para efeitos do artigo 16.º, n.º 1, alínea d), do CIRS, nem os de uma missão diplomática ou consular, para efeitos da isenção de imposto a que se refere o artigo 37.º do EBF.

 

            Por conseguinte, o pedido arbitral mostra-se ser improcedente também no que se refere  a este outro fundamento.

 

            Falta de fundamentação

 

8. Os Requerentes foram notificados das liquidações de IRS referentes aos anos de 2019, 2020, 2021 e 2022, constando de cada uma dessas liquidações a referência de que é notificada a liquidação de IRS relativa ao ano a que respitam os rendimentos, conforme nota discriminativa junta (alínea Q) da matéria de facto).

 

No entanto, resulta da matéria de facto dada como assente que as liquidações tiveram por base os procedimentos de divergências relativamente às declarações de IRS apresentadas nesses anos, nos quais se declara, para efeito do exercício do direito de audição,  que, de acordo com a informação da Direção de Serviços IRS relativa a rendimentos declarados como isentos sujeitos a englobamento, a declaração não cumpre os requisistos dos artigos 37.º e 39.º do EBF, tendo sido dado conhecimento aos interessados do conteúdo da referida informação (alíneas  I), J), K) e L).

 

Nestes termos, os actos tributários devem entender-se como fundamentados por remissão para a informação constante dos procedimentos de divergências e os Requerentes puderam apreender os motivos porque fora efectuadas as liquidações adicionais.

 

Não se verifica, neste condicionalismo, o pretendido vício de falta de fundamentação.

 

Juros indemnizatórios

 

9. Face à improcedência do pedido arbitral, julga-se prejudicado o conhecimento do pedido acessório de condenação da Autoridade Tributária no pagamento de juros indemnizatórios.

 

III – Decisão

 

Termos em que se decide:

 

a) Julgar improcedente o pedido de pronúncia arbitral e manter na ordem as liquidações de IRS impugnadas.

         b) Julgar prejudicado o conhecimento do pedido acessório de condenação da Autoridade Tributária no pagamento de juros indemnizatórios.

 

Valor da causa

 

Os Requerentes indicaram como valor da causa o montante de € 133.642,88, que não foi contestado pela Requerida, e corresponde ao valor da liquidação a que a se pretendia obstar (artigo 97.º, n.º 1, alínea a), do CPPT).

 

Custas

 

Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 3.060,00, de harmonia com a Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, que fica a cargo dos Requerentes.

 

Notifique.

 

Lisboa, 25 de novembro de 2024

  

 

O Presidente do Tribunal Arbitral

 

 

Carlos Fernandes Cadilha

 

O Árbitro vogal

 

 

Sérgio Santos Pereira

 

O Árbitro vogal

 

 

 

                                                    Júlio Tormenta