Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 350/2024-T
Data da decisão: 2024-11-22  IRS  
Valor do pedido: € 179.806,55
Tema: IRS – Residente não habitual – Rendimentos de fonte estrangeira.
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Sumário

 

  1. Não resulta da lei que o registo do sujeito passivo como “residente não habitual” seja um requisito substantivo para a aplicação desse regime em cada ano fiscal, motivo pelo qual estando reunidos os requisitos legais, previstos no n.º 8 do artigo 16.º do CIRS, deve ser aplicado aos sujeitos passivos o regime dos residentes não habituais.
  2. Nos termos do artigo 13.º, n.º 1, e do artigo 15.º do CIRS, os não residentes que aufiram rendimento de fonte estrangeira não são sujeitos a IRS.
  3. O rendimento pago por uma entidade estrangeira a um residente não habitual está isento de tributação em território português, nos termos do n.º 5 do artigo 81.º do CIRS. 

 

 

 

DECISÃO ARBITRAL

Os árbitros Rita Correia da Cunha (Árbitro Presidente), Maria Antónia Torres e João Taborda da Gama (Árbitros Adjuntos), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formarem o Tribunal Arbitral Coletivo, constituído em 24 de maio de 2024, acordam no seguinte:

 

 

I.  RELATÓRIO

  1. A..., titular do número de identificação fiscal..., residente na Rua ..., ..., ..., ...-... Parede (doravante, a “Requerente”), veio, nos termos e para os efeitos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, n.º 3, 6.º, n.º 2, e 10.º e seguintes do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (doravante, “RJAT”), em conjugação com o artigo 99.º, alínea a), e o artigo 102.º, n.º 1, ambos do Código de Procedimento e de Processo Tributário (doravante, “CPPT”), requerer a constituição do tribunal arbitral coletivo e apresentar pedido de pronúncia arbitral, em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante, a “Requerida” ou “AT”), tendo em vista a declaração de ilegalidade da decisão de indeferimento expresso da reclamação graciosa consubstanciada no despacho de 29 de dezembro de 2023, proferido pelo Diretor de Finanças Adjunto da Direção de Finanças de Lisboa, bem como do ato de liquidação do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (doravante, “IRS”) com o n.º 2023..., relativo ao ano de 2022, do qual resulta um montante a pagar de € 175.207,78, e respetiva liquidação de juros compensatórios, e bem assim, que se determine a condenação da Requerida no reembolso do valor indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios.
  2. De acordo com os artigos 5.º, n.º 3, alínea a), e 6.º, n.º 2, alínea a), do RJAT, o Conselho Deontológico do CAAD designou como árbitros os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
  3. O Tribunal Arbitral foi constituído no CAAD, em 24 de maio de 2024, conforme comunicação do Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD.
  4. Notificada para o efeito, a Requerida apresentou a sua resposta e o processo administrativo em 19 de junho de 2024.
  5. Em 1 de julho de 2024, o Tribunal Arbitral proferiu despacho no qual notificou a Requerente para se pronunciar sobre a exceção suscitada pela Requerida e para juntar prova adicional, concedendo à Requerida o direito para se pronunciar sobre a prova adicional eventualmente junta pela Requerente.
  6. A Requerente pronunciou-se sobre a exceção e juntou prova adicional em 16 de julho de 2024, tendo a Requerida optado por não se pronunciar.
  7. Em 8 de novembro de 2024, o Tribunal arbitral proferiu despacho no qual, ao abrigo do princípio da autonomia do Tribunal na condução do processo e da livre determinação das diligências de prova necessárias (cf. artigo 16.º, alíneas c) e e), do RJAT), dispensou a realização da reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT e a apresentação de alegações pelas partes.

II.  SÍNTESE DA POSIÇÃO DAS PARTES

  1. Para fundamentar a sua posição, a Requerente invocou, em suma:
  1. a falta de fundamentação da decisão de indeferimento da reclamação graciosa impugnada;
  2. que o regime dos residentes não habituais lhe deve ser aplicado desde 2022, por ser o ano em que se tornou residente em Portugal;
  3. que os rendimentos de fonte estrangeira obtidos antes da sua residência em Portugal não devem ser tributados em Portugal;
  4. que os rendimentos obtidos no Reino Unido não correspondem a distribuição de lucros, mas antes a rendimentos profissionais enquadráveis na categoria B de IRS, e devem ser tributados de acordo com o regime dos residentes não habituais.
  1. Por sua vez, a Requerida respondeu nos seguintes termos:
  1. invocou a exceção de incompetência do CAAD para reconhecer o estatuto de residente não habitual;
  2. quanto aos rendimentos de fonte estrangeira obtidos antes da sua residência em Portugal, sustenta que não foi feita prova de que os rendimentos foram efetivamente auferidos na data indicada, motivo que justifica a sua tributação em território português;
  3. quanto aos rendimentos obtidos no Reino Unido, refere também que os documentos juntos não permitem alterar a natureza dos rendimentos, correspondendo aqueles a dividendos para efeitos de tributação.

III. SANEAMENTO 

  1. O Tribunal Arbitral singular foi regularmente constituído.
  2. O pedido de pronúncia arbitral foi tempestivamente apresentado nos termos do previsto nos artigos 5.º e 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAT.
  3. As partes gozam de personalidade e de capacidade judiciárias, têm legitimidade e estão regularmente representadas, em conformidade com o disposto nos artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT, e dos artigos 1.º, 2.º e 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.
  4. O processo arbitral não enferma de nulidades. 

IV. MATÉRIA DE FACTO

A.1. Factos dados como provados

14. Analisada a prova produzida nos presentes autos, com relevo para a decisão da causa, consideram-se provados os seguintes factos:

  • Da obtenção do estatuto de RNH
  1. Em 18 de março de 2022, a Requerente obteve o número de identificação fiscal português, na qualidade de não residente;
  2. Em abril de 2022, a Requerente mudou-se definitivamente da Áustria para Portugal com a família, tendo arrendado uma casa em Oeiras e matriculado os seus filhos numa escola também em Oeiras;
  3. Para efeitos de obtenção de visto de residência em território português, a Requerente foi enquadrada no regime do reagrupamento familiar através do visto e residência obtidos pelo marido, motivo pelo qual só podia avançar com o respetivo agendamento junto do SEF depois da emissão do título de residência do marido (o que só sucedeu em 26 de janeiro de 2023);
  4. Em 24 de agosto de 2022, a Requerente, por se encontrar a residir em Portugal, solicitou à AT através do e-Balcão, disponível no Portal das Finanças, um pedido de alteração de residência com o intuito de obter a qualidade de residente em território português, pedido este que foi negado com fundamento em falta de documentação do SEF;
  5. Em 7 de dezembro de 2022, na impossibilidade total de obter qualquer agendamento junto do SEF para obter o cartão de residência no âmbito do reagrupamento familiar, a Requerente voltou a tentar alterar a sua morada através do e-Balcão e, mais uma vez, a AT negou o pedido de alteração da residência para Portugal;
  6. Em 28 de fevereiro de 2023, a AT procedeu à alteração do estatuto de residência da Requerente, passando a estar registada como residente em território português desde aquela data;
  7. Atendendo à discrepância da data em que efetivamente se tornou residente em território português (1 de abril de 2022) e a data em que formalmente passou a ser considerada residente em território português (28 de fevereiro de 2023), em 20 de março de 2023, a Requerente enviou um pedido ao Serviço de Finanças Cascais - ... no qual manifestou a intenção de requerer o estatuto de RNH, devendo o mesmo ser considerado desde 2022 (ano em que se tornou residente em Portugal);
  8. Em 12 de julho de 2023, a Requerente efetuou novo pedido online, requerendo o estatuto de RNH, sem sucesso;
  9. Em 3 de agosto de 2023, foi indicado à Requerente que, para retificar a data de início da sua residência em Portugal, teria de preencher um pedido de alteração de morada com efeitos retroativos através da apresentação de formulário próprio, o que fez;
  10. Em 28 de agosto de 2023, a AT deferiu o pedido de alteração de morada com efeitos retroativos, reconhecendo a residência fiscal da Requerente em território português desde 18 de março de 2022;
  11. Em agosto de 2023, já não foi possível à Requerente submeter o pedido de obtenção de estatuto do residente não habitual online através do Portal das Finanças, com efeitos a 2022, por impossibilidade técnica do Portal;
  12. Em 6 de setembro de 2023, a Requerente apresentou um requerimento junto da Direção de Serviços do Registo de Contribuinte a solicitar o reconhecimento do estatuto de residente não habitual com efeitos a 2022;
  13. Não tendo obtido resposta, no dia 1 de dezembro de 2023, a Requerente efetuou um pedido para obter o estatuto de residente não habitual no Portal das Finanças, seguindo o ano por defeito já pré-preenchido de 2023, para poder ter um procedimento a correr com um número de processo devidamente identificado;
  14. A AT deferiu o pedido da Requerente identificado na alínea anterior, mas com efeitos a 2023, apesar de aquela ser considerada residente fiscal em território português desde 2022.
  • Dos rendimentos obtidos em 2022
  • A Requerente auferiu rendimentos de capitais de origem de Jersey no montante total de € 281.819,13, pagos pela entidade B... LLP, nas seguintes datas:
  1. € 189.908,53: 11 de março 2022;
  2. € 29.373,28: 11 de março 2022;
  3. € 30.406,78: 01 de março 2022; e
  4. € 32.130,54: 31 de janeiro 2022.
  1. A Requerente auferiu, ainda, em 2022, rendimentos de origem do Reino Unido no montante total de € 969.079,69 pagos pela entidade C...;
  2. A Requerente é sócia da entidade C..., assumindo igualmente as funções de “Managing Partner” e “Investment Partner”;
  3. O rendimento pago pela entidade C... é determinado nos termos da “carta de oferta” através da qual a Requerente se tornou sócia, sendo composto por uma parte fixa (“basic profit allocation”) e uma parte variável dependente do resultado anual, conforme comprovado pelas contas anuais consolidadas, e sujeita a aprovação do “Corporate Partner” (“additional profits”);
  4. A entidade C... configura uma “Limited liability partnership” residente em território inglês, com instalações e trabalhadores, e equivale às entidades transparentes fiscais em Portugal, sendo os seus rendimentos imputados à Requerente, não sendo tributados na esfera da própria entidade, mas sim dos seus sócios.
  • Da declaração Modelo 3 de IRS e da reclamação graciosa
  1. Em 30 junho de 2023, a Requerente apresentou a sua declaração Modelo 3 de IRS de 2022, tendo indicado a qualidade de residente em território português, e tendo preenchido o respetivo anexo J do seguinte modo:

 

 

 

 

 

 

  1. Na data da referida submissão, a Requerente ainda constava como não residente em território português para o ano de 2022, mas a declaração Modelo 3 de IRS foi aceite pela AT;
  2. Na sequência da apresentação da declaração Modelo 3 de IRS pela Requerente foi emitida a respetiva liquidação no valor de € 175.207,78;
  3. Em 26 de setembro de 2023, a Requerente apresentou reclamação graciosa contra o aludido ato de liquidação de IRS do ano de 2022;
  4. Em 22 de janeiro de 2024, a Requerente foi notificada da decisão de indeferimento da reclamação graciosa.

A.2. Factos dados como não provados

15. Não existem factos relevantes para a decisão que não tenham sido considerados provados.

A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada 

16. Relativamente à matéria de facto, o Tribunal Arbitral não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).  

17. Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. artigo 596.º do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT). 

18. Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º, n.º 7, do CPPT, a prova documental e o processo administrativo juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados. 

19. No que concerne à prova relativa aos rendimentos pagos pela entidade B..., a Requerente juntou o documento n.º 19 ao pedido de pronúncia arbitral, consubstanciado na tradução de um extrato bancário referente à conta n.º AT... aberta na entidade D... em nome da Requerente, emitido em 30 de janeiro de 2024, com a discriminação de todos os movimentos ocorridos entre 1 de janeiro de 2022 e 1 de abril de 2022. Verifica-se que a entidade D... é uma instituição bancária austríaca, conforme atestado pelo seu website: https://www...  .

20. Segundo o princípio da livre apreciação da prova, o Tribunal Arbitral baseia a decisão, em relação às provas produzidas, na convicção, formada a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo e de acordo com a experiência de vida e conhecimento das pessoas, conforme o n.º 5 do artigo 607.º do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.

21. É pacífico na doutrina e jurisprudência que: “Nos casos em que os elementos probatórios tenham um valor objectivo (como sucede, na maior parte dos casos, com a prova documental) a revelação das razões por que se decidiu dar como provados determinados factos poderá ser atingida com a mera indicação dos respectivos meios de prova, sem prejuízo da necessidade de fazer uma apreciação crítica, quando for questionável o valor probatório de algum ou alguns documentos ou existirem documentos que apontam em sentidos contraditórios” (cf. JORGE LOPES DE SOUSA, Código de Procedimento e de Processo Tributário – Anotado e comentado, II volume, Áreas Editora, 6.ª edição, 2011, p. 321 e, entre outros, Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 05.03.2020, processo n.º 19/17.2BCLSB).  

22. Efetivamente, sem prejuízo da posição assumida pela Requerida a propósito do aludido documento n.º 19 e de alguns dos factos carreados para os autos pela Requerente, considera este Tribunal Arbitral que a prova documental apresentada tem valor objetivo e tem-se por verdadeira, dando-se como provadas, com base no referido documento, as datas indicadas como datas em que os rendimentos foram pagos pela entidade B... .

23. Relativamente à entidade C..., a Requerente juntou o documento n.º 20 ao pedido de pronúncia arbitral, consubstanciado na carta de oferta da sua posição de sócia na referida entidade desde 18 de janeiro de 2021. A referida carta contém as especificidades do vínculo da Requerente à referida entidade, bem como a estipulação do modo de pagamento da sua remuneração na qualidade de sócia. Remete-se para o exposto acima acerca do princípio da livre apreciação da prova e considera-se que a prova documental apresentada tem valor objetivo e tem-se por verdadeira.

24. Ao que acresce que a entidade C... é uma “Limited liability partnership” nos termos do direito do Reino Unido, conforme atestado no website oficial https://...  . 

25. Não se deram como provadas nem não provadas as alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada. 

V. DO DIREITO

A.Da incompetência do Tribunal Arbitral para reconhecer o estatuto de residente não habitual

26. A Requerida invocou a exceção dilatória de incompetência material do Tribunal Arbitral para reconhecer o estatuto de residente não habitual da Requerente.

27. Esta exceção assenta no entendimento segundo o qual “(…) o pedido principal da Requerente se circunscreve ao reconhecimento do estatuto de RNH com efeitos a 2022 e não a 2023 (…)”, sendo “O ato de indeferimento objeto dos presentes autos (…) um ato administrativo em matéria tributária que não comporta a apreciação da legalidade do ato de liquidação” e “(…) nos termos da lei, o reconhecimento pretendido está excluído do âmbito da competência material deste Tribunal Arbitral, não podendo, assim, este conhecer, e/ou pronunciar-se sobre o mesmo”.

28. Sucede que o objeto do pedido de pronúncia arbitral não corresponde ao ato de indeferimento do reconhecimento do estatuto de RNH com efeitos a 2022. Ao invés, o objeto do pedido de pronúncia arbitral é a liquidação de IRS de 2022 impugnada, cujo regime aplicável foi o regime dos residentes “comuns”, bem como a decisão de indeferimento da reclamação graciosa que legitimou a aplicação de tal regime à Requerente e manteve tal liquidação na ordem jurídico-tributária.

29. Conforme decorre do artigo 2.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, compete aos tribunais arbitrais a declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, como pretende a Requerente.

30. Questão distinta é a que se colocou no Acórdão n.º 718/2017 do Tribunal Constitucional, também referido pela Requerida na sua resposta. Com efeito, naquele aresto analisou-se a questão de saber se o princípio da impugnação unitária consagrado no artigo 54.º do CPPT impõe um ónus de impugnação autónoma do ato de indeferimento do pedido de inscrição como residente não habitual, e, se incumprindo-se tal ónus fica precludida a possibilidade de impugnação da liquidação de IRS com fundamento em vícios relacionados com o indeferimento do pedido de inscrição como residente não habitual.

31. O Tribunal Constitucional decidiu afirmativamente ambas as questões. Isto é, decidiu que o princípio da impugnação unitária impõe um ónus de impugnação autónoma do ato de indeferimento do pedido de inscrição como residente não habitual e que incumprindo-se tal ónus não é possível sindicar a liquidação de IRS com fundamento em vícios relacionados com o referido indeferimento. Neste sentido, concluiu aquele Douto Tribunal “Não julgar inconstitucional a interpretação normativa retirada do artigo 54.º do CPPT, com o sentido de que a não impugnação judicial de atos de indeferimento de pedidos de reconhecimento do estatuto de residente não habitual impede a impugnação judicial das decisões finais de liquidação do imposto com fundamento em vícios daqueles”.

32. Para alcançar esta conclusão, o Tribunal Constitucional pronunciou-se do seguinte modo:

“No que ao procedimento tributário para reconhecimento do estatuto do residente não habitual diz concretamente respeito, não parece estar em causa um procedimento complexo no âmbito do qual se possa dizer que o ato de reconhecimento daquele estatuto constitui um mero ato preparatório do procedimento de liquidação do imposto, mas antes dois procedimentos tributários autónomos.

É essa a conclusão para que aponta o regime fiscal para o residente não habitual, instituído pelo Decreto-Lei n.º 249/2009, de 23 de setembro, que aditou os n.ºs 6 a 9 ao artigo 16.º do Código do IRS.

De acordo com o regime que resultou desse aditamento, na versão anterior às modificações subsequentemente introduzidas pela Lei n.º 20/2012, de 14.05, e aplicável ao caso dos presentes autos, verificado o preenchimento dos requisitos estabelecidos no n.º 6 do artigo 16.º do Código do IRS e solicitada a inscrição dessa qualidade no registo de contribuintes da Direção-Geral dos Impostos (cf. n.º 7)qualquer sujeito passivo pode obter o estatuto de residente não habitual, alcançando, por essa via, determinados benefícios fiscais, que àquele estatuto se encontram associados. Benefícios que se consubstanciam, desde logo, na tributação à taxa especial de 20%, a que alude o n.º 6 do artigo 72.º do Código do IRS, dos rendimentos das categorias A e B provenientes das atividades de elevado valor acrescentado, com caráter científico, artístico ou técnico, elencadas na Portaria n.º 12/2010, de 7 de janeiro, bem como na aplicação aos rendimentos da categoria H do mecanismo de eliminação da dupla tributação jurídica internacional contemplado no n.º 5 do artigo 81.º do mesmo diploma legal.

No caso de o pedido ser deferido isto é, na hipótese de o sujeito passivo vir a ser considerado residente não habitual , o mesmo adquire o direito a ser tributado como tal no período de 10 anos consecutivos, desde que em cada um desses 10 anos seja considerado residente para efeitos de IRS (cf. artigo 16.º, n.ºs 7 e 8, do Código do IRS, na versão introduzida pelo Decreto-Lei n.º 249/2009, de 23.09, com correspondência nos n.ºs 7 e 9.º do referido artigo 16.º, na redação resultante da Lei n.º 20/2012, de 14.05, e atualmente em vigor).

Do ponto de vista da autonomia do procedimento para reconhecimento do estatuto de residente não habitual relativamente ao procedimento de liquidação do imposto, o significado do deferimento do pedido não é despiciendo: em caso de reconhecimento daquele estatuto, o contribuinte adquire, no âmbito daquele procedimento, o direito a ser tributado como residente não habitual no período de 10 anos consecutivos, o que, perante a anualidade do procedimento de liquidação do imposto sobre os rendimentos singulares, não deixa de ser revelador da autonomia existente entre um e outro.

Do regime legal que acaba de expor-se parece, assim, extrair-se com segurança que o ato de deferimento/indeferimento do pedido de reconhecimento do estatuto do residente não habitual não integra, como ato preparatório, mesmo que destacável, o procedimento de liquidação do correspondente imposto isto é, o procedimento tributário comum; antes constitui um verdadeiro ato tributário autónomo, cuja ligação aos atos de liquidação de impostos não resulta de um pretenso caráter preparatório relativamente a estes, mas do facto de constitu[ir] um ato pressuposto, de modo que a liquidação dos impostos objeto do benefício fiscal não pode fazer-se sem ter em conta o correspondente ato beneficiador positivo, negativo ou extintivo (cf. José Casalta Nabais, A impugnação unitária do ato tributário, in Cadernos de Justiça Tributária, n.º 11, Janeiro-Março, 2016, pp. 18 e 19, ainda que a propósito dos procedimentos de reconhecimento e extinção dos benefícios fiscais).

A relação entre os dois atos reside apenas na dependência que intercede entre o efeito produzido o desagravamento do imposto e a circunstância que lhe dá causa o reconhecimento administrativo daquele estatuto , não sendo tal conclusão, de resto, contrariada pelo disposto na alínea d) do n.º 1 do artigo 54.º da Lei Geral Tributária (doravante, «LGT»).

Com efeito, depois de estabelecer que [o] procedimento tributário compreende toda a sucessão de atos dirigida à declaração de direitos tributários, o n.º 1 do artigo 54.º da LGT elenca, ainda que de forma não taxativa, o conjunto dos atos por tal procedimento abrangidos, no mesmo incluindo, a par do reconhecimento ou revogação dos benefícios fiscais [alínea d)], um amplo conjunto de atos de natureza muito distinta, certos dos quais poderão integrar o mesmo procedimento em sentido estrito e outros claramente não é o que sucede com os atos, ali igualmente elencados, referentes a procedimentos administrativo-tributários de 2º grau, que são naturalmente autónomos.

As variações que ocorrem ao nível da categorização dos atos administrativos, bem como da relação que entre eles intercede, resulta, aliás, da ampla margem de liberdade de conformação que ao legislador ordinário é reconhecida no âmbito da delineação destes procedimentos, o que pode antecipar-se desde já não pode deixar de incluir a definição da forma e do momento que devem ser observados na reação judicial que a cada um deles faça caber.  

O artigo 54.º do CPPT preceito do qual o Tribunal a quo extraiu a preclusão da possibilidade de contestação da legalidade do ato de liquidação do imposto mediante a invocação de vícios atribuídos ao ato de indeferimento do pedido de reconhecimento do estatuto de residente não habitual em Portugal consagra o chamado princípio da impugnação unitária.

Conforme referido já, ali se estabelece que, [s]alvo quando forem imediatamente lesivos dos direitos do contribuinte ou disposição expressa em sentido diferente, não são suscetíveis de impugnação contenciosa os atos interlocutórios do procedimento, sem prejuízo de poder ser invocada na impugnação da decisão final qualquer ilegalidade anteriormente cometida.

Do artigo 54.º do CPPT decorre, assim, a regra segundo a qual a impugnação judicial deverá recair sobre a decisão final do procedimento tributário e não, de imediato, também sobre os chamados atos preparatórios ou interlocutórios; estes apenas são impugnáveis de modo indireto, mediante impugnação da correspondente decisão final.

A justificação para a tal regra é simples: os atos preparatórios dos atos tributários, por via de regra, limitam os seus efeitos ao procedimento em que são praticados, repercutindo-os, todavia, para a frente na decisão final, sendo esta e apenas esta a que, por afetar diretamente a esfera dos destinatários do ato, pode lesar os direitos ou interesses legalmente protegidos destes (cf. José Casalta Nabais, A impugnação, cit., pp. 19 e 20).

Excecionalmente, contudo, sob condição de os atos preparatórios ou interlocutórios daquelas decisões se afigurarem imediatamente lesivos ou visarem produzir efeitos jurídicos externos nas situações individuais e concretas caso em que estaremos perante atos destacáveis (sejam atos destacáveis por natureza ou atos destacáveis por força da lei), a sua impugnação direta e autónoma encontra-se assegurada (cf. primeira parte do artigo 54.º do CPPT).

Ora, configurando o ato de reconhecimento do estatuto de residente não habitual, como se viu, um ato administrativo autónomo, com efeitos próprios e que se estendem para além do ato de liquidação do imposto que imediatamente se lhe segue, nada parece haver de anómalo, do ponto de vista da ratio subjacente a um tal regime, que a sua impugnação autónoma constitua para o contribuinte um ónus e não uma mera faculdade; ou, numa formulação mais próxima da seguida pela recorrente nas suas alegações, na regra segundo a qual, se aquele ato não for judicialmente impugnado, no prazo legalmente fixado para o efeito, não mais o poderá ser, excluindo-se a possibilidade de impugnação do ato consequente como o de liquidação do tributo , com fundamento em vícios que atinjam aquele seu ato pressuposto(sublinhado nosso).

33. Na apreciação do princípio da tutela jurisdicional efetiva, o Tribunal Constitucional refere que:

“Tendo por certo que os atos administrativos relativos ao reconhecimento do estatuto de residente não habitual consubstanciam um ato meramente pressuposto dos atos de liquidação do imposto inscrevendo-se cada um deles no âmbito de um procedimento administrativo-tributário próprio e autónomo , o que importa determinar, do ponto de vista do direito de ação, é se ao contribuinte ora recorrido foi conferida efetiva possibilidade de reação contenciosa contra o ato que indeferiu o pedido de reconhecimento do estatuto de residente não habitual em Portugal isto é, se, relativamente àquele ato, lhe foi assegurada uma tutela jurisdicional efetiva.

Considerados os meios através dos quais o ordenamento jurídico faculta ao destinatário a possibilidade de reagir judicialmente contra o ato de indeferimento do pedido de reconhecimento do estatuto de residente não habitual, a resposta é indubitavelmente afirmativa.

Uma vez que a decisão que incidiu sobre o pedido de reconhecimento consubstancia um ato administrativo com repercussões na esfera jurídica do interessado, a mesma é passível de impugnação contenciosa imediata, nos termos do disposto no artigo 95.º, n.º 1, da LGT.

Na ausência de uma regra específica, a impugnação judicial dos atos relativos ao reconhecimento do estatuto de residente não habitual encontra-se sujeita aos prazos previstos para a impugnação de atos administrativos em geral isto é, aqueles que constam do artigo 58.º do CPTA. Assim, se estiverem em causa atos nulos, a impugnação pode ter lugar a todo o tempo (cf. 1ª parte do n.º 1); se estiverem em causa atos anuláveis, a impugnação tem lugar no prazo de um ano, se promovida pelo Ministério Público, e de três meses, nos restantes casos (cf. alíneas a) e b) do n.º 1). 

De acordo com o disposto no n.º 3 do artigo 58.º do CPTA, a impugnação poderá ser ainda excecionalmente admitida, para além do prazo geral de três meses imposto para os particulares, nos seguintes casos: nas situações em que ocorra justo impedimento, nos termos previstos na lei processual civil; no prazo de três meses, contado da data da cessação do erro, quando se demonstre, com respeito pelo contraditório, que, no caso concreto, a tempestiva apresentação da petição não era exigível a um cidadão normalmente diligente, em virtude de a conduta da Administração ter induzido o interessado em erro; ou quando, não tendo ainda decorrido um ano sobre a data da prática do ato ou da sua publicação, se obrigatória, o atraso deva ser considerado desculpável, atendendo à ambiguidade do quadro normativo aplicável ou às dificuldades que, no caso concreto, se colocavam quanto à identificação do ato impugnável, ou à sua qualificação como ato administrativo ou como norma (cf. alíneas a) a c) do n.º 3 do mesmo artigo) (neste sentido, cf. Jorge Lopes de Sousa, Código de, cit., p. 597; José Casalta Nabais, A impugnação, cit., p. 21).

Ora, tendo tido o contribuinte ora recorrido plena possibilidade de reagir contenciosamente, nos termos que ficaram expostos, contra o ato de indeferimento do pedido de reconhecimento do benefício fiscal que apresentou, não se vê como a exclusão da possibilidade de invocação dos vícios deste em momento ulterior isto é, no âmbito da impugnação da legalidade do ato de liquidação do imposto possa violar o princípio constitucional da tutela jurisdicional efetiva.

Do ponto de vista da tutela jurisdicional efetiva, tal conclusão só poderia ser diferente se estivéssemos perante uma situação em que, por força do regime globalmente aplicável, o contribuinte não tivesse tido oportunidade processual de reagir contenciosamente contra o ato administrativo-tributário através do qual é definido o estatuto a considerar para efeitos de liquidação do imposto. Como sucederia, por exemplo, em caso de desconsideração, no âmbito da liquidação do imposto, de uma situação de deficiência fiscalmente relevante, atempadamente comunicada à Autoridade Tributária e Aduaneira: se, por alguma razão, aquela situação não fosse tida em conta pela Administração para efeitos de deduções em sede de IRS, tal facto apenas poderia ser invocado no âmbito da impugnação da própria liquidação do imposto, não sendo consequentemente legítima, à luz do direito a uma tutela jurisdicional efetiva, a exclusão dessa possibilidade.

Não é essa, conforme se viu, a situação em causa nos presentes autos.

Nestes, trata-se tão-só da impossibilidade de o contribuinte que não impugne diretamente o ato de indeferimento do pedido de reconhecimento do estatuto fiscal pretendido o poder vir a fazer ainda a posteriori, em sede de impugnação do ato de liquidação do respetivo imposto, apesar de expirado o prazo legal para a invocação do vício relativo ao primeiro ato. Ou, dito de outro modo, apenas de (mais) uma concretização do princípio, comum a tantas outras soluções processuais, segundo o qual a não impugnação de um determinado ato dentro do prazo para o efeito fixado implica a respetiva consolidação na ordem jurídica, com consequente preclusão da faculdade de invocação dos vícios que lhe correspondam no âmbito da impugnação de um ato ulterior.

Contendo-se tal efeito dentro dos limites a cuja imposição se encontra indissociavelmente ligada a função inerentemente disciplinadora de qualquer ordenamento jurídico-processual, não se vê que ocorra qualquer violação do princípio da tutela jurisdicional efetiva, constante do artigo 20.º da Constituição” (sublinhado e destacado nosso).

34. Por último, quanto ao princípio da justiça, o Tribunal Constitucional pronuncia-se do seguinte modo:

“Em consonância com a exigência de contencioso pleno no plano tributário, consagrada no 9.º da LGT, o n.º 1 do respetivo artigo 95.º reconhece a qualquer interessado o direito de impugnar ou recorrer de qualquer ato lesivo dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos, por potencialmente lesivos para esse efeito tomando, entre outros, os atos de liquidação de tributos (cf. alínea a), do n.º 2) ou o indeferimento de pedidos de isenção ou de benefícios fiscais sempre que a sua concessão esteja dependente de procedimento autónomo (cf. alínea f) do n.º 2 ).  

Ora, em face dos meios de reação facultados pelo ordenamento, as considerações que se deixaram feitas acerca da eventual violação do princípio da tutela jurisdicional efetiva têm aqui inteira aplicação: na medida em que o particular ora recorrido dispôs de uma possibilidade efetiva de reagir contenciosamente contra o ato de indeferimento do pedido de reconhecimento do estatuto de residente não habitual, o comando cuja aplicação foi recusada não restringe intoleravelmente a garantia de defesa, perante os tribunais, dos seus direitos e interesses legítimos.

Uma última palavra se deixe para o princípio da justiça, enquanto diretiva dirigida ao intérprete/aplicador no sentido de, na resolução das questões que lhe são colocadas, privilegiar a justiça material em detrimento de soluções excessivamente formais.

Por força da imposição que decorre de outros princípios igualmente aplicáveis como seja o princípio da segurança jurídica ou o próprio princípio da separação de poderes , qualquer ponderação com o intuito de verificar se a justiça material deverá orientar uma dada solução terá de ser feita em concreto, à luz de todas as propriedades relevantes do caso, sem fazer tábua rasa das exigências que decorram do regime processual aplicável (neste sentido, cf. Joaquim Freitas da Rocha, Lições de, cit., p. 255).

A questão a que, também deste ponto de vista, importa responder não é, por isso, diferente daquela que acima ficou já enunciada: sob incidência da norma que constitui o objeto do presente recurso, de acordo com a qual a não impugnação judicial do ato de indeferimento do pedido de reconhecimento do estatuto de residente não habitual impede a impugnação judicial da decisão final de liquidação do imposto com fundamento em vícios daquele, aos contribuintes é negada a faculdade de impugnar contenciosamente os atos da Administração Tributária e Aduaneira que possam violar os seus direitos ou interesses legalmente protegidos?

Tendo em conta as várias possibilidades impugnatórias de que o contribuinte poderia ter lançado mão no caso sub judice embora o não tenha feito, a resposta é, conforme se viu já, negativa.

Por isso, a solução recusada pelo Tribunal a quo, ainda que possa não ser, de entre as abstratamente configuráveis, aquela que maior nível de proteção assegura aos particulares, não é censurável à luz do princípio da justiça, consagrado no n.º 4 do artigo 268.º da Constituição (sublinhado nosso).

35. Todavia, a situação sub judice tem uma particularidade que afasta a aplicação do entendimento perfilhado pelo Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 718/2017: o pedido de inscrição como residente não habitual apresentado pela Requerente não foi indeferido. Pelo contrário, foi deferido. Deste modo, a decisão referente à inscrição como residente não habitual não configura um ato lesivo passível de ser impugnado.

36. Ao que acresce que a Requerente foi considerada residente fiscal em território português desde 2022. Mas, por erro da AT, a Requerente apenas foi considerada como residente não habitual desde 2023. Foi neste contexto que a Requerente apresentou um requerimento solicitando a produção de efeitos do referido regime especial de tributação desde 2022, não tendo obtido resposta. Ora, sem uma resposta negativa à sua pretensão a Requerente encontra-se impedida de reagir autonomamente, não lhe sendo imputável o ónus de impugnação autónoma a que se alude no Acórdão n.º 718/2017 do Tribunal Constitucional.

37. Aliás, o referido Acórdão do Tribunal Constitucional exceciona da interpretação normativa objeto do seu controlo a situação de deficiência fiscalmente relevante, atempadamente comunicada à AT, justificando que nesse caso não se verifica o ónus de impugnação de tal decisão por ser impossível.

38. A situação dos presentes autos é uma situação equiparável a esta referida, uma vez que a Requerente não teve oportunidade processual de reagir contenciosamente contra o ato administrativo-tributário através do qual é definido o estatuto a considerar para efeitos de liquidação do imposto.

39. Assim, atendendo à especificidade da sua situação, não impendia sob a Requerente o ónus de impugnar a decisão referente ao pedido de inscrição como residente não habitual, podendo, como fez, sindicar a liquidação de IRS de 2022 imputando-lhe a ilegalidade referente à não aplicação do regime dos residentes não habituais.

40. Em face do exposto, considerando a formulação do presente pedido arbitral, tal como exposta no pedido de pronúncia arbitral, o qual versa sobre a impugnação de ato de liquidação de imposto, expressamente prevista no artigo 2.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, como matéria de competência dos tribunais arbitrais constituídos no âmbito do CAAD, e considerando que a Requerente não obteve um ato lesivo quanto à sua pretensão de ser considerada residente não habitual, passível de impugnação autónoma, decide-se pela improcedência da exceção da incompetência material suscitada pela Requerida.

B.Da falta de fundamentação

41. A Requerente invocou a falta de fundamentação da decisão de indeferimento reclamação graciosa impugnada, alegando que aquela não contém em si mesma qualquer indicação dos fundamentos que terão estado na origem das suas conclusões.

42. É por demais evidente que, ao abrigo do artigo 77.º, n.º 2, da LGT e do artigo 268.º, n.º 3, da CRP, existe um dever de fundamentação dos atos tributários, que a doutrina e a jurisprudência têm destacado.  

43. Todavia, não procede a alegação da Requerente. Apesar de sumária e independentemente da sua validade, a referida fundamentação constante da decisão de indeferimento da reclamação graciosa contém as normas do Código do IRS consideradas aplicáveis pela AT e é perfeitamente explícita e compreensível.

C.Da errónea desconsideração do regime dos residentes não habituais

44. A Requerente principia por invocar a ilegalidade do ato tributário de IRS do ano de 2022, bem como da decisão de indeferimento da reclamação graciosa que o manteve na ordem jurídica, por lhe ter sido aplicado o regime de tributação dos residentes, em vez do regime de tributação dos residentes não habituais, quando se verificavam todos os seus requisitos de aplicação. Sobre este vício do ato de liquidação de IRS já se pronunciaram diversos Tribunais arbitrais, designadamente nos processos n.º 1041/2023-T, n.º 894/2023-T, n.º 881/2023-T, n.º 797/2023-T, n.º 648/2023-T e n.º 487/2023-T. Também o Supremo Tribunal Administrativo no Acórdão de 29.05.2024, aderindo-se à solução alcançada.

45. Por facilidade, replica-se a argumentação constante do processo n.º 648/2023-T, no qual foi decidido o seguinte:

«A questão fundamental em causa no presente processo arbitral prende-se com a aferição da legalidade dos actos tributários que constituem o seu objecto, à luz dos fundamentos que lhe servem de suporte.

Concretizando, em causa está apurar se aos rendimentos obtidos pelo Requerente nos anos de 2014 e 2015, seria aplicável o regime de tributação dos residentes não habituais.

O regime fiscal do residente não habitual, em sede de IRS, foi introduzido no ordenamento jurídico português pelos artigos 23º a 25º do Decreto-Lei n.º 249/2009 de 23 de setembro, que aprovou o Código Fiscal do Investimento. Posteriormente, através da Lei n.º 20/2012, de 14 de maio, foram revogados aqueles preceitos, passando este regime a constar dos artigos 16.º, 22.º, 72.º e 81.º do Código do IRS.

Dispunha o artigo 16.º do Código do IRS, com a redacção em vigor à data dos factos, o seguinte:

“8 - Consideram-se residentes não habituais em território português os sujeitos passivos que, tornando-se fiscalmente residentes nos termos dos n.os 1 ou 2, não tenham sido residentes em território português em qualquer dos cinco anos anteriores.

9 - O sujeito passivo que seja considerado residente não habitual adquire o direito a ser tributado como tal pelo período de 10 anos consecutivos a partir do ano, inclusive, da sua inscrição como residente em território português.

10 - O sujeito passivo deve solicitar a inscrição como residente não habitual no ato da inscrição como residente em território português ou, posteriormente, até 31 de março, inclusive, do ano seguinte àquele em que se torne residente nesse território.

11 - O direito a ser tributado como residente não habitual em cada ano do período referido no n.º 9 depende de o sujeito passivo ser considerado residente em território português, em qualquer momento desse ano.

12 - O sujeito passivo que não tenha gozado do direito referido no número anterior em um ou mais anos do período referido no n.º 9 pode retomar o gozo do mesmo em qualquer dos anos remanescentes daquele período, a partir do ano, inclusive, em que volte a ser considerado residente em território português.”

E previa, o artigo 72.º, n.º 6 do Código do IRS, com a redacção em vigor à data dos factos, o seguinte:

“6 - Os rendimentos líquidos das categorias A e B auferidos em actividades de elevado valor acrescentado, com carácter científico, artístico ou técnico, a definir em portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças, por residentes não habituais em território português, são tributados à taxa de 20 %”.

(…)

Nos termos do n.º 7 do artigo 16.º do CIRS que acima transcrevemos, “O sujeito passivo que seja considerado residente não habitual adquire o direito a ser tributado como tal pelo período de 10 anos consecutivos a partir do ano, inclusive, da sua inscrição como residente em território português”.

Mais referido o n.º 8 do referido normativo que “Consideram-se residentes não habituais em território português os sujeitos passivos que, tornando-se fiscalmente residentes nos termos dos n.ºs 1 ou 2, não tenham sido residentes em território português em qualquer dos cinco anos anteriores.”

Considerando o quadro legal à data dos factos, a tributação de acordo com o regime do residente não habitual, depende do preenchimento de dois pressupostos cumulativos:

a)      Que se torne fiscalmente residente em território português de acordo com qualquer dos critérios estabelecidos nos n.ºs 1 ou 2 do artigo 16.º do Código do IRS no ano relativamente ao qual pretende que tenha início a tributação como residente não habitual;

b)      Que não tenha sido considerado residente em território português em qualquer dos 5 anos anteriores ao ano relativamente ao qual pretende que tenha início a tributação como residente não habitual.

Resulta, portanto, que o benefício do regime dos residentes não habituais depende apenas do preenchimento dos requisitos do n.º 8 do artigo 16.º do CIRS, e da inscrição como residente em território português, e não da inscrição como residente não habitual.

A inscrição como residente não habitual prevista no n.º 10 do artigo 16.º do CIRS trata-se de uma mera obrigação declarativa, não sendo, por isso, constitutiva do direito.

Como resulta do ponto 17 dos factos provados, o Requerente apenas em 11-07-2014, entregou o pedido de inscrição como residente não habitual, entrega essa que não ocorreu, no prazo estipulado no n.º 10 do artigo 16.º do CIRS, pelo que, como sustenta a Requerida, lhe estaria vedada a possibilidade de beneficiar daquele regime.

Não obstante, como por regra ocorre, a interpretação da lei fiscal não pode, nem deve, ficar-se pelo teor literal dos normativos imediatamente aplicáveis, devendo, antes, e mais não seja pela imposição da realização dos princípios da tributação da capacidade contributiva e da justiça material, decorrentes dos artigos 4.º, n.º 1, e 5.º, n.º 2, da LGT, identificar-se a finalidade material do regime a aplicar, através da compreensão da natureza das normas convocáveis, das finalidades por si visadas, e do contexto sistemático das mesmas.

Sob esta perspectiva, a norma do n.º 10 do artigo 16.º do CIRS, que disciplina a data limite até à qual os sujeitos passivos que reúnam os pressupostos materiais de que depende a tributação de acordo com o regime dos residentes não habituais podem requerer a inscrição como residente não habitual - até 31 de Março, inclusive, do ano seguinte àquele em que se torne residente em território nacional -, deverá entender-se como uma norma essencialmente procedimental, de organização do sistema operacional de tributação, que visa assegurar sua efectividade e o seu normal funcionamento, sendo, especialmente e desde logo de notar que a norma em causa, não tem subjacentes quaisquer finalidades de evitar a fraude ou a evasão fiscal.

E, nem se diga, como faz a AT, que não tendo o Requerente respeitado o prazo previsto no n.º 10 do artigo 16.º do Código do IRS para requerer a sua inscrição como residente não habitual, não pode beneficiar desse regime em qualquer um dos dez anos a que teria direito se tivesse apresentado o pedido dentro do prazo. Tratando-se a obrigação de apresentar o pedido de inscrição como residente não habitual, de uma obrigação meramente declarativa e, portanto não constitutiva do direito a beneficiar daquele regime, o atraso na entrega de declarações constitui uma contraordenação tributária prevista e punida nos termos do artigo 116.º do RGIT, e não deverá ter como consequência, sem mais, o não enquadramento no regime do residente não habitual.

Do exposto resulta – em suma – que o pedido de inscrição como residente não habitual não tem efeito constitutivo, mas meramente, declarativo, tudo o que, como adiante se verá, será de relevar na solução jurídica a formular no caso concreto.

Por seu lado, no Processo 664/2022-T, o Tribunal concluiu da seguinte forma:

Ora, contrariamente ao entendimento sufragado pela AT, o pedido de inscrição como RNH não tem efeitos constitutivos do direito a ser considerado como RNH e a beneficiar do respetivo regime fiscal, consubstanciando-se como uma mera formalidade para operar o benefício fiscal. Com efeito, é nosso entendimento que a inscrição como residente não habitual não é constitutiva do direito à tributação como residente não habitual, revestindo mera natureza declarativa.

Sendo certo que o Requerente A... apresentou o primeiro pedido em 17.08.2020, pedido esse repetido em 14.11.2022 (dado o indeferimento do 1º pedido) e que a Requerente B... entregou o seu pedido em 14.11.2022, o facto de estes pedidos não terem sido efectuados até à data em que mudaram a sua residência fiscal para Portugal (ou até 31 de Março do ano subsequente), comprovadamente no ano de 2018, não os deve impedir de beneficiar do regime dos RNH, tal qual resulta dos processos arbitrais anteriormente citados.

Assim sendo, entende o Tribunal que se encontram reunidos os requisitos legais, previstos no nº 8 do artigo 16º do CIRS para que aos Requerentes seja aplicado o regime dos RNH e que sejam tributados como tal, ou seja, em conformidade com o nº 9 do citado artigo 16º do CIRS e independentemente da data em que foi solicitada a adesão a este regime.

Deve, pois, concluir-se que, estando verificados os pressupostos materiais da sua aplicação, os Requerentes devem poder beneficiar, de pleno direito, do regime dos RNH a contar do ano em que mudaram a sua residência fiscal para Portugal – 2018 - e durante o período de 10 anos legalmente previsto.

Pelo exposto, julga-se procedente o pedido formulado pelos Requerentes, impondo-se a anulação da decisão de indeferimento da reclamação graciosa, bem como a anulação parcial dos actos de liquidação aqui contestados na concreta medida em que não consideraram a qualidade de RNH dos Requerentes, remetendo-se para execução de julgado o concreto montante a reembolsar» (destacado nosso).

46. Ora, na situação dos presentes autos é ainda mais evidente a aplicação do regime dos residentes não habituais no ano da liquidação de IRS contestada – 2022 – dado que, de acordo com o registo informático da AT, a Requerente é considerada como residente em território português desde 2022.

47. Sendo o ano de 2022 o ano em que a Requerente adquiriu residência em território português, é inequívoco que, à luz do disposto nos n.ºs 8 e 9 do artigo 16.º do CIRS, deve ser tributada como residente não habitual desde 2022 e não desde 2023.

48. Efetivamente, a AT considerou indevidamente a Requerente como residente “comum” em 2022 devido a uma discrepância no registo informático, motivada pelo pedido de alteração de residência com efeitos retroativos que foi deferido em agosto de 2023.

49. Em face do exposto, e uma vez que a inscrição como residente não habitual não tem efeitos constitutivos, verificando-se que a Requerente passou a ser residente em território português em 2022 e que nos 5 anos anteriores foi não residente nesse mesmo território (como a própria AT reconhece), deve aquela beneficiar do regime de tributação dos residentes não habituais no ano de 2022.

50. Não tendo o referido regime sido aplicado, julga-se procedente esta parte do pedido de pronúncia arbitral, declarando-se a ilegalidade da liquidação de IRS contestada, com as demais consequências legais.      

D.Da não tributação dos rendimentos de fonte estrangeira obtidos pela Requerente antes da sua residência em Portugal

51. A Requerente invoca, ainda, que a liquidação de IRS é ilegal por ter sujeitado a tributação rendimentos de fonte estrangeira obtidos antes da aquisição da residência em território português. Com efeito, refere a Requerente que, por lapso, declarou na Modelo 3 de IRS o montante total de € 281.819,13, com a respetivo imposto pago no país da fonte no montante de € 49.409,28, mas que esses rendimentos foram obtidos entre 31 de janeiro e 11 de março de 2022. Ou seja, antes da sua residência em território português, que apenas ocorreu em 18 de março de 2022, como consta do registo da AT.

52. Resulta da prova produzida que a Requerente adquiriu a qualidade de residente em território português em 18 de março de 2022, e auferiu rendimentos de capitais de origem de Jersey no montante total de € 281.819,13, pagos pela entidade B..., nas seguintes datas:

€ 189.908,53: 11 de março 2022;

€ 29.373,28: 11 de março 2022;

€ 30.406,78: 01 de março 2022; e

€ 32.130,54: 31 de janeiro 2022;

53. A Requerente beneficia da residência parcial nos termos do artigo 16.º, n.º 3, do CIRS. Com efeito, tornou-se residente desde o primeiro dia do período de permanência em território português, i.e., o dia 18 de março de 2022, como reconhecido pela AT.

54. De acordo com o artigo 13.º, n.º 1, do Código do IRS: “Ficam sujeitas a IRS as pessoas singulares que residam em território português e as que, nele não residindo, aqui obtenham rendimentos”.

55. Em sentido concordante, dispõe o artigo 15.º do Código do IRS:

Artigo 15.º

Âmbito da sujeição

1- Sendo as pessoas residentes em território português, o IRS incide sobre a totalidade dos seus rendimentos, incluindo os obtidos fora desse território.

2- Tratando-se de não residentes, o IRS incide unicamente sobre os rendimentos obtidos em território português.

3- O disposto nos números anteriores aplica-se aos casos de residência parcial previstos nos n.os 3 e 4 do artigo seguinte, relativamente a cada um dos estatutos de residência.

56. As normas citadas traduzem os dois critérios adotados pelo legislador português para a tributação de pessoas singulares: o critério da residência e o critério da fonte.

57. Por outras palavras, os residentes em território português são sujeitos a IRS sobre todos os rendimentos por si auferidos, enquanto que os não residentes apenas são sujeitos a IRS sobre os rendimentos de fonte portuguesa.

58. Isto significa que os não residentes que aufiram rendimento de fonte estrangeira não são sujeitos a IRS porque não existe qualquer ligação ao território português que legitime essa tributação.

59. No caso da Requerente, aquela tornou-se residente em território português apenas em 18 de março de 2022. E resulta provado que os rendimentos ora em análise foram por si auferidos entre 31 de janeiro e 11 de março de 2022. Portanto, os rendimentos que totalizam o montante de € 281.819,13 correspondem a rendimentos de fonte estrangeira auferidos pela Requerente quando esta ainda não era residente em território português, motivo pelo qual não devem ser sujeitos a tributação.

60. Em face do exposto, julga-se procedente esta parte do pedido de pronúncia arbitral, com as demais consequências legais, nomeadamente a anulação da liquidação de IRS nesta parte.

E.Dos rendimentos pagos pela entidade C...

61. Por último, invoca a Requerente que os rendimentos pagos pela entidade C... não têm natureza de dividendos, mas antes de lucros derivados por uma sociedade transparente para efeitos fiscais e diretamente imputados à Requerente, motivo pelo qual deveriam ter sido subsumidos na categoria B e não na categoria E de IRS, e sujeitos ao regime aplicável aos residentes não habituais.

Vejamos.

Qualificação dos rendimentos

62. Resulta da prova produzida que a Requerente auferiu rendimentos de origem do Reino Unido no montante total de € 969.079,69 pagos pela entidade C..., e que a entidade C... configura uma Limited Liability Partnership residente em território inglês, com instalações e trabalhadores, equivalendo às entidades transparentes fiscais em Portugal cujos rendimentos são imputados à Requerente para efeitos fiscais, não sendo tributados na esfera da própria entidade, mas sim dos seus sócios.

63. De acordo com CIDÁLIA LOPES e DIANA Luís “(…) as Limited Liability Partnerships (LLP) têm uma existência jurídica separada dos seus membros, mas são geralmente tratadas como transparentes para efeitos fiscais. Neste sentido, pode afirmar-se que, em termos fiscais, estas se assemelham às sociedades de pessoas, uma vez que não são tributadas pelo CIT, mas em vez disso os lucros são distribuídos aos sócios, para aí serem tributados” (cf. CIDÁLIA LOPES e DIANA LUÍS, O regime de transparência fiscal: estudo comparativo em Portugal, Espanha, França e Reino Unido, 2015, disponível em https://www.researchgate.net/publication/310715508_O_regime_de_transparencia_fiscal_estudo_comparativo_em_Portugal_Espanha_Franca_e_Reino_Unido ).

64. No mesmo sentido, BRUNO SANTIAGO e ANA CARRILHO RIBEIRO explicam o seguinte: “No Reino Unido, os membros de entidades transparentes são considerados como tendo direito a uma parte do rendimento auferido pela entidade assim que este é obtido, sujeitando o rendimento a imposto nesse momento. Quando se trate de uma entidade opaca, o sócio apenas é tributado quando existir uma distribuição de rendimento pela entidade. Quanto às entidades residentes no Reino Unido, as UK General Partnerships e UK Limited Partnerships são geralmente tratadas como transparentes em sede de imposto sobre o rendimento, de forma a que os seus membros são sujeitos a imposto na porção de rendimento gerado pelas entidades que lhes seja alocável. As UK Limited Liability Partnerships são consideradas sociedades à luz da demais legislação, mas tratadas como transparentes para efeitos fiscais” (cf. BRUNO SANTIAGO e ANA CARRILHO RIBEIRO, Tributação em Portugal de Entidades Transparentes localizadas no estrangeiro, em Revista Eletrónica de Fiscalidade da AFP (2021), ano III – número 1, p. 18)

65. Com efeito, resulta da documentação junta pela Requerente aos autos que os lucros da entidade C... são diretamente imputados na esfera da Requerente e, consequentemente, tributados na sua esfera jurídica no Reino Unido. Para além disso, a designação atribuída aos referidos rendimentos é de “trading or professional profits” (cf. documento n.º 19 junto pela Requerente).

66. No que concerne ao regime de tributação aplicável em Portugal, coloca-se a questão de saber como devem ser qualificados os rendimentos distribuídos por este tipo de sociedades, em concreto, as LLP.

67. A este propósito, BRUNO SANTIAGO e ANA CARRILHO RIBEIRO expõem de forma sumária a posição da AT quanto à questão, clarificando que “(…) a AT acaba por negar relevância à qualificação jurídica efetuada pelo Estado da fonte, concluindo que os rendimentos em causa configuram, face à ordem jurídica portuguesa, rendimentos de capitais. Esta posição para uma situação inbound está nos antípodas daquela outra assumida pela administração fiscal, numa situação outbound” (cf. BRUNO SANTIAGO e ANA CARRILHO RIBEIRO, Tributação em Portugal de Entidades Transparentes localizadas no estrangeiro, em Revista Eletrónica de Fiscalidade da AFP (2021), ano III – número 1, p. 42). E acrescentam que “Pela nossa parte não vislumbramos nenhum fundamento jurídico válido para esta dualidade de critérios e defendemos exatamente o mesmo tratamento, ou seja, que Portugal enquanto Estado da residência do beneficiário dos rendimentos deve tomar em consideração e aceitar a qualificação jurídica da entidade pagadora efetuada pelo Estado da fonte. A interpretação que preconizamos acaba por ter uma maior irradiação no regime do Residente Não Habitual – em que pode estar potencialmente em causa uma isenção de imposto –, já que nas restantes situações de pessoas singulares e coletivas residentes, independentemente da qualificação jurídica feita pelo Estado da fonte, haverá sempre tributação em Portugal (podendo contudo ocorrer problemas de conflitos de qualificação e de consequente dupla tributação jurídica e económica internacional na solução preconizada pela administração fiscal)” (cf. BRUNO SANTIAGO e ANA CARRILHO RIBEIRO, Tributação em Portugal de Entidades Transparentes localizadas no estrangeiro, em Revista Eletrónica de Fiscalidade da AFP (2021), ano III – número 1, p. 42; destacado nosso).

68. Quando o sócio dessa entidade tenha estatuto de residente não habitual, defendem os mesmos autores que “O melhor entendimento parece-nos ser aquele que respeita e aceita a qualificação da entidade efetuada pelo Estado da fonte. Assim, se o Estado da fonte considera a entidade como transparente é porque, em princípio, na sua ótica, o que está em causa é apenas um rendimento auferido por um não-residente naquele território. Um rendimento que poderá ou não ter fonte naquele Estado consoante a entidade que o pagar à entidade transparente esteja ou não localizada nesse Estado. Se o rendimento tiver fonte nesse Estado importa averiguar quem efetuou o pagamento e se essa entidade pode ou não beneficiar da CDT celebrada com Portugal, sendo que, se puder beneficiar, não há razão para não estar isento ao abrigo do RNH. Se o rendimento não tiver fonte naquele Estado, importa averiguar então o Estado da fonte e se a entidade pagadora nesse outro Estado pode beneficiar da CDT celebrada com Portugal” (cf. BRUNO SANTIAGO e ANA CARRILHO RIBEIRO, Tributação em Portugal de Entidades Transparentes localizadas no estrangeiro, em Revista Eletrónica de Fiscalidade da AFP (2021), ano III – número 1, p. 43; destacado nosso).

69. Embora não se trate de uma situação idêntica, o Tribunal Central Administrativo Norte alcançou a seguinte conclusão, relevante para a questão sobre que nos debruçamos: “O que se passa é que perante a constatação de que era a impugnante quem exercia a actividade e beneficiava dos seus resultados, a AT deveria ter concluído que tributara uma realidade desprovida de valor económico (representada pela situação fictícia) e que os pressupostos da capacidade contributiva com relação ao rendimento gerado pela actividade da farmácia se verificavam, afinal, no património da impugnante e não do titular da farmácia, extraindo daí as devidas consequências, que passam pela consideração da directiva constitucional da tributação dos rendimentos segundo a condição pessoal dos contribuintes (art.º104.º, n.º1 da CRP), pois enquanto elemento do rendimento global, o resultado gerado pela actividade da farmácia pode ficar sujeito a diferentes níveis de taxa (art.º68.º do CIRS), consoante seja imputado ao titular da farmácia ou à impugnante. O que a AT não podia era desvirtuar a natureza dos rendimentos auferidos tributando-os na esfera da impugnante como rendimentos da aplicação de capitais, quando a realidade económica tributada, como a própria AT constatou, mais não é que o resultado da actividade da farmácia exercida pela impugnante(cfr. Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 18 de maio de 2017, proferido no processo n.º 01162/07.1BEPRT; destacado nosso).

70. Em face do exposto, devem os rendimentos pagos pela entidade C... ser qualificados como rendimentos profissionais, de categoria B.

Regime de tributação aplicável

71. Nos termos do artigo 81.º, n.º 5, do Código do IRS, vigente à data dos factos:

“Aos residentes não habituais em território português que obtenham, no estrangeiro, rendimentos da categoria B, auferidos em atividades de prestação de serviços de elevado valor acrescentado, com carácter científico, artístico ou técnico, a definir em portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças, ou provenientes da propriedade intelectual ou industrial, ou ainda da prestação de informações respeitantes a uma experiência adquirida no setor industrial, comercial ou científico, bem como das categorias E, F e G, aplica-se o método da isenção, bastando que se verifique qualquer uma das condições previstas nas alíneas seguintes:
a) Possam ser tributados no outro Estado contratante, em conformidade com convenção para eliminar a dupla tributação celebrada por Portugal com esse Estado; ou
b) Possam ser tributados no outro país, território ou região, em conformidade com o modelo de convenção fiscal sobre o rendimento e o património da OCDE, interpretado de acordo com as observações e reservas formuladas por Portugal, nos casos em que não exista convenção para eliminar a dupla tributação celebrada por Portugal, desde que aqueles não constem de lista aprovada por portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças, relativa a regimes de tributação privilegiada, claramente mais favoráveis e, bem assim, desde que os rendimentos, pelos critérios previstos no artigo 18.º, não sejam de considerar obtidos em território português”. 

72. A decisão arbitral proferida no processo n.º 910/2023-T pronuncia-se sobre a qualificação de atividades de prestação de serviços de elevado valor acrescentado, referindo que “(…) resulta da prova produzida, designadamente dos documentos n.ºs 16, 17, 18 e 19, juntos com o pedido de pronúncia arbitral, é que o Requerente A... desempenhou funções de direcção e gestão empresarial, o que é corroborado pelas informações das autoridades alemãs que constam do documento n.º 20 (que têm acentuado valor probatório, por força do preceituado nos n.ºs 1 e 4 do artigo 76.º da LGT) e pelas facturas cujas cópias constam do documento n.º 21. Ora, as actividades de gestão de empresas, designadamente de administradores e gestores, eram também consideradas de elevado valor acrescentado, estando indicadas no código 801 da lista anexa à Portaria n.º Portaria n.º 12/2010, na redacção inicial. Por outro lado, embora a Autoridade Tributária e Aduaneira, erradamente, tivesse continuado a aplicar aos rendimentos do ano de 2020 a lista anexa à Portaria n.º 12/2010, ela tinha sido substituída pela Lista que consta da Portaria n.º 230/2019, com efeitos desde 01-01-2020, mas não deixava de continuar a ocorrer o enquadramento da actividade do Requerente  A... nas actividades de elevado valor acrescentado. Na verdade, nessa nova lista inclui-se o código 21, relativo às actividades de «especialistas das ciências físicas, matemáticas, engenharias e técnicas afins», em que se enquadram a generalidade das actividades de engenharia, inclusivamente de consultadoria em engenharia.

Por outro lado, também as actividades de direcção e gestão de empresas, serviços comerciais e de produção estão previstas nos códigos 112, 12 e 13 da nova lista.

Pelo exposto, tem de se concluir que as liquidações impugnadas, que assentam no pressuposto que a actividade do Requerente A... não se inclui entre as consideradas de elevado valor acrescentado, enferma de vícios de erro sobre os pressupostos de facto e de direito, que justificam a sua anulação, nos termos do artigo 163.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo subsidiariamente aplicável nos termos do artigo 2.º, alínea c), da LGT.”

73. Ora resulta do documento n.º 20 junto pela Requerente que aquela é sócia da entidade C..., assumindo igualmente as funções de “Managing Partner” e “Investment Partner”.

74. A Portaria n.º 230/2019, de 17 de janeiro, elenca como uma das atividades de elevado valor acrescentado: 112 – Diretor-geral e gestor executivo de empresas.

75. Deste modo, impõe-se a conclusão de que a atividade da Requerente (na qualidade de “Managing Partner” / Diretora-geral) é uma atividade de elevado valor acrescentado.

76. No que concerne ao primeiro dos requisitos constante da alínea a) do n.º 5 do artigo 81.º do Código do IRS – “Possam ser tributados no outro Estado contratante, em conformidade com convenção (…)” – verifica-se que não só o rendimento em apreço poderia ser tributado no Reino Unido (Estado da Fonte), como foi efetivamente tributado naquele território

77. Com efeito, a Requerente pagou imposto no Reino Unido conforme comprovado pelo documento n.º 21 junto ao pedido de pronúncia arbitral.

78. Neste contexto, o rendimento pago pela entidade C... encontra-se isento de tributação em território português, nos termos do n.º 5 do artigo 81.º do Código do IRS, pelo que a liquidação de IRS contestada é ilegal nesta parte e deve ser anulada.

79. Por último, refira-se que, mesmo que o rendimento ora em análise fosse subsumido à categoria E, o resultado fiscal seria semelhante, visto que o Reino Unido tributou os rendimentos em apreço.

80. Atendendo ao exposto, ficam prejudicados os restantes vícios invocados.

 

 

 

  1. Do pedido de reembolso das quantias pagas e de juros indemnizatórios

81. Como consequência da anulação do ato tributário de IRS, a Requerente tem direito a ser reembolsada do montante indevidamente pago.

82. No que concerne ao pedido de juros indemnizatórios, importa ter presente o n.º 5 do artigo 24.º do RJAT que prevê        que “É devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na lei geral tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”.

83. O regime substantivo dos juros indemnizatórios é regulado no artigo 43.º da LGT, que estabelece, no que aqui interessa, o seguinte:

Artigo 43.º

Pagamento indevido da prestação tributária

1 – São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.

2 – Considera-se também haver erro imputável aos serviços nos casos em que, apesar da liquidação ser efectuada com base na declaração do contribuinte, este ter seguido, no seu preenchimento, as orientações genéricas da administração tributária, devidamente publicadas.

3. São também devidos juros indemnizatórios nas seguintes circunstâncias:

a) Quando não seja cumprido o prazo legal de restituição oficiosa dos tributos;

b) Em caso de anulação do acto tributário por iniciativa da administração tributária, a partir do 30.º dia posterior à decisão, sem que tenha sido processada a nota de crédito;

c) Quando a revisão do acto tributário por iniciativa do contribuinte se efectuar mais de um ano após o pedido deste, salvo se o atraso não for imputável à administração tributária.

d) Em caso de decisão judicial transitada em julgado que declare ou julgue a inconstitucionalidade ou ilegalidade da norma legislativa ou regulamentar em que se fundou a liquidação da prestação tributária e que determine a respetiva devolução.

4. A taxa dos juros indemnizatórios é igual à taxa dos juros compensatórios.

5. No período que decorre entre a data do termo do prazo de execução espontânea de decisão judicial transitada em julgado e a data da emissão da nota de crédito, relativamente ao imposto que deveria ter sido restituído por decisão judicial transitada em julgado, são devidos juros de mora a uma taxa equivalente ao dobro da taxa dos juros de mora definida na lei geral para as dívidas ao Estado e outras entidades públicas.

84. No caso sub judice, é manifesto o erro imputável aos serviços quanto à qualificação da Requerente como residente “comum” em vez de residente não habitual, erro esse que determinou o apuramento de imposto que não se afigura devido.

85. Em face do exposto, é devido o pagamento de juros indemnizatórios sobre o montante indevidamente pago pela Requerente, desde a data do pagamento até à data do processamento da respetiva nota de crédito, nos termos do n.º 5 do artigo 61.º do CPPT.

VI. DECISÃO

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral:

 

  1. Julgar improcedente a exceção de incompetência material do Tribunal arbitral;

 

  1. Julgar procedente o pedido de declaração de ilegalidade e anulação da decisão de indeferimento expresso da reclamação graciosa consubstanciada no despacho de 29 de dezembro de 2023, proferido pelo Diretor de Finanças Adjunto da Direção de Finanças de Lisboa, bem como do ato de liquidação de IRS com o n.º 2023..., relativo ao ano de 2022, do qual resultou um montante a pagar de € 175.207,78, e respetiva liquidação de juros compensatórios, e consequentemente a obrigação de reembolso do valor indevidamente pago à Requerente;

 

  1. Julgar procedente o pedido de pagamento de juros indemnizatórios, nos termos acima referidos;

 

  1. Condenar a AT Requerida nas custas do processo, em razão do decaimento.

VALOR DO PROCESSO

Fixa-se o valor do processo em € 179.806,55, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.  

CUSTAS

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 3.672,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela AT Requerida, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5, do citado Regulamento.   

 

Notifique-se.

 

CAAD, 22 de novembro de 2024

 

 

Os Árbitros,

 

 

 

 

A Árbitro Presidente

(Rita Correia da Cunha)

 

 

 

 

 

 

 

A Árbitro Adjunto

(Maria Antónia Torres)

 

 

 

O Árbitro Adjunto e Relator

(João Taborda da Gama)