SUMÁRIO:
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A tributação de uma mais-valia resultante de uma alienação de participação social tem de ser calculada pela aplicação da taxa de 28% à diferença entre o valor de aquisição e valor de realização - artigo 10.º 1 alínea b), 48.ºe 72.º do CIRS.
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A determinação dos valores de realização e aquisição têm de resultar de elementos objetivos declarados pelas partes e verificados/demonstrados.
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A declaração de valores fictícios de realização, sem adesão à realidade, e a ausência de valor de aquisição imputáveis ao contribuinte podem determinar a ausência de culpa na liquidação efetuada pela AT, não dando lugar a pagamento de juros indemnizatórios por parte da AT mesmo que se determine a correção da liquidação.
DECISÃO ARBITRAL
O árbitro Vasco António Branco Guimarães, árbitro singular designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formar o Tribunal Arbitral, constituído em 24-05-2024, decide o seguinte:
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Relatório
A..., cidadão com o NIF ... e B..., cidadã com o NIF..., ambos com morada na Rua ..., n.º..., ...-... Porto, vieram requerer a constituição de Tribunal Arbitral e apresentar o seu pedido de: PRONÚNCIA ARBITRAL COM ÁRBITRO SINGULAR para apreciação da legalidade do ato tributário de liquidação n.º 2023... em sede de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (doravante IRS) referente ao período de tributação de 2019, acerto n.º 2023 ... que determinou um valor a pagar de 25.225,87 euros (vinte e cinco mil duzentos e vinte e cinco euros e oitenta e sete) acrescido de juros compensatórios no valor de 518,39 euros (quinhentos e dezoito euros e trinta e nove sentimos), liquidação n.º 2023 ... que perfaz o montante total a pagar de 25.744,26 euros (vinte e cinco mil setecentos e quarenta e quatro euros e vinte e seis cêntimos), termos em que deverá o pedido de pronúncia arbitral ser julgada provada e procedente e, consequentemente, ser parcialmente anulado o ato de liquidação de IRS, aqui identificado referente ao período de tributação de 2019, nos termos do artigo 163.º n.º 1 do CPA.
É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA.
O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 13-03-2024.
Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitro do tribunal arbitral o signatário, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.
Em 19-03-2024 foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos conjugados do artigo 11.º n.º 1 alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral singular foi constituído em 24-05-2024.
A Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou Resposta em 26-06-2024 em que por impugnação defendeu que os pedidos devem ser julgados improcedentes.
Por despacho de 25-09-2024, foi decidido dispensar a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT e designada data para a audição de testemunha.
Em 08-11-2024 procedeu-se à audição da testemunha e audição de argumentos das Partes. Foram dispensadas alegações.
O tribunal arbitral foi regularmente constituído, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro.
As partes estão devidamente representadas gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
O processo não enferma de nulidades.
2. Matéria de facto
2.1. Factos provados:
Consideram-se provados os seguintes factos com relevância para a decisão da causa:
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Os Requerentes eram em 2019 sócios de uma sociedade em comandita austríaca com uma sócia B..., (sócia comanditada com responsabilidade ilimitada) e um sócio com responsabilidade limitada (sócio comanditário) A...- Cfr. Preâmbulo do contrato de aquisição de ações e cessão junto pelos Requerentes como Documento 4.
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O sócio A..., alienou a sua participação à também aqui Requerente, B... em 06.06.2019 – cfr. documento bancário junto com o contrato.
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O valor declarado da participação do alienante descrita na alínea b) do Preâmbulo do contrato de venda e cessão junto aos autos e registada no registo comercial austríaco (valor de aquisição) é de 50 000,00 (cinquenta mil) Euro, correspondente a 50% da sociedade.
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Em 06.06.2019 foi concretizado, com o pagamento, o contrato de venda e cessão da quota - cfr. extrato do Bank C... junto aos autos com o contrato.
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O valor de realização comprovado foi de 155 000,00 (cento e cinquenta e cinco mil) Euro.
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A transação objeto de apreciação contenciosa tem como origem e fundamento a vontade das partes refletida num contrato junto aos autos que não foi impugnado nem contestado.
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Não existe processo administrativo desta liquidação.
2.2. Factos não provados.
Não resultou provado no presente processo que:
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A mais-valia fosse de 29.050,03 Euro.
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Que as «entregas» referidas num documento que é uma folha EXCELL não certificada, se referiam a entradas de capital na sociedade alegadamente feitas pelo Requerente, estando descritas no documento como «Declarações de entrega» numa rubrica que as identifica entre outras no lado esquerdo como contrapartida de «Arbeiter» (trabalhador).
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Não resultam provadas quaisquer despesas inerentes à transação.
2.3. Fundamentação da fixação da matéria de facto:
Os factos provados baseiam-se nos articulados e documentos juntos pela Requerente e não contestados pela Requerida e no depoimento da testemunha que relatou a obscuridade da demonstração contabilística, tendo referido que teve de identificar e qualificar as entregas feitas pelo Impugnante nos anos anteriores, sem elementos probatórios sólidos, desconhecendo a justificativa e a forma como a situação tinha sido apresentada fiscalmente ao Tribunal.
Não se retiram outros factos relevantes dos articulados por serem citações de textos legais, acórdãos ou posições de parte sem conteúdo fáctico ou com argumentação fáctica não provada.
3. Matéria de direito
As questões de mérito que são objeto deste processo são:
a. Saber qual o valor do rendimento sujeito a imposto que resulta da transação mobiliária definindo a diferença entre a quantia recebida pelo Impugnante (valor de realização) e valor da participação alienada nesta transação (valor de aquisição) conforme elementos constantes do processo.
3.1. Posições das Partes
A Requerente defende em resumo:
Que declarou erradamente a quantia de 134.525,99 Euro na sua declaração modelo 3 retificada como rendimentos de capitais (que corresponde e é igual à declaração oficiosa apresentada pela Requerida que foi objeto de impugnação). Que esta declaração errada deverá ser corrigida na parte em que não indicou o capital social inicial (valor de aquisição) nem na parte em que não foram consideradas os apports de capital feitos ao longo da vida da sociedade.
A Requerida defende:
Que a declaração foi preenchida pelos Requerentes e presume-se verdadeira e de boa-fé – artigo 75.º da LGT – pelo que, não tendo sido demonstrado nada em contrário deve manter-se a liquidação tal como foi efetuada.
3.2. Saneamento do processo:
O presente processo tem origem numa declaração Modelo 3 de IRS referida a rendimentos obtidos em 2019 por A... numa venda de uma participação social numa sociedade em comandita austríaca que foi substituída por uma declaração oficiosa da AT com o mesmo teor.
O rendimento obtido deve ser qualificado como de mais-valias mobiliárias que são sujeitas a tributação por força do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 10.º do CIRS que dispõe:
«1 - Constituem mais-valias os ganhos obtidos que, não sendo considerados rendimentos empresariais e profissionais, de capitais ou prediais, resultem de:
a) (…)
b) Alienação onerosa de partes sociais e de outros valores mobiliários…»
Mais dispõe o n.º 4 do citado artigo 10.º: «O ganho sujeito a IRS é constituído:
Pela diferença entre o valor de realização e o valor de aquisição, líquidos da parte qualificada como rendimento de capitais, sendo caso disso, nas situações previstas nas alíneas a), b), c), i), j) e k) do n.º 1, sem prejuízo do disposto no n.º 19; (Redação da Lei n.º 24-D/2022, de 30 de dezembro).
Mais dispõe o artigo 48.º do CIRS sob a epigrafe: Valor de aquisição a título oneroso de partes sociais e de outros valores mobiliários:
«No caso da alínea b) do n.º 1 do artigo 10.º, o valor de aquisição, quando esta haja sido efetuada a título oneroso, é o seguinte:
a) (…)
b) Tratando-se de quotas, outras partes sociais, warrants autónomos, certificados referidos na alínea g) do n.º 1 do artigo 10.º ou de outros valores mobiliários não cotados em mercado regulamentado, o custo documentalmente provado ou, na sua falta, o respetivo valor nominal;»
Ora, reportando-nos aos factos provados podemos concluir que a diferença entre o valor de realização e o valor de aquisição é o que resulta da diferença entre 155 000,00 Euro (valor de realização) e 50 000,00 Euro, (valor de aquisição) que, no caso, é o valor nominal da participação registada. Ou seja, o rendimento tributável é de 105 000,00 Euro.
Este montante é a diferença que pode ser qualificada como de mais-valia que é tributada em 28% por força do disposto no artigo 72.º n.º 1, alínea c) do CIRS que dispõe que são tributados com a taxa de 28%: «O saldo positivo entre as mais-valias e menos-valias, resultante das operações previstas nas alíneas b), c), e), f), g), h) e k) do n.º 1 do artigo 10.º; (Redação da Lei n.º 24-D/2022, de 30 de dezembro).
Ora, a aplicação da taxa de 28% ao montante de mais-valias apurado resulta em 29.400,00 Euro (vinte e nove mil e quatrocentos) e não 37.667,28 Euro (trinta e sete mil seiscentos e sessenta e sete Euro e vinte e oito cêntimos) que constam da liquidação impugnada.
3.3. Apreciação da questão.
Dos factos provados e da apreciação feita resulta que a determinação do rendimento tributável de 2019 é parcialmente inválida pelo que a impugnação deve ser declarada parcialmente anulada por erro sobre os pressupostos de facto e de direito em relação a este rendimento categoria G.
Improcede assim, parcialmente, de facto e de Direito, a posição da AT.
Quanto aos juros indemnizatórios:
1 - São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.
A atribuição dos juros resulta diretamente da norma e do princípio constantes do artigo 100.º da LGT que dispõe:
1 - A administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos, ou de processo judicial a favor do sujeito passivo, à plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos e condições previstos na lei.
2 - No procedimento tributário, a reconstituição da situação através da reposição da legalidade deve ser executada no prazo de 60 dias.
Cabe decidir se, no caso concreto, são devidos juros indemnizatórios.
Em nossa opinião, no caso subjacente, não são devidos juros indemnizatórios a favor dos Requerentes por ser seu o erro que determinou a liquidação impugnada. Não é possível exigir à Requerida, sem elementos adicionais ou justificativa explícita, considerar a declaração apresentada como errada. Não existe culpa por parte da Requerida nem juízo de censura subjetivo aplicável.
4. III – Questões prejudicadas
Foram conhecidas e apreciadas as questões relevantes submetidas à apreciação deste Tribunal, não o tendo sido aquelas cuja decisão ficou prejudicada pela solução dada a outras, ou cuja apreciação seria inútil (art. 608º do CPC, ex vi art. 29º, 1, c) e e) do RJAT).
5. Decisão.
Nos termos e com os fundamentos expostos, o Tribunal Arbitral decide julgar parcialmente procedente o pedido de pronúncia arbitral, julgando como ilegais e anuladas parcialmente as liquidações impugnadas: n.º 2023 ... em sede de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares referente ao período de tributação de 2019, acerto n.º 2023 ..., liquidação n.º 2023 ... que perfaz o montante total a pagar de 25.744,26 euros (vinte e cinco mil setecentos e quarenta e quatro euros e vinte e seis cêntimos) na parte em que fixou a tributação autónoma de mais-valias sobre o valor de 134.525,99 (cento e trinta e quatro mil quinhentos e vinte e cinco euro e noventa e nove cêntimos) e não sobre o valor de Euro 105.000,00 (cento e cinco mil).
Valor do processo: Fixa-se o valor do processo em 17.608,29 EUR (Dezassete mil seiscentos e oito euros e vinte e nove cêntimos).
Custas:
Vão os Requerentes e a Requerida condenados em custas nos termos do artigo 97.º -A, n.º 1, alínea a) do CPPT, aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e artigo n.º 2 do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária na proporção de 78% para os Requerentes e 22% para a Requerida por serem a medida do decaimento que é o parâmetro que fixa a responsabilidade de cada um na ilegalidade existente e na responsabilidade das custas, sendo o seu montante global fixado em 1224,00 Euro.
Registe e Notifique.
Lisboa, 20 de novembro de 2024
O Árbitro
(Vasco Branco Guimarães)