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SUMÁRIO
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Um rendimento decorrente de uma classe de títulos criados por uma sociedade de titularização, no âmbito de uma operação de titularização, realizada nos termos previstos no Decreto-Lei nº 453/99, de 5 de Novembro, deve ser considerado decorrente do exercício de uma actividade económica relevante para efeitos do IVA, devendo, por isso, ser considerado no apuramento do pro rata do IVA dedutível do titular desses títulos.
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No termos do art. 62.º, 3 do Decreto-Lei nº 453/99, o remanescente do património autónomo afecto ao pagamento de cada emissão de obrigações titularizadas reverte para a sociedade de titularização de créditos, e não para qualquer subscritor de obrigações emitidas por essa sociedade, não obstante essa sociedade poder ceder, contratualmente, esse remanescente a alguns daqueles subscritores, ou a todos.
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Numa titularização tradicional, os créditos são cedidos à sociedade de titularização, e os rendimentos gerados pelas unidades de titularização adquiridas pela entidade cedente têm a natureza de juro, ou equivalente, não constituindo rendimentos resultantes de simples propriedade de bens.
DECISÃO ARBITRAL
I – Relatório
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A..., S.A. – Sucursal em Portugal, com o NIPC ..., doravante “a Requerente” (na qualidade de sociedade incorporante do B..., S.A., NIPC ..., doravante “B...”), apresentou, no dia 24 de Janeiro de 2024, um pedido de constituição de Tribunal Arbitral Colectivo, nos termos dos artigos 2º, 1, a), e 10º, 1 e 2 do Decreto-Lei nº 10/2011, de 20 de Janeiro, com as alterações por último introduzidas pela Lei nº 7/2021, de 26 de Fevereiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante “RJAT”), e dos arts. 1º e 2º da Portaria nº 112-A/2011, de 22 de Março, em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante “AT” ou “Requerida”).
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A Requerente pediu a pronúncia arbitral sobre a ilegalidade da liquidação adicional de IVA n.º 2022..., referente ao período de 2021/09, e imediatamente sobre a decisão de indeferimento expresso da reclamação graciosa por ela apresentada contra a referida liquidação; peticionando a restituição do imposto indevidamente suportado, e demais efeitos legais.
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O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT.
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O Conselho Deontológico designou os árbitros do Tribunal Arbitral Colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável, e notificou as partes dessa designação.
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As partes não se opuseram, para efeitos dos termos conjugados dos arts. 11º, 1, b) e c), e 8º do RJAT, e arts. 6º e 7º do Código Deontológico do CAAD.
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O Tribunal Arbitral Colectivo ficou constituído em 3 de Abril de 2024; foi-o regularmente, e é materialmente competente.
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Por Despacho de 8 de Abril de 2024, foi a AT notificada para, nos termos do art. 17º do RJAT, apresentar resposta.
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A AT apresentou a sua Resposta em 13 de Maio de 2024, e posteriormente o Processo Administrativo.
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Por Despachos de 31 de Maio e de 5 de Setembro de 2024, determinou-se a realização da reunião prevista no art. 18º do RJAT.
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No dia 16 de Outubro de 2024 realizou-se a referida reunião, procedendo-se à inquirição das testemunhas arroladas pela Requerente.
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A Requerente apresentou alegações em 28 de Outubro de 2024.
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A Requerida não apresentou alegações.
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As Partes têm personalidade e capacidade judiciárias, e têm legitimidade.
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A AT procedeu à designação dos seus representantes nos autos e a Requerente juntou procuração, encontrando-se assim as Partes devidamente representadas.
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O processo não enferma de nulidades.
II – Matéria de Facto
II. A. Factos provados
Com relevo para a decisão, consideram-se provados os seguintes factos:
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A Requerente é uma sociedade comercial enquadrada no regime normal de periodicidade trimestral, nos termos do art. 41.º, 1, b) do CIVA.
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O incorporado pela Requerente, B..., era, para efeitos de IVA, um sujeito passivo misto, que, no exercício da sua actividade económica, praticava operações que conferem direito a dedução e operações que não conferem esse direito.
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Em resultado de uma reorganização societária intra-grupo, o B... foi incorporado, por fusão sem liquidação, na ora Requerente, adquirindo esta última, por sucessão universal e com efeitos a 1 de Outubro de 2021, a totalidade dos direitos e obrigações do B... .
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O B... extinguiu-se, tendo todos os seus direitos sido transmitidos para a Requerente.
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A partir de 1 de Outubro de 2021, a Requerente passou a ser uma sucursal da sociedade, de direito espanhol, C..., S.A., com sede na ... Grupo D..., Avenida ..., ... Madrid, Espanha, registada junto do Registo Mercantil de Madrid F. (hoja)..., L. (tomo) ..., F. (folio) 25, CIF A-...
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A Requerente está registada no Banco de Portugal com o número..., e junto da Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões com o número ... .
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O B..., e agora a Requerente, é um banco especializado no financiamento automóvel, e no seu portfolio conta com produtos como o leasing, o aluguer de longa duração, ou mesmo o crédito automóvel tradicional, actuando, ainda, na área do crédito ao consumo, nomeadamente, concedendo crédito para a aquisição de equipamentos eletrónicos, viagens, estudos, etc..
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O B..., e agora a Requerente, praticam, entre outras, operações de leasing e aluguer de longa duração de veículos automóveis (sujeitas e não isentas de IVA e que conferem direito à dedução), e operações de crédito ao consumo (sujeito mas isento de IVA e que não confere direito à dedução).
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Por ser um sujeito passivo misto para efeitos de IVA, a Requerente calcula o IVA dedutível, quanto aos custos comuns, através do método pro rata, previsto no art. 23.º, 4 do CIVA.
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A Requerente aplica o método do pro rata mitigado previsto no Ofício-Circulado n.º 30108/2009, de 30 de Janeiro, não considerando, nem no numerador nem no denominador, as amortizações financeiras e valores de alienação/abate por destruição de bens locados dos contratos de leasing e ALD.
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Em aplicação do critério determinado pela AT no aludido Ofício-Circulado, em 2021, e até Setembro desse ano, o B... apurou o IVA dedutível com base na percentagem do pro rata definitivo do ano de 2020, e provisório para 2021, ou seja, 14%.
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Antes de ter sido incorporado por fusão na ora Requerente, o B... apresentou uma última declaração referente ao período de Setembro de 2021, na qual procedeu à correcção de valores deduzidos entre Janeiro e Setembro de 2021, por força da aplicação, segundo o critério determinado pelo aludido Ofício-Circulado, do pro rata provisório para 2020, uma vez que o pro rata definitivo para 2021 se computou em 29%.
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Em 21 de Julho de 2020 o B... celebrou um contrato de securitização / titularização de um portfolio de créditos da sua actividade de crédito automóvel, nos termos do regime do Decreto-Lei n.º 453/99, de 5 de Novembro – convertendo um conjunto de activos não transaccionáveis em activos transaccionáveis, sob forma de valores mobiliários representativos desses mesmos créditos.
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O B..., como “Originator”, vendeu a um “Issuer”, a E..., S.A. (doravante “E...”), sociedade de titularização de créditos habilitada ao exercício dessa actividade, um portfolio composto por uma carteira de créditos para efeitos de titularização de créditos, até um montante máximo de € 600.000.000,00.
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A operação de titularização foi designada como “Silk Finance No. 5”.
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Aquando da aquisição do portfolio composto por uma carteira de créditos do setor automóvel, a E..., como “Issuer”, emitiu os seguintes títulos:
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€ 466,100,000 Class A Floating Rate Notes;
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€ 65,900,000 Class B Floating Rate Notes;
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€ 55,000,000 Class C Floating Rate Notes;
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€ 13,000,000 Class D Fixed Rate Notes;
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€ 6,600,000 Class E Fixed Rate Notes;
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€ 1 Variable Funding Note;
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€ 3,600,000 Class X Notes.
A posição de “Transaction Manager” foi desempenhada pelo F... Limited. Como “Paying Agent” foi designado o G..., AG, Sucursal em Portugal. Como “Common Representative” foi nomeada a K.... e o H..., S.A, sociedade de direito espanhol
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e accionista do B..., assumiu funções de “Lead Manager” e “Arranger”. Esquematicamente,
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Por força da mencionada operação de titularização, os créditos foram transmitidos para a E..., tendo o B..., como “Servicer”, ficado adstrito à gestão desses créditos, o que estava habilitado a fazer por ser uma instituição financeira, sendo remunerado pela gestão dos créditos.
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Especificamente, o B... fez a gestão da cobrança dos créditos da propriedade da E..., transferiu os valores recebidos para a conta da E... e faz todos os reportes inerentes à sua actividade de “Servicer”.
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O B..., não obstante ser “Originator”, subscreveu Class A Notes, Class B Notes e a totalidade das Class X Notes, retendo para si algum do risco.
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As demais Notes foram transaccionadas no mercado e subscritas por investidores.
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Do prospecto da operação de titularização (de 21 de Julho de 2020) consta:
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Do prospecto da operação de titularização consta ainda:
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Do prospecto da operação de titularização consta ainda:
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No prospecto da operação de titularização informa-se todos os investidores, relativamente a todas as classes de obrigações emitidas, sem discriminar entre elas:
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Retira-se ainda, do mesmo prospecto, uma advertência aos investidores quanto a consequências tributárias:
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Assente no seu entendimento de que a remuneração do capital investido em Class X Notes corresponderia a um “Class X Distribution Amount”, calculado pelo “Transaction Manager”, verificada a existência de fundos remanescentes após os pagamentos prioritários destinados às demais classes (Class A Notes até Class E Notes) – apresentado, assim, como um residual, correspondente ao excedente de um património segregado (os créditos adquiridos pela E...), e não como uma remuneração similar à das demais classes, o B..., ao calcular o pro rata definitivo, não considerou no denominador o correspondente valor.
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Especificamente, não inscreveu no denominador do pro rata definitivo o valor de €17.927.015,85, inscrito na conta #7906601025, correspondente à remuneração das Class X Notes tituladas pelo B... no âmbito do contrato de securitização celebrado – entendendo que, dada a natureza desse rendimento, ele não decorreria de uma actividade económica para efeitos do IVA, não devendo, por isso, influenciar o cálculo do IVA dedutível à luz do art. 23.º, 4 do CIVA.
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A Requerente apresentou, junto com a declaração periódica de IVA do período 2021/09, um requerimento a solicitar a transferência de crédito de imposto apurado pelo B... .
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Na sequência, a Requerente foi alvo de um procedimento de inspecção interna, de âmbito parcial (IVA), com incidência no ano de 2021, realizada pelos Serviços de Inspeção Tributária da Unidade dos Grandes Contribuintes (Ordem de Serviço OI 2022...).
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Perfilhando um entendimento diverso do da Requerente, o procedimento de inspecção interna concluiu que aquele valor de €17.927.015,85, inscrito na conta #7906601025, correspondente à remuneração das Class X Notes, deve integrar o denominador do pro rata – seja pelo facto de a Requerente ter designado todos os rendimentos como “Interest Distribution”; seja por, no mapa de apuramento apresentado, a Requerente ter designado as contas #79066 como respeitantes a “juros recebidos no âmbito da securitização”; seja por, na respectiva descrição, constar a menção “Jur Obg Silk-CL.X” (alegando a Requerente, em sua defesa, que se tratou de lapso na designação de contas do balancete).
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No Relatório Anual da E..., de 2021, a “Issuer” esclarece que:
“A 23 de julho de 2020 a Sociedade efetuou a Operação “Silk Finance No. 5” – esta Operação consistiu na aquisição de um portfólio de créditos ao consumo do B..., S.A. no montante de Euros 600.018.247 e respetivamente na emissão de obrigações titularizadas divididas em 7 tranches: Euros 466.100.000 Class A, Euros 65.900.000 Class B, Euros 55.000.000 Class C, Euros 13.000.000 Class D, Euros 6.600.000 Classe E, Euros 1 Variable Funding Note e Euros 3.600.000 Class X. As 7 tranches foram emitidas ao par. Estas obrigações foram colocadas particularmente e registadas subsequentemente junto da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM).
(…)
A remuneração das 3 primeiras tranches é indexada à EURIBOR 3 Meses, acrescendo um spread de 0,75% para a Class A, de 2% para a Class B e de 3% para a Class C. A remuneração das seguintes classes é fixa e é para a Class D de 7.25% e para a Class E de 8%. As restantes classes não têm uma taxa de juro definida, tendo direito aos montantes disponíveis após cumprimento das restantes responsabilidades da operação, como estipulado nas condições da mesma.
As Notes de Class A, B, C, D e E estão registadas junto da Interbolsa e estão listadas na Euronext Lisboa. A data de reembolso das obrigações iniciou-se em novembro 2020, terminando em fevereiro 2035, a data de maturidade legal para todas as tranches.
De acordo com o estabelecido contratualmente, a remuneração das obrigações (incluindo o reembolso do capital) está dependente da performance dos ativos, sendo que em caso de delinquência desses ativos esta é integralmente refletida na remuneração das obrigações.
Os créditos cedidos correspondem às prestações de reembolso do capital e de pagamento dos juros remuneratórios e demais montantes devidos ao cedente no âmbito de contratos de concessão de linhas de crédito ao consumo e automóvel.
(…)
A rubrica de Obrigações de titularização regista o valor contabilístico das obrigações de titularização, no âmbito daquela Operação de titularização. Esta emissão corresponde a sete tranches de obrigações (“Class A-Notes”, “Class B-Notes”, “Class C-Notes”, “Class D-Notes”, “Class E-Notes”, “Class XNotes”, “Variable Funding Notes”) com uma remuneração indexada EURIBOR 3 Meses acrescida de spread para a Class A de 0,75%, para a Class B de 2%, para a Class C de 3%; remuneração de taxa fixa para a Class D de 7.25% e para a Class E de 8% e a duas tranches de obrigações (“Class X Notes” e Variable Funding Note) cuja remuneração destas notes será a diferença entre os valores recebidos e as remunerações pagas às restantes classes.” (sublinhados nossos)[1]
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A AT menciona ainda a circunstância de, nos três “Quarterly Investor Reports” apresentados pelo “Transaction Manager”, o F... Limited, se referir os rendimentos trimestrais distribuídos como “Total Interest Distribution”, não fazendo qualquer distinção entre as diversas classes de “Notes”.
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Solicitado, já no decurso da inspecção tributária, um extracto de conta relativo aos rendimentos das Class X Notes, a Requerente apresentou o seguinte:
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A Requerente foi notificada, pela AT, da liquidação adicional de IVA referente ao período de 2021/09, a qual corrigiu o montante da regularização do imposto de € 700.314,70 (resultado da aplicação do pro rata definitivo de 29% calculado pela Requerente) para € 458.826,87 (resultado da aplicação do pro rata definitivo de 19% calculado pela AT), o que perfaz uma diferença no crédito do imposto de € 241.487,83 (valor este que reflete ainda uma correcção a favor do sujeito passivo).
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Não obstante a Requerente ter veiculado a sua oposição à noção de que o “Class X Distribution Amount” fosse um juro, ou tivesse a natureza de juro, para efeitos da sua inclusão no cálculo do pro rata, a AT manteve a sua fundamentação, destacando em particular que a conta #7906601025 “Jur Obr Silk-Cl.X” respeita a juros de obrigações ou a rendimentos similares, o que revela a presença de uma actividade económica para efeitos de IVA; e, no Relatório Final de Inspecção Tributária, manteve as correções anteriormente propostas – ou seja, computando os valores da conta #7906601025 no denominador do pro rata, apurou o montante a corrigir de -241.487,83.
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A Requerente foi notificada das liquidações adicionais de IVA, e respectivos juros compensatórios, sustentadas nas conclusões da inspecção tributária, por aplicação do art. 23º, 4 e 6 do CIVA.
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Não se conformando com a liquidação adicional de IVA, a Requerente apresentou, no dia 23 de Março de 2023, reclamação graciosa contra aquela liquidação.
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Em 27 de Outubro de 2023 a Requerente foi notificada (Ofício n.º ... – DJT / 2023) da decisão de indeferimento da reclamação graciosa, fundamentada na mesma posição da inspecção tributária constante do RIT.
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No dia 24 de Janeiro de 2024 a Requerente apresentou o pedido de pronúncia que deu origem ao presente processo.
II. B. Factos não-provados
Com relevância para a questão a decidir, ficou por provar a existência do acordo que é invocado nos arts. 118º, 130º e 133º do PPA, acordo segundo o qual o remanescente, que deveria reverter para a E..., teria sido cedido por esta a favor do titular das Class X Notes:
“Na situação vertente, como amplamente se explanou no capítulo dedicado aos factos, as Class X Notes estipulam, tal como permite a lei, que o remanescente do património autónomo da E... referente à operação de securitização (Silk Finance no. 5), após pagos os montantes devidos aos titulares das diferentes e prioritárias Class Notes, seja então transferido para o B... (enquanto titular da totalidade das Class X Notes).” (art. 118º do PPA – também o ponto 35 das Alegações); “O remanescente em causa poderia reverter para a E..., na qualidade de proprietária do património autónomo gerado na operação. No entanto, foi acordado, como legalmente se permite, que esse remanescente deve ser atribuído aos titulares da Class X Note, na medida que exista” (art. 130º do PPA); “Se em causa estivesse o pagamento de juros no âmbito da remuneração da Class X Note, estes seriam calculados com base numa percentagem do capital devido, como acontece com as restantes classes, o que, conjugado com o mencionado princípio, permitiria a existência de um excedente na esfera da sociedade de titularização após o pagamento integral de todas as classes. O que não ocorre no presente caso, uma vez que a E... optou por dispor deste remanescente em benefício dos titulares da Class X Note.” (art. 133º do PPA– também o ponto 44 das Alegações) (sublinhados nossos).
Estranha-se o alegado – e não provado –, por duas razões, uma jurídica e lógica, outra factual:
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Razão jurídica e lógica: na falta de tal acordo, o que o art. 62.º, 3 do Decreto-Lei nº 453/99, de 5 de Novembro, estabelece é que o remanescente reverte para a sociedade de titularização de créditos (no caso, a E..., o “Issuer” dos títulos), não para qualquer subscritor das obrigações titularizadas em cada emissão, como o foi o B... (subscritor de “Notes” de Classe A, B e X). E compreende-se: na falta de convenção em contrário, se o remanescente revertesse para um subscritor de obrigações titularizadas e não para o respectivo emitente, caberia perguntar o que distinguiria uma sociedade de titularização de créditos (que visa a maximização do lucro resultante dos créditos que lhe foram transmitidos, e de que ela passa a ser proprietária) de uma simples seguradora (que faz cobertura de riscos mediante a contrapartida de uma mera remuneração).
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Razão factual: demos por provado que o cálculo do Class X Distribution Amount não resulta de qualquer acordo de atribuição do remanescente aos titulares daquela classe de obrigações, bem pelo contrário. No prospecto da operação de titularização, ponto 6.7, estabelece-se que o Class X Distribution Amount será calculado e pago com a mesma periodicidade e regularidade das demais classes de obrigações titularizadas, cabendo ao “Transaction Manager” (F... Limited), por conta do “Issuer” (E...), proceder, em cada nova data, ao cálculo dos montantes a serem pagos a essa específica classe:
(p. 183 do prospecto “Silk Finance No. 5”, de 21/7/2020, p. 206/566 do Doc. 3 anexo ao PPA).
Além disso, se – como o alegam os referidos arts. 118º, 130º e 133º do PPA – a prática se tivesse desviado daquilo que é anunciado no prospecto da emissão, cabe perguntar de que modo a operação, como um todo, se poderia ter desenvolvido – na medida em que um acordo directo entre o B... e a E... teria contornado a necessidade de intervenção do “Transaction Manager”, defraudando a garantia de independência e imparcialidade que essa intervenção representa para os investidores; representando ainda, por implicação, uma falsidade veiculada pelo prospecto de emissão, que consistiria na informação ao público de que a remuneração das Class X Notes seria regularmente, periodicamente, decidida pelo “Transaction Manager”, quando na verdade essa remuneração – a acreditarmos no que se alega no presente processo – teria já sido inicialmente decidida por acordo entre “Originator” e “Issuer”, sem qualquer intervenção, inicial ou subsequente, do “Transaction Manager”.
II. C. Fundamentação da matéria de facto
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Os factos elencados supra foram dados como provados, ou não-provados, com base nas posições assumidas pelas partes nos presentes autos, nos documentos juntos ao PPA e ao Processo Administrativo, e nos depoimentos testemunhais.
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Cabe ao Tribunal Arbitral seleccionar os factos relevantes para a decisão, em função da sua relevância jurídica, considerando as várias soluções plausíveis das questões de Direito, bem como discriminar a matéria provada e não provada (cfr. art. 123º, 2, do CPPT e arts. 596º, 1 e 607º, 3 e 4, do CPC, aplicáveis ex vi art. 29º, 1, a) e e) do RJAT), abrangendo os seus poderes de cognição factos instrumentais e factos que sejam complemento ou concretização dos que as Partes alegaram (cfr. arts. 13.º do CPPT, 99º da LGT, 90º do CPTA e arts. 5º, 2 e 411.º do CPC).
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Segundo o princípio da livre apreciação dos factos, o Tribunal baseia a sua decisão, em relação aos factos alegados pelas partes, na sua íntima e prudente convicção formada a partir do exame e avaliação dos meios de prova trazidos ao processo, e de acordo com as regras da experiência (cfr. art. 16º, e) do RJAT, e art. 607º, 4, do CPC, aplicável ex vi art. 29º, 1, e) do RJAT).
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Somente relativamente a factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, a factos que só possam ser provados por documentos, a factos que estejam plenamente provados por documentos, acordo ou confissão, ou quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (por exemplo, quanto aos documentos autênticos, por força do artigo 371.º do Código Civil), é que não domina, na apreciação das provas produzidas, o referido princípio da livre apreciação (cfr. art. 607º, 5 do CPC, ex vi art. 29º, 1, e) do RJAT).
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Nos termos do art. 396º do Código Civil, a força probatória da prova testemunhal é livremente apreciada pelo tribunal.
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Devendo também lembrar-se que, nos termos do art. 393º do Código Civil, havendo documentos, a prova testemunhal se deve cingir à interpretação do contexto desses documentos, não podendo incidir nos factos que esses documentos provam.
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As testemunhas, ambos funcionários do B..., revelaram conhecimento detalhado das operações em causa nos presentes autos, tendo-se revelado úteis os seus depoimentos, mormente para interpretação do contexto do que se encontra documentado (art. 393.º, 3 do Código Civil).)
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Por fim, não se deram como provadas nem não-provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insusceptíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada, nem os factos incompatíveis ou contrários aos dados como provados.
III. Sobre o Mérito da Causa
III. A. Posição da Requerente
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A Requerente começa por lembrar que estão em causa operações complexas de titularização de créditos, que visaram transferir risco através da comercialização de valores mobiliários emitidos com base em direitos de crédito – no caso, a transmissão, do B... para a E..., de um portfolio de créditos na área automóvel, nos termos do regime estabelecido pelo Decreto-Lei nº 453/99.
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Em consequência desse regime, o património constituído pelos activos transmitidos para titularização constitui a única garantia dos respectivos títulos emitidos, e por eles não podem responder outros patrimónios, referentes a outras emissões de títulos, da sociedade de titularização de créditos, devendo tudo ser contabilizado separadamente (princípio da segregação, ou do património autónomo).
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Daí que a sociedade de titularização de créditos só possa financiar-se, ou por fundos próprios, ou através da emissão de obrigações titularizadas, como estabelece o art. 44.º, 1 daquele diploma.
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Em contrapartida, a sociedade de titularização de créditos “tem direito ao remanescente do património autónomo afecto ao pagamento de cada emissão de obrigações titularizadas, após o pagamento integral dos montantes devidos aos titulares das obrigações titularizadas que constituem aquela emissão e das despesas e encargos com esta relacionados”, como se estabelece no art. 62.º, 3 do Decreto-Lei nº 453/99.
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Segundo a Requerente, seria esta a base da remuneração consistente no “Class X Distribution Amount”, o “remanescente” que não se confundiria com os juros.
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E conclui (art. 118º do PPA): “Na situação vertente, como amplamente se explanou no capítulo dedicado aos factos, as Class X Notes estipulam, tal como permite a lei, que o remanescente do património autónomo da E... referente à operação de securitização (Silk Finance no. 5), após pagos os montantes devidos aos titulares das diferentes e prioritárias Class Notes, seja então transferido para o B... (enquanto titular da totalidade das Class X Notes).”
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E insiste (art. 130º do PPA): “O remanescente em causa poderia reverter para a E..., na qualidade de proprietária do património autónomo gerado na operação. No entanto, foi acordado, como legalmente se permite, que esse remanescente deve ser atribuído aos titulares da Class X Note, na medida que exista”
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E ainda (art. 133º do PPA): “Se em causa estivesse o pagamento de juros no âmbito da remuneração da Class X Note, estes seriam calculados com base numa percentagem do capital devido, como acontece com as restantes classes, o que, conjugado com o mencionado princípio, permitiria a existência de um excedente na esfera da sociedade de titularização após o pagamento integral de todas as classes. O que não ocorre no presente caso, uma vez que a E... optou por dispor deste remanescente em benefício dos titulares da Class X Note.”
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Elabora depois sobre o conceito de juro, enfatizando que ele é um “preço do tempo”, não havendo juro se não tiver sido estabelecida uma contrapartida proporcional ao tempo decorrido.
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Para inferir que nada disso ocorre na remuneração das Class X Notes, que não é fixada em função de qualquer prazo, antes é indeterminada e incerta – dado resultar da verificação – contingente – de um remanescente.
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Sustenta que o património da sociedade de titularização responde pelo reembolso das obrigações titularizadas, mas isso não confere aos titulares das Class X Notes o direito de exigirem tal reembolso à sociedade de titularização, visto eles terem direito somente ao remanescente, se, e quando, exista.
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Concluindo (art. 140º do PPA): “As Class X Notes acabam, pois, por se assemelhar profundamente a unidades de participação em fundos de investimento (que dão origem a rendimentos em função da rendibilidade do fundo que também é um património autónomo) ou até a meras participações sociais em sociedade comerciais (que dão origem a dividendos).”
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Para efeitos de cálculo de pro rata do IVA, a Requerente lembra que o art. 23.º, 4 do CIVA determina que se coloque no denominador da fracção de cálculo “o montante anual, imposto excluído, de todas as operações efectuadas pelo sujeito passivo decorrentes do exercício de uma actividade económica prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º, bem como as subvenções não tributadas que não sejam subsídios ao equipamento.”
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O que remete para o conceito de “actividade económica”, que é definido no § 2 do n.º 1 do artigo 9.º da Directiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de Novembro (Directiva IVA), com apoio na al. a) do n.º 1 do artigo 2.º do CIVA, “entende-se por «actividade económica» qualquer actividade de produção, de comercialização ou de prestação de serviços, incluindo as actividades extractivas, agrícolas e as das profissões liberais ou equiparadas. É em especial considerada actividade económica a exploração de um bem corpóreo ou incorpóreo com o fim de auferir receitas com carácter de permanência”.
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A Requerente convoca em seu apoio o Acórdão de 4 de Dezembro de 1990 (Van Tiem), proferido no processo C-186/89, no qual o TJUE esclareceu que “Nos termos do artigo 4. °, n.º 2, as actividades económicas abrangem “todas as actividades de produção, de comercialização ou de prestação de serviços...”. Nos termos da última frase deste artigo, “a exploração de um bem corpóreo ou incorpóreo com o fim de auferir receitas com carácter de permanência é igualmente considerada uma actividade económica”.
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E o Acórdão de 20 de Junho de 1991 (Polysar), proferido no processo C-60/90, no qual o TJUE decidiu que apenas estão abrangidas por esta disposição as actividades que tenham carácter económico e que visem retirar do bem em questão receitas com carácter de permanência, tendo concluído da seguinte forma: “No entanto, não resulta dessa jurisprudência que as meras aquisição e detenção de participações sociais devam ser consideradas uma actividade económica, na acepção da Sexta Directiva, conferindo ao seu autor a qualidade de sujeito passivo. Com efeito, a mera tomada de participações no capital de outras empresas não constitui a exploração de um bem com o fim de auferir receitas com caracter de permanência, uma vez que o eventual dividendo, fruto dessa participação, resulta da mera propriedade do bem.”
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Convoca ainda o Acórdão de 26 de Julho de 2003 (MGK-Kraftfahrzeuge-Factoring), proferido no processo C-305/01 (“a simples tomada de participações financeiras noutras empresas não constitui uma exploração de um bem com o fim de auferir receitas com caracter de permanência, porque o eventual dividendo, fruto de tal participação, resulta da simples propriedade do bem e não é a contrapartida de qualquer actividade económica”), ou o Acórdão de 29 de Abril de 2004 (EDM), proferido no processo C-77/01, que esclarece que “apenas os pagamentos que constituem a contrapartida de uma operação ou de uma actividade económica entram no âmbito de aplicação do IVA e assim não acontece com os que resultam da simples propriedade do bem.”.
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Do mesmo Acórdão do TJUE de 29 de Abril de 2004 (EDM), proferido no processo C-77/01, destaca a conclusão de que “é jurisprudência assente que a mera aquisição e simples detenção de participações sociais não devem ser consideradas actividades económicas, na acepção da Sexta Directiva, que confiram ao seu autor a qualidade de sujeito passivo. Com efeito, a simples tomada de participações financeiras noutras empresas não constitui uma exploração de um bem com o fim de auferir receitas com caracter de permanência, porque o eventual dividendo, fruto de tal participação, resulta da simples propriedade do bem e não é a contrapartida de qualquer actividade económica na acepção da mesma directiva”.
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Conclui a Requerente que os títulos Class X Notes não conferem aos seus titulares o direito de exigir o pagamento através do património da sociedade de titularização, uma vez que não estipulam uma remuneração garantida por uma taxa pré-fixada; conferem antes, e somente, um direito ao recebimento do excedente do património autónomo da operação de titularização em concreto – de modo residual e incerto, partilhando intimamente das características de uma unidade de participação num fundo de investimento ou de um dividendo de uma participação social – e não partilhando da mesma natureza jurídica das obrigações titularizadas, sendo resultados da mera propriedade do bem, fora do conceito de actividade económica para efeitos do IVA.
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Remata (arts. 168º e 169º PPA) com a afirmação de que à luz do n.º 4 do artigo 23.º do Código do IVA, como da al. a) do n.º 1 do artigo 2.º, no cálculo da percentagem de dedução do pro rata para o apuramento do IVA dedutível, no que aos custos comuns respeita, não deve ser incluído o rendimento proveniente das Class X Notes.
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Em alegações, a Requerente invoca a prova testemunhal em apoio das suas teses, e nomeadamente da alegação de que os rendimentos que derivam das Class X Notes não são minimamente equiparáveis a um juro – sendo mais próximas de “equity” do que de “debt”, enfatizando em particular a distinção entre classes de “Notes” emitidas e a subordinação da Classe X às demais Classes, e destacando que na Classe X não há uma remuneração fixa nem um modo pré-estabelecido de reembolso – assemelhando-se, nesse aspecto, a um investimento em instrumentos de capital.
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Reiterando a conclusão de que as Class X Notes não atribuem ao seu titular o direito a um qualquer recebimento de juros, mas apenas a um “Distribution Amount”, um valor residual resultante do património autónomo após pagos todos os demais custos da operação – o que a Requerente entende que é igual ao apuramento do lucro distribuível de uma sociedade ou de um fundo ou de uma associação em participação.
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A Requerente volta a enfatizar que os activos cedidos à sociedade de titularização de créditos constituem um património autónomo, afecto obrigatoriamente, em primeira linha, à satisfação dos títulos criados pela emissão, e à cobertura dos encargos dessa emissão.
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Retomando as conclusões de que
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Os rendimentos recebidos pelo B...derivam da propriedade das Classe X Notes e estas apenas lhe conferem um direito ao recebimento do eventual excedente do património autónomo da operação de titularização em concreto, pertencente à E..., enquanto sociedade de titularização.
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Os rendimentos provenientes da Classe X Notes são eventuais e não têm carácter de permanência, resultando da simples propriedade dos referidos títulos, não garantindo ao seu titular uma contrapartida efectiva do investimento realizado.
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As Class X Notes não conferem aos seus titulares o direito de exigir o pagamento através do património da sociedade, uma vez que não estipulam uma remuneração garantida por uma taxa pré-fixada.
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Os títulos da Class X Notes não partilham da mesma natureza jurídica das obrigações titularizadas.
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Os rendimentos auferidos pelo B..., enquanto proprietário de Class X Notes, são resultados da mera propriedade do bem, estando, por isso, fora do conceito de actividade económica para efeitos do IVA, não devendo ser considerados para efeitos de cálculo da dedução pro rata de IVA, nos termos dos arts. 2.º, 1, a) e 23.º, 4 do CIVA.
III. B. Posição da Requerida
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Na sua resposta, a Requerida subscreve a tese dos serviços de inspecção, de que as obrigações titularizadas Class X Notes são verdadeiras obrigações, titularizadas porque constituem títulos negociáveis no mercado de capitais, depois de emitidos por um “Issuer” autorizado – e que o seu rendimento é o rendimento típico de obrigações, um juro ou similar, devendo por isso integrar o pro rata de dedução do IVA, nos termos do art. 23.º, 4 do CIVA (com a consequência de diminuírem a percentagem de dedução).
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Lembra a Requerida que se trata, com a securitização, de, através da transmissão da titularidade de créditos e da sua conversão em valores mobiliários, aumentar a liquidez e transferir o risco para os adquirentes dos títulos obrigacionistas.
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Depois de percorrer as normas mais relevantes do Decreto-Lei nº 453/99, de 5 de Novembro, a Requerida faz o mesmo relativamente ao Regulamento (UE) 2017/2402, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Dezembro de 2017, para demarcar o que é juridicamente possível, e não é possível, em sede de titularização de créditos.
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Depois centra-se nos conceitos de transmissão de bens e de prestação de serviços, para efeitos dos arts. 1.º a 4.º do CIVA e dos arts. 14.º, 1 e 24.º, 1 da Directiva IVA (Directiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de Novembro de 2006).
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Sublinha que o conceito de prestação de serviços tem um carácter residual, abarcando todas as operações decorrentes da actividade económica de um sujeito passivo que não sejam definidas como transmissões de bens, importação de bens ou aquisições intracomunitárias – pelo que a incidência do IVA teria uma vocação de universalidade.
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Presumir-se-á, assim, nas operações intra-fronteiras, que uma prestação de serviços tributável em IVA subjaz a todo o tipo de atribuição patrimonial que não seja uma contrapartida de uma transmissão de bens – a menos que se prove que essa atribuição patrimonial não corresponde ao exercício efectivo de uma actividade económica.
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A Requerida realça o facto de a jurisprudência do TJUE ter vindo a reiterar sucessivamente que o conceito de actividade económica, para efeitos de IVA, deverá ser interpretado de forma a atribuir um âmbito de aplicação muito amplo a este tributo.
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Isso remete para o conceito de actividade económica – “qualquer actividade de produção, de comercialização ou de prestação de serviços, incluindo as actividades extractivas, agrícolas e as das profissões liberais ou equiparadas. É em especial considerada actividade económica a exploração de um bem corpóreo ou incorpóreo com o fim de auferir receitas com carácter de permanência” (art. 9.º, 1 da Directiva IVA) – que é um conceito objectivo, no sentido de que dispensa referências a finalidades ou a resultados.
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Na jurisprudência do TJUE, a Requerida destaca os entendimentos:
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de que “uma actividade é, de um modo geral, qualificada de económica quando tem carácter permanente e é realizada contra uma remuneração recebida pelo autor da operação” (Acórdão de 13/12/2007, caso Götz, processo C408/06, n.º 18),
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de que a onerosidade da prestação de serviços pressupões a existência de um nexo directo entre serviço prestado e contravalor recebido (Acórdão de 8/3/1988, caso Apple and Pear, processo 102/86, n.º 12),
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de que esse “nexo direto está provado quando existe, entre o prestador e o beneficiário, uma relação jurídica durante a qual são transacionadas prestações recíprocas, constituindo a retribuição recebida pelo prestador o contravalor efetivo do serviço prestado ao beneficiário” (Acórdão de 22/10/2015, caso Hedqvist, processo C264/14, n.º 27),
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de que “apenas os pagamentos que constituem a contrapartida de uma operação ou de uma actividade económica entram no âmbito de aplicação do IVA e assim não acontece com os que resultam da simples propriedade do bem (…) simples venda de acções e de outros títulos negociáveis, como participações em fundos de investimento, bem como o rendimento das aplicações nestes fundos não são abrangidos pelo âmbito de aplicação da Sexta Directiva, pelo que o montante do volume de negócios relativo a estas operações deve ser excluído do cálculo do pro rata de dedução (…) os juros recebidos por uma holding a título de remuneração dos empréstimos concedidos às suas participadas não podem ser excluídos do âmbito de aplicação do IVA, uma vez que o pagamento desses juros não resulta da simples propriedade do bem mas constitui a contrapartida de uma colocação de capital à disposição de terceiros” (Acórdão de 29/4/2004, caso EDM, processo C-77/01, n.ºs 49 e 64-65)
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A Requerida lembra que, na ordem jurídica interna, o conceito de actividade económica está plasmado no art. 2.º, 1, a) do CIVA, e que apenas se devem considerar excluídas do conceito de actividade económica:
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A percepção de dividendos ou lucros provenientes da detenção de participações sociais, resultantes da mera propriedade daquelas.
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As mais-valias resultantes da mera aquisição e alienação dessas participações sociais, assim como de outros valores mobiliários, incluindo obrigações, por se entender que a simples aquisição e venda não constitui a exploração de um bem com vista à produção de receitas com carácter de permanência.
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Os rendimentos resultantes de aplicações em fundos de investimento e as mais-valias geradas pela simples venda dessas aplicações.
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As entradas em capital para sociedades, ou a emissão de acções por sociedades anónimas com vista à respectiva subscrição por novos accionistas.
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Nesse quadro, a Requerida conclui que não é aceitável a assimilação do “distribution amount” das Class X Notes a rendimentos de lucros / dividendos – tratando-se, antes, de rendimentos de obrigações, expressamente qualificados pelas partes na operação de securitização como “distribuição de juros”, “interest distribution”; tratando-se, pois, de juros, ou “similares de juros”, que são contrapartida de uma colocação de capital à disposição de contrapartes mutuárias, ou de terceiros.
IV. Fundamentação da decisão
IV. 1. A natureza do rendimento gerado pelos títulos
Demos por não-provada a existência de um acordo entre “Originator” e “Issuer” que tivesse dispensado a intervenção do “Transaction Manager” na fixação do “Class X Distribution Amount”, um acordo que tivesse estipulado “que o remanescente do património autónomo da E... referente à operação de securitização (Silk Finance no. 5), após pagos os montantes devidos aos titulares das diferentes e prioritárias Class Notes, seja então transferido para o B... (enquanto titular da totalidade das Class X Notes)”, como se alega no art. 118º do PPA.
Impunha-se que o fizéssemos, por duas razões:
1) Uma, porque isso contradiz abertamente o que se estabelece no prospecto da operação “Silk Finance no. 5”, no seu ponto 6.7, referente a “Calculation of Class X Distribution Amount”.
2) Outra, porque o que o art. 62.º, 3 do Decreto-Lei nº 453/99 estabelece é que o remanescente reverte para a sociedade de titularização de créditos (no caso, a E..., o “Issuer” dos títulos), não para qualquer subscritor das obrigações, como o foi o B... (subscritor de “Notes” de Classe A, B e X).
A sociedade de titularização de créditos, o “Issuer”, “tem direito ao remanescente do património autónomo afecto ao pagamento de cada emissão de obrigações titularizadas, após o pagamento integral dos montantes devidos aos titulares das obrigações titularizadas que constituem aquela emissão e das despesas e encargos com esta relacionados”, é o que se estabelece no art. 62.º, 3 do Decreto-Lei nº 453/99.
Se o remanescente revertesse para um subscritor de obrigações e não para o respectivo emitente, não só o art. 62.º, 3 do Decreto-Lei nº 453/99 ficaria totalmente esvaziado, como caberia perguntar o que distinguiria uma sociedade de titularização de créditos (que visa a maximização do lucro resultante dos créditos que lhe foram transmitidos) de uma simples seguradora (que limita à contrapartida de uma remuneração a cobertura de riscos).
Compreende-se que a Requerente queira alicerçar as suas pretensões na alegação de que o “Class X Distribution Amount” é um puro “remanescente” convencionado desde o início, e, nessa medida, um tipo de remuneração inteiramente similar à de outros títulos, já não de crédito mas de propriedade, como o seriam acções, “equity”.
A tese de que se trataria de “equity”, e não de “debt”, não obstante as designações adoptadas na operação “Silk Finance No. 5”, não obstante o quadro legal das operações de securitização, não obstante a própria natureza daquilo em que consiste uma securitização e daquilo que ocorre numa operação destas, seria indispensável para que se pudesse inferir que esse tipo de remuneração – mais próxima da remuneração de acções, ou de unidades de participação em fundos de investimento (como se enfatiza no art. 140º do PPA) – não cabe no âmbito da “actividade económica” a que se refere a Directiva IVA, no seu art. 9.º, 1, §2, tal como esse conceito de “actividade económica” foi depois desenvolvido e densificado pela jurisprudência, seria crucial para se excluir a referida remuneração, especificamente o “Class X Distribution Amount” da operação “Silk Finance No. 5”, do denominador no cálculo de pro rata do IVA, nos termos do art. 23.º, 4 do CIVA.
A essencialidade dessa tese para a posição da Requerente é sumariada nos arts. 168º e 169º do PPA: “Todas essas características da Class X Notes permite-nos afirmar com clareza que os rendimentos auferidos pelo B..., enquanto proprietário dos títulos desta Class, são resultados da mera propriedade do bem, fora do conceito de atividade económica para efeitos do IVA. [§] Portanto, à luz do n.º 4 do artigo 23.º do Código do IVA, como da al, a) do n.º 1 do artigo 2.º, considera a Requerente que, no cálculo da percentagem de dedução do pro rata para o apuramento do IVA dedutível no que aos custos comuns contende, não deve ser incluído o rendimento proveniente das Classe X Notes.”
Como, por outro lado, o recorda a Requerente, nos termos do Acórdão do TJUE de 29 de Abril de 2004 (EDM), proferido no processo C-77/01, “apenas os pagamentos que constituem a contrapartida de uma operação ou de uma actividade económica entram no âmbito de aplicação do IVA e assim não acontece com os que resultam da simples propriedade do bem” (sublinhado nosso).
Sucede, todavia, que, por tudo o que vimos, dado o quadro legal das operações de securitização, dada a natureza daquilo em que consiste uma securitização, dado aquilo que ocorre numa operação de securitização, mas também dado o que especificamente ocorreu na operação “Silk Finance No. 5” e está abundantemente documentado, o “Class X Distribution Amount” estaria subordinado à remuneração de outras classes, seria um “remanescente” nesse sentido, mas seria calculado periodicamente por um “Transaction Manager”, não revertendo automática ou mecanicamente em favor da Requerente – mas, sobretudo, e isso é que é decisivo, não reverteria para a Requerente como um rendimento resultante “da simples propriedade do bem” – para usarmos os termos do Acórdão EDM do TJUE –, pela simples e óbvia razão de que os rendimentos em causa, que revertem residualmente para a Requerente, resultam da titularidade de créditos que foram previamente alienados por ela ao “Issuer”, e portanto não são propriedade do “Originator”, da própria Requerente.
O “Issuer” está obrigado a definir uma política de remuneração, nos termos do art. 22º-C do Decreto-Lei n.º 453/99, de 5 de Novembro, e é nesse quadro, e não qualquer outro (contratual, ou parassocial) que o “Class X Distribution Amount” se integra.
Se o “Originator”, entidade cedente, adquiriu unidades de titularização (as Classes A, B e X), fê-lo para cumprimento dos seus deveres de retenção de risco, não para instrumentalizar o “Issuer” como seu veículo, ou para se tornar sócio / accionista / subscritor de capital ou de unidades de participação do “Issuer”, o que aliás sempre lhe estaria vedado pelo nº 6 do art. 31.º do Decreto-Lei n.º 453/99, de 5 de Novembro: “As entidades cedentes podem adquirir unidades de titularização de fundos para os quais hajam transferido créditos ou os respetivos riscos, nomeadamente para cumprimento dos seus deveres de retenção de risco” (sublinhado nosso).
Em suma, a Requerente não é, nem podia ser, nos termos de uma operação de securitização e respectivo quadro legal, “proprietária” de “equity”, titular de capital social do qual pudesse receber, por contrapartida, uma pura remuneração residual. Isso seria incompatível com a própria natureza de uma genuína securitização tradicional, desvirtuaria o instituto, falsearia o prospecto, defraudaria os investidores e o mercado.
Esclareçamos: tratou-se, aqui, de uma titularização tradicional, com cessão de créditos (nos termos do art. 1.º, 3, a) do Decreto-Lei n.º 453/99, e do art. 2.º, 9) do Regulamento (UE) 2017/2402) no sentido de que não se tratou de uma titularização “sintética” (ou seja, uma operação “em que a transferência do risco é obtida pela utilização de derivados de crédito ou garantias e em que as posições em risco objeto de titularização continuam a ser assumidas pelo cedente”, como se estabelece no art. 2.º, 10) do Regulamento (UE) 2017/2402), nem de uma “titularização STS”.
Logo, os créditos foram, por efeito da titularização, cedidos, e a propriedade desses créditos é agora da E..., e não mais do B... (ou, agora, da Requerente).
Ou seja: a jurisprudência do TJUE aplica-se a casos de lucros / dividendos resultantes de investimento directo, e por isso enfatiza o carácter alegadamente “passivo” da “simples propriedade do bem”.
Não é o caso, porque a propriedade dos créditos titularizados, as fontes do rendimento visado pela securitização, é da E... – insistamos –, não do B... (ou agora da Requerente).
A posição do B... pode ser a de um credor obrigacionista “sui generis”, mas não é a de um accionista. Poderá até ter direito ao remanescente por meio de um contrato; mas não o terá pelas regras de propriedade.
A sua remuneração não é um dividendo, e, portanto, não cai fora do âmbito de “actividade económica”, tal como a delineia a jurisprudência do TJUE.
A participação do B... na operação de titularização consiste numa prestação de serviços a título oneroso, constituindo a contraprestação directa, e real, de serviços prestados – que mais não seja, pela circunstância peculiar de o B... aparecer a dois títulos, o de “Originator” e o de “Servicer”, além de se subscritor de várias classes de títulos emitidos pelo “Issuer” E... .
Títulos que, no seu Relatório Anual, de 2021, o “Issuer” não hesita em qualificar como “obrigações titularizadas divididas em 7 tranches”, e registadas, com essa qualificação, junto da CMVM.
Aliás, a Requerente, ela própria, reconhece isso, quando assevera que “os pagamentos das Class X aos seus detentores acabam por preceder os pagamentos dos dividendos do Banco que seriam distribuídos aos acionistas, como uma espécie de dividendo prioritário” (ponto 13 das Alegações)[2]. Descontando o lapso de se designar a E... como “Banco”, reconhece-se, portanto, que há, em síntese, um residual depois do residual; ou seja, que o “residual” da Classe X não o é verdadeiramente – nem sequer é “residual” ou “remanescente” do “património autónomo” correspondente à emissão –, sendo antes periodicamente arbitrado, numa base trimestral, na “Interest Payment Date” (como o especifica o prospecto), pelo “Transaction Manager”, um montante destinado à remuneração dessas Class X Notes, o referido “Distribution Amount”; e, no final, o verdadeiro “residual” desse património autónomo reverte a favor da E..., constituindo o seu lucro, aditando-se ao residual de quaisquer outras operações nas quais a E... participe como Sociedade de Titularização de Créditos.
Dito de outra forma, o “Issuer”, como proprietário dos créditos titularizados em resultado de uma titularização tradicional, operada através de cessão de créditos, tem direito ao residual do rendimento de todos os títulos que emite.
Pode até convencionar que o residual de uma certa operação reverta exclusivamente para os titulares de uma classe de títulos, em termos de património autónomo ou segregado. Mas no caso o “Issuer” não o fez, como resulta do Prospecto, e resulta até da prova testemunhal, que confirmou o papel activo e periódico do “Transaction Manager” (“se houver resultado positivo, é distribuído trimestralmente” 19:05 – Testemunha Dr. I...).
Pelo que a remuneração das Class X Notes é meramente subordinada, não é verdadeiramente residual – pode factualmente tornar-se residual, em cada trimestre, se o “Transaction Manager” o decidir, mas não é necessário ou inevitável que este o faça.
Esclareçamos o que resulta do quadro legal: nos termos dos arts. 32º, 3 e 60.º, 1 do Decreto-Lei n.º 453/99, de 5 de Novembro, “os fundos podem emitir unidades de titularização de diferentes categorias que confiram direitos iguais entre si mas distintos dos das demais unidades de titularização, designadamente quanto ao grau de preferência no pagamento dos rendimentos periódicos, no reembolso do valor nominal ou no pagamento do saldo de liquidação (…) As obrigações titularizadas podem ser de diferentes categorias, designadamente quanto às garantias estabelecidas a favor dos seus titulares, às taxas de remuneração, que podem ser fixas ou variáveis, e ao seu grau de preferência, e devem ter datas de vencimento adequadas ao prazo dos créditos subjacentes” (sublinhado nosso).
Logo, as Class X Notes estão sujeitas a um prazo de vencimento correspondente ao prazo dos créditos subjacentes, têm uma taxa de remuneração variável e correspondem ao mais baixo grau de preferência nas remunerações (art. 60.º, 1 do Decreto-Lei n.º 453/99): mas são obrigações, e conferem aos respectivos titulares direitos de que não gozam os titulares de “equity” – não apenas o direito ao reembolso do valor nominal[3], ou o pagamento do saldo de liquidação, mas também, por exemplo, um privilégio creditório especial sobre os bens que em cada momento integram o património autónomo afecto à respectiva emissão, com precedência sobre quaisquer outros credores, como resulta do art. 63.º, 1 do Decreto-Lei n.º 453/99.
Trata-se assim, comprovadamente, e para efeitos de preenchimento dos pressupostos da Directiva IVA (art. 9.º) e do CIVA (art. 2.º, 1, a)), de uma verdadeira e própria “actividade económica”[4] que visa gerar, para os subscritores das classes de Notes, receitas com carácter de permanência[5], sob forma de remunerações acordadas[6].
Invoquemos, aliás, de passagem, um lugar paralelo, o do regime do Decreto-Lei n.º 219/2001, de 4 de Agosto, que estabelece o regime fiscal das operações de titularização de créditos efectuadas no âmbito do Decreto- Lei n.º 453/99, de 5 de Novembro, quando, no seu art. 3.º, 4, se estabelece que, para efeitos de tributação em IRC, “Os rendimentos e ganhos decorrentes do reembolso dos créditos objeto de cessão, bem como os gerados com a transmissão onerosa dos créditos cedidos ou relativos a instrumentos de cobertura dos riscos associados a esses créditos, são considerados rendimentos de natureza idêntica aos juros quando nos termos de disposição legal ou convenção o direito ao montante remanescente, depois de pagos os rendimentos e todas as despesas e encargos do fundo ou património autónomo, seja atribuído aos titulares das unidades de titularização ou das obrigações titularizadas”; ou quando, no seu art. 4.º, se determina que “Aos rendimentos e à transmissão das unidades de titularização de créditos e de obrigações titularizadas é aplicável o regime fiscal das obrigações” (sublinhados nossos)
Recapitulando: pelo princípio da segregação, com a titularização formou-se um património autónomo, e o “proprietário” desse património autónomo é o “Issuer” E..., não o cedente “Originator” B... – e é por isso que, em princípio, e salvo convenção em contrário (que, se existisse, dispensaria o papel do “Transaction Manager” na fixação trimestral do “Class X Distribution Amount”), “a sociedade de titularização de créditos tem direito ao remanescente do património autónomo afecto ao pagamento de cada emissão de obrigações titularizadas, após o pagamento integral dos montantes devidos aos titulares das obrigações titularizadas que constituem aquela emissão e das despesas e encargos com esta relacionados”, como se estabelece no art. 62.º, 3 do Decreto-Lei n.º 453/99, de 5 de Novembro.
Assim, quando o Acórdão EDM do TJUE conclui que “é jurisprudência assente que a mera aquisição e simples detenção de participações sociais não devem ser consideradas actividades económicas, na acepção da Sexta Directiva, que confiram ao seu autor a qualidade de sujeito passivo. Com efeito, a simples tomada de participações financeiras noutras empresas não constitui uma exploração de um bem com o fim de auferir receitas com caracter de permanência, porque o eventual dividendo, fruto de tal participação, resulta da simples propriedade do bem e não é a contrapartida de qualquer actividade económica na acepção da mesma directiva”, isso manifestamente não se adequa à caracterização da intervenção do B... na operação de titularização.
Pelo contrário, e como bem sublinha a Requerida na sua resposta, a incidência de IVA tem uma vocação de universalidade, e o conceito de prestação de serviços tem um carácter residual, abarcando todas as operações decorrentes da actividade económica de um sujeito passivo que não sejam definidas como transmissões de bens – pelo que, na ausência de prova de que uma atribuição patrimonial não corresponde ao exercício efectivo de uma actividade económica, poderá concluir-se que, a cada atribuição patrimonial, subjaz uma prestação de serviços tributável em IVA.
Em suma, os rendimentos designados por “Class X Distribution Amount” na operação de titularização “Silk Finance No. 5”, sendo rendimentos de obrigações, caracterizam-se como “actividade económica” para efeitos de aplicação do cálculo pro rata de IVA, para efeitos dos arts. 2.º, 1, a) e 23.º, 4 do CIVA.
IV. 2. A questão do reenvio prejudicial
A Requerente peticiona o reenvio prejudicial deste Tribunal Arbitral para o TJUE.
A intervenção a título prejudicial, a pedido dos órgãos jurisdicionais nacionais, limita-se a dois temas: a interpretação do direito da União; a validade dos actos adoptados pelas instituições, órgãos ou organismos da União.
O presente tribunal é um órgão jurisdicional para efeitos do disposto no artigo 267º do TFUE, como resulta do acórdão Ascendi, do TJUE, de 12 de Junho de 2014 (Proc. nº C-377/13), no qual se concluiu pela qualificação dos tribunais arbitrais em matéria tributária, constituídos sob a égide do CAAD, como órgãos jurisdicionais de um Estado-membro, para efeitos do previsto no artigo 267º do TFUE.
Sempre que uma questão de natureza prejudicial seja suscitada perante qualquer órgão jurisdicional de um dos Estados-membros, esse órgão pode, se considerar que uma decisão sobre essa questão é necessária ao julgamento da causa, pedir ao Tribunal que sobre ela se pronuncie (reenvio facultativo); mas, sempre que uma questão desta natureza seja suscitada em processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional cujas decisões não sejam susceptíveis de recurso judicial previsto no direito interno, esse órgão é obrigado a submeter a questão ao Tribunal (reenvio obrigatório), excepto se se verificar uma das excepções à obrigatoriedade do reenvio prejudicial fixadas pela Jurisprudência do TJUE.
Ora, as decisões arbitrais proferidas pelos tribunais arbitrais tributários constituídos sob a égide do CAAD são, em regra, irrecorríveis quanto ao mérito. Com efeito, a recorribilidade permitida circunscreve-se aos casos de violação de normas constitucionais (recurso para o Tribunal Constitucional) ou de desrespeito pela jurisprudência do Tribunal Central Administrativo ou do Supremo Tribunal Administrativo (recurso por oposição de acórdãos para o Supremo Tribunal Administrativo).
Contudo, como já decidido pelo TJUE, no Acórdão Cilfit, de 06 de Outubro de 1982 (Proc. nº C-283/81), a referida obrigatoriedade de reenvio pode ser dispensada quando
(i) a questão não for necessária, nem pertinente para o julgamento do litígio principal,
(ii) o Tribunal de Justiça já se tiver pronunciado de forma firme sobre a questão a reenviar ou quando já exista jurisprudência sua consolidada sobre a mesma,
(iii) o Juiz Nacional não tenha dúvidas razoáveis quanto à solução a dar à questão de Direito da União, pelo facto de o sentido da norma em causa ser claro e evidente (teoria do acto claro, cujos exigentes – e cumulativos – critérios de verificação foram igualmente definidos no referido acórdão).
E é a esta luz que há que apreciar a necessidade de reenvio prejudicial no caso em análise.
Assim, entende este Tribunal Arbitral que, no caso concreto, estão preenchidas duas das excepções à obrigatoriedade de reenvio prejudicial para o TJUE, acima elencadas, porquanto:
1) Um reenvio deve ter por objecto a interpretação ou a validade do direito da União, e não deve ter por objecto as regras de direito nacional, ou as questões de facto suscitadas no litígio no processo principal. Cabendo ao TJUE a pronúncia sobre a interpretação dos Tratados e sobre a validade e a interpretação dos actos adoptados pelas instituições, órgãos ou organismos da União – exclusivamente –, não lhe cabe aplicar o direito da União à situação de facto subjacente ao processo principal, e menos ainda a aplicação do direito interno de um Estado-membro a essa situação de facto – não lhe incumbindo pronunciar-se, em suma, sobre questões de facto suscitadas no âmbito do litígio no processo principal nem sobre eventuais divergências de opinião quanto à interpretação ou à aplicação das regras de direito nacional.
Não há qualquer questão de interpretação do direito da União que, estando por resolver na jurisprudência do TJUE, seja necessária ou pertinente para o julgamento do litígio principal.
2) Pelo contrário, as principais questões de interpretação do direito da União discutidas nos autos, respeitantes à determinação do conceito de “actividade económica”, na acepção do IVA, encontram-se clarificadas pela jurisprudência consolidada do TJUE
Nestes termos, entende este Tribunal Arbitral que não há fundamento para proceder ao peticionado reenvio prejudicial para o TJUE, sendo, por isso, indeferido o pedido de reenvio prejudicial suscitado pela Requerente.
IV. 5. Questões prejudicadas
Foram conhecidas e apreciadas as questões relevantes submetidas à apreciação deste Tribunal, não o tendo sido aquelas cuja decisão ficou prejudicada pela solução dada a outras, ou cuja apreciação seria inútil – art. 608.º do CPC, ex vi art. 29º, 1, e) do RJAT.
V. Decisão
Nos termos expostos, acordam neste Tribunal Arbitral em:
-
Julgar improcedente o pedido de pronúncia arbitral, mantendo na ordem jurídica a liquidação impugnada e a decisão de indeferimento expresso da reclamação graciosa apresentada contra a referida liquidação;
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Absolver do pedido a Autoridade Tributária e Aduaneira;
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Condenar a Requerente no pagamento das custas do processo.
VI. Valor do processo
Fixa-se o valor do processo em €241.487,83 (duzentos e quarenta e um mil, quatrocentos e oitenta e sete euros e oitenta e três cêntimos), nos termos do disposto no art.º 97.º-A do CPPT, aplicável ex vi art.º 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT e art.º 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processo de Arbitragem Tributária (RCPAT).
VII. Custas
Custas no montante de € 4.284,00 (quatro mil duzentos e oitenta e quatro euros) a cargo da Requerente (cfr. Tabela I, do RCPAT e artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4, do RJAT).
Lisboa, 26 de Novembro de 2024
Os Árbitros
Fernando Araújo
Rui Marrana
Rui Miguel Zeferino Ferreira
[1] No original inglês: “On 23rd July 2020, the Company carried out the transaction “Silk Finance No. 5”. This transaction was for the acquisition of a consumer credit portfolio of Banco B…, S.A. in the amount of € 600,018,247 and the respective issuance of securitized bonds divided into 7 tranches: € 466,100,000 Class A, € 65,900,000 Class B, € 55,000,000 Class C, €13,000,000 Class D, € 6,600,000 Class E, €1 Variable Funding Note, and € 3,600,000 Class X. The 7 tranches were issued at par. These bonds were placed privately and subsequently registered with the Portuguese Securities Market Commission (CMVM). (…) The remuneration of the first 3 tranches is indexed to 3 months EURIBOR, adding a spread of 0.75% Class A, 2% Class B and 3% Class C. The remuneration of the following classes is fixed and is of 7.25% Class D and 8% Class E. The other classes do not have a set interest rate, with entitlement to the available amounts after the transaction's other responsibilities have been fulfilled, as stipulated in its terms and conditions. [§] The Class A, B, C, D and E Notes are registered with the securities settlement company Interbolsa and listed on the Euronext Lisbon stock exchange. The bond redemption date started in November 2020, ending in February 2035, the date legal maturity for all tranches. [§] Pursuant to the provisions of the contractual agreement, the bonds' remuneration (including the repayment of capital) is dependent on the assets' performance; in the event of these assets' delinquency, this is fully reflected in the remuneration of the bonds. [§] The credit granted corresponds to repayments of principal and compensatory interest and other amounts due to the grantor under agreements for the granting of consumer credit lines and auto loans. (…) The item “Debt securities issued” records the carrying value of securitization bonds issued within the scope of the securitization transaction. This issuance includes seven tranches of bonds (Class A Notes", "Class B Notes", "Class C Notes", "Class D Notes", "Class E Notes", "Class X Notes”, “Variable Funding Notes ”) with fixed remuneration of 3 months EURIBOR plus spread of 0.75% Class A, 2% Class B, 3% Class C; fixed rate remunerations of 7.25% Class D and 8% Class E and two tranches of bonds (“Class X Notes” and Variable Funding Note) whose remuneration will be the difference between the amounts received and the remuneration paid to the other classes.” (sublinhados nossos)
[2] Tal como no Relatório Anual da E..., de 2021, se esclarecia que a remuneração das “Class X” e das “Variable Funding” Notes “será a diferença entre os valores recebidos e as remunerações pagas às restantes classes” (“will be the difference between the amounts received and the remuneration paid to the other classes”).
[3] Seria ilegal o que a Requerente alega, que as Class X Notes estariam privadas do direito ao reembolso.
[4] Acórdãos do TJUE KapHag, processo C-442/01, n.º 36; Régie Dauphinoise, processo C‑306/94, n.º 15; EDM, processo C‑77/01, n.º 47; Kretztechnik, processo C‑465/03, n.º 18; e T‑Mobile Austria GmbH, processo n.º c-284/04, n.º 38.
[5] Acórdãos do TJUE Van Tiem, processo C- 186/89, n.º 18; Régie Dauphinoise, processo C‑306/94, n.º 15; EDM, processo C-77/01, n.º 48; BBL, processo C‑8/03, n.º 36; T‑Mobile Austria GmbH, processo n.º c-284/04, n.º 38.
[6] Acórdãos do TJUE Comissão/Finlândia, processo C-246/08, n.º 37 e Marle Participations, processo C-320/17, n.º 22.
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