DECISÃO ARBITRAL
Processo n.º 715/2024-T
SUMÁRIO:
Determina a inutilidade superveniente da lide a revogação integral pela Autoridade Tributária dos actos de liquidação de IRS impugnados no processo arbitral, o que constitui causa de extinção da instância nos termos do art. 277.º, al. e) do CPC, ex vi art. 29.º, n.º 1, al. e) do RJAT.
I. Relatório.
a) Partes e pedido de pronúncia arbitral.
1. A..., contribuinte n.º ..., residente em..., ..., França, (a seguir, o “Requerente”) apresentou, em 03.06.2024, em conformidade com os artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20.01, com as alterações posteriores (a seguir Regime Jurídico da Arbitragem Tributária ou RJAT), pedido de pronúncia arbitral, em que é demandada a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (a seguir, Requerida ou AT), no qual peticiona a anulação das liquidações de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (“IRS”) com os n.ºs 2020... relativa ao ano de 2016, no valor a pagar de € 8.387,18, e 2021 ... relativa ao ano de 2017, no valor a pagar de € 8.476,03.
b) Dinâmica processual
2. Em conformidade com os artigos 5.º, n.º 2, al. a), 6.º, n.º 1 e 11.º, n.º 1, al. a) do RJAT, o Conselho Deontológico deste Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) designou como árbitro singular o signatário, que aceitou o encargo e a cuja designação as partes não apresentaram recusa.
3. Nos termos do disposto na al. c) do n.º 1 e do n.º 8 do artigo 11.º do RJAT, conforme comunicação do Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, o Tribunal Arbitral Singular ficou constituído em 13.08.2024.
4. O Tribunal foi regularmente constituído, as partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade (arts. 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22.3) e encontram-se devidamente representadas.
5. No pedido de pronúncia arbitral, o Requerente peticionou que fosse declarada a ilegalidade e consequente anulação das liquidações de IRS com os n.ºs 2020 ... relativa ao ano de 2016 no valor a pagar de € 8.387,18 e 2021 ... relativa ao ano de 2017 no valor a pagar de € 8.476,03, para o que alegou, em síntese, que:
i) o Requerente residia em 2016 e 2017 em França onde veio a ser tributado na qualidade de residente;
ii) apenas por desconhecimento o Requerente não actualizou no cartão de cidadão o seu domicílio fiscal para a morada onde passou a residir habitualmente;
iii) após constatação da referida divergência, o Requerente solicitou em 22.09.2022 o reconhecimento da sua não residência fiscal em Portugal, com efeitos reportados a 01.01.2016;
iv) por despacho proferido em 23.05.2016, o Requerente foi notificado da decisão de que foi considerado residente fiscal em Portugal quanto aos rendimentos relativos aos anos de 2016 e 2017, devendo a alteração reportar-se à data de 01.01.2018;
v) após audiência prévia do Requerente a AT alterou a sua posição, passando a considerar o Requerente como não residente desde 01.01.2016;
vi) em consequência o Requerente apresentou pedido de revisão oficiosa das referidas liquidações de IRS, que não mereceu qualquer resposta da AT;
vii) motivo que levou o Requerente a instaurar o presente processo arbitral, solicitando a declaração de ilegalidade das referidas liquidações de IRS por erro imputável aos serviços.
6. Notificada a AT, conforme despacho de 13.08.2024, para apresentar resposta nos termos dos n.ºs 1 e 2 do art. 17.º do RJAT, por requerimento de 03.10.2024, a mesma veio comunicar a revogação dos actos impugnados. Juntou a Informação da Direcção de Serviços das Relações Internacionais, onde foi exarado o despacho revogatório.
7. Notificado o Requerente, conforme despacho de 03.10.2024, para se pronunciar sobre a comunicação da revogação dos actos apresentada pela Requerida, o mesmo não se pronunciou.
8. Por despacho de 22.10.2024, o Tribunal Arbitral, tendo em atenção que a matéria pendente de apreciação no presente processo respeita à revogação dos actos e suas consequências nos autos, relativamente à qual foi exercido o contraditório, dispensou a realização da reunião prevista no art. 18.º do RJAT, bem como a produção de alegações, e fixou como data para a prolação da decisão final o dia 23.11.2024.
9. Cumpre, pois, proferir decisão em relação à questão da inutilidade superveniente da lide, na qual se centra, atualmente, a cognição que cabe realizar por este Tribunal Arbitral.
II. Fundamentação
10. As ocorrências e elementos processuais a considerar na decisão do presente processo, relativamente à questão em apreciação da inutilidade superveniente da lide, são os que constam do relatório antecedente, que aqui se dão por reproduzidos, importando também, já que não se descortina matéria que releve dar como não provada, especificar ainda os seguintes factos provados:
I. O Requerente foi objecto das liquidações de IRS com os n.ºs 2020 ... relativa ao ano de 2016 no valor a pagar de € 8.387,18 e 2021 ... relativa ao ano de 2017 no valor a pagar de € 8.476,03.
II. O Requerente solicitou em 22.09.2022 o reconhecimento da sua não residência fiscal em Portugal, com efeitos reportados a 01.01.2016, pedido que veio a ser deferido pela AT, após audiência prévia relativa a uma primeira proposta de indeferimento.
III. Em consequência, o Requerente apresentou pedido de revisão oficiosa das referidas liquidações de IRS 2020... e 2021..., dos períodos de tributação de 2016 e 2017, nos valores de €8.387,18 e €8.476,03, que não mereceu qualquer resposta da AT.
IV. Por despacho da Subdiretora-Geral Helena Pegado Martins, datado de 01.10.2024, e exarado na Informação da DSRI de 05.07.2023 proferida no processo ...2024..., foram revogados os actos de liquidação de IRS IRS 2020... e 2021..., com os seguintes fundamentos essenciais (cfr. o documento junto com o requerimento da AT acima indicado, que aqui se dá por integralmente reproduzido):
- “(…)22. Por tudo o exposto nos pontos antecedentes, e dado que o requerente, na sequência da alteração de residência fiscal com efeitos retroativos passou a ter o estatuto de não residente em Portugal nos anos de 2016 e 2017, o IRS incide unicamente sobre os rendimentos obtidos em território português, em conformidade com o disposto no artigo 15.º, n.º 2, do Código do IRS, concluindo-se assim, que não se encontra obrigado a declarar os rendimentos de fonte francesa.
23. No que respeita ao direito a juros indemnizatórios, estipula o artigo 43.º, n.º 1, da LGT, que “São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.”
24. Atendendo a que, na presente situação, se verificou que:
i) O Requerente efetuou o pagamento da dívida; e,
ii) Existe erro imputável aos serviços, em conformidade com a Instrução de Serviço n.º .../2023, de 14/06/2023, emitida pela Direção de Serviços de Justiça Tributária, que entende que o reconhecimento com efeitos retroativos da qualidade de não residente, interfere com a legalidade do ato tributário, porque altera um dos pressupostos em que se fundamenta;
Será de conceder o direito a juros indemnizatórios a favor do contribuinte.
Conclusão
Após apreciação do pedido de pronúncia arbitral, afigura-se-nos que as liquidações n.ºs 2020... e 2021..., dos períodos de tributação de 2016 e 2017, nos valores de €8.387,18 e €8.476,03, devem ser anuladas.”.
11. Resulta desta factualidade dada como provada com base nos documentos acima elencados que, pelo despacho de 02.08.2023, foram revogados (rectius, anulados) os actos de liquidação de IRS 2020... e 2021..., dos períodos de tributação de 2016 e 2017, nos valores de €8.387,18 e €8.476,03, que eram sindicados nos presentes autos e que constituíam, assim, objecto do presente processo arbitral.
Ora, verifica-se a inutilidade superveniente da lide quando, por facto ocorrido na pendência da instância, a solução do litígio deixe de interessar, por ter sido atingido por outro meio o resultado que a parte visava obter, o que implica, em conformidade com o disposto no art. 277.º, al. e), do Código de Processo Civil (CPC), a extinção da instância.
Na verdade, atenta a revogação, rectius anulação administrativa (cfr. art. 165.º do Código do Procedimento Administrativo) dos actos de liquidação sindicados, a pretensão do Requerente e a resolução do correspondente litígio por este Tribunal deixa de assumir relevância, pois o efeito peticionado de desaparecimento da ordem jurídica dos actos impugnados foi alcançado por outra via, a anulação administrativa, do que decorre que o prosseguimento dos autos não envolve a esse respeito quaisquer consequências para o Requerente.
A extinção da instância, em consequência da revogação dos actos, como resulta do relatório antecedente, não é, aliás, controvertida, dado que nenhuma das partes comunicou posição diferente a este Tribunal Arbitral.
Termos em que se decide julgar a presente instância arbitral extinta por inutilidade superveniente da lide nos termos do art. 277.º, alínea e) do CPC, aplicável ex vi art. 29.º, n.º 1, al. e) do RJAT.
12. Impõe-se, seguidamente, apreciar a responsabilidade quanto a custas decorrente da decisão de extinção da instância, em cumprimento do determinado pelo art. 22.º, n.º 4 do RJAT e pelo art. 4.º, n.º 5 do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária.
Antes do mais, note-se que, não obstante a possibilidade de revogação do acto prevista no art. 13.º, n.º 1 do RJAT, tal previsão não tem aplicação ao caso, porquanto o exercício das faculdades administrativas aí previstas tem que ser realizado no prazo de 30 dias a contar do conhecimento do pedido de constituição do tribunal arbitral (cfr. n.ºs 3 e 4 do art. 10.º do RJAT). Dado que a AT foi notificada do presente processo em 05.06.2024, conforme resulta da referência constante do sistema de gestão processual do CAAD, conclui-se que o prazo estabelecido no indicado art. 13.º, n.º 1 já tinha decorrido na data do despacho revogatório. Daí que se tenha verificado a constituição do Tribunal Arbitral e o início do processo arbitral em conformidade com o art. 15.º do RJAT, sendo, pois, neste âmbito processual (que é alheio à previsão do art. 3.º-A do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, que se reporta ao procedimento arbitral) que cabe decidir a “fixação do montante e a repartição pelas partes das custas diretamente resultantes do processo arbitral” (n.º 4 do art. 22.º do RJAT).
Em matéria de custas, o art. 536.º do CPC, aplicável por força do art. 29.º, n.º 1, al. e) do RJAT, estabelece que: “Nos restantes casos de extinção da instância por impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide, a responsabilidade pelas custas fica a cargo do autor ou requerente, salvo se tal impossibilidade ou inutilidade for imputável ao réu ou requerido, caso em que é este o responsável pela totalidade das custas” (n.º 3) e que: “Considera-se, designadamente, que é imputável ao réu ou requerido a inutilidade superveniente da lide quando esta decorra da satisfação voluntária, por parte deste, da pretensão do autor ou requerente, fora dos casos previstos no n.º 2 do artigo anterior e salvo se, em caso de acordo, as partes acordem a repartição das custas” (n.º 4).
Como se explica no acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 13.05.2021, proc. n.º 01640/17.4BEBRG: “para gerar a sua responsabilização pelas custas, a imputação ao réu do facto causal da inutilidade superveniente não terá de configurar uma imputação subjetiva, traduzida na eventual censura ético-jurídica pela sua reação tardia à pretensão deduzida na ação, sendo suficiente que essa imputação seja objetiva, isto é, que o facto que retira utilidade à lide seja do domínio do réu”.
Pois bem, não se pode deixar de concluir que é imputável à Requerida a inutilidade superveniente da lide porquanto isso resultou da anulação administrativa dos actos sindicados, portanto, de um acto no estrito domínio da AT, o qual se fundou na posterior aceitação da qualidade de não residente do Requerente (cfr. facto provado n.º II).
Nestes termos, como a inutilidade superveniente da lide é objectivamente imputável à Requerida, dado o acto praticado de anulação administrativa das liquidações sindicadas no decurso da presente instância, a mesma é responsável pela totalidade das custas, em conformidade com o previsto nos citados n.ºs 3 e 4 do art. 536.º do CPC.
III. Decisão
Termos em que se decide:
-
julgar extinta a instância por inutilidade superveniente da lide por falta de objeto, nos termos do art. 277.º, al. e) do CPC, ex vi art. 29.º, n.º 1, al. e) do RJAT;
-
condenar a Requerida nas custas arbitrais, em conformidade com o art. 563.º, n.ºs 3 e 4 do CPC, ex vi art. 29.º, n.º 1, al. e) do RJAT.
IV. Valor do processo
De harmonia com o disposto no art. 306.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, no artigo 97.º-A, n.º 1, al. a), e n.º 3 do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicáveis por força das alíneas a), c) e e) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT, fixa-se ao processo o valor de €16.863,21 (dezassete mil, oitocentos e sessenta e três euros e vinte e um cêntimos), que constitui a importância total das liquidações objecto do pedido de pronúncia arbitral.
V. Custas
De harmonia com o disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e nos artigos 3.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2 e 4.º, n.º 5 do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o valor da taxa de arbitragem em €1.224,00 (mil duzentos e vinte e quatro euros), nos termos da Tabela I do mencionado Regulamento, a cargo da Requerida, conforme acima decidido.
Notifique.
Lisboa, 14 de Novembro de 2024.
O Árbitro
(Luís Menezes Leitão)