Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 701/2024-T
Data da decisão: 2024-10-25  IUC  
Valor do pedido: € 193,92
Tema: IUC – Intempestividade do pedido de pronúncia arbitral. Incompetência do Tribunal Arbitral. Efeitos da penhora na propriedade do veículo.
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SUMÁRIO:

I - A arbitragem tributária constitui uma forma alternativa de resolução jurisdicional de conflitos no domínio fiscal, pelo que é legítimo aos interessados optar, tal como o Requerente fez, pela interposição de um pedido de pronúncia arbitral, em vez de socorrer-
-se de outros meios graciosos e judiciais, especificamente, a reclamação graciosa, e a impugnação judicial, que tal como indica o nome é o meio judicial de defesa com fundamento em qualquer ilegalidade.
II - Impõe-se aos requerentes a observância dos pressupostos formais e materiais prescritos na lei, desde logo, a interposição tempestiva do pedido de pronúncia arbitral.
III - O termo do prazo de pagamento voluntário das liquidações de IUC de 2022 e 2023 terminava, respectivamente, em 8 de Novembro de 2022 e 31 de Agosto de 2023, podendo o Requerente reagir socorrendo-se de meios graciosos, nomeadamente, da reclamação graciosa ou da impugnação judicial, o que não fez.
IV - O Requerente não exerceu atempadamente as garantias que a lei lhe concede e apenas apresentou o pedido de pronúncia arbitral junto do CAAD em 31 de Maio de 2024.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

O árbitro do Tribunal Arbitral Dr. Hélder Faustino, designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formar o presente Tribunal Arbitral, constituído em 12 de Agosto de 2024, decide:

 

  1. RELATÓRIO

 

A..., NIF..., residente na Rua..., n.º...,  ..., ..., ...-... Charneca da Caparica, apresentou, em 31 de Maio de 2024, pedido de pronúncia arbitral e de constituição de tribunal arbitral singular, ao abrigo do artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro (doravante, abreviadamente designado RJAT), visando a declaração de ilegalidade dos actos de liquidação de Imposto Único de Circulação (IUC) n.º ... e n.º ..., dos anos de 2022 e 2023, referentes ao veículo com o número de matrícula ... e a extinção dos respectivos processos executivos por falta de pagamento do imposto e das respectivas coimas aplicadas, sendo a Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (“AT”).

 

1. O pedido foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD em 3 de Junho de 2024.

 

2. O Requerente optou por não designar árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no n.º 1, do artigo 6.º do RJAT, foi designado, pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa, a 23 de Julho de 2024, o ora signatário como Árbitro a integrar o Tribunal Arbitral, o qual se constituiu em 12 de Agosto de 2024, em conformidade com o preceituado na alínea c), do n.º 1, do artigo 11.º, do RJAT.

 

3. Em 26 de Setembro de 2024, a Requerida junta aos autos a sua Resposta, na qual se defende por excepção (intempestividade do pedido de pronúncia arbitral e incompetência do Tribunal Arbitral para apreciação dos efeitos da penhora na propriedade do veículo) e pugna pela procedência das mesmas e consequente absolvição do pedido.

 

4. O Requerente pretende a declaração de ilegalidade dos actos de liquidação de IUC.

 

5. A reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT, por desnecessária, foi dispensada ao abrigo dos princípios da autonomia do Tribunal Arbitral na condução do processo, da celeridade, simplificação e informalidade processuais previstos nos artigos 16.º, alínea c), 19.º e 29.º, n.º 2, todos do RJAT.

 

6. Em 8 de Outubro de 2024, a Requerida apresentou alegações, reiterando todo o constante da Resposta.

 

7. Em 11 de Outubro e em 21 de Outubro de 2024, o Requerente apresentou alegações, reforçando que a Requerida não teve em consideração que o veículo foi objecto de penhora, com a subsequente remoção e nomeação do fiel depositário e detentor do bem que não ele. Que não tem a sua posse nem o domínio e a tramitação que obste à alteração da situação legal da viatura em causa. Que é também absolutamente alheio ao registo em seu nome porque lhe está vedado legalmente. E que nada pode fazer legalmente porque tudo é da responsabilidade do credor pignoratício, que é também o seu fiel depositário.

 

 

  1. SANEAMENTO

 

8. O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria, para apreciação da legalidade dos actos de liquidação de tributos, conforme decorre do artigo 2.º, n.º 1, do RJAT, não abrangendo a cobrança coerciva de dívidas tributárias, que tem regime próprio, ínsito nos artigos 148.º e seguintes do CPPT, com fundamentos próprios da oposição à execução (cfr. artigo 204.º do CPPT), dada a natureza judicial deste tipo de processo (cfr. artigo 103.º, n.º 1, da LGT), na medida em que todo o processo de execução fiscal é de natureza judicial, independentemente da natureza materialmente administrativa ou jurisdicional dos actos que nele sejam praticados.

 

9. As Partes têm personalidade e capacidade judiciárias e mostram-se legítimas (cfr. artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

 

10. Existe matéria de excepção que importa conhecer antes do mérito da causa.

 

  1. MATÉRIA DE FACTO

 

A. Factos provados

 

11. Com relevo para a decisão, importa atender aos seguintes factos que se julgam provados:

 

a. A viatura de matrícula ..., está registada como propriedade de A..., NIF ..., desde 28 de Janeiro de 1998 e cuja data do aniversário da matrícula ocorre a 5 de Abril de cada ano.

 

b. Sobre esta viatura, propriedade do Requerente, existe um registo de penhora, efectuado em 15 de Julho de 2015, pelo registo n.º 303, a favor de terceiro, à ordem do processo cível n.º .../15...T8LSB no Tribunal, Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo de Execução - Juiz 1.

 

c. O Requerente aderiu à notificação electrónica em 27 de Janeiro de 2019.

 

d. A falta de pagamento da liquidação de IUC n.º ..., de 2022, no valor de € 77,25, deu origem ao processo executivo n.º ...2023... que se encontra activo.

 

e. Pela falta de pagamento da liquidação de IUC do ano de 2022 foi instaurado o processo contraordenacional n.º ...2023..., que foi extinto, por extracção de certidão de dívida e instaurado o processo executivo n.º ...2023... .

 

f. A falta de pagamento da liquidação de IUC n.º... respeitante a 2023, no valor de € 81,14, deu origem ao processo executivo n.º ...2023..., que se encontra activo.

 

g. Pela falta de pagamento da liquidação de IUC do ano de 2023 foi instaurado o processo de contraordenação n.º ...2023..., que foi extinto, pela instauração do processo executivo n.º ...2024... .

 

h. A liquidação de IUC do ano de 2022, foi emitida em 22 de Outubro de 2022, com data-limite de pagamento de 8 de Novembro de 2022.

 

i. A liquidação de IUC do ano de 2023, foi emitida em 30 de Julho de 2023, com data-limite de pagamento de 31 de Agosto de 2023.

 

j. Em 31 de Maio de 2024, o Requerente apresentou o presente pedido de pronúncia arbitral.

 

B. Factos não provados

 

12. Não há factos relevantes para esta Decisão Arbitral que não se tenham provado.

 

C. Fundamentação da decisão da matéria de facto

 

13. Relativamente à matéria de facto, o Tribunal Arbitral não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas Partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. n.º 2 do artigo 123.º do CPPT e n.º 3 do artigo 607.º do CPC, aplicáveis ex vi alíneas a) e e) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT).

 

14. Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis das questões de direito (cfr. n.º 1 do anterior artigo 511.º, do CPC, correspondente ao actual artigo 596.º, aplicável ex vi alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º, do RJAT).

 

15. Tendo em consideração as posições assumidas pelas Partes, à luz do n.º 7 do artigo 110.º do CPPT, os elementos juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados, com base na prova produzida e nos factos não controvertidos.

 

  1.   DO DIREITO

 

A. Das excepções invocadas

 

16. Na resposta veio a Requerida alegar a intempestividade do pedido e a incompetência do Tribunal Arbitral em razão da matéria para apreciação dos efeitos da penhora na propriedade do veículo.

 

17. Exposta sumariamente as excepções que nos atém, cumpre apreciar.

 

A.1. Da intempestividade do pedido

 

18. O Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT) dispõe no n.º 1 do artigo 2.º que a competência dos tribunais arbitrais compreende a:

- a) A declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta;

- b) A declaração de ilegalidade de actos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de actos de determinação da matéria colectável e de actos de fixação de valores patrimoniais.

 

19. O Tribunal Arbitral é materialmente competente para apreciação da legalidade dos actos de liquidação de tributos, conforme decorre do artigo 2.º, n.º 1 do RJAT, não abrangendo a cobrança coerciva de dívidas tributárias, que tem regime próprio, ínsito nos artigos 148.º e seguintes do CPPT, com fundamentos próprios da oposição à execução (artigo 204.º do CPPT), dada a natureza judicial deste tipo de processo (artigo 103.º, n.º 1 da LGT), pois todo o processo de execução fiscal é de natureza judicial, independentemente da natureza materialmente administrativa ou jurisdicional dos actos que nele sejam praticados.

 

20. Neste sentido, em sede arbitral apenas se suscita a questão da legalidade dos tributos, neste caso das liquidações de IUC 2022 e 2023, objecto do presente pedido.

 

21. A arbitragem tributária constitui uma forma alternativa de resolução jurisdicional de conflitos no domínio fiscal, pelo que é legítimo aos interessados optar, tal como o Requerente fez, pela interposição de um pedido de pronúncia arbitral, em vez de socorrer-se de outros meios graciosos e judiciais, especificamente a reclamação graciosa - meio gracioso por excelência para anulação de liquidações - previsto nos artigos 68.º e 70.º do CPPT, e a impugnação judicial, que tal como indica o nome é o meio judicial de defesa com fundamento em qualquer ilegalidade, ao abrigo do artigo 99.º do CPPT, a apresentar nos termos do artigos 97.º e 102.º, ambos do CPPT.

 

22. Contudo, impõe-se aos requerentes a observância dos pressupostos formais e materiais prescritos na lei, desde logo, a interposição tempestiva do pedido de pronúncia arbitral.

 

23. Com efeito, o artigo 10.º, n.º 1, do RJAT impõe um prazo para apresentação do pedido, determinando que:

1 – O pedido de constituição de tribunal arbitral é apresentado:

a) No prazo de 90 dias, contados a partir dos factos previstos no n.º 1 e 2 do artigo 102.º do

Código do Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”), quanto aos actos suscetíveis de impugnação autónoma e, bem assim, da notificação da decisão ou do termo do prazo legal de decisão do recurso hierárquico;

b) No prazo de 30 dias, contado a partir da notificação dos actos previstos nas alíneas b) e c) do artigo 2.º, nos restantes casos.

 

24. Por sua vez o artigo 102.º, do CPPT prevê no n.º 1 que a impugnação será apresentada no prazo de três meses contados a partir dos factos seguintes:

a) Termo do prazo para pagamento voluntário das prestações tributárias legalmente notificadas ao contribuinte;

b) Notificação dos restantes actos tributários, mesmo quando não deem origem a qualquer liquidação;

c) Citação dos responsáveis subsidiários em processo de execução fiscal;

d) Formação da presunção de indeferimento tácito;

e) Notificação dos restantes actos que possam ser objeto de impugnação autónoma nos termos deste Código;

f) Conhecimento dos actos lesivos dos interesses legalmente protegidos não abrangidos nas alíneas anteriores.

 

25. Atento o facto que o n.º 2 do artigo 102.º do CPPT foi revogado através da Lei n.º 82-E/2014, de 31 de Dezembro, apenas há que considerar os factos elencados no n.º 1 do artigo 102.º do CPPT.

 

26. Consequentemente, em face do normativo da alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º do RJAT, o pedido de pronúncia arbitral deve ser apresentado no prazo de 90 dias, contados a partir dos factos previstos no n.º 1 do artigo 102.º do CPPT, que nesta situação concreta será pela alínea a) deste normativo “Termo do prazo para pagamento voluntário das prestações tributárias legalmente notificadas ao contribuinte”.

 

27. Nos termos do disposto no artigo 20.º, n.º 1, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (ex vi artigo 29.º do RJAT), para a contagem dos prazos é aplicável o disposto no artigo 279.º do Código Civil, contando-se de forma contínua com termo inicial no dia seguinte ao termo do prazo para pagamento e não se suspendendo em férias judiciais.

 

28. Nos termos do artigo 17.º-A do RJAT não se está, neste âmbito, perante um prazo processual e, só a esses, se refere esta norma, mas antes perante um prazo para requerer a pronúncia arbitral pelo que, as férias não prorrogam o prazo para requerer a pronúncia arbitral.

 

29. Decorre da factualidade assente, que o termo do prazo de pagamento voluntário das liquidações de IUC de 2022 e 2023 terminava, respectivamente, em 8 de Novembro de 2022 e 31 de Agosto de 2023, podendo o Requerente reagir socorrendo-se de meios graciosos, nomeadamente da reclamação graciosa (artigos 68.º e 70.º do CPPT) ou da impugnação judicial (artigos 99.º e 102.º CPPT), o que não fez.

 

30. O Requerente não exerceu atempadamente as garantias que a lei lhe concede e apenas apresentou o pedido de pronúncia arbitral junto do CAAD em 31 de Maio de 2024.

 

31. Assim, aplicando o normativo atrás referido, forçoso é concluir que o pedido de pronúncia arbitral deveria ter sido apresentado até 6 de Fevereiro de 2023, no que respeita à liquidação de 2022 e até 29 de Novembro de 2023, no que respeita à liquidação de 2023, pelo que não tendo o Requerente deduzido atempadamente o pedido de pronúncia arbitral gerou-se a consolidação definitiva na ordem jurídica das liquidações de IUC dos anos de 2022 e 2023 da viatura em causa, com as necessárias e legais consequências.

 

32. A tempestividade da petição arbitral é um pressuposto processual indispensável à viabilidade do processo e ao conhecimento do mérito da causa, constituindo nos termos da lei uma excepção perentória que, ainda que a Requerida não a tivesse invocado, arguindo a caducidade do direito de acção, o Tribunal Arbitral não pode deixar de avaliar da tempestividade do pedido de pronúncia arbitral, dado que, nos termos do artigo 579.º do CPC, as excepções perentórias são de conhecimento oficioso, conforme entendimento jurisprudencial.

 

33. Veja-se a título de exemplo o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo (STA), proferido no processo n.º 076/09, de 27.05.2009, e o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul (TCAS), proferido no processo n.º 1569/15.0BELRA, de 29.06.2017.

 

34. Concluiu-se, assim, que “a intempestividade, traduzida na caducidade do direito de pedir a pronúncia arbitral constitui uma exceção perentória que, nos termos dos art.º. 576.º, n.º 3 e 579.º do CPC, consistindo na ocorrência de factos que impedem o efeito jurídico dos factos articulados pelo Requerente, extinguindo o respetivo direito potestativo a pedir judicialmente o direito de que se arroga e que importa a absolvição total do pedido (ex vi art. 29.º, n.º 1 al. e) do RJAT)”, Cfr., decisões do CAAD, a título de exemplo, Processos n.º 419/2020-T e n.º 316/2020-T.

 

35. Verificando-se, pois, a referida excepção, que conduz à improcedência total do pedido do Requerente, fica prejudicado o conhecimento de outras questões, conforme decorre dos artigos 130.º e 608.º, n.º 2, do CPC, subsidiariamente, aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.

 

  1. DECISÃO

 

De harmonia com o exposto, decide-se,

a) Julgar verificada a excepção de intempestividade da petição arbitral e, em consequência, totalmente improcedente o pedido de pronúncia arbitral.

b) Condenar o Requerente nas custas do processo.

 

  1. VALOR DO PROCESSO

 

Fixa-se o valor do processo em 193,92 euros (valor indicado pelo Requerente no pedido de pronúncia arbitral), nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 3 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

  1.  CUSTAS

 

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em 306,00 euros, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, a cargo do Requerente.

 

Notifique.

 

Lisboa, 25 de Outubro de 2024

 

 

(Hélder Faustino)

 

 

A redacção da presente decisão rege-se pela ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.