SUMÁRIO:
-
O artigo 63.° TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado‑membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um organismo de investimento coletivo (OIC) não residente são objeto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção.
-
Os n.ºs 1 e 10 do artigo 22.º do EBF, ao limitarem o regime neles previsto a organismos de investimento coletivo constituídos segundo a legislação nacional, estabelecem uma discriminação arbitrária, suscetível de configurar uma restrição à livre circulação de capitais no espaço da União Europeia, proibida pelo artigo 63.º do TFUE.
-
O tratamento conferido em sede de Imposto do Selo e a sujeição a tributação autónoma não colocam os fundos de investimentos residentes numa situação objetivamente diferente dos fundos de investimento não residentes .
-
RELATÓRIO
-
A..., fundo de investimento constituído ao abrigo da lei dos Estados Unidos da América, com sede em ..., ..., Estados Unidos da América, (doravante designado por “A...” ou “Requerente”), com o número de contribuinte fiscal americano ... e com o número de contribuinte fiscal português ..., representado pela sua entidade gestora B..., INC., sociedade de direito americano, com sede em..., ..., Estados Unidos da América, com o número de contribuinte fiscal americano ..., vem, na sequência do despacho de indeferimento proferido pelo Diretor de Finanças Adjunto da Direção de Finanças de Lisboa, datado de 27.12.2023, no âmbito do processo de reclamação graciosa n.º ...2021..., relativo ao ato de retenção na fonte de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC) de 2020, consubstanciado na guia n.º..., referente ao período de maio de 2020, que incidiu sobre os dividendos auferidos em território nacional melhor identificados infra, nos termos do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a) e 10.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, todos do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (RJAT), requerer a CONSTITUIÇÃO DE TRIBUNAL ARBITRAL COLETIVO, com vista à declaração de ilegalidade daquela decisão e do ato tributário que daquela foi objeto, bem como do direito a juros indemnizatórios pelo pagamento deste imposto indevidamente suportado/retido na fonte a calcular nos termos do disposto nos artigos 43.º e 100.º da Lei Geral Tributária (LGT), artigo 61.º do Código de Procedimento e Processo Tributário (CPPT), e a condenação da Requerida nas custas do processo.
a) Tramitação
-
O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e notificado à Requerida.
-
O Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que os ora signatários foram nomeados pelo CAAD em 22 de maio de 2024. As partes, devidamente notificadas, não manifestaram intenção de os recusar, tendo o Tribunal ficado constituído em 14 de junho de 2024.
-
O Requerente não arrolou testemunhas e juntou à petição diversos documentos.
-
Tendo este Tribunal exarado despacho, a 17 de junho de 2024, para no prazo de 30 se notificar o dirigente máximo do Serviço da Autoridade Tributária e Aduaneira para apresentar Resposta, a 5 de setembro de 2024 veio a AT apresentar a sua Resposta.
-
Por despacho de 11 de Setembro de 2024 foram prescindidas a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT, tendo sido notificadas as Partes para produzirem alegações escritas simultâneas, no prazo de quinze dias a partir da notificação do despacho.
-
Em 3 de outubro de 2024, veio a Requerida apresentar as suas alegações, reproduzindo, no seu essencial, o que invocou na Resposta, salientando que, “A. De facto não resulta demonstrado que o Requerente não consiga recuperar o imposto retido na fonte em Portugal no seu estado de residência (Estados Unidos da América), tal como também não está demonstrado que o imposto não recuperado pelo Fundo não possa vir a ser recuperado pelos investidores.
B. Assim sendo, considerando-se que, à luz do disposto no artigo 348.º do Código Civil, segundo o qual àquele que invocar direito estrangeiro compete fazer prova da sua existência e conteúdo, o Requerente não fez prova da discriminação proibida, pelo que só se pode defender a improcedência do pedido, por falta de prova da impossibilidade de neutralização da discriminação contestada.”
-
O Requerente não apresentou alegações.
-
O litígio
-
Alega o Requerente, resumidamente, que o ato de retenção na fonte em apreço tem como fundamento jurídico normas que estabelecem uma distinção do regime fiscal aplicável a fundos de investimento residentes e não residentes e que configuram, por isso, uma restrição à livre circulação de capitais que está a ser exercida por um residente de um Estado terceiro . Tal como defende, “20.º Entende o Requerente que o tratamento fiscal conferido pela legislação nacional, que distingue o tratamento a conferir aos dividendos auferidos por fundos de investimento consoante a residência tributária destes, configura, como de seguida se evidencia, uma restrição à liberdade de circulação de capitais, a qual é proibida pelo artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE).
(…)
48.º De acordo com o disposto no artigo 8.º, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa (CRP), o Direito Comunitário é aplicável na ordem interna nos termos do Direito da União Europeia, isto é, por força do primado da legislação comunitária sobre o Direito interno, conforme se infere igualmente do disposto no artigo 8.º, n.º 2 da CRP e do artigo 1.º, n.º 1 da LGT.
(…)
59.º A jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) tem vindo constantemente a opor-se a restrições à circulação de capitais no âmbito das relações entre Estados-membros e países terceiros, assim admitindo, no que ora releva, a aplicação de uma das liberdades fundamentais consagradas no TFUE nas relações com países terceiros (cf. acórdão Sanz de Lera, processos apensos C-163/94, C-165/94 e C-250/94, de 15.12.1994, acórdão FII Group Litigation, processo C446/04, de 12.12.2006 e acórdão Emerging Markets Series, processo C-190/12, de 10.04.2014).
60.º No acórdão FII Group Litigation o TJUE deixou claro, no que concerne ao âmbito de aplicação da livre de circulação de capitais, que “(…) não pode ser aplicada uma restrição aos movimentos de capitais proibida pelo artigo 56.º CE, nem mesmo nas relações com os países terceiros.” (sublinhado nosso) (cf. processo C-446/04, de 12.12.2006).
(…)
62.º Mais recentemente, analisando a jurisprudência do TJUE (em concreto os acórdãos Orange Smallcap, processo C-194/06, de 20.05.2008; Aberdeen Property Fininvest Alpha Oy, processo C303/97, de 18.06.2009; Santander, processo C-338/11 a C-347/11, de 10.05.2012; Emerging Markets Series, processo C-190/12, de 10.04.2014; e Miljoen, processo C-10/14, C-14/14 & C17/14, de 17.09.2015), KEITH O’DONNELL e ULJANA MOLITOR-MARCH, “O artigo 63 do TFUE obriga de forma efetiva os Estados-membros que estabelecem uma isenção de tributação dos dividendos pagos às sociedades residentes por outras sociedades residentes no mesmo Estado membro, a dar um tratamento equivalente aos dividendos pagos a sociedades residentes noutro Estado-membro e a sociedades residentes em Estados não membros.” (cf. Funds Taxation and the Third-Country Dimension, Investment Fund Taxation: Domestic Law, EU Law, and Double Taxation Treaties, Wolters Kluver, 2018; tradução nossa; sublinhado nosso).”
Cita abundante doutrina e jurisprudência do TJUE, salientando que, como concluiu o TJUE no Caso AllianzGI-Fonds AEVN, a legislação interna coloca no mesmo plano, para efeitos de IRC, os fundos de investimento não residentes e os fundos de investimento residente não estabelecendo um tratamento equivalente, com as consequências daí subjacentes ao nível da discriminação contrária às regras do TFUE.
-
A AT, na sua Resposta, invoca essencialmente o seguinte:
“12. De facto, o art.º 22.º do EBF, prevê, para estes sujeitos passivos de IRC, uma exclusão na determinação do lucro tributável dos rendimentos de capitais, prediais e mais valias, referidos nos artigos 5º, 8º e 10º do CIRS, conforme prevê o nº 3 do artigo 22º do EBF e, uma isenção das derramas municipal e estadual, conforme nº 6 da mencionada norma legal.
Requerida não merece qualquer juízo de censura, antes se afigurando que esta posição é a única que se coaduna com o princípio da legalidade ao qual está subordinada.
13. Contudo paralela a esta opção legislativa de “aliviar” estes sujeitos passivos da tributação em IRC, é criada uma taxa em sede de Imposto do Selo incidente sobre o ativo global líquido dos OIC.
14. Ou seja, optou-se por uma tributação na esfera do Imposto do Selo tendo sido aditada, à Tabela Geral do Imposto do Selo (TGIS), a Verba 29, de que resulta uma tributação, por cada trimestre, à taxa de 0,0025% do valor líquido global dos OIC aplicado em instrumentos do mercado monetário e depósitos, e à taxa 0,0125%, sobre o valor líquido global dos restantes OIC, sendo que, neste caso, a base tributável pode incluir dividendos distribuídos.
15. Esta reforma na tributação veio apenas a incidir sobre os OIC abrangidos pelo artigo 22.º do EBF, dela ficando excluídos os OIC constituídos e que operem ao abrigo de uma legislação estrangeira.
16. Refira-se também que estas entidades estão sujeitas a tributação autónoma nos termos previstos no artigo 88.º do Código do IRC, conforme estipulado no nº 8 do artigo 22º do EBF.
(…)
17. Ou seja, a sujeição a Imposto do Selo, a par da tributação autónoma prevista no artigo 88.º n.º 11 do CIRC (ex vi do artigo 22.º, n.º 8, do EBF), serão então a contrapartida da não sujeição a IRC dos lucros distribuídos, prevista no n.º 3 do artigo 22.º do EBF.
(…)
28. (…) no caso em apreço, as alegadas diferenças de tratamento encontram-se plenamente justificadas dentro da sistematização e coerência do sistema fiscal português.
(…)
78. Deste modo, reitera-se que se reputa de ligeira e simplista a conclusão de que o regime de tributação dos OIC abrangidos pelo artigo 22.º do EBF se mostra contrária ao Direito da União Europeia e que contraria as disposições do TFUE relativas ao princípio da não discriminação em razão da nacionalidade, bem como relativas à livre circulação de capitais, porquanto, se baseia apenas no n.º 3 dessa disposição, alheando-se do disposto no n.º 8 do mesmo preceito, bem como da tributação em Imposto do Selo.”
II. SANEAMENTO
-
O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo uma vez que foi apresentado no prazo previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º do RJAT.
-
O objeto principal do processo reporta-se à declaração de ilegalidade do ato tributário, razão pela qual se verifica a competência deste tribunal arbitral, nos termos do artigo 2.º, n.º 1, alínea a), do RJAT.
-
As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, mostram-se legítimas e encontram-se regularmente representadas (cfr. artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT, e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).
-
O processo não enferma de nulidades e não foram identificadas questões prévias relativas ao pedido principal.
III. QUESTÕES DECIDENDAS
Conforme vimos, a questão decidenda consiste em determinar se, como pretende o Requerente, se verificam os pressupostos necessários para que seja declarada quer a ilegalidade do supracitado ato de retenção na fonte respeitante a IRC de 2020, bem como da decisão de indeferimento da reclamação graciosa apresentada com referência ao mesmo, solicitando que sejam, consequentemente, anulados, nos termos do disposto no artigo 2.º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei n.º 10/2011.
-
PROVA
IV.1 Factos provados
Em face das posições das partes expressas nos articulados, bem como dos documentos integrantes do processo administrativo, julgam-se como provados os seguintes factos pertinentes para a decisão da causa:
-
O Requerente é um fundo de investimento mobiliário constituído e a operar de acordo com o Direito norte-americano (cfr. doc. n.º 1 da reclamação graciosa que integra o processo administrativo instrutor).
-
A gestão do Requerente é levada a cabo pela entidade gestora B..., INC., sociedade de direito americano (cfr. doc. n.º 1 da reclamação graciosa que integra o processo administrativo instrutor).
-
Em 2020 o Requerente era residente, para efeitos fiscais, nos Estados Unidos da América, conforme cópia do certificado de residência que se junta como documento n.º 1.
-
O Requerente é qualificado pelo Direito norte-americano como Regulated Investment Company (RIC), beneficiando do tratamento fiscal previsto para os RIC no subcapítulo M do Internal Revenue Code.
-
De acordo com o subcapítulo M do Internal Revenue Code, a tributação do rendimento em questão ocorre na esfera dos participantes.
-
O Requerente investiu em participações sociais de sociedades com sede em Portugal.
-
Em 2020 o Requerente auferiu dividendos da sua participação no capital social daquelas sociedades, conforme se extrai dos documentos que se juntam como documento n.º 2.
-
Os dividendos foram objeto de retenção na fonte a título definitivo, tendo o Requerente suportado imposto à taxa de 15% (cf. artigo 94.º do Código do IRC e artigo 10.º da Convenção para Evitar a Dupla Tributação celebrada entre o Estado Português e os Estados Unidos da América), conforme tabela infra:
-
O Requerente não deduziu nos EUA o imposto retido na fonte em Portugal, conforme se extrai de cópia da declaração de rendimentos referente ao exercício de 2020 (Schedule J), que junta como documento n.º 3.
-
Em 21 de dezembro de 2021, o Requerente deduziu reclamação graciosa contra os atos de retenção na fonte em apreço. relativamente ao pedido de reembolso de retenção na fonte de IRC a título definitivo, entregue através da guia n.º ... (2020-05), no montante total de € 350.646,29.
-
Em 7 de novembro de 2023, o Requerente foi notificado do projeto de indeferimento da reclamação graciosa, conforme cópia que se junta como documento n.º 4.
-
Em 8 de janeiro de 2024, o Requerente foi notificado da decisão de indeferimento da reclamação graciosa, conforme cópia que se junta como documento n.º 5.
IV.2 Factos não provados
Não há factos relevantes para a decisão que se considerem como não provados.
IV.3 Fundamentação da matéria de facto
Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT). Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao atual artigo 596.º, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT). Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º, n.º7, do CPPT, a prova documental e o PPA juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.
-
MÉRITO
V.1 Da violação do Direito da União Europeia
Como vimos, no caso em apreço o Requerente alega que sofreu retenções na fonte, a título definitivo, à taxa de 25%, as quais ocorreram no estrito cumprimento dos dispositivos legais mencionados, muito embora, tais atos tributários de retenção na fonte se reputem de ilegais pela sua desconformidade com o Direito Europeu, o que implica, desde logo, a sua anulação e consequente reembolso do montante indevidamente retido acrescido dos respetivos juros indemnizatórios.
Neste contexto, como faz notar o Requerente, o TJUE produziu jurisprudência clara a concluir pela ilegalidade das diferenças desfavoráveis de tratamento, fiscais ou outras, comparativamente com o tratamento de OIC residentes.
Encontrando-se a aludida matéria de facto dada como provada, importa seguidamente determinar o direito aplicável aos factos subjacentes, de acordo com as questões supra.
O Requerente cita abundante jurisprudência do TJUE, bem como arbitral, mas importa em particular salientar que questão suscitada, no seu essencial, foi respondida pelo TJUE no aludido Acórdão proferido no âmbito do Processo C-545/19, que se encontra disponível para consulta em https://curia.europa.eu/juris/document/document.jsf;jsessionid=AED083FA8FA02CE95E7517CE8B347E6D?text=&docid=256021&pageIndex=0&doclang=pt&mode=req&dir=&occ=first&part=1&cid=422856, que damos como reproduzido.
As questões prejudiciais colocadas ao TJUE no Processo n.º 93/2019-T, de 9 de julho de 2019, que deu origem ao pedido de reenvio ao TJUE, poderiam ser suscitadas de forma idêntica nos presentes autos.
Como o TJUE começou por salientar, no Proc. C-545/19, exarado no Caso AllianzGI-Fonds AEVN “Uma vez que as questões são submetidas à luz tanto do artigo 56.° TFUE como do artigo 63.° TFUE, há que determinar, a título preliminar, se e, sendo caso disso, em que medida uma legislação nacional como a que está em causa no processo principal é suscetível de afectar o exercício da livre prestação de serviços e/ou a livre circulação de capitais.”
Ora, como o TJUE decidiu, “O artigo 63.° TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado‑Membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um organismo de investimento coletivo (OIC) não residente são objeto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção.”
Com efeito, como o TJUE conclui, “Ao proceder a uma retenção na fonte sobre os dividendos pagos aos OIC não residentes e ao reservar aos OIC residentes a possibilidade de obter a isenção dessa retenção na fonte, a legislação nacional em causa no processo principal procede a um tratamento desfavorável dos dividendos pagos aos OIC não residentes,” (cfr. Caso AllianzGI-Fonds AEVN, Proc. C-545/19, n.º 38).
Isto é, em conformidade com a decisão do TJUE, o regime previsto nos artigos 94.º n.º 1 alínea c), 94.º n.º 3 alínea b), 94.º n.º 4 e 87.º n.º 4, do CIRC, ao prever que os rendimentos obtidos em Portugal estão sujeitos a retenção na fonte liberatória a uma taxa de 25% (enquanto se prevê uma isenção de tributação aplicável, nos termos do artigo 22.º do EBF, a dividendos auferidos por OIC residentes), não é compatível com o princípio da livre circulação de capitais.
De salientar que a análise da forma como os proveitos gerados na esfera do OIC são distribuídos e tributados na esfera dos seus investidores é irrelevante para efeitos de apreciação da natureza discriminatória da legislação portuguesa e da factualidade em apreço, dado esta prever um tratamento fiscal autónomo e distinto para os OIC (residentes e não residentes) e os respetivos detentores de participações nos OIC.
Saliente-se que, como concluiu o TJUE neste Caso, o tratamento conferido em sede de Imposto do Selo e a sujeição a tributação autónoma não colocam os fundos de investimentos residentes numa situação objetivamente diferente dos fundos de investimento não residentes (cfr. n.ºs 53 a 58 do Acórdão). Tal como concluiu o TJUE, “a circunstância de os OIC não residentes não estarem sujeitos ao imposto do selo e ao imposto específico previsto no artigo 88.°, n.° 11, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas [tributações autónomas] não os coloca numa situação objetivamente diferente em relação aos OIC residentes no que se refere à tributação dos dividendos de origem portuguesa.” (cfr. Caso AllianzGI-Fonds AEVN, Proc-545/19, n.º 57).
Igualmente não se considera, contrariamente à AT, que uma tributação autónoma, com natureza anti-abuso, expressa e intencionalmente dirigida a entidades residentes em território português, seja considerada como parte integrante das regras gerais de tributação dos OIC residentes em Portugal.
De notar ainda que, como o TJUE concluiu, “a isenção da retenção na fonte dos dividendos em benefício dos OIC residentes não está sujeita à condição de os dividendos recebidos pelos organismos serem redistribuídos por estes e de a sua tributação na esfera dos detentores de participações sociais permitir compensar a isenção da retenção na fonte (v., por analogia, Acórdão de 10 de maio de 2012, Santander Asset Management SGIIC e o., C‑338/11 a C‑347/11, EU:C:2012:286, n.° 52, e de 10 de abril de 2014, Emerging Markets Series of DFA Investment Trust Company, C‑190/12, EU:C:2014:249, n.° 93)” (cfr. Caso AllianzGI-Fonds AEVN, Proc. C-545/19, n.º 79).
Como conclui, “[a] necessidade de preservar a coerência do regime fiscal nacional não pode, por conseguinte, ser invocada para justificar a restrição à livre circulação de capitais induzida pela legislação nacional em causa no processo principal”, que é em tudo idêntico ao caso dos presentes autos arbitrais (cfr. Caso AllianzGI-Fonds AEVN, Proc. C-545/19, n.º 81).
Como nota o Requerente, este entendimento tem vindo a ser sufragado pela jurisprudência arbitral, ainda em fase anterior ao aludido Caso do TJUE, como resulta, exemplificativamente, da decisão arbitral de 23 de setembro de 2019, proferida no âmbito do Processo n.º 90/2019-T, cujo sentido foi reproduzido posteriormente em diversas decisões arbitrais, na qual se concluiu que “Como tem sido sucessivamente afirmado pelo TJUE, a liberdade de circulação de capitais consagrada no artigo 63.º do TFUE deve ser interpretada em sentido amplo e as possibilidades de restrição à mesma, previstas e limitadas no artigo 65.º do mesmo Tratado devem ser indispensáveis à prossecução de interesses públicos ponderosos, devidamente fundamentadas e interpretadas de maneira restritiva. É sobre o Estado português que recai o ónus de provar que os seus objetivos fiscais e financeiros não poderiam ser prosseguidos por meios alternativos menos restritivos do que a diferença de tratamento fiscal em causa, ónus esse que manifestamente não foi cumprido pela argumentação expendida pela AT, sem prejuízo de se reconhecer o empenhado e competente esforço nesse sentido. A orientação de fundo seguida pela jurisprudência do TJUE sobre o âmbito normativo da liberdade de circulação de capitais, os seus limites e os limites dos limites, torna inviável essa missão probatória no caso concreto.”
Refira-se igualmente neste contexto que para efeitos da prevenção da evasão fiscal vigora a Convenção para Evitar a Dupla Tributação celebrada entre Portugal e os Estados Unidos da América, a qual permite a troca de informações (cfr. artigo 28.º), bem como o Foreign Account Tax Compliance Act (FATCA) (cfr. Resolução da Assembleia da República n.º 183/2016, de 5 de agosto).
Ademais, como faz notar o Requerente, o tratamento discriminatório ora em análise já foi amplamente analisado, quer pelo TJUE, quer pelos Tribunais nacionais. Tal como faz notar, esta posição tem vindo a ser reiterada pela jurisprudência arbitral, designadamente, pelas decisões arbitrais proferidas nos Processos n.º 528/2019-T, n.º 548/2019-T, n.º 926/2019-T, n.º 11/2020-T, n.º 922/2019-T, n.º 68/2020-T, n.º 716/2020-T, n.º 166/2021-T, n.º 32/2021-T, n.º 215/2021-T, n.º 345/2021-T, n.º 133/2021-T, n.º 214/2021-T, n.º 127/2021-T, n.º 821/2021-T, n.º 593/2021-T, n.º 134/2021-T, n.º 382/2021-T, n.º 368/2021-T e n.º 817/2021-T, n.º 370/2021-T, n.º 623/2021-T, n.º 622/2021-T, n.º 621/2021-T, n.º 734/2021-T e n.º 129/2022-T, n.º 115/2022-T, n.º 620/2021-T, n.º 121/2022-T, n.º 545/2021-T, n.º 624/2021-T, n.º 816/2021-T, n.º 83/2021-T, n.º 746/2021-T, n.º 128/2022-T, n.º 135/2022-T, n.º 116/2022-T, n.º 114/2022-T e 658/2022-T, entre outras.
Acresce que, recentemente, o próprio Supremo Tribunal Administrativo veio proferir um Acórdão uniformizador no sentido acima referido, concluindo que “a interpretação do art.º 63, do TFUE, acabada de mencionar é incompatível com o art.º 22, do E.B.F., na redação que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 7/2015, de 13/01, na medida em que limita o regime de isenção nele previsto aos OIC constituídos segundo a legislação nacional, dele excluindo os OIC constituídos segundo a legislação de outros Estados Membros da União Europeia.” (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo n.º 7/2024, de 26 de fevereiro).
Destarte, e tendo em vista o princípio do primado do Direito da União Europeia, conclui-se pela total procedência do presente pedido.
V.2 Do reenvio prejudicial para o TJUE
Neste contexto, peticiona o Requerente que, caso se entenda não proceder ao solicitado, porque está em causa uma questão de interpretação de Direito da União Europeia que suscita dúvidas, deverá submeter-se a respetiva interpretação ao TJUE competente para decidir a título prejudicial sobre a interpretação do Direito da União Europeia, ao abrigo do disposto no artigo 267.º do TFUE.
Em conformidade com as conclusões emanadas do Caso Schwarze (Proc. 16/65, Acórdão de 1 de Dezembro de 1965), o reenvio prejudicial é "um instrumento de cooperação judiciária ... pelo qual um juiz nacional e o juiz comunitário são chamados, no âmbito das competências próprias, a contribuir para uma decisão que assegure a aplicação uniforme do Direito Comunitário no conjunto dos estados membros."
Como se salienta nas RECOMENDAÇÕES à atenção dos órgãos jurisdicionais nacionais, relativas à apresentação de processos prejudiciais (2012/C 338/01, JO C 338/1, de 6 de novembro de 2012),
“O reenvio prejudicial é um mecanismo fundamental do direito da União Europeia, que tem por finalidade fornecer aos órgãos jurisdicionais dos Estados-Membros o meio de assegurar uma interpretação e uma aplicação uniformes deste direito em toda a União.
É doutrina oficial do TJUE, a partir do Caso Cilfit (Proc. 283/81, Acórdão de 6 de Outubro de 1982), que a obrigação de suscitar a questão prejudicial de interpretação pode ser dispensada quando:
i) a questão não for necessária, nem pertinente para o julgamento do litígio principal;
ii) o Tribunal de Justiça já se tiver pronunciado de forma firme sobre a questão a reenviar, ou quando já exista jurisprudência sua consolidada sobre a mesma;
iii) o juiz nacional não tenha dúvidas razoáveis quanto à solução a dar à questão de Direito da União, por o sentido da norma em causa ser claro e evidente.
Ora, é nosso entendimento de que se verifica no caso sub judice o preenchimento destas condições.
De facto, pode-se afirmar que o ato em questão é claro, encontrando-se devidamente aclarado pela jurisprudência do TJUE de forma firme ou por meio de jurisprudência consolidada.
Termos de acordo com os quais concluímos que a questão a resolver não carece de esclarecimento, não permanecendo dúvidas sobre a exata interpretação das normas ora em apreço, não se verificando no caso concreto os pressupostos de reenvio para o TJUE.
V.3 Do pagamento de juros indemnizatórios
Nestas circunstâncias, preconiza a jurisprudência dos nossos tribunais superiores que deve encontrar-se preenchido o pressuposto do “erro imputável aos serviços” que o artigo 43.º, n.º 1, da LGT, reclama para o nascimento da obrigação de juros indemnizatórios.
Como se refere no Acórdão do STA, no Processo n.º 049/16, de 10 de Maio, que acompanhamos: “Foi esta a solução sustentada pelo citado acórdão de 02-12-2015, do Pleno desta Seção, Proc. 01524. Como se escreveu no acórdão deste STA, de 30-05-2012, proc. 410:
“Diz o n.º 1 do art. 43.º da LGT, ao abrigo da qual foi proferida a condenação ora recorrida: «São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido».
Ou seja, quando um acto de liquidação de um tributo for declarado em processo de reclamação graciosa ou de impugnação judicial viciado por erro imputável aos serviços e do qual tenha resultado o pagamento de uma dívida tributária em montante superior ao legalmente devido, há direito a juros indemnizatórios, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 43.º da LGT.
Como salienta JORGE LOPES DE SOUSA, «[a] utilização da expressão «erro» e não «vício» ou «ilegalidade» para aludir aos factos que podem servir de base à atribuição de juros, revela que se teve em mente apenas os vícios do acto anulado a que é adequada essa designação, que são o erro sobre os pressupostos de facto e o erro sobre os pressupostos de direito.
Com efeito, há vícios dos actos administrativos e tributários a que não é adequada tal designação, nomeadamente os vícios de forma e a incompetência, pelo que a utilização daquela expressão «erro» tem um âmbito mais restrito do que a expressão «vício».
Por outro lado, é usual utilizar-se a expressão «vícios» quando se pretende aludir genericamente a todas as ilegalidades susceptíveis de conduzirem à anulação dos actos, como é o caso dos arts. 101.º (arguição subsidiária de vícios) e 124.º (ordem de conhecimento dos vícios na sentença) ambos do CPTT.
Por isso, é de concluir que o uso daquela expressão «erro» tem um alcance restritivo do tipo de vícios que podem servir de base ao direito a juros indemnizatórios» (Código de Procedimento e de Processo Tributário anotado e comentado, Áreas Editora, 6.ª edição, volume I, anotação 5 ao art. 61.º, pág. 531..)
O mesmo Autor explica as razões por que a LGT restringiu o direito a juros indemnizatórios aos casos de anulação por vício substancial e já não o reconheceu relativamente aos vícios de forma ou incompetência que determinem a anulação do acto: o reconhecimento de um vício destes últimos tipos «não implica a existência de qualquer vício na relação jurídica tributária, isto é, qualquer juízo sobre o carácter indevido da prestação pecuniária cobrada pela Administração Tributária com base no acto anulado, limitando-se a exprimir a desconformidade com a lei do procedimento adoptado para a declarar ou cobrar ou a falta de competência da autoridade que a exigiu.
Ora, é inquestionável que, quando se detecta um vício respeitante à relação jurídica tributária, se impõe a atribuição de uma indemnização ao contribuinte, pois a existência desse vício implica a lesão de uma situação jurídica subjectiva, consubstanciada na imposição ao contribuinte da efectivação de uma prestação patrimonial contrária ao direito.
Por isso, se pode justificar que, nestas situações, não havendo dúvidas em que a exigência patrimonial feita ao contribuinte implica para ele um prejuízo não admitido pelas normas fiscais substantivas, se dê como assente a sua existência e se presuma o montante desse prejuízo, fazendo-se a sua avaliação antecipada através da fixação de juros indemnizatórios a favor daquele.”
Como nota o Requerente, a cobrança de imposto em violação do Direito da União Europeia confere ainda ao Requerente o direito a juros, como, aliás, tem vindo a ser defendido pela jurisprudência do TJUE (cfr. neste sentido, entre outros, o Acórdão de 18 de Abril de 2013, Caso Mariana Irimie, Processo n.º C-565/11), bem como pela jurisprudência nacional (nomeadamente a decisão arbitral proferida no Processo n.º 114/2022-T).
Neste contexto, entendemos igualmente que deve proceder o pedido de pagamento de juros indemnizatórios por se encontrarem verificados os respetivos requisitos.
No que respeita ao termo inicial da contagem dos juros indemnizatórios, estando em causa um ato de retenção na fonte e tendo sido apresentada reclamação graciosa, deverá a Administração Tributária ser condenada no pagamento de tais juros desde a data em que se deveria ter pronunciado sobre a reclamação graciosa (cfr. artigo 57.º, n.º 1, da LGT). Com efeito, como se esclarece no acórdão de 07.04.2021 do Supremo Tribunal Administrativo, proferido no processo n.º 0360/11.8BELRS, “(…) afigura-se-nos justo e equitativo que a indemnização ao contribuinte (decorrente do pagamento de juros indemnizatórios, pela AT) não retroaja ao momento da prática do ato de retenção na fonte (da responsabilidade do substituto tributário), porquanto, tratando-se de uma situação de autoliquidação, só com a competente impugnação administrativa, atempada, os serviços da AT ficam em condições de conhecer e reparar uma cometida ilegalidade, sendo, a partir do momento em que não assumem a respetiva reparação, justificado o ressarcimento do sujeito passivo, decorrente de não receber e passar a dispor desde esse momento (que podia ter sido de viragem) do imposto indevidamente entregue ao Estado, através do mecanismo da substituição tributária. Neste ponto, apenas, resta problematizar se, na situação versada (ou equiparáveis), o dies a quo deve corresponder ao da data da apresentação da impugnação administrativa (reclamação graciosa e/ou recurso hierárquico) ou ao do momento em que os competentes serviços da AT se pronunciam/comunicam o resultado da pronúncia ao contribuinte. (...) julgamos, justo, adequado e seguro, assumir como marco, para identificar e fixar o disputado dies a quo, o prazo, fixado por lei, para a decisão do procedimento de reclamação graciosa (...), isto é, o período, atualmente, de 4 meses”.
No caso vertente, tendo a reclamação graciosa sido apresentada em 21.12.2021 a administração tributária deveria ter-se pronunciado até 21.04.2022, ou seja, no prazo de quatro meses (cf. artigo 57.º, n.º 1, da LGT). Pelo que, são devidos juros indemnizatórios desde 22.04.2022 e até à data do processamento da respetiva nota de crédito. (cf. artigo 61.º, n.º 5, do CPPT).
VI. DECISÃO
Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral julgar totalmente procedente o pedido arbitral formulado e, em consequência:
a) Julgar procedente o pedido de declaração de ilegalidade do atos de retenção na fonte de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas incidentes sobre o pagamento de dividendos relativos ao ano de 2020, acima identificado e dado como provado, num montante total de € 350.646,29 (trezentos e cinquenta mil, seiscentos e quarenta e seis euros e vinte e nove cêntimos), declarando ilegal a decisão de indeferimento expresso do pedido de reclamação graciosa e, em consequência, anular o ato tributário impugnado;
b) Condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira a pagar à Requerente juros indemnizatórios, relativamente à quantia de € 350.646,29, contados desde 22.04.2022 e até à data de processamento da nota de crédito.
Valor da causa
Fixa-se o valor do processo em € 350.646,29 (trezentos e cinquenta mil, seiscentos e quarenta e seis euros e vinte e nove cêntimos), de harmonia com o disposto nos artigos 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”), 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 306.º, n.º 2, do Código de Processo Civil.
Custas
Nos termos dos artigos 12.º, n.º 2 e 24.º, n.º 4 do RJAT e 4.º, n.º 5, do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e Tabela I anexa a esse Regulamento, fixa-se o montante das custas em € 6120,00, que fica a cargo da Requerida (artigo 536.º, n.º 3, do CPC).
Lisboa, 05 de novembro de 2024
O Árbitro Presidente
José Poças Falcão
Os Árbitros Vogais
Clotilde Celorico Palma
(Relatora)
Jesuíno Alcântara Martins