Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 102/2024-T
Data da decisão: 2024-11-12  Selo  
Valor do pedido: € 2.433.043,00
Tema: Imposto do selo (verba 17.3.4 da TGIS); livre circulação de capitais; compatibilidade com o direito da União.
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SUMÁRIO:

  1. O artigo 5º, n.º 2, alínea a), da Diretiva 2008/7/CE do Conselho, de 12 de fevereiro de 2008, relativa aos impostos indiretos que incidem sobre as reuniões de capitais, deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação nacional que prevê a incidência de um imposto do selo, por um lado, sobre a remuneração que uma instituição financeira recebe de uma sociedade de gestão de fundos comuns de investimento pela prestação de serviços de comercialização para efeitos de novas entradas de capital destinadas à subscrição de participações de fundos recentemente emitidas e, por outro, sobre os montantes que essa sociedade de gestão recebe dos fundos comuns de investimento na medida em que esses montantes incluam a remuneração que a referida sociedade de gestão pagou às instituições financeiras por esses serviços de comercialização. (Ac. TJUE de 22 de dezembro de 2022 no processo C‑656/21).
  2. É contraria à sua ratio e não tem suporte mínimo no elemento literal das suas normas o entendimento de que a Diretiva 2008/7/CE apenas é aplicável aos chamados fundos comuns de investimento e não outros a tipos de fundos de investimento.

 

 

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

A..., S.A, NIPC..., com sede na Rua..., n.º ..., ..., ..., ...-... Lisboa, em representação de

- Fundo de Investimento Mobiliário Aberto de Obrigações ... (anteriormente com outras denominações, designadamente “B... Fundo de Tesouraria”), NIPC ..., e C...- Fundo de Investimento Mobiliário Aberto de Obrigações (inicialmente denominado “D...- Fundo de Investimento Mobiliário Aberto”), NIPC ..., naquele fundido em 07.05.20211;

 - Fundo de Investimento Mobiliário Aberto de Obrigações Taxa Variável E..., NIPC ...;

- Fundo de Investimento Mobiliário Aberto F... (anteriormente com outras denominações, designadamente “G...”), NIPC...;

 -  Fundo de Investimento Mobiliário Aberto de Poupança Reforma H..., NIPC ...;

 - Fundo de Investimento Mobiliário Aberto de Poupança Reforma I..., NIPC...;

- Fundo de Investimento Mobiliário Aberto J..., NIPC ... e K...- Fundo de Investimento Mobiliário Aberto de Acções, com o número de identificação fiscal ..., naquele fundido em 07.05.2021, e Fundo de Investimento Mobiliário Aberto de Ações L..., NIPC ..., naquele primeiro igualmente fundido, em 12.05.2021;

- Fundo de Investimento Mobiliário Aberto M..., NIPC..., e N...- Fundo de Investimento Mobiliário Aberto, com o número de identificação fiscal ..., e O...- Fundo de Investimento Mobiliário Aberto, com o número de identificação fiscal..., naquele primeiro fundidos em 14.01.20224 ;

 - Fundo de Investimento Mobiliário Aberto P..., NIPC ..., e Q...- Fundo de Investimento Mobiliário Aberto, NIPC..., naquele fundido em 17.12.20215;

- Fundo de Investimento Mobiliário Aberto R..., NIPC ..., e S...- Fundo de Investimento Mobiliário Aberto, NIPC ..., naquele fundido em 17.12.2021;

- Fundo de Investimento Mobiliário Aberto T..., NIPC ...;

- Fundo de Investimento Mobiliário Aberto U..., NIPC...;

- Fundo de Investimento Mobiliário Aberto V..., NIPC...;

- Fundo de Investimento Mobiliário Aberto W..., NIPC...; -

 Fundo de Investimento Mobiliário Aberto X..., NIPC...;

 - Fundo de Investimento Mobiliário Aberto Y..., NIPC ...;

 - Fundo de Investimento Mobiliário Aberto de Obrigações de Poupança Reforma Z..., NIPC ...;

- AA...- Fundo de Investimento Mobiliário Aberto de Obrigações, NIPC ...;

- BB...- Fundo de Investimento Mobiliário Aberto de Obrigações, NIPC ...;

- CC... - Fundo de Investimento Imobiliário Fechado, NIPC ...;

 - DD... - Fundo de Investimento Imobiliário Fechado, NIPC...;

- Fundo de Investimento Imobiliário Fechado EE..., NIPC ...;

- Fundo de Investimento Aberto de Poupança FF..., NIPC...;

 

Veio, nos termos legais, requerer a constituição de tribunal arbitral.

 

É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

 

             I – RELATÓRIO

 

  1. O pedido

 

Os Requerentes peticionam a declaração da ilegalidade do indeferimento do pedido de revisão oficiosa supra melhor identificado e, bem assim, a ilegalidade das autoliquidações de imposto do selo repercutido nos requerentes, supra identificadas, relativas a operações financeiras de comercialização de subscrições de UP dos Fundos realizadas pelo GG..., referentes aos períodos dos meses (de facturação das comissões e correspondente guia do imposto do selo) de julho de 2019 a junho de 2021, incluindo a duplicação da liquidação incluída na refacturação respeitante a 2019 pela A... e HH... aos Fundos (efectuada que foi novamente com imposto do selo), dos valores destas operações a si debitados pelo Banco, imposto do selo no montante total de € 2.433.043,00, com a sua consequente anulação, com todas as consequências legais, designadamente o reembolso aos requerentes desta quantia, acrescido de juros indemnizatórios à taxa legal contados desde 08.08.2024 até ao seu integral reembolso[1].

 

 

  1. O litígio

 

Considera a Requerente, em suma, que as autoliquidações (retenções na fonte liberatórias) efetuadas pelo Banco GG... (GG...), a seguir dadas por provadas, cobradas à Requerente e a uma sua antecessora e, a partir de determinado momento,  aos fundos por ela geridos, violam o direito da União na medida em que são desconformes com a alínea a) do n.º 2 do artigo 5.º da Diretiva n.º 2008/7/CE, de 12 de fevereiro de 2008, relativa aos impostos indiretos que incidem sobre as reuniões de capitais. Invocam, para tal, o Acórdão do TJUE C-656/21, IMGA, de 22 de dezembro de 2022.

 

A Requerida, na sua resposta:

 

  1. Por exceção, invoca

- a intempestividade do pedido de revisão oficiosa deduzido pela Requerente, em termos já constantes da fundamentação da decisão de rejeição liminar de tal pedido;

- subsidiariamente, a intempestividade parcial do pedido;

- sob a designação de “impugnação direta dos atos de autoliquidação”, a falta do pressuposto processual constituído por reclamação prévia necessária;

- a incompetência do tribunal por incorreção do meio processual utilizado.

 

  1. Por impugnação

 

A Requerida alega:

- a falta de prova de que as comissões em causa, cobradas pelo banco, respeitem exclusivamente à comercialização de fundos (e não à remuneração de quaisquer outros serviços);

- a existência de diferenças significativas entre os valores de Imposto do Selo indicados pela Requerente como tendo sido liquidados pelo banco em razão de tais comissões e os valores constantes das declarações periódicas (DMIS) entregues pelo banco;

- que alguns dos fundos administrados pela Requerente não se enquadram na Diretiva 2009/65/CE, qualificando-se, ao invés, como organismos de investimento alternativo (OIA), nos termos do RGOIC (revogado pelo RGA, aprovado pelo DL n.º 27/2023, de 28 de abril), ou FIA´s nos termos da Diretiva 2011/61/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 8 de junho de 2011), pelo que não lhes é aplicável o decidido pelo TJUE no referido processo C-656/21.

 

 

 

  1. Saneador

 

O processo não enferma de nulidades ou irregularidades.

Não existem outras questões que obstem ao conhecimento do mérito da causa para além das exceções invocadas pela Requerida, que a seguir se analisarão.

 

  1. Incorreção do meio processual

 

A Requerida alega, em suma, que tendo o pedido de revisão oficiosa sido indeferido por intempestividade, o meio de reação judicial próprio seria a ação administrativa (para cuja apreciação os tribunais arbitrais são incompetentes em razão da matéria).

Esta argumentação é conhecida, tendo já sido objeto de análise por numerosas decisões, judiciais e arbitrais, as quais concluíram no sentido da sua improcedência.

Citamos, a título de meros exemplos:

O meio processual tributário de impugnação judicial é de acionar em todas as situações onde se visem atos relativos a questões tributárias que impliquem, contendam com a apreciação (de qualquer ilegalidade) do ato de liquidação, ainda que, no mesmo processo se tenham de versar e dirimir questões relacionadas, em exclusivo, com um procedimento de cariz administrativo, quando este tenha tido, previamente, lugar.

Por contraposição, o meio processual da ação administrativa só pode utilizado quando as questões tributárias levantadas (no procedimento administrativo e no tribunal) não impliquem apreciar-se da legalidade do ato de liquidação (ac. STA de 18/12/2020 no proc. 0608/13).

e

A impugnação judicial é o meio processual adequado quando se pretende discutir a legalidade da liquidação, ainda que seja interposta na sequência do indeferimento do meio gracioso e independentemente do(s) seu(s) fundamento(s) (formais ou de mérito) (Ac. do STA de 13-01-2021 no proc.0129/18).

 

No caso, a decisão indeferimento do pedido de revisão oficiosa foi o resultado de uma tomada de posição sobre a consolidação na ordem jurídica das liquidações em causa. Por entender que as mesmas só poderiam ser objeto de apreciação administrativa no prazo de dois anos e não o prazo de quatro anos previsto no art. 78º, nº 1, da LGT, a AT concluiu pelo indeferimento liminar do pedido de revisão oficiosa. O que esteve em causa foi, pois, a apreciação da legalidade da liquidação, um juízo sobre a (im)possibilidade de a repor.

Diferente – por a decisão não envolver qualquer apreciação da liquidação – seria, por exemplo, o caso da recusa de apreciação de um pedido de revisão oficiosa porque apresentado para além do prazo de quatro anos (prazo legal “máximo”). Então o meio de reação contencioso adequado seria a ação administrativa.

Improcede, pois, esta exceção.

 

 

  1. incompetência material e intempestividade para a impugnação direta dos atos de autoliquidação

 

A AT exceciona invocando a falta da reclamação graciosa necessária prevista no art. 132º do CPPT.

Tal argumentação louva-se numa jurisprudência antiga, manifestamente, ultrapassada.

A “equiparação”, para este efeito, de um pedido de revisão oficiosa (tal como feito pela Requerente) à apresentação de um pedido de reclamação graciosa, propugnada pela doutrina[2] e pela jurisprudência[3] , é fácil de compreender se pensarmos na razão de ser das reclamações necessárias.

Antes, recordaremos que a regra, hoje, é a da impugnabilidade imediata dos atos administrativos lesivos, ou seja, o caráter facultativo das reclamações e outras formas de recursos administrativos.

A reclamação prevista no art. 132.º do CPPT obedece a uma razão lógica: seria totalmente incongruente a administração tributária surgir, sem mais, como requerida num processo, judicial ou arbitral, visando a anulação de um ato que não praticou (a autoria é do substituto total) mas a que a lei atribui os efeitos de um ato administrativo (apuramento do quantitativo de imposto exigível) tal qual tivesse sido por ela praticado.

A necessidade da reclamação impõe-se como oportunidade de a administração, pela primeira vez se pronunciar. Dando razão ao particular, não haverá necessidade de o processo judicial ter lugar. Se a AT não der razão ao particular (o que deverá fundamentar) teremos então duas partes sufragando entendimentos diferentes, ou seja, um litígio que caberá ao tribunal dirimir.

Ora é bom de ver que as razões que justificam a necessidade – repete-se excecional - de um recurso administrativo prévio à interposição do recurso judicial se encontram totalmente satisfeitas em caso de pedido de revisão oficiosa. Também aqui a administração, antes da intervenção do tribunal, é chamada a pronunciar-se sobre a legalidade de um ato que não praticou, mas cujos efeitos lhe são imputados.

Daí a sua equiparação à reclamação necessária enquanto condição (pressuposto processual) do processo de impugnação.

Improcede, pois, esta exceção.

 

  1. Da inimpugnabilidade dos atos de autoliquidação

 

A AT insiste na invocação desta exceção com base numa argumentação que aparece recorrentemente formulada, nos mesmos termos, em muitos outros processos. Isto não obstante a questão já ter sido apreciada por diversas vezes pelo STA, pelos TCA’s e por numerosos tribunais arbitrais, todos concluindo em sentido diferente do propugnado pela AT.

Dito de forma simples, temos que a AT considera que, por não ter tido qualquer intervenção nas liquidações impugnadas – porque praticadas pelo banco - não existe erro imputável aos serviços e, portanto, a Requerente não pode aproveitar do prazo de quatro anos previsto no nº 1 do art. 78º da LGT.

Apreciando,

Há, em primeiro lugar, que precisar qual a posição da Requerente – melhor, dos fundos por ela representados - nas relações jurídico-tributárias em causa:  - eles surgem como substituídos, alguém que, formalmente, é um terceiro relativamente à relação jurídico-tributária, ainda que titular de um interesse próprio enquanto contribuinte (aquele que suporta o encargo económico do tributo).

No caso, formalmente, o sujeito passivo é o banco que prestou os serviços que deram origem à liquidação de IS, ao qual cumpriam, em exclusivo, as obrigações, declarativas e de pagamento relativas ao imposto.

O mesmo é dizer que, tendo presente, em primeiro lugar, o elemento literal da norma, o Requerente, por não ser sujeito passivo, não pode ser considerado como diretamente afetado pela revogação do n.º 2 do art. 78.º da LGT, que era relativo, apenas, aos sujeitos passivos.

Porém, a questão deve ser colocada noutros termos, não num plano formal, mas sim num plano substancial: o sujeito passivo sobre quem incide a obrigação de liquidar o imposto, que não é contribuinte, deve ser considerado como sendo um “serviço” para efeitos do n.º 1 de tal norma, o mesmo é dizer, o erro por ele cometido numa liquidação deverá ser equiparado, para efeitos de reclamação graciosa, ao erro cometido pela própria AT?

Para responder a esta questão haverá que ter em consideração, nomeadamente: (i) o substituto exerce, por força de lei, funções que, materialmente, são de administração fiscal, praticando atos de liquidação aos quais a lei confere a mesma força jurídica de que gozam as liquidações praticadas pela administração fiscal; (ii) em ambos os casos, estamos perante hétero-liquidações, procedimentos a que o substituído é alheio, liquidações que, não só não são por ele praticadas, como sobre as quais não tem qualquer possibilidade de controlo.

A equivalência material entre as duas situações é evidente. No silêncio de lei expressa, há que concluir que distinguir as duas situações, para efeitos do exercício do direito à revisão oficiosa, criaria uma injustificada discriminação dos contribuintes consoante o grau de “privatização” das funções de administração discal (de liquidação) presentes em cada caso.

 

Esta é também a posição jurisprudencialmente dominante, ainda que com nuances ao nível da fundamentação. Citamos, por todos, do sumário do ac. do STA de 09-11-2022, proc. 087/22: assim, nos casos como o dos autos, em que há lugar a retenção da fonte, a título definitivo, de quantias por conta de imposto de selo, cobrado no âmbito de operações de concessão de crédito, e suportado pelas Recorrentes, o erro sobre os pressupostos de facto e de direito dessa retenção é susceptível de configurar “erro imputável aos serviços”, para efeitos de apresentação, no prazo de 4 anos, do pedido de revisão dos atos tributários, nos termos do nº1 do artigo 78º da Lei Geral Tributária.

 

Improcede, pois, a exceção da intempestividade total do pedido de revisão oficiosa cujo indeferimento constituiu a via de acesso da Requerente a este tribunal arbitral (o objeto imediato do presente processo arbitral).

 

 

(IV)  Intempestividade parcial do pedido de revisão oficiosa

 

Subsidiariamente, a Requerida invoca a intempestividade do pedido de revisão oficiosa, apresentado em 07-08-2023, no relativo às liquidações anteriores a 07-08-2019.

O que faz nos seguintes termos:

 Com efeito, no que respeita à A..., confirma-se que o GG... procedeu às liquidações de Imposto do Selo, alegadamente incidentes sobre a cobrança de comissões de comercialização dos Fundos por aquela geridos, em 08-07-2019, no valor de € 63 981,22, entregue nos cofres do Estado pela guia multi-imposto n.º ...;

No que respeita à HH..., confirma-se que o GG... procedeu às liquidações de Imposto do Selo, alegadamente incidentes sobre a cobrança de comissões de comercialização dos Fundos por aquela geridos, em 01-07-2019, no valor de € 1 834,96, entregue nos cofres do Estado pela guia -imposto n.º... .

 

Tais faturas, juntas ao requerimento inicial como doc. 14, referem-se aos serviços prestados pelo banco (GG...) no mês anterior. Como resulta também de tais documentos, os valores titulados por tais faturas, incluindo os correspondentes ao imposto do selo, foram pagos (assumimos que por débito em conta) no dia da emissão das faturas.

Pensamos poder assim concluir que, por força do disposto na al. h) do nº 11 do artº 5º do CIS, as datas em que ocorreu o pagamento das faturas em causa correspondem às datas do nascimento da obrigação tributária[4].

Porém, nascimento da obrigação tributária (ocorrência do facto gerador) e liquidação do imposto não se confundem.

A liquidação é necessariamente posterior ao momento em que aconteceu o facto gerador de imposto, implicando uma operação autónoma de quantificação. Até porque a generalidade dos impostos são hoje ad valorem, ou seja, o respetivo montante é quantificado em função do valor (do “preço”) da operação constante das respetivas faturas

A liquidação compete, neste tipo de operações, à entidade bancária, a qual deve entregar o imposto ao Estado até imposto em causa até ao dia 20 do mês seguinte (art. 44.º, n.º 1 do CIS). Mês seguinte que, no caso, era agosto de 2019

Assim sendo, e na falta de disposição legal em sentido diferente, há que concluir que o momento da autoliquidação, legalmente relevante, é o momento (a data limite) da entrega do imposto ao Estado, a qual, no caso, poderia ocorrer até, no caso, 20 de agosto de 2019.

 

Ora, o prazo para a interposição de um pedido de revisão ofícios não se conta a partir da data do nascimento da obrigação tributária, mas sim da data da liquidação do imposto[5].

Assim sendo, não é possível sufragar a tese da Requerida da intempestividade do pedido de revisão oficiosa mesmo que apenas no tocante às faturas emitidas em julho de 2019 pois, muito embora delas conste o valor de IS, não constituem uma (auto) liquidação de imposto, pelo menos no plano da relação jurídica fiscal que por força de lei de estabelece entre o sujeito passivo (o banco prestador de serviços) e o Estado.

Improcede, pois, a exceção da intempestividade parcial, do pedido de revisão oficiosa subjacente ao presente pedido arbitral.

 

II – PROVA

 

II.1 - Factos provados

 

  1. A Requerente é uma sociedade gestora de organismos de investimento coletivo, que administra diversos fundos de investimento mobiliários abertos e fundos imobiliários.
  2. A Requerente é sucessora universal, por fusão, do HH..., S.A. (a seguir, HH...), com o NIPC ... .
  3. A Requerente apenas exerce uma atividade própria de comercialização insuficiente, dado ser economicamente inviável dispor de uma estrutura disseminada pelo país para efeitos de comercializar junto do público.
  4. Daí que, como é prática no sector, se socorra de instituições financeiras, maxime bancos, com uma rede de balcões disseminada pelo país e com forte experiência na intermediação financeira e na colocação de valores mobiliários junto do público,
  5. Foram faturados pelo Banco GG..., S.A. (GG...) à Requerente (A...) e à sociedade gestora HH... valores correspondentes a tais prestações de serviços.
  6. Relativamente a 2019, estas comissões e liquidações de imposto do selo foram faturadas e cobradas pelo banco (GG...) à A... e à HH..., as quais, depois, as refaturavam aos fundos (os ora Requerentes) e aos quais respeitavam, essas UP comercializadas pelo banco BST.
  7.  A partir de 2020, inclusive, uma alteração no regime legal dos fundos e respetivas sociedades gestoras, permitiu que as comissões de comercialização de subscrição de UP fossem faturadas diretamente pelas entidades comercializadoras (no caso o GG...), aos fundos de investimento.
  8. Relativamente aos serviços prestados entre junho e dezembro de 2019, o banco (GG...) faturou à A... e à HH... os valores discriminados no quadro que se segue, tendo procedido à entrega ao estado do Imposto de Selo, retido na fonte, também discriminado em tal quadro, através das guias de pagamento também aí identificadas[6]

 

 

 

  1. Relativamente aos serviços prestados entre janeiro e dezembro de 2020, o banco (GG...) faturou à A... e à HH... os valores discriminados no quadro que se segue, tendo procedido à entrega ao estado do Imposto de Selo, retido na fonte, também discriminado em tal quadro, através das guias de pagamento também aí identificadas

 

 

 

j) Relativamente aos serviços prestados entre janeiro e maio de 2021, o banco (GG...) faturou à A... e à HH... os valores discriminados no quadro que se segue, tendo procedido à entrega ao estado do Imposto de Selo, retido na fonte, também  discriminado em tal quadro, através das guias de pagamento também aí identificadas

 

 

 

 

  1. O total de imposto do Selo discriminado nos quadros anteriores (relativos ao período de julho de 2019 a junho de 2021 perfaz o montante de € 1.912.768,84.

 

  1. A A..., enquanto sociedade gestora dos fundos ora requerentes, refaturou a estes o valor das comissões que lhe haviam sido faturadas pelo banco, com liquidação de imposto de selo, como se segue:

 

 

 

 

  • Perfazendo um total de Imposto do Selo reclamado de € 507.987,74.
  • A HH..., sociedade que foi também gestora dos fundos ora requerentes, posteriormente incorporada por fusão na A..., refaturou a esses fundos as comissões que lhe haviam sido faturadas pelo banco, relativas a junho a dezembro de 2019, com liquidação de imposto de selo, como se segue:

 

 

 

 

  • Perfazendo um total de € 12.286,39:
  • O valor total do imposto de Selo ora impugnado é, assim, de € 2.433.043,00 € (1.912.768,84 + € 507.987,74 + € 12.286,39);
  • As comissões em causa (e consequentes liquidações de IS) são relativas à comercialização pelo Banco GG... de unidades de participação nos fundos ora requerentes.
  • Como resulta dos quadros anteriores, a Requerente e a sua antecessora HH... refaturavam tais comissões, incluindo Imposto do selo incidente sobre as mesmas, aos fundos que geriam e aos quais respeitavam.
  • A partir de 2020 inclusive, em virtude de alteração no regime legal dos fundos e respetivas sociedades gestoras, as comissões de comercialização de subscrição de UP passaram a poder ser diretamente faturadas pelas entidades comercializadoras, como os bancos, aos fundos de investimento.
  • A Requerente interpôs, em 07.08.2023, pedido de revisão de revisão oficiosa das liquidações que ora impugna, o qual foi expressamente indeferido em 25-10-2023.
  • O indeferimento, apelidado de rejeição liminar, teve os fundamentos que se podem assim resumir (transcrevemos da “resposta”): Aqui chegados, a nossa conclusão não pode ser outra que não aquela que comporte a rejeição liminar por intempestividade do pedido de revisão ora formulado nos autos pela Contribuinte, ora Requerente, uma vez que o pedido se encontra insindicável por se encontrar esgotado o prazo vertido no art. 78.º da LGT para o efeito.» ;. Não se verifica que as liquidações ora contestadas enfermem de erro, de facto ou de direito, imputável aos serviços da Autoridade Tributária e Aduaneira, que possibilite o prazo de quatro anos para ser efetuada a sua revisão oficiosa, pelo que a falta do pressuposto processual da tempestividade do pedido, propõe-se a sua rejeição liminar por intempestividade, e consequente arquivamento do mesmo.»
  • Houve adiamentos na implementação da aplicação informática DMIS (declaração mensal de imposto do selo) prevista no artigo 52.º-A do Código do Imposto do Selo, cuja entrada em funcionamento só ocorreu em 1 de janeiro de 2021.
  • Como forma de minorar o problema, foi concedido aos sujeitos passivos, nomeadamente os da atividade bancária e seguradora, a possibilidade de utilizarem o NIF 999 999 990 para efeitos do preenchimento da DMIS no campo da identificação do titular (despacho n.º 42/2021-XXII, de 12 de fevereiro, prorrogado pelo Despacho n.º 224/2021-XXII, de 8 de julho, e pelo Despacho n.º 33/2022-XXII, de 28 de janeiro).
  • Relativamente às comissões ora em causa, foi alocado a esse número, nas respetivas DMIS, Imposto do Selo no valor de € 528 952,89.
  • Não preenchem os requisitos, previstos no nº 2 do art. 1º  e art. 50º da Diretiva 2009/65/CE, necessários para poderem ser classificados como organismos comuns de investimento coletivo em valores mobiliários (OICVM), os seguintes Requerentes: DD... Fundo de Investimento Imobiliário Fechado, NIPC ...; Fundo Investimento Imobiliário Fechado EE..., NIPC ...; CC...- Fundo de Investimento Imobiliário, NIPC ...; Fundo de Investimento Alternativo Aberto de Poupança Reforma H..., NIPC...; Fundo de Investimento Alternativo Aberto de Poupança Reforma I..., NIPC ...; Fundo de Investimento Mobiliário Aberto FF... SA, NIPC... .
  • As liquidações de Imposto do Selo (retenções na fonte liberatórias) a eles referentes ascendem a € 391 449,73 (€ 108 394,83 relativos a 2019 e € 283 054,90, relativos a 2020).

 

 

II.2 – Fundamentação

 

  1. Os factos dados como provados constam da documentação junta aos autos e não foram objeto de qualquer divergência entre as partes, com exceção do dado como provado em g), que a AT impugnou invocando falta de prova cabal e inequívoca que as supostas comissões de comercialização respeitam exclusivamente à comercialização de fundos e não à remuneração de quaisquer outros serviços financeiros.

Alega a AT que, apesar dos Requerentes juntarem cópias das faturas emitidas pelo GG...,, faturas essas que alegadamente suportam o valor peticionado - documento n.º 14 – “Facturas com imposto do selo do GG...”, a verdade, porém, é que, com exceção de uma, em nenhuma dessas faturas aparece evidenciado a cobrança de qualquer comissão designada de “comercialização (ou sequer distribuição)” (…) Nada indica que estejamos perante ou se tratem de verdadeiras “comissões de comercialização”, na medida em que as faturas que suportam o pedido se referem apenas a “Comissões de Fundos de Investimento…”, não concretizando em sítio nenhum de que tipo de comissões estamos a falar.

 

Apreciando:

Haverá que atentar, nomeadamente, no doc. 15 junto ao requerimento inicial, uma declaração da autoria (não impugnada) do Banco GG... referindo a razão de ser de tais comissões e contendo a sua discriminação, com indicação do número de cada uma das correspondentes faturas, suas datas e valores e, ainda, quadros discriminativos da imputação dos montantes constantes de cada uma dessas faturas a cada um dos fundos geridos pela Requerente (e pela sociedade HH..., nela fundida por incorporação).

A clareza e a minúcia dos documentos emitidos pelo banco GG... parecem não oferecer dúvidas. Acresce que a Requerente juntou aos autos cópias dos “documentos de suporte” dos dados constantes da declaração do banco, como sejam cópias das faturas por este emitidas, cópias das guias de pagamento, etc.

O tribunal aceita essa declaração por ter sido emitida por entidade idónea, sem interesse económico direto na causa.

 

Acresce:

A argumentação da Requerida relativamente à insuficiência de prova enferma de um paradoxo. Resulta do extrato da resposta acima transcrito que a AT entende que a prova da natureza das comissões em causa deveria ser feita pelos dos descritivos das faturas (os quais, no entender da AT, deveriam mencionar “comissões de comercialização” ou “comissões de distribuição” e não “comissões de fundos de investimento”).

Começaremos por salientar que a emissão de uma fatura é, materialmente, uma declaração do emitente, no caso o  GG... . Não nos parece que, sem existirem razões concretas para tal, se deva diferenciar, em termos de valor probatório, entre declarações feitas por uma mesma entidade  consoante constem de uma fatura ou de um documento posterior. Aliás, é jurisprudência corrente que a razão de ser da emissão de uma fatura pode ser esclarecida por outros meios de prova, nomeadamente testemunhal, o que aliás é o único entendimento conforme ao princípio da verdade matéria que enforma o processo tributário.

 

Ainda:

Sendo o banco (GG...) o sujeito passivo da obrigação de pagamento do Imposto do Selo, a aceitação do por ele declarado resulta do previsto no art. 75º da LGT, sendo que não foram alegados quaisquer factos que tornem duvidosa a sua correspondência à realidade.

 

O ónus da prova da natureza das comissões em causa recai sobre a AT, contrariamente ao que esta entendeu, nomeadamente em sede de indeferimento do pedido de revisão oficiosa.

O que está em causa é saber se as comissões em causa decorrem de operações que as tornem sujeitas a imposto do selo (a existência de uma situação de sujeição implica que os factos em causa tenham uma natureza de não resulte a sua exclusão da previsão da TGIS por ofensa a normas, hierarquicamente superiores, do Direito da União). Está em causa, portanto, um pressuposto da incidência do imposto (e não a invocação de uma isenção) que a AT afirma ser devido, logo a existência de um facto cuja prova caberia à AT.

 

A veracidade dos factos a que se refere a demais documentação, nomeadamente das cópias das guias de pagamento ao Estado, não foi posta em causa.

 

O tribunal teve também em conta a declaração do banco junta aos autos “explicativa” dos factos dados como provados em u), v) e w).

Assim, a  objeção (de índole factual), formulada pela AT, de existirem discrepâncias significativas entre os valores de IS cuja restituição é peticionada pela Requerente (correspondentes às  declarações do Banco GG... juntas aos autos) e os que figuram nas DMIS não pode ser havida como constituindo um indicio da falta de correspondência à realidade do alegado e peticionado pela Requerente,  pois os referidos factos, apreciados  segundo a livre apreciação deste tribunal, tornam perfeitamente compreensível a razão de tais divergências, resultado de questões de índole burocrática que em nada contendem com o real valor das liquidações (retenções na fonte liberatórias) impugnadas.

Diferentemente do que alega a AT, irreleva totalmente para apreciação desta factualidade, no contexto dos presentes autos, saber quem foi o “culpado” pelo atraso na implementação dos novos sistemas informáticos.

 

Não se entende o afirmado no ponto 108º e seguintes da resposta da AT: Assim, quanto à diferença entre os valores de Imposto do Selo peticionados para o período compreendido entre janeiro e junho de 2021 e os valores efetivamente declarados nas DMIS entregues pelo GG..., na qualidade de sujeito passivo, nos cofres do Estado, no montante de € 496 675,71, tal quantia é inimpugnável, ou, mesmo que assim não se entenda há ineptidão do ppa nesta parte.

Não se coloca aqui uma qualquer questão de “inimpugnabilidade”, mas sim uma questão de prova quanto aos montantes de imposto entregues ao estado.

 

 

II.2- Factos não provados

Não foram detetados factos tidos por não provados com relevo para a decisão da causa.

 

 

III – O DIREITO

 

Indeferidas que foram as exceções invocadas e consideradas improcedentes a impugnação da Requerida quanto à prova da natureza das comissões em causa e do valor do imposto em causa, há que responder a duas questões de direito:

 

  1. A sujeição a Imposto do Selo das comissões de comercialização de unidades de subscrição em fundos de investimento selo viola o direito da União?

 

Sobre esta questão existe jurisprudência do TJUE que vincula este tribunal arbitral.

 No processo n.º C-656/21, em 22 de dezembro de 2022, o TJUE decidiu;

28 - Todavia, tendo em conta o objetivo prosseguido por esta diretiva, o artigo 5.° da mesma deve ser objeto de uma interpretação latu sensu, para evitar que as proibições que prevê sejam privadas de efeito útil.

Assim, a proibição da imposição das operações de reunião de capitais aplica‑se igualmente às operações que não estão expressamente referidas nesta proibição, uma vez que essa imposição equivale a tributar uma operação que faz parte integrante de uma operação global do ponto de vista da reunião de capitais (v., neste sentido, Acórdão de 19 de outubro de 2017, Air Berlin, C‑573/16, EU:C:2017:772, n.os 31 e 32 e jurisprudência referida). (…) .

31-Ora, uma vez que serviços de comercialização de participações em fundos comuns de investimento, como os que estão em causa no processo principal, apresentam uma ligação estreita com as operações de emissão e de colocação em circulação de partes sociais, na aceção do artigo 5.°, n.° 2, alínea a), da Diretiva 2008/7, devem ser considerados parte integrante de uma operação global à luz da reunião de capitais. (…).

33 - Daqui resulta que o facto de dar a conhecer junto do público a existência de instrumentos de investimento de modo a promover a subscrição de participações de fundos comuns de investimento constitui uma diligência comercial necessária e que, a esse título, deve ser considerada uma operação acessória, integrada na operação de emissão e de colocação em circulação de participações nos referidos fundos. 34 Além disso, uma vez que a aplicação do artigo 5.°, n.° 2, alínea a), da Diretiva 2008/7 depende da ligação estreita dos serviços de comercialização com essas operações de emissão e de colocação em circulação, é indiferente, para efeitos dessa aplicação, que se tenha optado por confiar essas operações de comercialização a terceiros em vez de as efetuar diretamente. (…).

36 Daqui resulta que serviços de comercialização como os que estão em causa no processo principal fazem parte integrante de uma operação de reunião de capitais, pelo que o facto de os onerar com um imposto do selo está abrangido pela proibição prevista no artigo 5.°, n.° 2, alínea a), da Diretiva 2008/7.

37 Por outro lado, há que observar que o efeito útil desta disposição ficaria comprometido se, apesar de impedir a incidência de um imposto do selo sobre as remunerações auferidas pelos bancos a título de serviços de comercialização de novas participações de fundos comuns de investimento junto da sociedade de gestão destes, fosse permitido que esse imposto do selo incidisse sobre as mesmas remunerações quando estas são redebitadas pela referida sociedade de gestão aos fundos em causa.

38 Tendo em conta as considerações precedentes, há que responder às questões submetidas que o artigo 5.°, n.° 2, alínea a), da Diretiva 2008/7 deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação nacional que prevê a incidência de um imposto do selo, por um lado, sobre a remuneração que uma instituição financeira recebe de uma sociedade de gestão de fundos comuns de investimento pela prestação de serviços de comercialização para efeitos de novas entradas de capital destinadas à subscrição de participações de fundos recentemente emitidas e, por outro, sobre os montantes que essa sociedade de gestão recebe dos fundos comuns de investimento na medida em que esses montantes incluam a remuneração que a referida sociedade dEm síntese, os serviços de colocação de emissões geradoras de reuniões de capital não podem ser tributados em sede de imposto do selo, porque fazem parte integrante de uma operação global do ponto de vista da reunião de capitais, e é indiferente que se tenha optado por confiar essas operações a terceiros (bancos) em vez de o emitente as efetuar ele próprio.

 

Portanto, este tribunal está obrigado a concluir que a tributação em IS das comissões em causa, porque remuneratórias de serviços de comercialização de unidades de participação em fundos de investimento, viola o Direito da União.

 

  1. A não sujeição a imposto do selo das “comissões de comercialização” apenas aproveita a determinados tipos de fundos de investimento?

 

Sustenta a AT que, segundo a jurisprudência que emana do Acórdão C-656/21 do TJUE, a não sujeição a Imposto do Selo das “comissões de comercialização” está circunscrita à comercialização de unidades de participação dos chamados “fundos comuns de investimento” previstos na diretiva 2009/65/CE, cuja verificação compete ao tribunal nacional-

Conclusão que extrai da primeira parte do ponto 32 do acórdão C-656/21: com efeito, sob reserva de uma verificação pelo órgão jurisdicional de reenvio, esses fundos estão abrangidos pelo âmbito de aplicação da diretiva 2009/65, por força do seu artigo 1.°, n. os 1 a 3.

 

Pelo que conclui a AT que é permitida a liquidação de Imposto do Selo sobre outras comissões que podem atingir os fundos e/ou as respetivas sociedades gestoras, quais sejam, e por exemplo, as comissões de gestão (na integra, ou expurgadas da parte correspondente às comissões de comercialização incluídas na mesma e redebitadas aos fundos, caso isso aconteça), de depósito, outras comissões bancárias (ex. manutenção de conta) etc., etc.

 

Contrapõe a Requerente como se segue:

a) A Directiva 2008/07 nem sequer usa a expressão “fundo comum de investimento” para delimitar o seu âmbito de aplicação. Antes prescreve que se aplica a um leque alargado de sociedades de capitas (artigo 2.º, e Anexo I), e bem assim a “qualquer outra sociedade, associação ou pessoa colectiva com fins lucrativos” (artigo 2.º, n.º 2).

b) Tal como noutra jurisprudência do TJUE, o facto de o acórdão do TJUE no processo C‑656/21 se referir apenas a fundos comuns de investimento com o sentido de fundos de investimento mobiliário, resulta da circunstância de ser esse e mais nada o objecto do processo, como se viu supra abundantemente das transcrições efectuadas. Os parágrafos 58 e 59 do acórdão do TJUE no processo n.º C-595/13, supratranscritos, respondem exactamente nestes termos a este único argumento utilizado pela AT para tentar sustentar que a Directiva 2008/07 se aplicaria apenas a reuniões de capitais de 18 fundos de investimento mobiliário.

c) Seria, aliás, incompreensível, arbitrário, irracional e falho de neutralidade por completo, que a reunião de capitais para investimento via sociedades de capitais em sentido estrito (sociedades anónimas e sociedades por quotas) estivesse protegido fossem quais fossem os investimentos, e chegando-se aos fundos de investimento aparecesse do nada (do texto legal da Directiva 2008/07 não resulta de certeza) uma restrição a investimentos (i) em títulos ou valores mobiliários (ii) via fundos de investimento mobiliário.

d) E de facto, como se viu supra, a ratio decidendi nos processos do TJUE n.ºs 112/86 e C‑656/21 (relativos à reunião de capitais em fundos e aplicabilidade a esta reunião da Directiva 2008/07) nenhuma adstrição a apenas fundos de investimento mobiliário autoriza.

e) Finalmente, mesmo que por absurdo se quisesse ver na Directiva 2008/07 uma aplicabilidade restringida a fundos comuns de investimento, por assentamento num segundo absurdo (que não no seu texto legal, que nada disso acolhe), qual seja o de que o facto de o TJUE no processo C‑656/21 se referir apenas a fundos comuns de investimento não resultaria do facto de esses serem exclusivamente os fundos em causa nesse processo,

f) a jurisprudência do TJUE tem-se recusado, desde logo por razões de lógica, coerência, bem fundado das soluções legais e neutralidade fiscal, a restringir o conceito de fundo comum de investimento quando utilizado na legislação comunitária (como faz a Directiva IVA, mas já não a Directiva sobre reuniões de capital) a fundos que invistam em títulos / valores mobiliários com determinados critérios de composição de carteira (os chamados fundos de investimento mobiliário), considerando que não é possível excluir desse conceito fundos igualmente regulados e sujeitos também a supervisão específica, como são os fundos de investimento imobiliário (cfr. o processo n.º C595/13, supra transcrito nos trechos relevantes) e são também os fundos de investimento poupança reforma, e outros fundos alternativos ao primeiro tipo.

 

Este tribunal subscreve o entendimento da Requerente por partilhar totalmente a argumentação em que se fundamente.

Apenas duas observações, meramente complementares:

- se na interpretação de uma norma legal o elemento literal tem, hoje, um peso relativo modesto (apenas é vedado o acolhimento de interpretações que não tenham um mínimo de correspondência possível no texto da norma), há que ter em conta que as decisões do TJUE são uma fonte de direito com caraterísticas diferenciadas relativamente à lei escrita.

As decisões judiciais, com ou sem eficácia vinculativa, não visam estabelecer prescrições gerais e abstratas, mas sim resolver casos concretos, a luz da factualidade presente em cada. O que há que procurar numa decisão jurisprudencial é a doutrina que dela emana (e não uma prescrição expressamente positivada), indo além das palavras utilizadas, especialmente quando estas decorrem decretamento da factualidade sub judice.

 

Mais importante:

O objetivo da Diretiva 2008/7/CE do Conselho, de 12 de fevereiro de 2008, está expresso dos seus considerandos iniciais:

 

 (2) os impostos indirectos que incidem sobre as reuniões de capitais, designadamente o imposto sobre as entradas de capital (imposto que incide sobre as entradas de capital nas sociedades), o imposto de selo sobre os títulos, e o imposto sobre as operações de reestruturação, independentemente de essas operações envolverem ou não um aumento de capital, dão origem a discriminações, duplas tributações e disparidades que dificultam a livre circulação de capitais. O mesmo se aplica a outros impostos indirectos com características idênticas às do imposto sobre as entradas de capital e do imposto de selo sobre os títulos.

 

(3)

Consequentemente, é do interesse do mercado interno harmonizar a legislação relativa aos impostos indirectos que incidem sobre as reuniões de capitais para eliminar, tanto quanto possível, factores susceptíveis de distorcer as condições de concorrência ou entravar a livre circulação de capitais.

 

(4)

Os efeitos económicos do imposto sobre as entradas de capital são desfavoráveis ao reagrupamento e ao desenvolvimento das empresas. Esses efeitos são especialmente negativos na actual conjuntura económica, em que é premente dar prioridade ao relançamento dos investimentos.

 

O que se pretende é, em suma, minorar, no possível, distorções fiscais, resultantes da exigência de diferentes normas legais nacionais, às chamadas reuniões de capitais.

Assim sendo, não se pode subscrever o entendimento de que tal interesse seja diferente consoante a reunião de capitais seja prosseguida através de um fundo de investimento qualificável como sendo um fundo comum de investimento ou por um organismo de investimento alternativo.

A amplitude do elemento subjetivo da incidência da Diretiva resulta clara, desde logo, do nº 2 do seu art. 2º:  Para efeitos da presente directiva, é equiparada às sociedades de capitais qualquer outra sociedade, associação ou pessoa colectiva com fins lucrativos.

É certo que, entre nós, os fundos de investimento não são uma pessoa coletiva, tão só um património autónomo, embora com personalidade tributária própria.  Mas tal não é essa questão que aqui se coloca, uma vez que também a AT aceita, na esteira da jurisprudência do TJUE, a não sujeição a IS das comissões de comercialização suportadas pelos chamados fundos comuns de investimento. A questão é a de saber se tal situação de não sujeição se pode, também, referir a outros tipos de fundos de investimento.

 

 

IV-JUROS INDEMNIZATÓRIOS

 

As Requerentes suportaram, por retenção na fonte, o Imposto do Selo que ora impugnam.

Declarada que é, por este tribunal, a ilegalidade de tais liquidações (retenções na fonte), têm os Requerentes o direito a, para além do reembolso do imposto indevidamente pago, a receber juros indemnizatórios, a serem calculados nos termos legais em execução de sentença.

Porem, nos termos da al. c) do nº 3 do artº 43º da LGT, tais juros apenas serão contados desde um ano após a apresentação do pedido de revisão oficiosa, ou seja, desde 08.08.2024.

 

 

              IV - DECISÃO

 

Termos em que se conclui pela total procedência do pedido, sendo anuladas as liquidações (retenções na fonte) impugnadas.

A Requerente, para além do reembolso do imposto indevidamente pago, tem direito a receber juros indemnizatórios, contados desde 08.08.2024.

 

 

VALOR: € 2.433.043,00.


CUSTAS, no montante de € 31.518,00, a cargo da Requerida por ter sido total o seu decaimento.

 

 

12 de novembro de 2024

 

 

 

Rui Duarte Morais (relator)

 

 

 

 

 

Jónatas Machado

 

 


 

Rita Guerra Alves 

 



[1]  Liquidações identificadas no formulário apresentado com o PPA como:

Outros actos nº ... de 2019 (Contribuinte)
Outros actos nº ... de 2019 (Contribuinte)
Outros actos nº ... de 2019 (Contribuinte)
Outros actos nº ... de 2019 (Contribuinte)
Outros actos nº ... de 2019 (Contribuinte)
Outros actos nº ... de 2020 (Contribuinte)
Outros actos nº ... de 2020 (Contribuinte)
Outros actos nº... de 2020 (Contribuinte)
Outros actos nº ... de 2020 (Contribuinte)
Outros actos nº ... de 2020 (Contribuinte)
Outros actos nº ... de 2020 (Contribuinte)
Outros actos nº ... de 2020 (Contribuinte)
Outros actos nº ... de 2020 (Contribuinte)
Outros actos nº ... de 2020 (Contribuinte)
Outros actos nº ... de 2020 (Contribuinte)
Outros actos nº ... de 2020 (Contribuinte)
Outros actos nº ... de 2020 (Contribuinte)
Outros actos nº ... de 2021 (Contribuinte)
Outros actos nº ... de 2021 (Contribuinte)
Outros actos nº ... de 2021 (Contribuinte)
Outros actos nº ... de 2021 (Contribuinte)
Outros actos nº ... de 2021 (Contribuinte)
Outros actos nº ... de 2021 (Contribuinte)
Outros actos nº ... de 2021 (Contribuinte)
Outros actos nº ... de 2019 (Contribuinte)
Outros actos nº ... de 2019 (Contribuinte)
Outros actos nº ... de 2019 (Contribuinte)
Outros actos nº ... de 2019 (Contribuinte)
Outros actos nº ... de 2019 (Contribuinte)
Outros actos nº ... de 2021 (Contribuinte)
Outros actos nº ... de 2021 (Contribuinte)
Outros actos nº ... de 2019 (Contribuinte)
Outros actos nº ... de 2019 (Contribuinte)
Outros actos nº ... de 2019 (Contribuinte)
Outros actos nº ... de 2019 (Contribuinte)
Outros actos nº ... de 2019 (Contribuinte)
Outros actos nº ... de 2021 (Contribuinte)
Outros actos nº ... de 2021 (Contribuinte)

[2] CARLA CASTELO TRINDADE, Regime Jurídico da Arbitragem Tributária: Anotado, 2016, pág. 96 e 97.

[3] Temos, como exemplos da jurisprudência ora dominante, se não mesmo pacífica, as seguintes decisões arbitrais:: 660/2022-T, de 16-06-2023; 658/2022-T, de 23-05-2023; 821/2021-T, de 26-04-2023; 661/2022-T, de 14-04-2023; 505/2022-T, de 09-03-2023; 506/2022-T, de 26-02-2023; 45/2022-T, de 23-022023; 495/2022-T, de 13-02-2023; 474/2022, de 12-12-2022; 746/2021-T, de 26-09-2022; 711/2021-T, de 22-07-2022; 817/2021-T, de 18-05-2022; 135/2021-T, de 30-04-2022; 593/2021-T, de 26-04-2022; 133/2021-T, de 21-03-2022; 922/2019-T, de 11-01-2019; 48/2012-T, de 06-07-2012.

 

 

[4] Artigo 5.º do CIS (nascimento da obrigação tributária)


1 - A obrigação tributária considera-se constituída:

(…)

h) Nas operações realizadas por ou com intermediação de instituições de crédito, sociedades financeiras ou outras entidades a elas legalmente equiparadas, no momento da cobrança dos juros, prémios, comissões e outras contraprestações, considerando-se efetivamente cobrados os juros e comissões debitados em contas correntes à ordem de quem a eles tiver direito; 

(…)

 

[5] Artigo 78.ºda LGT (revisão dos atos tributários):

1 - A revisão dos atos tributários pela entidade que os praticou pode ser efetuada por iniciativa do sujeito passivo, no prazo de reclamação administrativa e com fundamento em qualquer ilegalidade, ou, por iniciativa da administração tributária, no prazo de quatro anos após a liquidação ou a todo o tempo se o tributo ainda não tiver sido pago, com fundamento em erro imputável aos serviços.

[6] O “mês de serviço” corresponde ao mês em que a emissão da fatura teve lugar, a qual se refere aos serviços prestados no mês anterior.