SUMÁRIO:
I - A aplicação do n.º 5 do artigo 45.º da LGT exige que se verifique a coincidência factual objectiva entre os factos que justifiquem a liquidação e aqueles que tenham determinado a abertura do inquérito criminal.
II - Para que a Administração Tributária possa, validamente, beneficiar do alargamento do prazo de caducidade não lhe basta referir a existência de um inquérito criminal, exigindo-se-lhe que especifique os factos que foram participados para efeito dessa investigação a fim de demonstrar que estes coincidem, efetivamente, com os que fundamentam o ato tributário.
DECISÃO ARBITRAL
Os árbitros Prof. Doutor Víctor Calvete (árbitro presidente), Dr. Paulo Ferreira Alves e Dr. A. Sérgio de Matos, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 01 de Abril de 2024, acordam no seguinte:
I. Relatório
A..., LDA, pessoa coletiva n.º ..., com sede na Rua ..., n.º ..., ...-... Porto, vem requerer a constituição de Tribunal Arbitral, ao abrigo do disposto nos números 1 e 2 do artigo 10º do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, previsto no Dec.-Lei nº 10/2011, de 20 de Janeiro, e nos artigos 1º e 2º da Portaria nº 112-A/2011, de 22 de Março, com vista à anulação das liquidações de IVA e IRC e dos correspondentes juros compensatórios, infra identificadas, no montante global de € 1.111.816,58, que foram objeto de reclamação graciosa, tendo o respetivo despacho de indeferimento sido notificado através do Ofício n.º 2023..., datado de 17.10.2023, da Divisão de Justiça Tributária da Direção de Finanças do Porto (Doc. 5):
• Liquidações IVA E JC Ano/Período Valor a pagar Total
2013
o 2022 ... – 2013/01 € 12.070,01
o 2022 ... 2013/01 – JC € 4.279,06
o 2022 ... – 2013/02 € 11.368,46
o 2022 .../02 – JC € 3.992,97
o 2022 ...– 2013/03 € 5.368,90
o 2022 ...– 2013/03 - JC € 1.868,08
o 2022 ... – 2013/04 € 14.211,65
o 2022 ... 2013/04 – JC € 4.895,03
o 2022 ... – 2013/05 € 6.376,45
o 2022 ... 2013/05 – JC € 2.187,28
o 2022 ...– 2013/06 € 6.613,66
o 2022 ...– 2013/06 – JC € 2.233,06
o 2022 ...– 2013/07 € 8.080,36
o 2022 ... 2013/07 – JC € 2.702,60
o 2022 ...– 2013/08 € 4.901,70
o 2022 ... 2013/08 – JC € 1.623,33
o 2022 ... – 2013/09 € 5.629,12
o 2022 ... 2013/09 – JC € 1.844,50
o 2022 ... – 2013/10 € 7.219,33
o 2022 ... 2013/10 – JC € 2.342,62
o 2022 ... 2013/11 € 2.553,14
o 2022 ... 2013/11 – JC € 819,80
o 2022 ...– 2013/12 € 5.255,59
o 2022 ... 2013/12 – JC € 1.669,69
TOTAL 2013: € 120.106,38
2014
o 2022 ... – 2014/01 € 30.998,06
o 2022 ... 2014/01 – JC € 9.752,92
o 2022 ... 2014/02 – € 3.747,72
o 2022 ... 2014/02 – JC € 1.166,41
o 2022 ... 2014/03 – € 3.675,92
o 2022 ... 2014/03 – JC € 1.131,17
o 2022 ... – 2014/04 € 2.045,97
o 2022 ... 2014/04 – JC € 622,87
o 2022 ... – 2014/05 € 46.299,31
o 2022 ... 2014/05 – JC € 13.948,14
o 2022 ... – 2014/06 € 4.793,66
o 2022 ... – 2014/06 – JC € 1.427,32
o 2022 ... – 2014/07 € 1.387,56
o 2022 ... – 2014/07 – JC € 408,58
o 2022 ... 2014/08 € 2.193,40
o 2022 ... – 2014/08 – JC € 638,67
o 2022 ...– 2014/09 € 3.105,60
o 2022 ... – 2014/09 – JC € 893,73
o 2022 ... – 2014/10 € 4.773,92
o 2022 ... – 2014/10 – JC € 1.358,14
o 2022 ...– 2014/11 € 2.045,97
o 2022 ... – 2014/11 – JC € 574,66
o 2022 ...– 2014/12 € 6.357,18
o 2022 ... – 2014/12 – JC € 1.765,38
TOTAL 2014: € 145.112,26
• Liquidações IRC E JC
2013
o 2022...– € 43.600,45
2014
o 2022...– € 448.251,75
2015
o 2022 ... – € 354.745,74
TOTAL: € 846.597,94
TOTAL (IRC + IVA): € 1.111.816,58
Pede a procedência do pedido de declaração de ilegalidade das liquidações de IVA, IRC e juros compensatórios aqui em causa, bem como, da decisão que indeferiu a reclamação graciosa deduzida em relação às mesmas
É demandada a Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante referida por “AT” ou “Requerida”.
Em 22 de Janeiro de 2024, o pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e, automaticamente, notificado à AT.
Em conformidade com o disposto nos artigos 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a) e 11.º, n.º 1, alínea a), todos do RJAT, o Exmo. Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os árbitros do Tribunal Arbitral Coletivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável. As Partes, notificadas dessa designação, não manifestaram vontade de a recusar (artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e c) do RJAT e artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD).
O Tribunal Arbitral Coletivo ficou constituído em 01 de Abril de 2024.
Em 07 de Maio de 2024, a Requerida apresentou Resposta, na qual se defende por impugnação, concluindo que o pedido de pronúncia arbitral deve ser julgado improcedente, com as legais consequências, e juntou aos autos o Processo Administrativo.
Por despacho de 08 de Maio de 2024, concedeu-se à Requerente um prazo de 10 dias para especificar os pontos da matéria de facto alegada que poderiam justificar a audição da testemunha por si indicada, bem como a razão de ciência que esta poderia aportar para o seu esclarecimento.
Não tendo havido resposta, por despacho de 01-10-2024, dispensou-se a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT e as alegações e prorrogou-se o prazo para a decisão, nos termos do n.º 2 do artigo 21.º do RJAT, para o acerto da sua versão final.
Posição da Requerente
A pretensão da Requerente sustenta-se, em primeira linha, na caducidade do direito à liquição, para o que alega, em síntese, o seguinte:
- As liquidações de IVA, IRC e respetivos juros compensatórios, acima identificadas,
foram emitidas com data de 16.02.2022 e notificadas posteriormente por correio registado.
- O prazo geral de exercício do direito à liquidação é de quatro anos a contar, no que diz respeito ao IRC, do termo do ano em que se verificou o facto tributário e, no que diz respeito ao IVA, a partir do início do ano civil seguinte àquele em que se verificou a exigibilidade do imposto, conforme determina o artigo 45.º, n.ºs 1 e 4 da LGT.
- Pelo que, estando em causa factos tributários ocorridos nos anos de 2013, 2014 e 2015 e correções em sede de IVA relativas aos anos de 2013 e 2014, todas as liquidações aqui em causa foram emitidas após o decurso do referido prazo de quatro anos, uma vez que a sua data de emissão é 16.02.2022.
- (...) a respeito da possibilidade de alargamento do prazo de caducidade prevista no n.º 5 do artigo 45.º da LGT, tem vindo a ser amplamente referenciado pela doutrina e pela jurisprudência que para operar a sua aplicação é necessário que exista identidade entre os factos averiguados no processo de inquérito e os factos tributários que deram origem à liquidação ou liquidações.
- (...) a aplicação do n.º 5 do artigo 45.º da LGT pressupõe, desde logo, o conhecimento dos factos concretos que estão em investigação no processo criminal, para depois, comparando-os com os factos que estão na origem da liquidação, se poder concluir, ou não, que são os mesmos.
- (...) neste caso, a AT invoca a aplicação do n.º 5 do artigo 45.º da LGT, mas não demonstra quais são os factos que são objeto do referido processo de inquérito de forma a poder concluir-se que são os mesmos sobre que incidem as liquidações de IVA e IRC aqui em causa, não fundamentando, assim, a aplicabilidade ao caso do n.º 5 do artigo 45.º da LGT.
- Assim, a mera invocação da existência do Processo de Inquérito nº .../2017.8IDPRT não é suficiente para conduzir à aplicação do n.º 5 do artigo 45.º da LGT, nem, consequentemente, ao alargamento do prazo de caducidade do direito à liquidação.
- Era essencial que a AT demonstrasse, através do relatório da inspeção tributária, que é onde estão plasmados os fundamentos de facto e de direito das liquidações em causa, fundamentando de forma expressa e acessível como impõe o artigo 268.º, n.º 3 da CRP e contemporânea aos atos tributários (cfr. artigo 77.º da LGT) a razão em que se suporta para afirmar a aplicação do n.º 5 do artigo 45.º da LGT, através da indicação discriminada dos factos concretos que justificaram a instauração do Processo de inquérito nº .../2017.8IDPRT, comprovando a sua relação de identidade com aqueles que se encontram subjacentes às correções e liquidações efetuadas.
- (...) não obstante o relatório da inspeção ser omisso quanto aos factos que estão a ser investigados no Processo de Inquérito nº .../2017.8IDPRT, da conjugação do que consta no ponto I.2 do relatório: “Penalidades: artigo 114.º do Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT) e artigo 103.º do RGIT (…)” com o ponto VII “INFRAÇÕES VERIFICADAS”, a fls. 61/68, conclui-se que há, efetivamente, factos relativamente aos quais não foi instaurado inquérito criminal nem estão compreendidos no Processo de Inquérito nº .../2017.8IDPRT, pela razão, reconhecida pela AT, de que constituem contraordenação.
- E no âmbito da apreciação da reclamação graciosa deduzida pela Requerente contra as liquidações acima referidas, persiste no mesmo erro ou incongruência, ao afirmar que “(…) para que seja possível o alargamento do prazo de caducidade importa que seja instaurado inquérito criminal e que esse inquérito diga respeito a factos com relevância criminal e tributária conforme dispõe o n.º 5 do referido artigo 45.º da LGT, isto é, que os factos sejam, simultaneamente, passíveis de subsunção a normas de incidência tributária e a normas de tipificação criminal, o que se verificou no caso em apreço.” – cfr. Doc. 5.
- (...) no caso em apreço, as liquidações de IVA e IRC e juros compensatórios compreendidas no presente pedido de pronúncia arbitral são ilegais, por terem sido emitidas depois de decorrido o prazo de caducidade previsto no n.º 1 do artigo 45.º da LGT e não estar fundamentada, por parte da AT, a aplicabilidade da norma constante do n.º 5 daquele artigo, motivo por que devem as mesmas ser anuladas.
Quanto aos restantes fundamentos da impugnação, previamente a mais aprofundadas considerações, a Requerente condensa-os no artigo 69.º do PPA, dizendo o seguinte:
“Em sede de reclamação graciosa das liquidações de IVA e IRC aqui em causa foi invocado, em síntese, que:
• Os movimentos por TPA registados em 2013 e 2014 não correspondem a vendas da Requerente mas sim de outra sociedade, a quem autorizou o uso desse instrumento de pagamento, tal como foi desde logo avançado no exercício do direito de audição ao projeto de relatório da inspeção, inexistindo, assim qualquer omissão de vendas por parte da Requerente;
• Que o CMVMC, as compras e a variação de inventários jamais teriam permitido realizar essas vendas presumidas;
• Que a Requerente já estava praticamente inativa antes de 2013 e em situação de pré-falência, tendo por essa razão escoado, em 2015, stocks já obsoletos com vista a encerrar a sua atividade, vendendo-os maioritariamente para Angola, conforme decorre do relatório e dos documentos alfandegários anexos à reclamação graciosa, vendas cujo pagamento está devidamente comprovado na contabilidade;
• Que a falta de exibição de alguns documentos de suporte à contabilidade, dos anos de 2013 e 2014, se deveu ao furto da viatura automóvel que os transportava, devidamente participado às autoridades policiais, ao IMT e à seguradora;
• Que a transferência de saldos credores de fornecedores, por já ter ocorrido o respetivo pagamento, para uma conta de sócios, levada a cabo em 2014 e 2015, não constitui uma variação patrimonial positiva, dado que corresponde a uma mera alteração de credor e sem relevo em termos patrimoniais ou de resultados;
• E que as correções ao IVA deduzido não se encontram fundamentadas.”
Posição da Requerida
A Requerida contrapõe, em resumo, o seguinte:
- Impugna-se tudo o que esteja em contradição com a presente Resposta e PA juntos, assim como, todas as ilações, conclusões e alegações de direito formuladas pela Requerente, dando-se por integralmente reproduzidos, para todos os efeitos e consequências legais, o PA junto com a presente Resposta aos autos.
- Os atos tributários ora mediatamente contestados, resultaram das correções efetuadas no âmbito da ação inspetiva desenvolvida a coberto das ordens de serviço externas n.ºs OI2016..., OI2017... e OI2017... que incidiram sobre os exercícios de 2013, 2014 e 2015, como a seguir demonstraremos.
- Uma das questões a dirimir consiste em apurar se a caducidade do direito à liquidação se verifica ou não, tendo em conta que a AT invoca a aplicação do n.º 5 do artigo 45.º da LGT, mas a Requerente defende que desconhece os factos que estiveram sob investigação no Processo de Inquérito instaurado com o n.º .../2017.8IDPRT e, consequentemente, se são os mesmos que subjazem às correções efetuadas em sede de IVA e IRC que fundamentam as liquidações em causa neste PPA.
- Neste conspecto, ao abrigo do princípio da economia processual, remetemos para o RIT e informações elaboradas em sede de reclamação graciosa, que subscrevemos e que aqui damos por integralmente reproduzidos.
- Analisando o RIT, é de constatar que os factos que levaram à abertura das ordens de serviço coincidem com os que determinaram a instauração do inquérito atrás mencionado, pelo que podemos concluir que os factos tributários que deram origem às liquidações em causa neste PPA são os mesmos que foram objeto do processo de inquérito criminal.
- Com efeito, do auto de notícia crime que deu origem ao processo de inquérito n.º
.../17.8IDPRT, consta na “DESCRIÇÃO DOS FACTOS, DATA E LOCAL DA VERIFICAÇÃO DA INFRACÇÃO”, o seguinte:
“Da junção das conclusões da ação externa dirigida ao controlo de stocks (inventários) e da elevada divergência de valores entre o montante dos Fluxos de Pagamento com Cartões de Débito e Crédito identificadas na informação preliminar, procedeu-se à abertura das ordens de serviço OI2016... (período de 2013), OI2017... (período de 2014) e OI2017... (período de 2015).
A análise dos factos elencados na informação preliminar, associada à recusa da assinatura da credencial por parte do gerente, ao que acresce ter afirmado que não irá apresentar os documentos do período de 2013, indicia condutas ilegítimas que visam a não liquidação da prestação tributária.
Os valores em causa (comprovadamente recebidos através de Terminais de Pagamento Automático TPA) enquadram-se nos termos do número 1 do artigo 103º do RGIT, e justificam a informação preliminar para a instauração do respetivo processo de inquérito quanto à possível existência de fraude fiscal, com vista a diminuição da receita tributária, quer ao nível do correto apuramento da matéria coletável para efeitos de IRC, por um lado, bem como a possível falta de liquidação de IVA nas vendas.”
- Ora, do RIT consta que, no âmbito da inspeção, a Requerente foi notificada do processo de inquérito, nos termos do o n.º 6 do artigo 36.º do Regime Complementar do Procedimento de Inspeção Tributária e Aduaneira (RCPITA), pelo que o prazo para conclusão do procedimento de inspeção (cfr. n.º 2 do artigo 36.º do RCPITA) ficou suspenso, nos termos da alínea c) do número 5 do artigo 36.º do RCPITA.
- Assim, atendendo que foi dado conhecimento à TGV de que tinha sido instaurado processo de inquérito e tendo em conta a descrição dos factos constantes no auto de notícia crime que deu origem ao processo de inquérito n.º .../17.8IDPRT, como se dá conta no artigo 43.º da presente Resposta, a Requerente não pode argumentar, conforme refere no § 28 do PPA, que desconhece em absoluto quais os factos que estão sob investigação no Processo de Inquérito n.º.../2017.8IDPRT.
- Ou seja, tendo a Requerente sido notificada da instauração do processo de inquérito e estando, por isso, a par dos factos que lhe deram origem, e, estando ao mesmo tempo na posse do RIT que apresenta uma exposição detalhada dos referidos factos, a menção no Relatório de que “Subjacente a todos os procedimentos inspetivos está o Processo de Inquérito n.º .../2017.8IDPRT” era suficiente para a Requerente concluir que estava perante os mesmos factos.
- Além disso, se dúvidas subsistissem sobre os factos objeto do inquérito, a Requerente podia, nos termos do n.º 1 do artigo 89.º do Código de Processo Penal (CPP), consultar o processo de inquérito, mediante requerimento dirigido ao Ministério Público, bem como os elementos dele constantes e obter, em formato de papel ou digital, os correspondentes extratos, cópias ou certidões.
- Estando na posse do Despacho de Arquivamento do Processo de Inquérito n.º .../17.8IDPRT (Ficheiro DESPACHO DE ARQUIVAMENTO ...-17-8IDPRT.pdf) e do RIT, a Requerente não pode continuar a afirmar que não estão reunidos os pressupostos para a aplicação do n.º 5 do
artigo 45.º da LGT.
- Em face do exposto, no caso aqui em análise, conclui-se que as liquidações não foram emitidas fora do prazo de caducidade, porquanto, as mesmas dizem respeito a factos relativamente aos quais foi instaurado inquérito criminal, tendo, por isso, o prazo sido alargado até ao seu arquivamento, acrescido de um ano, como determina o n.º 5 do artigo 45.º da LGT.
Quanto ao mais, em relação a cada uma das questões suscitadas pela Requerente, a Requerida, fiel ao seu enunciado de remeter e dar por reproduzido o PA, subsidia-se repetidamente na fundamentação do RIT, matéria a que regressaremos se necessário.
***
Antes de mais, operada que está a breve sinopse das posições das partes, importa atender ao disposto artigo 124.º do CPPT, o qual estabelece regras sobre a ordem de conhecimento dos vícios em processo de impugnação judicial, as quais são subsidiariamente aplicáveis aos processos arbitrais tributários, por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT.
No caso de vícios geradores de anulabilidade, da conjugação das als a) e b) do n.º 2 daquele artigo 124.º resulta que se deve conhecer prioritariamente dos vícios cuja procedência determine, segundo o prudente critério do julgador, mais estável ou eficaz tutela dos interesses ofendidos (salvo as excepções previstas, que não se verificam no caso em presença).
Invocado que está o vício de caducidade do direito à liquidação, cuja procedência inviabiliza a renovação do acto, afigura-se ser o conhecimento prioritário deste que garante a mais eficaz tutela do interesse da Requerente.
II. Saneamento
O Tribunal foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria para conhecer da liquidação de IRC ora impugnada, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a), e 11.º, n.º 1, todos do RJAT.
As partes estão devidamente representadas, gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
A ação é tempestiva, tendo o pedido de pronúncia arbitral sido apresentado no prazo de 90 dias previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, de acordo com a remissão operada para o artigo 102.º, n.º 1, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”).
Não foram identificadas questões que obstem ao conhecimento do mérito.
III. Fundamentação de Facto
1. Matéria de Facto Provada
Com relevo para a decisão da questão atinente à caducidade, importa atender aos seguintes factos que se julgam provados:
A) A Requerente é uma sociedade comercial que exerceu a atividade de comércio a retalho de mobiliário e artigos de iluminação desde 02.01.1985 até 31.08.2016, data em que cessou a sua atividade para efeitos de IVA (por acordo).
B) Em 30.10.2017 e em 08.01.2018 foram iniciadas pela Direção de Finanças do Porto
ações de inspeção relativas aos anos de 2013, 2014 e 2015, credenciadas pelas Ordens de Serviço OI2016..., emitida em 30-12-2016, OI2017..., emitida em 30-03-2017, e OI2017..., emitida em 19-09-2017, respetivamente, que se concluíram em 18.01.2022 de acordo com as Notas de Diligência (por acordo e RIT).
C) Em resultado das referidas ações de inspeção, foram efetuadas correções em sede de IVA e IRC, que deram lugar às liquidações de IVA, IRC e respetivos juros compensatórios, acima identificadas, cuja fundamentação é a seguinte:
“Liquidação emitida nos termos do art.º 87.º do CIVA.
A liquidação efetuada decorre do procedimento de Inspeção, credenciado pela Ordem de Serviço n.º (….), no âmbito do qual foi remetida a respetiva fundamentação, constante do Relatório Final de Inspeção Tributária.”;
“Apuramento proveniente de liquidação do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC) decorrente do procedimento de Inspeção, credenciado pela Ordem de Serviço n.º (…), no âmbito do qual foi remetida a respetiva fundamentação, constante do Relatório Final de Inspeção Tributária.” (Doc. 1 junto com o PPA, que aqui se dá por reproduzido).
D) As liquidações de IVA, IRC e respetivos juros compensatórios, acima identificadas,
foram emitidas com datas de 16-02-2022, 21-02-2022 e 23-02-2022 e notificadas posteriormente por correio registado (Doc. 1 junto com o PPA, que aqui se dá por reproduzido).
E) Consta do Relatório da Inspeção Tributária, elaborado em 25 de Janeiro de 2022, a fls. 3/68, o seguinte:
“Subjacente a todos os procedimentos inspetivos está o Processo de Inquérito nº .../2017.8IDPRT, instaurado em 2017.11.24. Perante este facto (processo de inquérito), o prazo de caducidade do direito à liquidação é alargado até ao arquivamento ou trânsito em julgado da sentença, acrescido de um ano [cfr. n.º 5 do artigo 45.º da lei Geral Tributária (LGT)].
Quanto ao prazo para conclusão do procedimento de inspeção (cfr. n.º 2 do artigo 36.º do RCPITA), perante a existência de um processo de inquérito, devidamente notificado ao sujeito passivo em consonância com o determinado no n.º 6 do artigo 36.º do RCPITA, ficou suspenso, nos termos da alínea c) do número 5 do artigo 36.º do RCPITA.” (PA-RIT).
F) O Relatório final da inspeção tributária refere, no ponto II-2 a fls. 4/68, quanto ao Motivo, que “Na origem do procedimento inspetivo ao período de 2013 estiveram as divergências detetadas no decurso do controlo dos fluxos de pagamentos com cartões de débito e crédito (modelo 40). Relativamente às ações inspetivas dos períodos de 2014 e 2015, a sua origem radicou nas conclusões extraídas no âmbito de uma ação de controlo de inventários realizada em 2015.”, quanto ao Âmbito, que é “Parcial – IRC e IVA, nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 14.º do RCPITA” e quanto à Incidência Temporal, os mencionados anos de 2013, 2014 e 2015 (PA-RIT).
G) O excerto transcrito em E) constitui a única referência que o Relatório da Inspeção Tributária faz acerca da aplicabilidade do n.º 5 do artigo 45.º da LGT e acerca do Processo de Inquérito nº .../2017.8IDPRT, não se revelando nesse Relatório quais são os factos que estão sob investigação neste Inquérito criminal, desconhecendo-se se são os mesmos sobre que incidem as correções em sede de IVA e IRC que fundamentam as liquidações aqui em causa (PA-RIT).
H) O Relatório da Inspeção refere expressamente a fls. 1/68 e 61/68, que há factos, nele compreendidos, que integram a contraordenação prevista e punida pelo artigo 114.º do RGIT, relativamente aos quais não houve lugar à instauração de inquérito criminal (PA-RIT).
I) Os factos que a AT indica estarem excluídos do Processo de Inquérito nº .../2017.8IDPRT, de acordo com o ponto VII do relatório da inspeção, a fls. 61/68, são os que estão subjacentes às liquidações de IVA de todo o ano de 2013 (janeiro a dezembro) e de 2014, com exceção dos meses de janeiro e de maio – (PA-RIT).
J) Reagindo contra as liquidações ora sob impugnação, a Requerente apresentou Reclamação Graciosa, em 10-07-2022, que recebeu o n.º ...2022... (Doc. n.º 5 junto com o PPA, que aqui se dá por reproduzido e PA).
L) No âmbito da apreciação dessa Reclamação Graciosa a Requerida afirma, entre o mais, que “(…) para que seja possível o alargamento do prazo de caducidade importa que seja instaurado inquérito criminal e que esse inquérito diga respeito a factos com relevância criminal e tributária conforme dispõe o n.º 5 do referido artigo 45.º da LGT, isto é, que os factos sejam, simultaneamente, passíveis de subsunção a normas de incidência tributária e a normas de tipificação criminal, o que se verificou no caso em apreço.” (cit. Doc. 5 e PA).
M) O despacho de indeferimento da sobredita RG foi notificado através do Ofício n.º 2023..., datado de 17.10.2023, da Divisão de Justiça Tributária da Direção de Finanças do Porto, e remetido à Mandatária da Requerente por correio registado, de 18-10-2023. (cit. Doc. 5 e PA).
N) Em 19 de Janeiro de 2024 foi apresentado o presente PPA.
2. Factos não Provados
Não há factos relevantes para decisão que não se tenham provado.
3. Motivação da Decisão de Facto
Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, em face das soluções plausíveis das questões de direito, nos termos da aplicação conjugada dos artigos 123.º, n.º 2, do CPPT, 596.º, n.º 1, e 607.º, n.º 3, do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT, não tendo o Tribunal de se pronunciar sobre todas as alegações das Partes.
Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas Partes e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja validade terá de ser aferida em relação à concreta matéria de facto consolidada.
A convicção dos árbitros fundou-se unicamente na análise crítica da prova documental junta aos autos, que está referenciada em relação a cada facto julgado assente.
IV. Fundamentação Jurídica
De acordo com o anteriormente anunciado quanto à ordem de conhecimento dos vícios, por ora, a questão a dirimir consiste em apurar se a caducidade do direito à liquidação se verifica ou não, tendo em conta que a AT invoca a aplicação do n.º 5 do artigo 45.º da LGT, mas a Requerente alega que o Relatório da Inspecção Tributária (para o qual remete a fundamentação das liquidações em causa) não revela se os factos que estiveram sob investigação no Processo de Inquérito instaurado com o n.º .../2017.8IDPRT são os mesmos que subjazem às correções efetuadas em sede de IVA e IRC e, como tal, não explicita a fundamentação do recurso excepcional à extensão do prazo para a liquidação dos tributos.
APRECIAÇÃO
O n.º 1 do artigo 45.º da LGT estabelece que “o direito de liquidar os tributos caduca se a liquidação não for validamente notificada ao contribuinte no prazo de quatro anos, quando a lei não fixar outro”.
Prevê o n.º 4 do mesmo que este prazo se conta, “nos impostos periódicos, a partir do termo do ano em que se verificou o facto tributário e, nos impostos de obrigação única, a partir da data em que o facto tributário ocorreu”, com algumas excepções, como no caso do IVA, em que a contagem daquele prazo só começa a partir do início do ano seguinte àquele em que se verificou a exigibilidade do imposto.
Ressalva-se ainda deste regime o disposto no n.º 5, no qual se estabelece que “Sempre que o direito à liquidação respeite a factos relativamente aos quais foi instaurado inquérito criminal, o prazo a que se refere o n.º 1 é alargado até ao arquivamento ou trânsito em julgado da sentença, acrescido de um ano.”
Enquanto tal, decorre claramente da lei que o recurso ao disposto no n.º 5 do artigo 45.º da LGT exige a verificação do condicionalismo de “... que o direito à liquidação respeite a factos relativamente aos quais foi instaurado inquérito criminal...”, cuja demonstração cabe à AT, em sintonia com a regra geral consagrada no artigo 74.º da LGT, por se tratar da demonstração de um dos pressupostos do direito à liquidação. Entre múltipla Jurisprudencia em que, pacificamente, se tem divulgado este entendimento, vem a exemplo a prolatada na Decisão Arbitral do P. 127/2022-T, de 22-12-2022, sumariando que “Para que a Administração Tributária possa, validamente, beneficiar do alargamento do prazo de caducidade, não lhe basta referir a existência de autos criminais, sendo-lhe necessário identificar os factos que estão na sua origem para demonstrar que estes coincidem, efetivamente, com os que constam do ato tributário.”
No caso em apreço, resulta da prova que as liquidações efectuadas decorrem do procedimento de inspecção, no âmbito do qual foi remetida a respetiva fundamentação, constante do Relatório Final de Inspeção Tributária (Facto C).
Porém, quanto à invocada fundamentação apenas se colhe do RIT, a fls 3 de 68, a breve afirmação de que “Subjacente a todos os procedimentos inspetivos está o Processo de Inquérito nº .../2017.8IDPRT, instaurado em 2017.11.24. Perante este facto (processo de inquérito), o prazo de caducidade do direito à liquidação é alargado até ao arquivamento ou trânsito em julgado da sentença, acrescido de um ano [cfr. n.º 5 do artigo 45.º da lei Geral Tributária (LGT)] (Facto E). Também aí se diz que a existência do processo de inquérito foi notificada ao sujeito passivo, nos termos e para os efeitos do previsto no n.º 2, al. c) do n.º 5 e n.º 6 do artigo 36.º do RCPITA, mas, como é evidente, tal nada acrescenta, em razão da substância, à exigível fundamentação do alargamento do prazo da caducidade do direito à liquidação dos tributos, correspondendo não mais do que ao cumprimento da formalidade legal para justificar a suspensão do prazo de encerramento dos procedimentos inspectivos.
Como ficou exarado no acórdão do TCAS, de 01/31/2019, no P. n.º 2724/05.7BELSB, “o prazo de caducidade em análise justifica-se por razões objectivas de segurança jurídica, tendo o propósito último de gerar a definição da situação do obrigado tributário num prazo razoável, cujo decurso conduz à preclusão do direito do Estado de promover a liquidação dos impostos que lhe sejam eventualmente devidos”.
Enquanto tal, é esmagador o entendimento propalado na Jurisprudência segundo o qual “a contagem do prazo de caducidade do direito de liquidar tributos nos termos do art. 45.º, n.º 5, da LGT, só ocorre se o ato tributário de liquidação e a investigação criminal se referirem aos mesmos factos” – vide acórdãos do STA, de 11/11/2015, no P. n.º 0190/14, de 01/10/2014, no P. n.º 0178/14 e de 11/05/2016, no P. 01071/14.
No mesmo trilho militam, entre outros os acórdãos do TCAN, de 18.01.2012, no P. 00670/08.1BEBRG e de de 11.01.2018, no P. n.º 00657/16, deste se colhendo que “A contagem do prazo de caducidade do direito de liquidar tributos nos termos do art. 45º, nº 5, da LGT, só ocorre se o acto tributário de liquidação e a investigação criminal se referirem aos mesmos factos. Se a sentença não tiver fixado os factos concretos que motivaram a liquidação oficiosa impugnada, nem aqueles que são alvo da investigação criminal a que alude o probatório, verifica-se um défice instrutório que importa colmatar para decidir a questão da caducidade da liquidação face ao que dispõe o referido preceito.”
Afinando pelo mesmo diapasão, a Jurisprudência Arbitral já expandiu que “para saber se ela se aplica [a hipótese do n.º 5 do artigo 45.º da LGT] é necessário, antes de mais, saber quais os factos relativamente aos quais foi instaurado inquérito criminal, para, depois, comparando-os com os que basearam a liquidação (…), se poder concluir, ou não, que são os mesmos.” – vide DA proferida no P. 667/2020-T, em sintonia com muitas outras, de que se podem enumerar as tiradas nos P. n.º 199/2015-T, P. n.º 7/2016-T, P. n.º 113/2021-T e P. n.º 127/2022-T.
Sucede que, in casu, a Requerida AT apela ao preceituado no n.º 5 do artigo 45.º da LGT, para justificar a extensão do prazo de caducidade, mas não evidencia quais são os factos que constituem o objeto do referido processo de inquérito, de modo a que se possa concluir se coincidem (ou não) com os que sustentam as questionadas liquidações de IVA e IRC, ou seja, a AT não fundamenta a subsunção de tais liquidações ao prazo excepcional que aquele inciso normativo previne.
Acresce a exigência de que a fundamentação seja expressa e coeva do acto praticado, porquanto é inadmissível a fundamentação a posteriori, como tem divulgado largamente a jurisprudência, nomeadamente a do STA:
“I - No contencioso de mera legalidade, como é o caso do processo de impugnação judicial previsto no art. 99.º e segs. do CPPT, o tribunal tem de quedar-se pela formulação do juízo sobre a legalidade do acto sindicado em face da fundamentação contextual integrante do próprio acto, estando impedido de valorar razões de facto e de direito que não constam dessa fundamentação, quer estas sejam por ele eleitas, quer sejam invocados a posteriori.
II - Assim, não pode a AT, em sede de recurso jurisdicional, pretender que se aprecie a legalidade da correcção que esteve na base da liquidação impugnada à luz de outros fundamentos senão aqueles que constam da declaração fundamentadora que oportunamente externou.” – Acórdão proferido no P. 02887/13.8BEPRT, de 28.10.2020, no seguimento de inúmeros arestos anteriores de idêntico sentido.
Importa realçar que, além de clara, expressa e congruente, de molde a facultar a percepção do iter cognoscitivo e valorativo da decisão (artigos 77.º da LGT e 268.º, n.º 3, da CRP), a fundamentação deve ser contextual e integrante do próprio ato, uma vez que só pode ser atendida e valorada a motivação de facto e de direito tal qual foi notificada ao administrado, de modo a garantir a tutela jurisdicional efectiva dos seus direitos e interesses legalmente protegidos – vide, também, os Acórdãos do TCASul de 27.01.2022, no P. 486/10.5BESNT, e de 19.10.2023, no P. 2647/04.7BELSB, bem assim a Decisão Arbitral no P. 375/2022-T.
A prova de que se reunem os requisitos impostos ao alargamento do prazo de caducidade é essencial tanto à face da letra da lei, quanto por força da sua teleologia, conforme foi cristalinamente explanado da Decisão Arbitral proferida no Proc. 7/2016-T: “... numa interpretação teleológica, do referido artigo 45.º, n.º 5, da LGT, que tenha em mente, a par do interesse na cobrança de tributos, o interesse do contribuinte e público da segurança jurídica, ínsito no instituto da caducidade do direito de liquidação de tributos, e o princípio constitucional da necessidade na restrição de garantias dos contribuintes, não se pode entender que, pelo facto de ter sido instaurado um inquérito criminal para averiguar qualquer facto que possa gerar uma dívida tributária, o direito de liquidação relativamente a quaisquer factos ocorridos no mesmo ano se prolongue nos termos daquele artigo 45.º, n.º 5.
Com efeito, essa ponderação relativa dos interesses conflituantes da segurança jurídica e da cobrança de tributos tem de conduzir forçosamente à conclusão de que só é aplicável o prazo alargado quando os factos que servem de base à liquidação são averiguados no inquérito criminal, isto é, quando não havia outra forma de a Autoridade Tributária e Aduaneira liquidar no prazo normal, salvaguardando todos os interesses em confronto.
Por outras palavras, o alargamento do prazo não pode ser entendido como um incompreensível benefício concedido à Autoridade Tributária e Aduaneira ou incentivo para poder actuar com menos diligência do que a que lhe é normalmente exigida na liquidação de tributos, mas sim como inconveniente para a segurança jurídica que só é tolerável quando o conhecimento dos factos averiguados no inquérito criminal seja necessário para efectuar a liquidação, em termos condizentes com a realidade.
Esta conclusão sobre a restrição do alargamento do prazo de caducidade do direito de liquidação aos casos em que o apuramento de factos é necessário para correcto apuramento do imposto está em consonância com a intenção legislativa expressamente publicitada pelo Governo na p. 30 da Actualização de Dezembro de 2005 ao Programa de Estabilidade e Crescimento 2005-2009, apresentada à Assembleia da República em sintonia com a Proposta de Lei do Orçamento do Estado para 2006 (in http://www.parlamento.pt/OrcamentoEstado/Documents/pec/pec2005-2009.pdf), em que
veio a ser introduzido na LGT a norma referida:
No Orçamento de Estado para 2006 foi alterado o regime da caducidade do direito à liquidação dos tributos (em regra, nos impostos periódicos, 4 anos a contar do ano seguinte àquele em que ocorreu o facto tributário e nos impostos de obrigação única, a contar da data da ocorrência do facto tributário) no sentido de se prever que, estando o correcto apuramento do imposto dependente de factos apurados em inquérito criminal, aquele prazo é alargado até ao arquivamento ou trânsito em julgado da respectiva sentença, acrescido de um ano. Com tal alteração visa-se, no essencial, prevenir que aqueles que são indiciados ou até acusados da prática de ilícitos criminais de natureza tributária não beneficiem, por virtude do decurso do prazo de caducidade, da não liquidação de imposto, com a inerente desobrigação de proceder ao seu pagamento, por virtude da prática daqueles ilícitos. Pretende-se, assim, a moralização do ordenamento jurídico-tributário e um mais eficaz combate à fraude e evasão fiscal;
É, assim, claro que, na perspectiva legislativa, o alargamento do prazo referido apenas se justifica em situações em que «o correcto apuramento do imposto (esteja) dependente de factos apurados em inquérito criminal».”
Ao invés, no caso sub judice, não obstante a referência ao Processo de Inquérito nº .../2017.8IDPRT e à pretendida extensão do prazo de caducidade em função deste, a verdade é que o RIT omite os factos que terão estado sob investigação nesse Inquérito. Assim, ao nada revelar a esse respeito, como teria que fazer com vista a demonstrar a identidade entre os factos submetidos ao inquérito-crime e os subjacentes às liquidações impugnadas, a Requerida não podia prevalecer-se do alargamento do prazo consignado no n.º 5 do artigo 45.º da LGT (neste sentido, entre outras, encontram-se as DA`s prolatadas nos P. 667/2020 e 127/2022).
Pelo contrário, emerge da prova que “O Relatório da Inspeção refere expressamente a fls. 1/68 e 61/68, que há factos, nele compreendidos, que integram a contraordenação prevista e punida pelo artigo 114.º do RGIT, relativamente aos quais não houve lugar à instauração de inquérito criminal”, sendo que “Os factos que a AT indica estarem excluídos do Processo de Inquérito nº .../2017.8IDPRT, de acordo com o ponto VII do relatório da inspeção, a fls. 61/68, são os que estão subjacentes às liquidações de IVA de todo o ano de 2013 (janeiro a dezembro) e de 2014, com exceção dos meses de janeiro e de maio (PA-RIT) – (Factos H) e I).
Donde, havendo infracções que a AT reconheceu constiturem meras contraordenações, logo sem relevância criminal, torna-se uma evidência ter havido factos subjacentes às liquidações que não foram participados para efeitos da investigação em inquérito criminal. E desta constatação resultam duas conclusões incontornáveis: i) as liquidações emergentes de factos que constituem contraordenações nunca poderiam beneficiar da extensão do prazo de caducidade; ii) não pode ter havido coincidência entre os factos submetidos ao Inquérito Criminal e os que sustentaram as liquidações impugnadas. Daí, e como conclusão decisiva, ocorreu uma violação do disposto nos n.º 1 e 5 do artigo 45.º da LGT.
Também resulta muito claro que a Requerida não respeitou o que a própria expressou na Decisão da Reclamação Graciosa, ou seja, “(…) para que seja possível o alargamento do prazo de caducidade importa que seja instaurado inquérito criminal e que esse inquérito diga respeito a factos com relevância criminal e tributária conforme dispõe o n.º 5 do referido artigo 45.º da LGT, isto é, que os factos sejam, simultaneamente, passíveis de subsunção a normas de incidência tributária e a normas de tipificação criminal, o que se verificou no caso em apreço.” (Facto L).
Não se ignora que, em 29-09-2022, no P. 0111/21.9BALSB, o Pleno da Secção do Contencioso Tributário do STA proferiu decisão na qual sumariou: “A aplicação do n.º 5 do artigo 45.º da LGT não exige que se deva verificar uma relação de prejudicialidade entre os factos que justifiquem a liquidação e aqueles que tenham determinado a abertura do inquérito criminal, mas apenas uma mera coincidência factual objectiva.”, acrescentando que “Não constitui requisito para operar o alargamento do prazo de caducidade previsto no artigo no n.º 5 do artigo 45.º da LGT que o direito à liquidação do tributo esteja condicionado pelo desfecho do processo de inquérito.”
Tal aresto aparenta afastar-se não só do que vinha sendo uma assinalável corrente jurisprudencial de sentido contrário, mas também do acima invocado desiderato legislativo publicitado a págs. 30 da Actualização de Dezembro de 2005 ao Programa de Estabilidade e Crescimento 2005-2009, apresentada à Assembleia da República em sintonia com a Proposta de Lei do Orçamento do Estado para 2006, em que veio a ser introduzido na LGT a norma referida, donde agora se extracta apenas o seguinte: “...estando o correcto apuramento do imposto dependente de factos apurados em inquérito criminal, aquele prazo é alargado até ao arquivamento ou trânsito em julgado da respectiva sentença, acrescido de um ano. ... visa-se, no essencial, prevenir que aqueles que são indiciados ou até acusados da prática de ilícitos criminais de natureza tributária não beneficiem, por virtude do decurso do prazo de caducidade, da não liquidação de imposto, com a inerente desobrigação de proceder ao seu pagamento, por virtude da prática daqueles ilícitos.”
É certo que relativamente ao que se apresentava como sendo o desíginio do legislador, o STA apenas dispensou o elemento da “prejudicialidade entre os factos que justifiquem a liquidação e aqueles que tenham determinado a abertura do inquérito criminal”. Contudo, a nosso ver, não pode passar em claro que, por este caminho, está a arriscar-se o objectivo da “moralização do ordenamento jurídico-tributário”, pois se, mesmo estando na posse de todos os factos necessários à emissão da liquidação, basta à AT a participação dos mesmos para efeito de averiguação criminal, para assim obter uma dilação indefinida (no tempo cronológico), então sim, o alargamento do prazo previsto no n.º 1 para o previsto no n.º 5 do artigo 45.º da LGT, poderá redundar num “... incompreensível benefício concedido à Autoridade Tributária e Aduaneira ou incentivo para poder actuar com menos diligência do que a que lhe é normalmente exigida na liquidação de tributos...”, em prejuízo do “... interesse do contribuinte e público da segurança jurídica, ínsito no instituto da caducidade do direito de liquidação de tributos, e o princípio constitucional da necessidade na restrição de garantias dos contribuintes...”, como se exarou na supra citada Decisão Arbitral do P. 7/2016-T.
No entanto, o STA manteve, como se viu, a exigência de que, entre os factos que justifiquem a liquidação e aqueles que tenham determinado a abertura do inquérito criminal, se verifique uma mera coincidência factual objectiva, querendo com isto dizer que é indiferente, do ponto de vista subjectivo, que o participado venha ou não a ser constuído arguido ou acusado, como se alcança no desenvolvimento argumentativo do citado acórdão.
Regressando à situação que aqui nos prende, reafirma-se que nestes autos não está demonstrada, nem se verifica, efectivamente, tal coincidência – entre os factos subjacentes às liquidações e os que possam ter sido participados para efeitos da instauração do inquérito criminal – pelo que a Requerida não estava autorizada a prevalecer-se da extraordinária extensão do prazo de caducidade, conforme preceituado nos n.ºs 1 e 5 do artigo 45.º da LGT.
Enquanto tal, respeitando aos períodos fiscais de 2013, 2014 e 2015 (Facto B), emitidas com datas de 16-02-2022, 21-02-2022 e 23-02-2022 e notificadas posteriormente por correio registado (Facto D), as liquidações de IVA e IRC impugnadas no presente PPA são ilegais à luz do mencionado normativo (art. 45.º LGT), por ter ocorrido a caducidade do direito à liquição dos impostos, devendo ser anuladas. Pela mesma razão, deverá anular-se também a decisão que incidiu na Reclamação Graciosa apresentada pela Requerente, em 10-07-2022, por despacho notificado através do Ofício n.º 2023..., datado de 17.10.2023, da Divisão de Justiça Tributária da Direção de Finanças do Porto, e remetido à Mandatária da Requerente por correio registado, de 18-10-2023 (Factos J e M).
Juros compensatórios e demonstrações de acerto de contas
As liquidações de juros compensatórios têm como pressuposto as respectivas liquidações de impostos (artigo 35.º, n.º 8, da LGT), pelo que enfermam dos mesmos vícios que afectam estas, justificando-se também a sua anulação.
Questões de conhecimento prejudicado
Sendo de julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral com fundamento em caducidade do direito de liquidação, fica prejudicado, por ser inútil, o conhecimento das restantes questões colocadas.
V. Decisão
De harmonia com o supra exposto, acordam neste Tribunal Arbitral em:
a) Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral quanto à declaração de ilegalidade e consequente anulação das liquidações nele enunciadas e supra reproduzidas;
b) Julgar procedente o pedido de anulação da decisão que indeferiu a Reclamação Graciosa deduzida em relação a tais liquidações;
c) Condenar a Requerida na totalidade das custas do processo arbitral.
VI. Valor do Processo
Fixa-se o valor do processo em 1.111.816,58 €, (um milhão, cento e onze mil oitocentos e dezasseis euros e cinquenta e oito cêntimos), valor indicado pela Requerente e que a Requerida não contestou, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e do artigo 306.º, n.º 2, do CPC, ex vi artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”).
VII. Custas
Custas no montante de 15.300,00 € (quinze mil e trezentos euros), a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira, de acordo com a Tabela I anexa ao RCPAT e com o disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT, 4.º, n.º 5, do RCPAT e 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.
Notifique-se.
Lisboa, 31 de Outubro de 2024.
Os Árbitros,
(Prof. Doutor Víctor Calvete),
(Dr. Paulo Ferreira Alves)
(A. Sérgio de Matos, relator)