SUMÁRIO:
1) O Residente Não Habitual é um Residente Fiscal com um Estatuto de Residência próprio; 2) O regime fiscal do Residente Não Habitual constitui um Benefício Fiscal não automático e sujeito a reconhecimento administrativo, que tem efeito meramente declarativo; 3) Não tendo o SP provado que nos cinco anos anteriores àquele em que pretende beneficiar do regime de RNH não foi, em todo e cada um deles, Residente Fiscal em Portugal, falece à partida a reunião de uma das condições necessárias de que o legislador fez depender o Estatuto de RNH, que lhe conferiria o direito ao gozo dos respectivos benefícios ou vantagens fiscais e, assim, é conforme à lei a Liquidação que não aplicou normativos integrantes do regime ao caso, a saber, os art.ºs 72.º, n.º 10 e 85.º, n.º 1, al. a) do CIRS.
DECISÃO ARBITRAL
1. Relatório
A..., doravante designada por “Requerente”, “Sujeito Passivo” ou simplesmente “SP”, contribuinte fiscal n.º..., com domicílio fiscal na Rua ..., n.º..., ..., em Lisboa, veio, ao abrigo dos art.ºs 2.º, n.º 1 al. a) e 10.º, n.º 1 al. a) do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (D.L. n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, doravante “RJAT”), submeter ao CAAD pedido de constituição do Tribunal Arbitral.
Peticiona, assim, a declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, mais concretamente de IRS, reportado ao ano de 2022.
À liquidação em crise, com o n.º 2023..., doravante “a Liquidação”, corresponde um valor a pagar de € 12.748,17.
Segundo defende, a Liquidação padece de ilicitude, “na medida em que esta não aplica aos rendimentos obtidos pela Requerente o regime previsto nos artigos 72.º, n.º 10, e 81.º, n.º 5, alínea a), do CIRS”. Por isso e nessa medida, sustenta, a Liquidação deve ser anulada.
Segundo expõe, “imigrou para Portugal no decurso de 2021, passando a habitar de forma permanente em território português”, não residiu em território português “nos cinco anos anteriores (2016, 2017, 2018, 2019 e 2020)”, e “preenche, assim, desde 20.05.2021, os requisitos materiais necessários à sua tributação, em Portugal, na qualidade de residente não habitual”.
Na tese que defende, “verificados os requisitos materiais previstos no art.º 16.º, n.º 8, do CIRS, o direito a ser tributado como RNH resulta ope legis da inscrição do sujeito passivo como residente em território português, não dependendo de qualquer ato posterior de reconhecimento ou registo.”
Apresentou Declaração Modelo 3 (Mod. 3) relativa aos rendimentos obtidos em 2022 e preencheu o Anexo L, relativo à tributação dos residentes não habituais (RNH). E foi notificada pela Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) por motivo de “erros centrais de preenchimento (...) NIF NÃO É RESIDENTE NÃO HABITUAL”.
Segundo expõe, prestou esclarecimentos via e-balcão, e foi informada pela AT que a Mod. 3 deveria ser entregue sem o Anexo L, por não ter sido solicitado o Estatuto de RNH. E foi assim que submeteu Declaração de substituição, já sem aquele Anexo. Com base nesta foi, então, emitida a Liquidação, não lhe tendo sido aplicado o regime previsto para os RNH.
A não aplicação do regime em questão constitui vício de violação de lei, e a Liquidação deve, por isso, ser anulada. Assevera.
Reconhecendo que não se encontra inscrita como RNH - segundo alega, “por não ter solicitado a inscrição da sua qualidade de RNH no prazo estatuído no artigo 16.º, n.º 12, do CIRS” - defende que “o regime do RNH representa um benefício fiscal de cariz automático”.
Sustenta que “o benefício do regime dos RNH” depende apenas do preenchimento dos requisitos constantes do art.º 16.º, n.º 8, do CIRS e da inscrição como residente em território português.
Reitera que o ano de 2021 corresponde “ao (primeiro) ano em que a Requerente se tornou residente fiscal em Portugal”. E que a “ausência de inscrição” como RNH não obsta à tributação nessa qualidade “verificados os respetivos pressupostos materiais”.
Segundo também salienta, continuou a ser residente fiscal em Portugal durante todo o ano de 2022, e este ano está coberto pelo período de 10 anos previsto no art.º 16.º, n.º 9, do CIRS.
A Requerente sustenta que, ao não a tributar de acordo com o regime do RNH, a Liquidação enferma de vício de violação de lei. E deve “ser totalmente anulada, aplicando-se aos rendimentos de categoria B resultantes de uma atividade de EVA, e de categoria E, de fonte estrangeira (Brasil), obtidos pela Requerente em 2022, respetivamente a taxa especial e o regime de isenção que por esta foi oportunamente optado”.
Não obstante não se conformar com a Liquidação, procedeu ao seu pagamento, pelo que vem agora peticionar: (i) a anulação da Liquidação, com fundamento em vício de violação de lei, (ii) a devolução das quantias pagas, e (iii) juros indemnizatórios.
As posições das Partes são divergentes, antes de mais, quanto à interpretação devida das normas integrantes do regime do RNH. Como melhor veremos.
É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante “AT” ou “Requerida”).
O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD a 08.09.2023 e notificado à AT.
Nos termos do disposto na al. b) do n.º 1 do art.º 11.º do RJAT, o Conselho Deontológico designou árbitro do Tribunal Arbitral que aceitou o encargo, e por comunicação de 27.10.2023 as Partes foram notificadas da designação não tendo manifestado intenção de a recusar, cfr. art.º 11º, n.º 1, al. a) e b) do RJAT e art.ºs 6.º e 7.º do Código Deontológico.
Nos termos do disposto na al. c) do n.º 1 do art.º 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral singular foi constituído em 15.11.2023.
Notificada para o efeito, a AT, a 20.12.2023, juntou o PA e apresentou Resposta. Pugna pela improcedência do Pedido de Pronúncia Arbitral (doravante “PPA”) e pela manutenção da Liquidação na Ordem Jurídica.
Defendendo-se por excepção, invoca falta de competência material do Tribunal pois que a real intenção da Requerente será a de ver reconhecida a condição de RNH e os benefícios advenientes do dito regime. Segundo expõe, o único vício que a Requerente imputa à Liquidação “é o não reconhecimento do seu pretenso estatuto de residente não habitual em Portugal”. E esse reconhecimento ou não reconhecimento implícito constitui acto administrativo necessariamente estranho e independente do acto de liquidação, a impugnar através de meio próprio (acção administrativa). Sendo que não cabe no âmbito de competência dos Tribunais Arbitrais apreciar da possibilidade de a Requerente beneficiar ou não do referido regime dos RNH “ainda que sob a aparência de estar a apreciar um ato de liquidação”. Ocorre, segundo alega, excepção dilatória impeditiva do conhecimento do mérito, e conducente à sua absolvição da instância (apela, entre o mais, aos art.ºs 2.º, n.º 1, al. a) e 4.º, n.º 1 do RJAT, e 576.º, n.ºs 1 e 2 do CPC).
Por impugnação, depois, sustenta, entre o mais, que a Requerente não prova a factualidade que alega, e que é sobre a mesma que recai o ónus da prova dos pressupostos dos benefícios fiscais de que pretenda usufruir.
Sobre o regime do RNH, entre o mais expõe que tem que ser solicitada a inscrição como RNH, até 31 de Março do ano seguinte àquele em que se tornou residente em Portugal, e que é uma vez obtido o respectivo estatuto que o sujeito passivo (SP) adquire o direito a ser tributado em IRS como tal. Estamos perante um benefício fiscal (BF), o legislador previu que o SP deve solicitar a inscrição como RNH até à dita data, e a interpretação sufragada pela Requerente retiraria, defende, o efeito legal que justificou a criação da norma (art.º 16.º, n.º 10 do CIRS[1]). Apela aos princípios legais em matéria de BFs.
A liquidação é feita de acordo com as opções que em cada ano faz, caso o SP tenha obtido, a seu pedido, o reconhecimento administrativo da verificação dos dois pressupostos constantes do n.º 8 do art.º 16.º, expõe. A inscrição como RNH é um requisito prévio necessário à aquisição do direito ao regime de BF de RNH, “e não tendo este sido concedido, não se verifica qualquer ilegalidade das liquidações contestadas”.
Alega ainda, sem conceder, que os requisitos que a Requerente invoca verificados e suficientes para automaticamente beneficiar do Estatuto de RNH “não se verificam para o ano de 2022, visto que, desde 2020 que a Requerente entrega declaração de rendimentos modelo 3 de IRS como residente em Portugal.” A própria Requerente confessa ter sido residente no ano de 2021, nota. Não estão, pois, cumpridos, mesmo que se entendesse ultrapassada a obrigatoriedade de inscrição, os requisitos para aplicação da tributação RNH. Defende.
Dá nota de a Requerente não ter junto documentação para prova da natureza dos rendimentos, nem de eventual pagamento de imposto, e assim ficar afastada a hipótese de aplicação do Método de isenção, previsto no art.º 81.º, n.º 5, al. a) do CIRS.
Sustenta, ainda, que (i) a não se entender ocorrer a excepção invocada - “designadamente adotando-se uma interpretação normativa no sentido de que a impugnação de um ato imediatamente lesivo se apresenta como uma faculdade e não um verdadeiro ónus” - o Tribunal estará a desaplicar o art.º 54.º do CPPT, mais que (ii) a seguir-se a interpretação preconizada pela Requerente - sustentada com fundamento atinente a “efeitos meramente declarativos da inscrição do RNH em registo fiscal dos contribuintes” como em decisões arbitrais que convoca - o Tribunal estará a desaplicar o n.º 10 do art.º 16.º do CIRS. Em ambos os casos se contrariando a Constituição, por violação do princípio da legalidade (reserva de lei parlamentar e tipicidade e princípio da segurança jurídica e proteção da confiança), e dos princípios da justiça, igualdade, segurança jurídica, reserva da lei fiscal e separação de poderes (e consequente subordinação dos Tribunais à lei) – o que invoca para a eventualidade de assim se entender (convocando os respectivos normativos da CRP).
Conclui a excepção invocada dever proceder; mais que a Liquidação deve manter-se, improcedendo tudo o alegado pela Requerente e o PPA.
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A Requerente veio, por requerimento de 22.12.2023, exercer o contraditório à matéria de excepção. Segundo defende, não ocorre a invocada excepção de incompetência material, pois que o objecto dos autos é a apreciação da legalidade da Liquidação, tão só, não estando em causa conhecer de qualquer outra decisão administrativa. Peticiona-se a declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, o que cabe na competência dos Tribunais Arbitrais (cfr art.º 2.º, n.º 1 do RJAT). E improcede, “por maioria de razão, também a da pressuposta impropriedade do meio processual”, sustenta.
Por despacho de 02.01.2024 o Tribunal notificou as Partes da dispensa da reunião do art.º 18.º do RJAT face à não solicitação de produção de prova adicional, concedeu prazo para alegações finais escritas facultativas, e remeteu a apreciação da matéria de excepção para decisão arbitral.
Ambas as Partes apresentaram alegações, no essencial reiterando o alegado nos articulados. A Requerente, além do mais, afirma ser evidente a irrelevância do pedido de inscrição como RNH, e que “estará em causa, quando muito, nestes autos, a comprovação de que a Requerente não foi residente fiscal em território português entre 2016 e 2020”, factualidade que, defende, “demonstra por prova documental, através do seu registo fiscal”. A Requerida, entre o mais, que, no caso, o procedimento de reconhecimento “não existiu por completo, tendo sido sonegada a possibilidade da AT sequer avaliar e se pronunciar sobre o preenchimento dos pressupostos de que depende a aplicação do regime”, e que a Requerente “saltou as fases procedimentais prévias, procurando que tal benefício fiscal lhe seja agora reconhecido”.
Por despacho de 14.05.2024, o Tribunal determinou prorrogar por dois meses o prazo do art.º 21.º, n.º 1 do RJAT, cfr. n.º 2 do mesmo artigo, pelas razões aí indicadas. E assim novamente por despachos de 10.07.2024 e de 10.09.2024.
A 15.07.2024 a Requerente submeteu requerimento transcrevendo Sumário de Acórdão do STA, de 29.05.2024, no qual teria sido objecto de apreciação, segundo indica, o mesmo thema decidendum destes autos.
2. Saneamento
O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído, é competente e as Partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão devidamente representadas, cfr. art.s 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e art.º 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.
O PPA é tempestivo, cfr. al.s m) e p) do probatório, infra (e v. art.s 102.º, n.º 1, al. a) do CPPT e art.º 10.º, n.º 1, al. a) do RJAT), e o processo não enferma de nulidades.
Vem invocada matéria de excepção (v. supra, p. 4). A Requerente exerceu o seu direito ao contraditório, pronunciando-se expressamente quanto à defesa da Requerida por excepção (v. supra, p. 6). Impõe-se o seu conhecimento, como de imediato se fará.
2.1. Da competência material do Tribunal Arbitral
A Requerida sustenta que o Tribunal carece de competência material, e sustenta-o por entender que constitui objecto do processo o reconhecimento ou não reconhecimento da condição de RNH. Sendo que, expõe, a impugnação do acto de reconhecimento da condição de RNH deve ser feita autonomamente através de meio próprio. Que a impugnação de tal acto não encontra sustentação jurisdicional na discussão da legalidade da liquidação – como também assim em Jurisprudência do Tribunal Constitucional que convoca. Refere que “esse reconhecimento ou não reconhecimento implícito teria de ter sido necessariamente impugnado através de meio próprio - ação administrativa - pois constitui um ato administrativo que é, necessariamente, estranho e independente do ato de liquidação.” Sendo que o Tribunal Arbitral não pode – não tem competência para – apreciar a possibilidade de a Requerente beneficiar ou não do regime dos RNH “ainda que sob a aparência de estar a apreciar um ato de liquidação”. Trata-se de questão tributária que não comporta a apreciação da legalidade do ato de liquidação.
Segundo entende a Requerida, o único vício que a Requerente imputa à Liquidação “é o não reconhecimento do seu pretenso estatuto de residente não habitual em Portugal”.
Vejamos.
A competência material do Tribunal é matéria de conhecimento oficioso. Nos termos conjugados do disposto no art.º 16.º do CPPT, art.º 13.º do CPTA, e nos art.ºs 96.º, al. a), 97.º, n.º 1, 278.º, n.º 1, 576.º, n.º 2 e 577.º, al. a) e 578.º, todos do CPC[2], a infracção das regras de competência em razão da matéria determina a incompetência absoluta do Tribunal, que é de conhecimento oficioso, precedendo o de qualquer outra matéria. Tratando-se de excepção dilatória obsta a que o Tribunal conheça do mérito e conduz à absolvição da instância.
Sendo que a competência em razão da matéria há-de determinar-se pelo pedido do Autor (pelo quid decidendum).[3] Se se preferir, através do confronto entre as normas que a definem, e o teor da petição inicial, com destaque para o pedido e a causa de pedir.
Quanto às normas que a definem, a competência dos Tribunais Arbitrais afere-se pelo disposto a respeito nas disposições conjugadas do RJAT e da Portaria de Vinculação.[4] Como refere a Requerida, a competência destes Tribunais vem desde logo prevista no art.º 2.º do RJAT. Com relevo para os autos, vem-no na al. a), do n.º 1, do dito artigo. Que determina que a competência dos tribunais arbitrais compreende a apreciação das pretensões de “declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos (...)”. E com relevo para a questão a dilucidar não vem a Portaria de Vinculação estabelecer qualquer restrição. Cumpre pois dilucidar se vem colocado ao Tribunal apreciar da legalidade da Liquidação.
Coligido o teor do PPA, vemos que com a presente acção arbitral a Requerente pretende que seja anulada a Liquidação com fundamento em ilegalidade. Sustentando o pedido em, na Liquidação, não serem aplicadas as normas do CIRS que seriam as devidas no caso (segundo alega). Mais concretamente, no facto de na Liquidação não virem aplicadas as normas integrantes do regime do RNH, como legalmente devido (segundo alega), mas sim outras. Esta a causa de pedir. Aquele o pedido.
Assim resulta de forma clara, entre o mais, do artigo 2.º do PPA: “Resulta, porém, do conteúdo da liquidação, que a mesma se encontra prejudicada por ilicitude, na medida em que esta não aplica aos rendimentos obtidos pela Requerente o regime previsto nos artigos 72.º, n.º 10, e 81.º, n.º 5, alínea a), do CIRS.” E do artigo 20.º: “Preenchendo a ora Requerente as condições necessárias à aplicação daquele regime (...) a sua não aplicação resulta em claro vício de violação de lei, conducente, por força da ilicitude, à anulação da liquidação sindicada.”
Di-lo também ao concluir, cfr. artigo 54.º do PPA: “(...) não tendo a ora Requerente, atenta a liquidação ora impugnada, sido tributada de acordo com aquele regime do RNH, enferma a liquidação sindicada de manifesto vício de violação de lei, devendo, por força da respetiva ilicitude, ser totalmente anulada, aplicando-se aos rendimentos (...) previsto nos artigos 72.º, n.º 10, e 81.º, n.º 5, alínea a), do CIRS.”
Por outro lado, também não vem a Requerente pretender impugnar um qualquer outro acto administrativo, que seria, como hipótese, um acto de não reconhecimento do Estatuto de RNH. Com efeito, não vem contraditado que a Requerente não submeteu pedido de/não solicitou inscrição como RNH. A própria reconhece que o não fez, e vem defender que nem tanto se revela necessário. A Requerida, de seu lado, faz menção (como vício imputado à Liquidação) a um “não reconhecimento implícito”, independente do acto tributário de liquidação. Sucede que, no caso, não tendo o SP despoletado o procedimento, tendente ao reconhecimento, não existe qualquer acto de não reconhecimento/indeferimento. Nem um preenchimento de um Anexo à Modelo 3 poderia como tal ser tido, como despoletando tal procedimento, como bem se compreende (e nem vem aventado). Pelo que não vem ao Tribunal colocado apreciar de um outro acto que não o acto tributário em causa, a Liquidação. E sendo que a esta vem imputado vício de violação de lei.
Pois bem, há assim que concluir que o objecto da acção se contém no âmbito da competência material dos Tribunais Arbitrais. E mais que a acção arbitral constitui meio processual próprio para o efeito. Cfr. al. a) do n.º 1 do art.º 2.º do RJAT.
Improcede a defesa exceptiva da Requerida.
E quanto à pela Requerida invocada potencial violação da CRP no respeitante à matéria de excepção, avance-se desde já face ao que acaba de se percorrer, a mesma não ocorre uma vez que não se seguiu entendimento/interpretação normativa no sentido de que a impugnação de um acto imediatamente lesivo se apresente como uma faculdade e não um verdadeiro ónus, nem o Tribunal está, ao decidir como vem de fazer, a desaplicar o art.º 54.º do CPPT. Não vão, por aqui, violados quaisquer normativos Constitucionais convocados pela Requerida a respeito.
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Cumpre apreciar e decidir no mais.
3. Matéria de facto
3.1. Factos provados
Consideram-se provados os factos que seguem:
a) No ano de 2022 a Requerente estava inscrita no cadastro de contribuintes como Residente; (cfr. PA e doc. 2 junto pelo SP)
b) No ano de 2022 a Requerente não estava inscrita no cadastro com Estatuto de RNH activo; (cfr. PA)
c) A 20.05.2021 a Requerente alterou a sua residência fiscal para Portugal procedendo à sua inscrição no cadastro como Residente; (cfr. PA)
d) Em 2021 a Requerente passou a residir permanentemente em Portugal, desde 20.05.2021, no imóvel sito na R. ..., n.º ..., ..., em Lisboa; (cfr. PA e por acordo)
e) A Requerente nunca solicitou a inscrição como RNH; (por acordo)
f) Relativamente aos rendimentos que obteve em 2022 a Requerente submeteu, a 30.06.2023, Declaração Modelo 3 na qualidade de Residente e preencheu o Anexo L; (cfr. doc. 3 junto pelo SP)
g) Após submissão da Modelo 3 referida na alínea anterior, a Requerente foi notificada para erros no preenchimento com a referência “L55 - SE NIF TITULAR NÃO É RESIDENTE NÃO HABITUAL"; (cfr. doc. 4 junto pelo SP)
h) Na sequência, a Requerente, após contactos com a AT via e-balcão, submeteu nova Declaração Modelo 3 já sem Anexo L, a qual veio a ser considerada certa; (cfr. doc.s 6 e 7 juntos pelo SP)
i) Com a Declaração Modelo 3 referente aos rendimentos obtidos em 2022 a Requerente não juntou documentos comprovativos da natureza dos rendimentos que declarou e não esclareceu nem provou ter havido pagamento de imposto relativamente aos mesmos; (por acordo)
j) No ano de 2021 a Requerente estava inscrita no cadastro de contribuintes como Residente; (cfr. PA e doc. 2 junto pelo SP)
k) Relativamente aos rendimentos que obteve em 2021 a Requerente submeteu Declaração Modelo 3 na qualidade de Residente e preencheu apenas os Anexos A e B; (cfr. PA)
l) Relativamente aos rendimentos que obteve em 2020 a Requerente submeteu Declaração Modelo 3 na qualidade de Residente e preencheu apenas os Anexos A e B; (cfr. PA)
m) Na sequência da submissão pela Requerente da Declaração Modelo 3 já sem Anexo L e referente aos rendimentos obtidos em 2022, foi emitida a liquidação de IRS n.º 2023 ... (“a Liquidação”), notificada à Requerente, a que corresponde o acerto de contas Id. n.º 2023..., com valor de imposto a pagar € 12.748,17, e prazo limite de pagamento 11.09.2023; (cfr. doc. 1 junto pelo SP, e PA)
n) A Requerente anexou à Declaração Modelo 3 os Anexos B, H e J, e declarou no Anexo J rendimentos Categoria E no total de € 45.529,19, e da Liquidação consta “Imposto relativo a tributações autónomas” de € 12.748,17, “Coleta Total” de € 12.946,09, e “Valor a pagar” de € 12.748,17; (cfr. doc. 1 junto pelo SP - Demonstração de Liquidação de IRS)
o) A Requerente procedeu ao pagamento da Liquidação; (cfr. doc. junto a 13.09.2023)
p) A 06.09.2023 a Requerente deu entrada no sistema do CAAD ao PPA na origem dos autos.
3.2. Factos não provados
Nos cinco anos imediatamente anteriores a 2021 (i.e., em qualquer dos anos de 2016 a 2020 inclusive) a Requerente não foi Residente Fiscal em Portugal.
Com relevo para a decisão da causa, não existem outros factos que devam dar-se por não provados.
3.3. Fundamentação da matéria de facto
Os factos dados como provados foram-no com base nos documentos juntos aos autos, incluindo no Processo Administrativo (“PA”) - todos documentos que se dão por integralmente reproduzidos - e, bem assim, factos não controvertidos, tudo criticamente apreciado e cfr. discriminado supra.
Relativamente em especial ao facto dado como não provado, o Tribunal formou a sua convicção na apreciação crítica da documentação junta – destacando-se a Declaração de rendimentos submetida pela Requerente na qualidade de Residente Fiscal com referência aos rendimentos obtidos em 2020, v. al. l) dos factos provados – devidamente concatenada com a posição manifestada pela Requerente nos seus articulados.
Ao Tribunal cabe seleccionar, de entre os alegados pelas Partes, os factos que importam à apreciação e decisão da causa perspectivando as hipotéticas soluções plausíveis das questões de direito (v. art.º 16.º, al. e) e art.º 19.º do RJAT e, ainda, art.º 123.º, n.º 2 do CPPT e art.º 596.º do CPC[5]), abrangendo os seus poderes de cognição factos instrumentais e factos que sejam complemento ou concretização dos que as Partes alegaram (cfr. art.s 13.º do CPPT, 99.º da LGT, 90.º do CPTA e art.ºs 5.º, n.º 2 e 411.º do CPC).
4. Matéria de Direito
4.1. Questões a decidir
Cabe decidir nos presentes autos se a Liquidação, reportada aos rendimentos obtidos pela Requerente no ano de 2022, se encontra ferida de vício de violação de lei, como lhe vem imputado – vício de violação de lei por indevida não aplicação do regime fiscal do RNH. Devidamente colocado, vício de violação de lei por errada não aplicação de normas do regime do RNH.
A decidir-se pela verificação do alegado vício, haverá ainda que decidir quanto aos pedidos de devolução de quantias pagas e de juros indemnizatórios.
Caberá, ainda, a ser o caso - i.e., a seguir-se a interpretação preconizada pela Requerente sustentada em “efeitos meramente declarativos da inscrição do RNH em registo fiscal dos contribuintes” como em decisões arbitrais que convoca e a assim o Tribunal desaplicar o n.º 10 do art.º 16.º do CIRS - apreciar e decidir se se incorre em violação de determinados normativos Constitucionais, tudo como invocado pela Requerida a respeito (v. supra, p. 6).
Vejamos.
Defende a Requerente que deveriam ter sido aplicadas, no caso, as normas constantes dos art.ºs 72.º, n.º 10, e 81.º, n.º 5, al. a), do CIRS – a Liquidação padece de ilicitude, segundo pugna, na medida em que “não aplica aos rendimentos obtidos pela Requerente o regime previsto nos artigos 72.º, n.º 10, e 81.º, n.º 5, alínea a), do CIRS”.
Máxime (e no que releva para o “Valor a pagar” cfr. Liquidação), não se conforma, coligido o PPA, com a não aplicação da norma constante do art.º 81.º, n.º 5, al. a) do CIRS. Como aí se lê, artigo 17.º, “De facto, contraposta a declaração de rendimentos submetida à respetiva liquidação, e realizados os devidos cálculos, conclui-se que terá sido aplicada a taxa especial de 28%, prevista no art.º 72.º, n.º 1, alínea d), do CIRS, à soma do rendimento bruto declarado nas linhas 801, 802 e 803, do anexo J, respeitante a rendimentos de capitais (códigos E11, E22 e E21), na medida em que o resultado desse cálculo coincide com o do “imposto relativo a tributações autónomas” que consta na linha 17 da demonstração da liquidação impugnada, ou seja, a 12 748,17€ (cf. documentos n.ºs 1 e 6): / 45 529,19 € *0,28 = 12 748,17 €”. Em qualquer caso, pugna pela anulação total da Liquidação “aplicando-se aos rendimentos de categoria B resultantes de uma atividade de EVA, e de categoria E, de fonte estrangeira (Brasil), obtidos pela Requerente em 2022, respetivamente a taxa especial e o regime de isenção (...) nos termos e para os efeitos do previsto nos artigos 72.º, n.º 10, e 81.º, n.º 5, alínea a), do CIRS.”
E, para tanto, sustenta que: a Requerida não podia ter deixado de aplicar-lhe o regime especial do Residente Não Habitual (RNH), onde se incluem as ditas normas que entende deveriam, então, ter sido aplicadas.
Pois bem. Avancemos para a questão decidenda. A saber:
4.1.1. Incorre a Liquidação em vício de violação de lei ao não aplicar os art.ºs 81.º, n.º 5 e/ou 72.º, n.º 10, ambos do CIRS? [6]
Invoca, vimos, a Requerente vício de violação de lei por alegadamente na Liquidação ter sido preterida a aplicação dos dispositivos legais devidos aplicar. A saber, os já referidos artigos integrantes do regime fiscal do RNH.
Para responder à questão tratemos de muito abreviadamente percorrer, antes, os pontos de enquadramento que seguem, seguidos só depois da concretização no caso. Por fim, já a título de obitur dictum, afloraremos numa súmula o tema da inscrição como RNH a que a Requerente se refere no seu PPA.
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O regime fiscal do RNH
Estamos perante um Estatuto de Residência. Um de entre os vários Estatutos de residência consagrados pelo nosso legislador fiscal. O RNH é um sujeito passivo Residente, porém que beneficia de um regime fiscal específico. V., a respeito, em especial, o art.º 16.º do CIRS.
Um regime que poderá revelar-se bastante vantajoso, desde logo quando comparado com o regime a que estão sujeitos em IRS os rendimentos das mesmas Categorias abrangidas pelo dito regime mas quando auferidos por Residentes Fiscais tout court. Permitindo tratamentos bastante díspares de idênticas capacidades contributivas.
Determinar se um determinado indivíduo é ou não é Residente Fiscal é matéria não desprovida de dificuldades práticas, (não apenas mas também) em especial se se tiver em consideração o regime que resultou a respeito da reforma do IRS entrada em vigor a 1 de Janeiro de 2015 e, bem assim, entre o mais, a frequentemente necessária conjugação entre normas de Direito interno e normas de CDTs aplicáveis em cada caso. Considere-se, também, ser Portugal parte do Espaço Schengen, com as dificuldades que daí poderão advir a respeito.
E estamos perante um Benefício Fiscal (BF). Como assente na Doutrina, na Jurisprudência desde logo dos Tribunais Superiores, e como nem poderia deixar de ser atentando nas características do regime em questão tal como consagrado.
Os BFs são “medidas de carácter excecional instituídas para tutela de interesses públicos extrafiscais relevantes que sejam superiores aos da própria tributação que impedem” (cfr. art.º 2.º, n.º 1 do EBF). Constituem despesa fiscal, e estão apertadamente condicionados, na sua criação e funcionamento, desde logo pela nossa Lei Fundamental. V., entre o mais, os art.ºs 103.º, n.º 2, 105.º, n.º 1, al. a) e 106.º, n.º 3, al. g) da CRP. E v., ainda, os art.ºs 7.º, n.º 3 e 14.º da LGT, estabelecendo legislador no n.º 4 deste último assim: “A criação de benefícios fiscais depende da clara definição dos seus objectivos e da prévia quantificação da despesa fiscal”.
A quem pretenda beneficiar do BF em questão interessará, por um lado, ser Não Residente até um determinado momento, por cinco anos corridos, e interessará, ao invés, qualificar como Residente no ano imediatamente a seguir ao último desses. Bem como nos subsequentes 9[7] anos.
Numa categorização possível de BFs encontramos, dentro dos denominados BFs lato sensu, os BFs estáticos, por um lado (“BF stricto sensu”) e, por outro, os BF dinâmicos (“Incentivos ou estímulos fiscais”). No caso do regime do RNH estamos, é líquido, perante um BF dinâmico. Como desde logo os dispositivos constantes dos n.ºs 8 a 12 do art.º 16.º do CIRS, que veremos, o demonstram. Nas palavras de Casalta Nabais[8], estes “têm por causa a sua vinculação à opção futura do comportamento beneficiado ou do exercício futuro da actividade fomentada, na lógica de toma lá dá cá”. E ainda com o mesmo Autor: “Compreende-se assim que os incentivos fiscais (...) tenham carácter temporário, bem como a liberdade do legislador, mormente para conceder uma margem de livre decisão à Administração Tributária, tenha necessariamente de ser maior do que aquela de que dispõe em sede dos benefícios fiscais estáticos. É que os incentivos ou estímulos fiscais constituem benefícios fiscais dependentes de um acto de reconhecimento, seja este um acto de reconhecimento unilateral, um acto administrativo, como é tradicional, seja um contrato, caso em que temos benefícios fiscais dependentes de reconhecimento bilateral ou contratual (...).”[9]
Feito o enquadramento, vejamos no mais relevante aos autos, o regime legal.
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O normativo legal
O regime do RNH foi introduzido no nosso sistema pelo D.L. n.º 249/2009, de 23.09, que aprovou o Código Fiscal do Investimento - CFI (na sua versão inicial). A respectiva Lei de Autorização (Lei n.º 64-A/2008, de 31/12, LOE 2009, art.º 126.º) ditava, entre o mais:
“Regime fiscal para residentes não habituais em IRS
1 - Fica o Governo autorizado a criar um regime fiscal para residentes não habituais em IRS, alterando, em consonância, as disposições constantes do Código do IRS e da LGT.
2 - O sentido e a extensão da autorização legislativa concedida são os seguintes:
(...) O sujeito passivo adquira o direito a ser tributado como residente não habitual pelo período de 10 anos consecutivos com a respectiva inscrição dessa qualidade para efeitos cadastrais;”
E na Parte III do CFI o legislador determinou, entre o mais, assim (como também logo reflectiu no próprio CIRS, art.º 16.º, n.ºs 6 a 9):
“Regime fiscal do investidor residente não habitual
Artigo 23.º
Investidor com residência não habitual em território português
1 - Considera-se que não têm residência habitual em território português os sujeitos passivos que, tornando-se fiscalmente residentes, nomeadamente ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 16.º do Código do IRS, não tenham em qualquer dos cinco anos anteriores sido tributados como tal em sede de IRS.
2 - O sujeito passivo que seja considerado residente não habitual adquire o direito a ser tributado como tal, pelo período de 10 anos consecutivos, renováveis, com a inscrição dessa qualidade no registo de contribuintes da DGCI.
3 - O gozo do direito a ser tributado como residente não habitual em cada ano do período referido no número anterior requer que o sujeito passivo nele seja considerado residente para efeitos de IRS.
4 - O sujeito passivo que não tenha gozado do direito referido no número anterior num ou mais anos do período referido no n.º 2 pode retomar o gozo do mesmo em qualquer dos anos remanescentes daquele período, contando que nele volte a ser considerado residente para efeitos de IRS.”
Depois, com a Lei 20/2012, de 14.05, que alterou a LOE2012, foram introduzidas alterações no regime, a saber no mais relevante retirando a palavra “renováveis” que constava então do n.º 7 do art.º 16.º e passando a relevar nesse n.º sim a inscrição como Residente e, concomitantemente, criando um novo n.º, que passou a ser o n.º 8 desse art.º 16.º, no qual se determinou, e determina desde então, expressamente, o dever de solicitar a inscrição como RNH e o prazo para o efeito.
Mais no n.º 2 do art.º 5.º dessa Lei, onde se procedeu à referida alteração, estipulou o legislador: “O novo prazo previsto no n.º 8 do artigo 16.º do Código do IRS não é aplicável aos sujeitos passivos que se tenham tornado residentes em território português até 31 de dezembro de 2011 e tenham solicitado, até à data da entrada em vigor da presente lei, a inscrição como residente não habitual nos termos da redação anterior daquela disposição, a qual não previa qualquer limite temporal para a apresentação deste pedido.”[10]
Passou a ditar assim o art.º 16.º, no ora relevante:
“6 - Consideram-se residentes não habituais em território português os sujeitos passivos que, tornando-se fiscalmente residentes nos termos dos n.os 1 ou 2, não tenham sido residentes em território português em qualquer dos cinco anos anteriores.
7 - O sujeito passivo que seja considerado residente não habitual adquire o direito a ser tributado como tal pelo período de 10 anos consecutivos a partir do ano, inclusive, da sua inscrição como residente em território português.
8 - O sujeito passivo deve solicitar a inscrição como residente não habitual no ato da inscrição como residente em território português ou, posteriormente, até 31 de março, inclusive, do ano seguinte àquele em que se torne residente nesse território.
9 - O gozo do direito a ser tributado como residente não habitual em cada ano do referido no n.º 7 depende de o sujeito passivo ser, nesse ano, considerado residente em território português.
10 - O sujeito passivo que não tenha gozado do direito referido no número anterior em um ou mais anos do período referido no n.º 7 pode retomar o gozo do mesmo em qualquer dos anos remanescentes daquele período, a partir do ano, inclusive, em que volte a ser considerado residente em território português.”
Por fim, pelo DL 41/2016, de 01.08 no uso da Autorização Legislativa constante da LeiOE2016 veio o legislador ainda alterar o CIRS a este respeito. No Preâmbulo deste DL lê-se, entre o mais, assim:
“Importa identificar os contornos destas autorizações legislativas, que compreendem conteúdos específicos, referentes a cada tipo de imposto em causa. Assim, e no que se refere ao Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (Código do IRS), é alterado o prazo de entrega da declaração oficial a que se refere o n.º 5 do artigo 10.º-A daquele Código, em virtude de, no prazo atualmente previsto, os sujeitos passivos não disporem ainda dos elementos necessários para o preenchimento da mencionada declaração.
É igualmente alterada a forma de inscrição do sujeito passivo como residente não habitual a que se refere o n.º 10 do artigo 16.º do Código do IRS, com vista à implementação de um procedimento eletrónico, prevendo-se assim, no presente decreto-lei, que o sujeito passivo deve solicitar a inscrição como residente não habitual, por via eletrónica, no Portal das Finanças, posteriormente ao ato da inscrição como residente em território português. (....).”
E foi assim que o art.º 16.º, no seu n.º 10, passou a ditar assim:
“10 - O sujeito passivo deve solicitar a inscrição como residente não habitual, por via eletrónica, no Portal das Finanças, posteriormente ao ato da inscrição como residente em território português e até 31 de março, inclusive, do ano seguinte àquele em que se torne residente nesse território.”
Assim se chegando à versão do art.º 16.º em vigor ao tempo dos factos, como segue no ora mais relevante:
“Artigo 16.º - Residência
1 - São residentes em território português as pessoas que, no ano a que respeitam os rendimentos:
a) Hajam nele permanecido mais de 183 dias, seguidos ou interpolados, em qualquer período de 12 meses com início ou fim no ano em causa;
b) Tendo permanecido por menos tempo, aí disponham, num qualquer dia do período referido na alínea anterior, de habitação em condições que façam supor intenção atual de a manter e ocupar como residência habitual;
(…)
2 - Para efeitos do disposto no número anterior, considera-se como dia de presença em território português qualquer dia, completo ou parcial, que inclua dormida no mesmo.
3 - As pessoas que preencham as condições previstas nas alíneas a) ou b) do n.º 1 tornam-se residentes desde o primeiro dia do período de permanência em território português, salvo quando tenham aí sido residentes em qualquer dia do ano anterior, caso em que se consideram residentes neste território desde o primeiro dia do ano em que se verifique qualquer uma das condições previstas no n.º 1.
4 - A perda da qualidade de residente ocorre a partir do último dia de permanência em território português, salvo nos casos previstos nos n.os 14 e 16.
(…)
8 - Consideram-se residentes não habituais em território português os sujeitos passivos que, tornando-se fiscalmente residentes nos termos dos n.os 1 ou 2, não tenham sido residentes em território português em qualquer dos cinco anos anteriores.
9 - O sujeito passivo que seja considerado residente não habitual adquire o direito a ser tributado como tal pelo período de 10 anos consecutivos a partir do ano, inclusive, da sua inscrição como residente em território português.
10 - O sujeito passivo deve solicitar a inscrição como residente não habitual, por via eletrónica, no Portal das Finanças, posteriormente ao ato da inscrição como residente em território português e até 31 de março, inclusive, do ano seguinte àquele em que se torne residente nesse território.
11 - O direito a ser tributado como residente não habitual em cada ano do período referido no n.º 9 depende de o sujeito passivo ser considerado residente em território português, em qualquer momento desse ano.
12 - O sujeito passivo que não tenha gozado do direito referido no número anterior em um ou mais anos do período referido no n.º 9 pode retomar o gozo do mesmo em qualquer dos anos remanescentes daquele período, a partir do ano, inclusive, em que volte a ser considerado residente em território português.”
No CIRS, entretanto, ainda por fim:
Dispõem as normas convocadas pela Requerente, que entende deveriam ter sido aplicadas:
Art.º 72.º - Taxas especiais
(...)
10 – Os rendimentos líquidos das categorias A e B auferidos em actividades de elevado valor acrescentado, com carácter científico, artístico ou técnico, a definir em portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças, por residentes não habituais em território português, são tributados à taxa de 20%.
Art.º 81.º - Eliminação da dupla tributação jurídica internacional[11]
(...)
5 - Aos residentes não habituais em território português que obtenham, no estrangeiro, rendimentos da categoria B, auferidos em atividades de prestação de serviços de elevado valor acrescentado, com carácter científico, artístico ou técnico, a definir em portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças, ou provenientes da propriedade intelectual ou industrial, ou ainda da prestação de informações respeitantes a uma experiência adquirida no setor industrial, comercial ou científico, bem como das categorias E, F e G, aplica-se o método da isenção, bastando que se verifique qualquer uma das condições previstas nas alíneas seguintes:
a) Possam ser tributados no outro Estado contratante, em conformidade com convenção para eliminar a dupla tributação celebrada por Portugal com esse Estado;”
No EBF, ainda, v. como se dispõe no art.º 5.º:
“Artigo 5.º - Benefícios fiscais automáticos e dependentes de reconhecimento
1 - Os benefícios fiscais são automáticos ou dependentes de reconhecimento; os primeiros resultam directa e imediatamente da lei, os segundos pressupõem um ou mais actos posteriores de reconhecimento.
2 - O reconhecimento dos benefícios fiscais pode ter lugar por acto administrativo ou por acordo entre a Administração e os interessados, tendo, em ambos os casos, efeito meramente declarativo, salvo quando a lei dispuser em contrário. /(...)”
Com interesse no EBF v., ainda, entre o mais os art.ºs 10.º e 12.º. Referindo nós singelamente quanto ao primeiro destes que qualquer interpretação extensiva se deverá conter np espírito da política económica e objectivos traçados para o BF em questão, e, quanto ao último, que a respeito é de atentar no n.º 11 do art.º 16.º do IRS em que o legislador determina a necessedidade de verificação, ano a ano, dos requisitos de qualificação para o Estatuto de RNH.
Por relevante, v. também o DL n.º 14/2013, de 28.08, que institui o NIF e condições conexas, (bem como o DL 463/79, que o antecedeu). Com interesse v., entre o mais, o que aí se dispõe no art.º 34.º quanto à eficácia perante a Administração Tributária da comunicação dos factos sujeitos a registo.
Percorrida a evolução histórica do regime, e com o enquadramento feito, apreciemos então o caso.
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O caso concreto
No caso, por um lado, da prova carreada nos autos resulta que a Requerente não dispunha de Estatuto de RNH no ano em questão.
Mas mais. E ainda que tal não se entendesse (que entendemos, como se verá infra) relevante:
Como também no probatório supra, não se provou que a Requerente nos cinco anos imediatamente anteriores a 2021 (i.e., em qualquer dos anos de 2016 a 2020 inclusive) a não tenha sido Residente Fiscal em Portugal.
V. em especial a factualidade provada cfr. al. l[12] do probatório.
Estabelecendo o regime em questão - maxime n.º 8 do art.º 16.º - como condição para poder aceder ao regime, a de o sujeito passivo não ter sido Residente em território português em qualquer dos cinco anos anteriores àquele em que adquirirá o direito a ser tributado enquanto tal, e vindo a Requerente defender que lhe deveria ser aplicado o regime em 2022 por em 2021 já reunir as condições para tal, reconhecendo expressamente que em 2021 havia qualificado como Residente Fiscal em Portugal, não vemos senão como improceder o invocado vício de violação de lei. Logo por aí.
Ademais não tendo, em qualquer momento anterior, pretendido junto da Requerida que lhe fosse aplicado o regime. (V., também, os factos provados cfr al.s k) e l) supra).
Não tinha, assim, vocação de aplicação o regime do RNH no caso, não cumprida que estava – desde logo – essa condição, aplicável, de a Requerente não poder ter sido Residente Fiscal em nenhum dos cinco[13] anos anteriores ao ano em questão, em que pretende o mesmo regime lhe seja aplicado.
Improcede, desde logo por aqui, o invocado vício.
Sem prejuízo do mais que se dirá infra.
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Obitur dictum: o n.º 10 do art.º 16.º do CIRS, pedido de inscrição como RNH e prazo para o efeito
Tudo o visto como vem de percorrer-se, entendemos, pois, que estamos perante um BF dependente de reconhecimento. BF não automático, portanto – v. art.º 5.º, n.º 1 do EBF (supra). O que logo decorre, aliás também, diga-se, do próprio estabelecimento de um prazo pelo legislador para solicitar a inscrição como RNH (cfr. n.º 10 do art.º 16.º).
Como terá ficado aproximado, em todo o contexto que se percorreu, a norma que o legislador veio expressamente introduzir em 2012, estabelecendo um prazo para ser solicitada a inscrição como RNH, retirando a característica de “renovável” ao BF tal como do normativo constava, e mantendo a possibilidade de gozo do mesmo por um período máximo de 9[14] anos subsequentes ao da qualificação como RNH - a obter através do que o legislador entendeu exteriorizar assim: “deve solicitar a inscrição como residente não habitual” – é uma norma anti-abuso.
Resulta-nos tal claro seja pela contextualização devida, que abreviadamente deixámos, seja pelo próprio funcionamento do regime - tenha-se em conta o disposto no n.º 11 que mantém a necessidade de verificação ano a ano das condições, como bem se compreende... por tudo o que também aflorámos -, seja, entre o mais também, se atentarmos nas regras próprias por que se pautam os benefícios a que o RNH acede. Com efeito, não será desinteressante a um sujeito passivo fazer uso do regime apenas nos anos em que os rendimentos que obtiver disso obtenham vantagem em termos de tributação, e não já noutros em que tal não suceda. V., por exemplo, o que sucede com rendimentos da Cat. A que possam ser auferidos – por hipótese até a título de indemnização por cessação de contrato de trabalho determinada antes da deslocaç\ao da residência para o nosso país, e a que apenas será de vantagem o regime se e na medida em que no pais da fonte ocorra tributação efectiva. Outras concretizações que pudéssemos conjecturar da aplicação do regime nos poderiam levar a entender neste mesmo sentido, da tentação de um fazer uso do mesmo à la carte. O que, estamos certos, o nosso legislador não terá pretendido, ao consagrar o regime em questão. Como legislador razoável que tem que se presumir que é, a legislar dentro do espírito do Sistema. E tendo em consideração tudo o mais que se referiu acima em matéria de consagração legal de BFs. (Tenha-se em atenção também o mais no art.º 9.º do CC para que somos remetidos pelo art.º 11.º da LGT).
Dito isto,
O direito a fazer utilização do BF em questão ficou, por lei, dependente de reconhecimento. Reconhecimento por acto administrativo, de efeito meramente declarativo. Como nem poderia deixar de ser, por tudo o que se viu, e até também uma vez que ano a ano terão que se reunir, à mesma, as condições para o gozo do mesmo. Por outras palavras, é sim dependente de solicitação por parte do SP a obtenção do Estatuto de RNH que lhe concede acesso às vantagens fiscais aí implicadas.
Em abono da necessidade de tal manifestação de vontade por parte do contribuinte, e da figura do – necessariamente constante dos registos da Requerida - Estatuto de RNH é unânime seja a Doutrina, seja a Jurisprudência dos Tribunais Superiores. V., a título de exemplo, na primeira, e genericamente neste sentido, Ricardo da Palma Borges e Pedro Ribeiro de Sousa, in “O novo regime fiscal dos RNH”[15]; v., também, Paula Rosado Pereira, in Manual de IRS[16].[17]
V. ainda o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 718/2017, de 15.11.2017, proc.º n.º 723/2016.
E v. o próprio Acórdão do STA, de 29.05.2024, proc.º 0842/23.9BESNT, que a Requerente ainda veio convocar, e no qual não deixa de se seguir o entendimento de que o pedido de inscrição como RNH é condição necessária (e que nessa parte acompanhamos).
A Segurança Jurídica, que se impõe na matéria, e a que sempre haverá que atender em matéria de direitos indisponíveis, não permitiria, quanto a nós, distinta interpretação.
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Há, pois, em qualquer caso, que responder à questão decidenda que:
Não, a Liquidação não padece de vício de violação de lei como vem invocado pela Requerente.
E também, uma vez que não se seguiu a interpretação preconizada pela Requerente sustentada em “efeitos meramente declarativos da inscrição do RNH em registo fiscal dos contribuintes” como em decisões arbitrais que convoca e o Tribunal não desaplicou o n.º 10 do art.º 16.º do CIRS, não há violação de qualquer normativo Constitucional invocado pela Requerida a respeito.
5. Devolução de quantias e juros indemnizatórios
Face ao que antecede, conclui-se que não houve pagamento de quantias indevidas, não se reunindo, também, os pressupostos do art.º 43.º, n.º 1 da LGT de cuja verificação depende a dívida de juros indemnizatórios. Improcedem, assim, ambos estes pedidos.
6. Decisão
Termos em que decide este Tribunal Arbitral julgar totalmente improcedente o PPA, e assim:
Absolver a Requerida de todos os pedidos, mantendo-se a Liquidação de IRS melhor identificada supra na Ordem Jurídica.
7. Valor do processo
Nos termos conjugados do disposto nos art.ºs 3.º, n.º 2 do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, 97.º-A, n.º 1, al. a) do CPPT, e 306.º, n.º 2 do CPC, fixa-se o valor do processo em € 12.748,17.
8. Custas
Conforme disposto no art.º 22.º, n.º 4 do RJAT, no art.º 4.º, n.º 4 do Regulamento já referido e na Tabela I a este anexa, fixa-se o montante das custas em € 918,00, a cargo da Requerente.
Lisboa, 15 de Novembro de 2024
O Árbitro
(Sofia Ricardo Borges)
[1] Sempre que, na presente, nos referirmos a normas legais sem indicação do respectivo Diploma estaremos a referir-nos ao CIRS.
[2]Diplomas legais aplicáveis ex vi art.º 29.º, n.º 1 do RJAT (e assim sempre que para os mesmos se remeter na presente).
[3] V. Manuel de Andrade, "Noções Elementares de Processo Civil", Coimbra 1979, pág. 91
[4] (Portaria n.º 212-A/2011, de 22 de Março)
[5]Estes últimos Diplomas legais aplicáveis ao nosso processo ex vi art.º 29.º, n.º 1 do RJAT (e assim sempre que para eles se remeter na presente Decisão).
[6]Quaisquer sublinhados e/ou negritos ao longo da presente serão nossos, salvo se indicado em contrário.
[7] De acordo com o Despacho de Retificação de 2024-11-21
[8] José Casalta Nabais, “Problemas Nucleares de Direito Fiscal”, Almedina, 2020.
[10] (A parte III do CFI foi então também revogada, passando o regime a constar apenas do CIRS).
[11] Reportamo-nos sempre às normas na versão aplicável ao caso (IRS 2022).
[12] De acordo com o Despacho de Retificação de 2024-11-21
[13] De acordo com o Despacho de Retificação de 2024-11-21
[14] De acordo com o Despacho de Retificação de 2024-11-21.
[15] In Fiscalidade, n.º 40, ISG
[16] De acordo com o Despacho de Retificação de 2024-11-21
[17] V. aí entre o mais pág. 60 na 1.ª Ed.