Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 237/2024-T
Data da decisão: 2024-10-31   Outros 
Valor do pedido: € 22.535,44
Tema: Impugnação de Contribuição de Serviço Rodoviário por sujeito repercutido. Falta de indicação e impossibilidade de identificação dos atos de liquidação impugnados.
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SUMÁRIO:

  1. A Contribuição de Serviço Rodoviário é um imposto, pelo que um pedido de anulação de liquidações deste tributo se encontra abrangido não apenas no âmbito da competência material dos tribunais arbitrais, definida pelo artigo 2.º do RJAT, como também no âmbito da vinculação prévia da Autoridade Tributária, definido pela Portaria nº 112-A/2011, de 22 de março.
  2. Não é possível ao tribunal arbitral, sendo o processo arbitral tributário um processo contencioso de anulação, condenar a Autoridade Tributária ao reembolso de importâncias de impostos indevidamente repercutidas sem, primeiramente, anular as liquidações do imposto repercutido.
  3. Não conseguindo a Requerente identificar, nem fornecendo elementos que permitam identificar as liquidações de CSR correspondentes ao combustível adquirido, falta inteligibilidade ao pedido, na parte que se refere à identificação do objeto, importando a ineptidão da petição inicial.

 

DECISÃO ARBITRAL

I - RELATÓRIO

A..., LDA, pessoa coletiva nº..., com sede na Rua..., nº ..., ..., ...-... ..., apresentou, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”) e do artigo 99º e seguintes do CPPT, pedido de constituição de tribunal arbitral, com vista à declaração de ilegalidade do ato de indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa das liquidações de Imposto Especial sobre o Consumo relativas aos períodos compreendidos entre julho de 2019 e dezembro de 2022, liquidadas e pagas pela B..., pessoa coletiva nº ..., na parte correspondente à Contribuição de Serviço Rodoviário (CSR).

É Requerida no pedido a AT - AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA.

Em 04.03.2014, não se encontrando ainda o tribunal constituído, a Requerida apresentou requerimento dirigido ao Sr. Presidente do CAAD, pedindo que a Requerente fosse notificada para vir identificar os atos de liquidação impugnados.

Em resposta a este requerimento, em 05.03.2024, o Sr. Presidente do CAAD emitiu o seguinte despacho:

 “Exmo(a) Senhor(a) Requerida,

Com referência ao Processo em epígrafe e na sequência da comunicação da Autoridade Tributária envie-se a mesma ao Tribunal Arbitral a constituir, por ser esse o órgão competente para a sua apreciação.

Notifique-se.”

Ainda em resposta ao mesmo requerimento, em 11.03.2024, veio a Requerente comunicar o seu entendimento de que:

  1. Os atos de liquidação se encontravam devidamente identificados no pedido, através da indicação das faturas referentes a compras de combustível, nas quais se contém a CSR repercutida;
  2. Não dispondo a Requerente das respetivas Declarações de Introdução no Consumo, cabe à Requerida carreá-las ao processo.

Por decisão do Presidente do Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa foi a signatária designada como árbitro único no processo arbitral. Nestas circunstâncias, e em conformidade com o disposto na alínea c) do n.º 1 e n.º 8 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral foi constituído em 02.05.2024.

Por despacho do tribunal de 07.05.24, nos termos do artigo 17.º, n.ºs 1 e 2 do RJAT, a AT foi notificada para, no prazo de 30 dias, apresentar resposta, e, no mesmo prazo, remeter ao Tribunal cópia do processo administrativo, o que aquela fez em 10.06.2024.

Na sua resposta, a Autoridade Tributária suscitou as exceções de incompetência material do tribunal, de ilegitimidade processual e substantiva da Requerente, da ineptidão da petição inicial, da falta de objeto do processo e da caducidade do direito de ação.

Em 20.06.2024, a Requerente remeteu ao Tribunal requerimento (dirigido, assumimos que por lapso, ao Sr. Presidente do Centro de Arbitragem Administrativa) em que respondeu à matéria de exceção suscitada.

Por despacho de 28.08.2024, o Tribunal dispensou a realização da reunião prevista no artigo 18º do RJAT, dispensando igualmente a produção de alegações.

 

II – POSIÇÃO DAS PARTES

  1. Da Requerente
  • No âmbito da aquisição de gasóleo rodoviário à B..., a Requerente procedeu ao pagamento de Contribuição de Serviço Rodoviário;
  • Uma vez que a CSR incide sobre os produtos sujeitos a Imposto sobre os Produtos Petrolíferos, sendo a B... um sujeito passivo de ISPP e, por conseguinte, CSR, esta sociedade, por ter introduzido no consumo o gasóleo vendido à Requerente, é sujeito passivo destes impostos;
  • Ao abrigo do princípio da equivalência estabelecido no artigo segundo do Código dos IEC, estes impostos devem ser imputados ao respetivo utilizador que, neste caso, é o consumidor de gasolina e gasóleo rodoviários;
  • Assim, no que diz respeito à Requerente, a B..., enquanto fornecedora de gasóleo rodoviário, liquidou e cobrou a CSR à Requerente bem como aos seus demais clientes conforme as faturas juntas ao processo;
  • Após liquidar e cobrar a CSR junto dos seus clientes, a B... foi notificada da liquidação de imposto, procedendo ao respetivo pagamento até a último dia útil do mês;
  • Assim, entre 7/2019 e 12/2022, nas e-DIC entregues diariamente pela B... nos períodos referidos, constarão as vendas feitas à Requerente, e nas quais a Requerente suportou o montante relativo a CSR que, tal como o ISP, na parcela relativa à Contribuição de Serviço Rodoviário, lhe foram repercutidos pela B...;
  • Sucede que os atos de liquidação, na parte correspondente a CSR suportada pela Requerente entre os períodos de julho de 2019 e dezembro de 2022, resultantes das declarações de introdução no consumo submetidas pela B... e por esta paga até ao final do mês seguinte são ilegais;
  • As liquidações são ilegais por a CSR ser um imposto ilegal, por desconformidade com o artigo 1º nº 2 da Diretiva nº 2008/118 de 16 de dezembro.

 

  1. Da Requerida

Em síntese, a Requerida alega o seguinte, na sua resposta:

  1. Por exceção
  1. Incompetência do tribunal em razão da matéria
  • Sendo a CSR uma contribuição, e não um imposto, as matérias que lhe digam respeito encontram-se excluídas da arbitragem tributária, por ausência de enquadramento legal;
  • Além disso, o tribunal arbitral é também incompetente porque, como resulta do teor do pedido, a Requerente suscita junto desta instância arbitral a legalidade do regime da CSR, no seu todo. Pretendendo a Requerente, em rigor, a não aplicação de diplomas legislativos aprovados por Lei da Assembleia da República, decorrentes do exercício da função legislativa, visa, com a presente ação, suspender a eficácia de atos legislativos. Sucede que, conforme decorre do RJAT, a instância arbitral constitui um contencioso de mera anulação. E este contencioso não consente nem o escrutínio sobre a integridade de normas emanadas no exercício da função político-legislativa do Estado, nem a pronúncia sobre a restituição de valores/montantes, por conta da declaração de ilegalidade ou anulação de atos de liquidação (o que só pode ser determinado em sede de execução da decisão);
  • Ainda que se considerasse a competência do tribunal arbitral para a apreciação da ilegalidade dos atos de liquidação de ISP/CSR (que a Requerente não consegue identificar), nunca poderia o tribunal arbitral pronunciar-se sobre atos de repercussão da CSR, subsequentes e autónomos dos atos de liquidação de ISP/CSR, e que para mais, não correspondem a uma repercussão legal, mas a uma repercussão meramente económica ou de facto;
  • Apenas os sujeitos passivos que tenham procedido à introdução no consumo dos produtos em território nacional e provem o pagamento dos respetivos ISP/CSR possuem legitimidade para solicitar o reembolso do valor pago, de acordo com o regime previsto no CIEC (artigos 15.º a 20.º);
  • Uma vez que não provou ter pago imposto algum, a Requerente não tem legitimidade nem para apresentar o pedido de revisão oficiosa nem, consequentemente, o presente pedido arbitral, nos termos do n.º 2 do artigo 15.º do CIEC e dos n.º 3 e alínea a) do n.º 4 do artigo 18.º da LGT;
  • Inexistindo efetiva titularidade do direito que se arroga, carece a Requerente de legitimidade processual, o que consubstancia uma exceção dilatória nos termos do vertido nos artigos 576.º, nº 1 e nº 2, 577.º, al. e) e 578.º do CPC, aplicáveis ex vi do artigo 29.º, n.º 1 al. e) do RJAT, a qual prejudica o conhecimento do mérito da causa, devendo, consequentemente, a Requerida ser absolvida da instância;
  • Caso assim não se entenda, carece a Requerente de legitimidade substantiva, o que consubstancia uma exceção perentória nos termos e para o efeito do disposto nos artigos 576.º n.º1 e n.º3 e 579.º do CPC, aplicáveis ex vi do artigo 29.º, n.º1 al. e) do RJAT, devendo a Requerida ser absolvida do pedido;
  • A Requerente alude a diversos atos tributários, sem que, em momento algum, identifique quaisquer atos de liquidação de ISP/CSR praticados pela administração tributária e aduaneira, nem as DIC submetidas pelos alegados sujeitos passivos de imposto;
  • A Requerente limitou-se a identificar e apresentar faturas de aquisição de combustíveis à sua fornecedora, alegando que esta terá, na qualidade de sujeito passivo de ISP/CSR, procedido à introdução no consumo dos produtos adquiridos pela Requerente, faturas estas que, no entanto, não comprovam qualquer ato tributário e de onde também não resulta qualquer prova de “atos de repercussão da CSR”;
  • Por outro lado, é impossível à AT suprir a falha relativa à identificação dos atos tributários, porquanto se revela impraticável estabelecer qualquer correspondência entre os atos de liquidação praticados em relação aos sujeitos passivos de ISP/CSR e o alegado pela Requerente;
  • As enormes quantidades de produtos introduzidas no consumo durante um mês declarativo e objeto de globalização das DIC, para efeitos da efetivação de uma única liquidação, são destinadas a uma multiplicidade de destinos/clientes;
  • Pelo que, é totalmente impossível à AT identificar os atos de liquidação subjacentes à declaração dos produtos para o consumo, que vão sendo transacionados ao longo da cadeia de comercialização;
  • Deste modo, verifica-se a exceção de ineptidão da petição inicial, na medida em que o pedido arbitral não identifica qualquer ato tributário, violando o requisito da al. b) do n.º 2 do artigo 10.º do RJAT, o que determina a nulidade de todo o processo, e, obstando a que o tribunal conheça do mérito da causa, dá lugar à absolvição da instância, conforme artigos 186.º, n.º 1, 576.º, n.ºs 1 e 2, 577.º, al. b) e 278.º, nº 1, al. b), do CPC, aplicáveis ex vi do artigo 29.º do RJAT, devendo, consequentemente, determinar-se a nulidade de todo o processo e a absolvição da Requerida da instância;
  • Existe ainda ineptidão da petição inicial por existir uma contradição entre o pedido – anulação das liquidações e do indeferimento tácito da revisão dessas liquidações – e a causa de pedir – a repercussão de um tributo inválido por desconformidade desse tributo com o Direito da EU;
  • A circunstância de a Requerente não ter logrado identificar qualquer ato tributário cuja legalidade pretende sindicar, determina, para além de outras consequências já abordadas, que se torne impossível aferir da tempestividade do pedido de revisão oficiosa das liquidações formulado pela Requerente, uma vez que a contagem do prazo para a apresentação dos referidos pedidos se inicia a partir do termo do prazo de pagamento do imposto, tendo por referência a data do ato de liquidação (global);
  • Mas mesmo que assim não fosse, o certo é que o pedido de revisão oficiosa foi apresentado para além do prazo de 120 dias estabelecido no nº 1 do artigo 78º da LGT;

 

  1. Por impugnação
  • Confrontando o alegado pela Requerente com os documentos cuja junção aos autos logrou pedir, facilmente se conclui que estes, em momento algum, sustentam as suas afirmações, designadamente que esta tenha pago e suportado integralmente o encargo do pagamento da CSR por repercussão;
  • A fornecedora que a Requerente menciona não possui estatuto fiscal em sede de ISP, pois que da consulta à aplicação Gestão de Informação de Suporte (GIS) verifica-se que a fornecedora indicada - não é titular de estatuto fiscal no âmbito do ISP, e como tal não poderá ter sido responsável pela introdução dos produtos no consumo nem pelo pagamento da CSR correspondente , tendo sido mera intermediária no processo;
  • Nada é referido nas faturas apesentadas acerca da CSR, nem, muito menos, quanto à sua repercussão na esfera da Requerente, não comportando estas qualquer elemento que espelhe o pagamento da referida contribuição;
  • As faturas anexas ao pedido arbitral acarretam ainda outro problema, dado que estas apresentam parcelas sob a denominação descontos e que carecem, em absoluto, de descritivo, ficando por esclarecer qual a sua natureza e respetivo conteúdo;
  • Tudo o que se refere leva à inevitável conclusão de que não resulta provado que o valor pago pela Requerente no âmbito da aquisição de combustíveis inclui a totalidade (ou sequer, parte) da CSR paga pelo sujeito passivo de ISP/CSR.

 

  1. Da Requerente, quanto à matéria de exceção

No requerimento em que se pronuncia sobre a matéria de exceção suscitada, a Requerente aduz contra a procedência das exceções invocadas os seguintes argumentos:

  • A CSR é um imposto e não uma mera contribuição financeira, pelo que o tribunal arbitral é competente;
  • Têm legitimidade para intervir no processo tributário todos aqueles que demonstrem ter um interesse legalmente protegido, cuja proteção dependa desse processo, mesmo que não sejam legalmente responsáveis pelo cumprimento de quaisquer obrigações fiscais;
  • Considerando-se a clara repercussão do encargo tributário na esfera da Requerente, e tendo a Autoridade Tributária pleno conhecimento disso, conclui-se necessariamente que a Requerente tem legitimidade para apresentar o presente pedido de arbitragem fiscal e, portanto, para intervir no processo arbitral tributário, invocando-se este facto para os devidos efeitos legais;
  • Quanto à invocada exceção de ineptidão da petição inicial, a Requerente assume a qualidade de entidade que suporta o encargo por efeito da repercussão, não lhe competindo o ónus de identificação e de comprovação dos atos de liquidação repercutidos, nem a prova da conexão entre os atos de liquidação e as faturas de compra que revelam a repercussão do imposto;
  • Mais, e como era esperável ser do conhecimento da AT, o contribuinte encontra-se impossibilitado de obter elementos de informação que estão na posse de uma terceira entidade. 43º. Deve fazer-se notar, a este propósito, que, independentemente do critério de repartição do ónus da prova ao caso aplicável, a AT está vinculada, ao nível do procedimento, ao princípio da verdade material, pelo qual lhe cabe o poder-dever de realizar todas as diligências que entenda serem úteis para a descoberta da verdade, constituindo um afloramento deste princípio o disposto no artigo 58.º da LGT;
  • Além de que os órgãos da Administração Pública estão sujeitos a um princípio de colaboração, e, como tal, devem atuar em estreita colaboração com os particulares, cumprindo-lhes, designadamente, prestar aos particulares as informações e os esclarecimentos de que careçam, apoiar e estimular as suas iniciativas e receber as suas sugestões e informações;
  • A AT, no âmbito do procedimento de revisão oficiosa, omitiu quaisquer diligências que permitissem verificar a existência dos atos de liquidação de imposto e a sua correlação com as faturas onde o imposto se encontra repercutido;
  • Somente se verifica, efetivamente, falta de causa de pedir, ou contradição entre esta e o respetivo pedido, quando não sejam alegados quaisquer factos relevantes para tal, que não permita, segundo um juízo de prognose, delimitar minimamente o alcance objetivo do caso julgado material que venha a recair, positiva ou negativamente, sobre a pretensão deduzida;
  • É entendimento unânime que a revisão oficiosa do ato tributário pode ser efetuada a pedido do contribuinte no prazo de quatro anos contados da liquidação (ou a todo o tempo se o tributo ainda não tiver sido pago) quando houver erro imputável aos serviços, devendo entender-se como tal o erro material, o erro de facto ou o erro de direito, independentemente da demonstração da culpa dos funcionários envolvidos na emissão da liquidação;
  • É o que resulta do disposto no artigo 78.º, n.º 7, da LGT, pelo qual a revisão oficiosa, nos termos previstos no n.º 1 desse artigo, pode ser desencadeada pelo sujeito passivo mediante requerimento dirigido ao órgão competente da Administração Tributária e com base nos mesmos pressupostos legais: no prazo de quatro anos e com fundamento em erro imputável aos serviços.

 

III - SANEAMENTO

O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído.

As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciária e encontram-se devidamente representadas.

Não existem incidentes que importe decidir.

A cumulação de pedidos é admissível ao abrigo do art.º 104.º, n.º 1 al. b) CPPT, aplicável ao processo tributário por força da al. a) do nº 1 do art.º 29.º do RJAT, uma vez que a apreciação dos pedidos cumulados tem por base as mesmas circunstâncias de facto, e os mesmos são suscetíveis de ser decididos com base na aplicação das mesmas normas a situações de facto do mesmo tipo.

A Autoridade Tributária suscitou as exceções de incompetência material do tribunal, ineptidão da petição inicial, de ilegitimidade processual e substantiva da Requerente e da caducidade do direito de ação.

Por obstarem, todas as exceções suscitadas, ao conhecimento do mérito do pedido, devem ser apreciadas antes de entrar nesse conhecimento.

O conhecimento das exceções dilatórias deve obedecer à ordem estabelecida nos arts. 595.º, n.º 1, al. a), e 278.º do NCPC. O conhecimento da matéria de ineptidão da petição inicial precede o de todas as restantes exceções dilatórias, uma vez que gera a nulidade de todo o processo (Ac. TRC de 21-11-2023, proc. 158/19.5T8LRA.C2. Rel: Arlindo Oliveira).

Vejamos:

O artigo 98º, n.º 1, alínea a) do CPPT, subsidiariamente aplicável ao processo arbitral tributário por força do disposto no artigo 29º, n.º 1, alínea d) do RJAT, indica como uma das nulidades insanáveis do processo judicial tributário, a ineptidão da petição inicial.

Por seu turno, sobre o que se considera constituir ineptidão da petição inicial, dispõe o artigo 186º, n.º 1 do CPC, também subsidiariamente aplicável ao processo arbitral tributário por força do artigo 29º, nº 1, alínea e) do RJAT, que se diz inepta a petição inicial:

  1. Quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir
  2. Quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir;
  3. Quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis.

No caso vertente estão à partida excluídas as causas das alíneas b) e c), pelo que haverá que averiguar se se verifica a situação prevista na al. a): falta ou ininteligibilidade da indicação do pedido ou da causa de pedir.

O pedido existe. A Requerente pede que o Tribunal arbitral declare a ilegalidade das liquidações de CSR efetuadas pela Autoridade Tributária e Aduaneira com base nas DIC (declarações de introdução no consumo) submetidas pelas fornecedoras de combustíveis.

A causa de pedir reside na ilegalidade da própria CSR, por violação do Direito da União Europeia, nomeadamente da Diretiva 2008/118/CE do Conselho, de 16 de Dezembro de 2008, relativa ao regime geral dos impostos especiais de consumo, por não prosseguir “motivos específicos” e no facto de ter existido repercussão desse imposto ilegal no preço do combustível cobrado à Requerente. A causa de pedir é, pois, claramente inteligível.

Quanto à inteligibilidade do pedido, consideramos que esta pode ter várias dimensões. Uma delas é a da formulação do pedido em termos linguísticos e lógicos inteligíveis. Essa inteligibilidade não se põe em causa no caso dos autos. Mas uma outra vertente é a identificação do objeto do pedido.

Como já se disse no acórdão arbitral emanado no processo 604/2023-T, em que fomos relatora, para a inteligibilidade do pedido “não basta que o pedido seja claro em abstrato na sua formulação, mas é ainda necessário que ele seja suficientemente concretizado para poder servir de base ao processo, ie, para que o Tribunal possa efetivamente conhecer o objeto do processo.” E concretizar o pedido, no caso do contencioso de anulação de atos administrativos, “significa necessariamente identificar os atos cuja anulação se pretende, como, aliás decorre do artigo 108º do CPPT, quando estipula que “[A] impugnação será formulada em petição articulada, dirigida ao juiz do tribunal competente, em que se identifiquem o ato impugnado e a entidade que o praticou e se exponham os factos e as razões de direito que fundamentam o pedido”.

Importa, pois, ver se estão identificados os atos de liquidação impugnados e se, a verificar-se falta dessa identificação, esta compromete irremediavelmente a inteligibilidade do pedido.

Desde logo, efetivamente, não encontramos no pedido de pronúncia arbitral a identificação dos atos de liquidação de CSR cuja anulação é pedida.

A Requerente pede a declaração de ilegalidade das “liquidações de Imposto Especial sobre o Consumo relativas aos períodos compreendidos entre 7/2019 e 12/2022, liquidadas e pagas pela “B...”, na parte correspondente à contribuição do serviço rodoviário (CSR) que foi paga através do mecanismo de repercussão pela requerente”, apresentando em seguida uma lista de faturas relativas a aquisições de combustível efetuadas por si naquele período, e nas quais, segundo alega, estaria incluída a CSR.

É clara e compreensível a intenção da Requerente de identificar as liquidações de CSR impugnadas através da sua correspondência com os atos de repercussão da mesma CSR no preço das aquisições de combustível efetuadas pela Requerente às suas fornecedoras. O que seria, aliás, perfeitamente viável se estivéssemos perante uma repercussão formal, como existe no IVA.

O problema, que faz com que a construção da Requerente não possa ser aceite, está em que uma tal correspondência, entre a liquidação de CSR e a as faturas de aquisição de combustível – das quais não consta qualquer menção à CS – não é suscetível de ser realizada por não existir um ato de repercussão formal. Ao contrário do que acontece no IVA, em que são os atos de repercussão do imposto (no preço cobrado ao adquirente), efetuados anteriormente à liquidação de IVA propriamente dita, que determinam esta, quanto ao seu montante e quanto ao seu período temporal, existindo uma correspondência exata entre o ato de repercussão e a liquidação de IVA, no caso da CSR (mesmo admitindo, a priori, que existem atos de repercussão), estes não estão formalmente ligados ao ato de liquidação.

Os atos de repercussão - a existirem, ressalva-se de novo - não estão formalmente ligados ao ato de liquidação nem podem estar, pela própria mecânica do imposto. No IVA, o imposto é devido quando ocorre uma venda ou prestação de serviços. Mais uma vez, é a transação entre o sujeito passivo e o seu cliente que determina o nascimento da obrigação do próprio imposto. Por esse motivo, existe um elo formal entre a transação, a repercussão e a liquidação. No caso da CSR, é a introdução no consumo que faz nascer a obrigação tributária (art.º 8.º do CIEC, aplicável à CSR por remissão do art.º 5.º da Lei que estabelece o regime daquele imposto), podendo a repercussão do imposto ter lugar em qualquer data dentro de um intervalo de tempo indeterminado. Deste modo, o facto gerador da CSR ocorre sem qualquer conexão com a transação em que a mesma possa ser repercutida.

Pelo que é teoricamente possível a um fornecedor de combustível entregar uma declaração de introdução no consumo (DIC), dando origem a uma liquidação de CSR, no dia 1 de março, e no final desse mês ainda estar a vender combustível adquirido em fevereiro, “repercutindo” nessas vendas a CSR que suportou em fevereiro.

Ou seja, ao não estarmos perante uma repercussão formalizada, não é possível, nem ao Tribunal, nem à Autoridade Tributária, identificar as liquidações de CSR às quais corresponderiam – a existir repercussão – as faturas dadas como prova. Só as entidades fornecedoras, na melhor das hipóteses, poderiam efetuar a correspondência entre as faturas emitidas e as liquidações de CSR. Mas tal correspondência não foi realizada.

A propósito da impossibilidade de a Requerida identificar os atos de liquidação a partir das faturas, tenha-se em conta que a própria Autoridade Tributária já alega, na sua contestação (cfr. artigos 99.º e seguintes), que não lhe é possível estabelecer correspondência entre as faturas e quaisquer liquidações de imposto.

E, portanto, embora a Requerente diga várias vezes que a Autoridade Tributária tem conhecimento dos atos de liquidação que correspondem às faturas, a verdade é que não existem elementos objetivos que permitam estabelecer uma tal correspondência em termos seguros.

Será importante anda referir que, ainda que o tribunal viesse, numa apreciação do mérito da causa, a dar camo provado que nas faturas da compra do combustível foi repercutida CSR, com base na declaração das fornecedoras ou por qualquer outro meio, ainda assim não seria possível ao Tribunal, devido à configuração do processo contencioso de anulação, condenar a requerida ao reembolso do imposto, por ventura indevido, sem, primeiro, anular as liquidações de CSR. Pelo que, sem a identificação destas liquidações, não é possível satisfazer o interesse da Requerente.

Assim sendo, verifica-se efetivamente uma falta de concretização do pedido, por falta de identificação dos atos de liquidação da CSR, que o torna ininteligível, na parte referente à identificação do objeto, verificando-se igualmente, em consequência, a ineptidão da petição inicial, a qual é uma exceção dilatória que conduz à nulidade de todo o processo, e, portanto, à impossibilidade de julgamento do pedido, conforme os artigos 186.º, n.ºs 1 e 2, alínea a), e 278.º, n.º 1, alínea b), ambos do Código de Processo Civil (Ac. TRC, de 18.10.2016, proc. 203848/14.2YIPRT.C. Rel: Manuel Capelo).

 

VII – DECISÃO

Pelo exposto, o Tribunal Arbitral decide julgar procedente a exceção de ineptidão da petição inicial, por ininteligibilidade do pedido, e, consequentemente anular todo o processo e absolver a requerida da instância.

 

VIII - VALOR DO PROCESSO

Em conformidade com o disposto nos artigos 306.º, n.º 2 do CPC e 97.ºA do CPPT, e artigo 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, o valor do pedido é fixado em 22.535,44 € (vinte e dois mil, quinhentos e trinta e cinco euros e quarenta e quatro cêntimos).

 

IX - CUSTAS ARBITRAIS

Nos termos do disposto nos artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e no artigo 4.º, n.º 4 do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o valor da taxa de arbitragem em 1 224.00 € nos termos da Tabela I do mencionado Regulamento, a cargo da Requerente.

Registe-se e notifique-se.

 

Porto, 31 de outubro de 2024

O Árbitro

 

 

(Nina Aguiar)