Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 585/2024-T
Data da decisão: 2024-10-18  IRS  
Valor do pedido: € 97.467,57
Tema: Extinção da instância por impossibilidade superveniente da lide. Anulação administrativa do ato tributário impugnado. Pedidos acessórios.
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Sumário:

I - Tendo a Autoridade Tributária anulado administrativamente os atos de liquidação impugnados ainda antes do encerramento da discussão, verifica-se a impossibilidade superveniente da lide, que constitui causa de extinção da instância nos termos do artigo 277.º, alínea e), do CPC;

II – Havendo lugar à extinção da instância, por impossibilidade superveniente da lide, em consequência da anulação administrativa do ato tributário impugnado, não cabe ao tribunal pronunciar-se sobre pedidos acessórios, como seja o reembolso do imposto indevidamente pago e o pagamento de juros indemnizatórios, que só poderiam ser considerados caso fosse declarada a ilegalidade da liquidação mediante a apreciação do mérito da causa.

 

 

DECISÃO ARBITRAL

I – Relatório

 

            1. A..., contribuinte fiscal n.º..., residente em ..., n.º ..., ..., em Matosinhos, veio requerer a constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, para apreciar a legalidade do ato tributário de liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) n.º 2023..., referente ao ano de 2020, e respetiva liquidação de juros compensatórios n.º 2023 ..., no valor de € 97.467,57, requerendo ainda a condenação da Autoridade Tributária no reembolso do imposto indevidamente pago e no pagamento de juros indemnizatórios.

A Autoridade Tributária foi notificada para responder por despacho arbitral de 5 de julho de 2024, e, por requerimento de 26 de setembro seguinte, veio juntar o ato de revogação da liquidação impugnada constante do despacho da Subdiretora Geral do IRS, datado de 26 de setembro de 2024, bem como a informação dos serviços em que é proposta a revogação do ato tributário.

 

 Notificada, por despacho arbitral de 2 de outubro de 2024, para se pronunciar quanto à anulação administrativa do ato impugnado e as consequências processuais daí resultantes, o Requerente, por requerimento de 11 de outubro, veio dizer, em síntese, o seguinte:

 

Verifica-se, assim, […] a inutilidade superveniente da lide no que concerne ao pedido de anulação do ato tributário objeto do presente processo, com todas as legais consequências, nomeadamente a anulação da liquidação de juros compensatórios e a restituição à Requerente do montante indevidamente pago, bem como à indemnização do Requerente, pela Autoridade Tributária, dos prejuízos resultantes do pagamento indevido da liquidação em crise, incluindo juros compensatórios, nos termos do disposto nos artigos 43.º, n.º 1, e 100.º, ambos da LGT e no art.º 61.º do CPPT.

 

2. Por despacho arbitral de 15 de outubro de 2024, não havendo outras diligências a realizar, foi indicado o dia 25 de outubro de 2024 como data previsível para prolação da decisão arbitral, devendo o Requerente até essa data proceder ao pagamento da taxa de arbitragem subsequente.

 

3. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária nos termos regulamentares.

 

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.°da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral coletivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

As partes foram oportuna e devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e dos artigos 6.° e 7.º do Código Deontológico.

 

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral coletivo foi constituído em 5 de julho de 2024.

 

O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 30.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro.

 

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

 

O processo não enferma de nulidades.

Cabe apreciar e decidir.

II - Fundamentação

 

4. O Requerente apresentou pedido de pronúncia arbitral contra a liquidação de IRS n.º 2023..., referente ao ano de 2020, e a liquidação de juros compensatórios n.º 2023..., no valor de € 97.467,57, requerendo, a final, (1) a anulação da liquidação impugnada, por errada quantificação da matéria coletável, e anulação da liquidação de juros compensatórios, por serem manifestamente ilegais, com todas as consequências legais, designadamente a restituição à Requerente do montante indevidamente pago; e (2) a indemnização do Requerente, pela Autoridade Tributária, dos prejuízos resultantes do pagamento indevido da liquidação em crise, incluindo juros compensatórios, nos termos do disposto nos artigos 43.º, n.º 1, e 100.º da LGT e no artigo 61.º do CPPT.

 

Por despacho da Subdiretora Geral do IRS, de 26 de setembro de 2024, foi revogado o ato de liquidação impugnado, com base em informação dos serviços em que se declara que “deverá a liquidação n.º 2023..., de 2023-12-08, ser corrigida com a consideração do regime do artigo 12.º-A do Código do IRS”.

Por requerimento de 11 de outubro de 2024, o Requerente veio dizer o seguinte que se verifica a inutilidade superveniente da lide relativamente ao pedido de anulação do ato tributário que constitui o objeto do processo, com todas as legais consequências, nomeadamente a anulação da liquidação de juros compensatórios e a restituição à Requerente do montante indevidamente pago, bem como a indemnização, pela Autoridade Tributária, dos prejuízos resultantes do pagamento indevido da liquidação em crise, incluindo juros compensatórios, nos termos do disposto nos artigos 43.º, n.º 1, e 100.º, ambos da LGT e no art.º 61.º do CPPT,

 Neste contexto, cabe analisar os efeitos processuais do dito ato revogatório.

 

5. A esse propósito, importa preliminarmente referir que o novo Código de Procedimento Administrativo, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 4/2015, de 7 de janeiro, passou a distinguir entre a revogação e a anulação administrativa, fazendo corresponder a cada uma destas figuras as duas anteriores modalidades de revogação ab-rogatória ou extintiva e revogação anulatória. Segundo a definição constante do artigo 165.º do CPA, a revogação é “o ato administrativo que determina a cessação dos efeitos de outro ato, por razões de mérito, conveniência ou oportunidade”, ao passo que a anulação administrativa é “o ato administrativo que determina a destruição dos efeitos de outro ato, com fundamento em invalidade”. A revogação produz, em regra, apenas efeitos para o futuro (artigo 171.º, n.º 1), enquanto a anulação administrativa, tendo por objeto a eliminação da ordem jurídica de atos anuláveis, tem, em regra, efeitos retroativos (artigo 171.º, n.º 3).

 

No caso vertente, a Autoridade Tributária praticou, segundo a nova terminologia, um ato de anulação administrativa, isto é, um ato que tem como fundamento considerações de legalidade administrativa e não de mera discricionariedade. Assim sendo, o falado despacho de 26 de setembro de 2024, embora adote a fórmula verbal anteriormente aplicável, corresponde a um verdadeiro ato anulatório.

Por outro lado, não está vedado à Administração operar a anulação administrativa do ato impugnado já na pendência do processo arbitral.

O artigo 168.º do CPA, que define os condicionalismos aplicáveis à anulação administrativa, no seu n.º 3, estabelece que “quando o ato tenha sido objeto de impugnação jurisdicional, a anulação administrativa só pode ter lugar até ao encerramento da discussão”. Deve entender-se como encerramento da discussão, em correspondência com o estabelecido no artigo 604.º, n.º 3, alínea e), do CPC, o momento em que as partes produzam alegações orais ou o termo do prazo para alegações escritas ou o termo da fase dos articulados quando as partes tenham dispensado as alegações finais e o estado do processo permita sem necessidade de mais indagações a apreciação do pedido.

Haverá de concluir-se, por conseguinte, que o CPA alargou os poderes de disposição da Administração na pendência do processo, permitindo, na linha do que já vinha sugerido pela doutrina, que a anulação administrativa, quando o ato tenha sido objeto de impugnação jurisdicional possa ter lugar até ao encerramento da discussão, e não apenas até à resposta, como estava previsto no artigo 141.º, n.º 1, do CPA de 1991.

Dito isto, não pode deixar de reconhecer-se que a anulação administrativa é tempestiva, visto que a Autoridade Tributária informou a prática do ato anulatório ainda dentro prazo para a apresentação da resposta, e, nessa sequência, juntou o documento comprovativo ainda antes de qualquer novo desenvolvimento processual, havendo de atribuir-se à anulação, nesse condicionalismo, os correspondentes efeitos de direito.

No que concerne às consequências processuais da anulação administrativa interessa considerar a norma do artigo 64.º do CPTA, subsidiariamente aplicável, que, entre outros dispositivos, se refere às situações em que, na pendência do processo impugnatório, o ato impugnado é objeto de anulação administrativa acompanhada ou seguida de nova definição da situação jurídica, caso em que se admite que o processo impugnatório prossiga contra o novo ato com fundamento na reincidência nas mesmas ilegalidades. Prevê-se aí a hipótese típica de ampliação do objeto do processo quando, na pendência de um processo impugnatório, a Administração anule o ato impugnado praticando um novo ato em sua substituição contra o qual o impugnante poderá ter ainda interesse em reagir.

 É patente, no entanto, que não é essa a situação do caso.

A Administração limitou-se a anular o ato impugnado sem instituir uma qualquer nova regulação da situação jurídica. E sendo assim, a anulação administrativa, ocorrida na pendência do processo jurisdicional, satisfazendo a pretensão impugnatória do autor, conduz à impossibilidade superveniente da lide, que constitui causa de extinção da instância (artigo 277.º, alínea e), do CPC).

 

5. No pedido arbitral, o Requerente requer o reembolso do montante indevidamente pago, no total de € 97.467,57, acrescido de juros indemnizatórios à taxa legal, nos termos dos artigos 43.º, n.º 1 e 100.º, da LGT, contados da data do pagamento da liquidação até ao integral reembolso.

É esta a questão que cabe agora analisar.

 

Dispõe o artigo 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT, sob a epígrafe “Efeitos da decisão arbitral de que não caiba recurso ou impugnação”, que a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão vincula a Administração, nos exatos termos da procedência a favor do sujeito passivo, a “reestabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito”.

 

Essa norma tem correspondência com a do artigo 173.º, n.º 1, do CPTA, que estabelece o dever de executar as sentenças de anulação de atos administrativos proferidas pelos tribunais administrativos estaduais, e ainda com a do artigo 172.º do CPA, que impõe à Administração, em caso de anulação administrativa, o dever de reconstituir a situação que existiria se o ato anulado não tivesse praticado.

 

Como se pode constatar, as consequências resultantes da anulação de um ato administrativo são fundamentalmente idênticas, independentemente de anulação resultar de um ato da própria Administração ou de decisão jurisdicional proferida em processo impugnatório (neste sentido, Marco Caldeira, “A figura da anulação administrativa no novo Código de Procedimento Administrativo de 2015”, in Comentários ao Novo Código de Procedimento Administrativo, pág. 673).

 

No essencial, a anulação do ato administrativo tem um efeito repristinatório, implicando, não apenas a substituição do ato ilegal, sem reincidir nas ilegalidades anteriormente cometidas, e a reconstituição da situação jurídica que existiria sem o ato anulado.

 

Ainda que se entenda, contudo, que os pedidos de reembolso de imposto indevidamente pago e de pagamento de juros indemnizatórios constituam pretensões condenatórias de natureza acessória ou consequencial relativamente ao pedido principal, que consiste na declaração de ilegalidade do ato de liquidação de tributo, o certo é que a pronúncia do tribunal quanto a esses outros pedidos apenas poderia ocorrer se o processo devesse prosseguir para a apreciação do mérito da causa e eventual declaração de ilegalidade do ato impugnado.

 

O tribunal arbitral limita-se a julgar extinta a instância, por impossibilidade superveniente da lide, em consequência da anulação administrativa do ato tributário impugnado, sem emitir qualquer decisão sobre o mérito da pretensão que constitui o objeto do pedido arbitral, e, nesse sentido, não cabe ao tribunal pronunciar-se sobre pedidos acessórios que só poderiam ser considerados em caso de ser declarada a ilegalidade da liquidação.

 

Em todo o caso, o reembolso das despesas realizadas pelo sujeito passivo por efeito do ato de liquidação configura-se uma consequência da anulação administrativa, tal como resulta do disposto no citado artigo 172.º do CPA, que impõe à Administração o dever de reconstituir a situação que existiria se o ato anulado não tivesse praticado.

 

Acresce que a informação dos serviços em que se baseou o despacho anulatório reconhece o direito por parte do Requerente ao pagamento de juros indemnizatórios nos termos previstos no artigo 43.º, n.º 1, da LGT.

 

III – Decisão

 

Termos em que se decide julgar extinta a instância por impossibilidade superveniente da lide.

 

Valor da causa

 

Nos termos do disposto no artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT, quando seja impugnada a liquidação, o valor da causa corresponde ao da importância cuja anulação se pretende, pelo que se fixa o valor da causa no montante de € 97.467,57.

 

Custas

 

Nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT, e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e Tabela I anexa a esse Regulamento, fixa-se o montante das custas em € 2.754,00, que fica a cargo da Requerida (artigo 536.º, n.º 3, segunda parte, do CPC).

Notifique-se.

 

Lisboa, 18 de outubro de 2024,

 

O Árbitro Presidente

 

(Carlos Alberto Fernandes Cadilha - relator)

 

A Árbitro Vogal

 

(Cristina Coisinha)

 

O Árbitro Vogal

(Sérgio Santos Pereira)