Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 503/2024-T
Data da decisão: 2024-10-23  Selo  
Valor do pedido: € 675.656,06
Tema: Imposto do selo. Isenção. Comissões de comercialização de unidades de participação de fundos de investimento.
Versão em PDF

Consultar versão completa em PDF

SUMÁRIO:

A sujeição a imposto do selo, nos termos da verba 17.3.4. da Tabela Geral do Imposto do Selo, de encargos com comissões bancárias cobradas pelas instituições de crédito na comercialização de unidades de participação de fundos de investimento é ilegal por incompatibilidade com o artigo 5.º, n.º 2, alínea a), da Diretiva 2008/7/CE.

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

Acordam em tribunal arbitral

 

I – Relatório

 

1. A... (sociedade anteriormente designada B..., S.A), constituída ao abrigo da legislação espanhola, com o número de identificação fiscal espanhol..., sediada na ... n.º ..., ... Madrid, vem requerer a constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, para apreciar a legalidade dos atos de liquidação de imposto de selo incidentes sobre comissões de  comercialização de subscrição de unidades de participação em fundos de investimento mobiliário, relativos ao período de outubro de 2021 a julho de 2023, no valor total de  € 675.656,06, bem como da decisão de indeferimento da reclamação graciosa contra eles deduzida, requerendo ainda o reembolso do imposto indevidamente pago e a condenação da Autoridade Tributária no pagamento de juros indemnizatórios.

 

Fundamenta o pedido nos seguintes termos.

 

A Requerente é uma sociedade pertencente ao Grupo C..., S.A., dedicada à gestão, administração e comercialização de fundos de investimento.

 

A Requerente designa-se atualmente por A..., S.A. S.G.I.I.C., em substituição da anterior designação B..., S.G.I.I., S.A.

             

Sendo uma sociedade constituída ao abrigo da legislação espanhola, a Requerente assume a forma jurídica de «Sociedad Gestora de Instituciones de Inversion Colectiva», o equivalente em Portugal à «Sociedade Gestora de Organismos de Investimento Coletivo», tendo como atividade principal a gestão, administração e comercialização de «Instituciones de Inversion Colectiva».

 

A atividade desenvolvida pela Requerente é supervisionada pela «Comisión Nacional del Mercado de Valores» e encontra-se regulada pelo «Reglamento de Instituciones de Inversión Colectiva», concretamente pelo «Real Decreto 1082/2012, de 13 de julio, que, no seu artigo 94.º, n.º 2, alínea b), estabelece o conjunto de funções que a sociedade gestora está autorizada a desenvolver, de entre as quais a comercialização das unidades de participação.

  

No caso da Requerente, a função de comercialização das unidades de participação é assegurada de forma indireta, através de intermediários financeiros, e, em especial, mediante o recurso aos serviços da D..., S.A. - Sucursal em Portugal, enquanto entidade comercializadora das unidades de participação junto de investidores.

  

A Requerente, então denominada B..., SGIIC, S.A., e a D... formalizaram a relação comercialização das unidades de participação sob a forma de um contrato de subfornecimento de organismos de investimento coletivo estrangeiros, pelo qual a D... obrigou-se a comercializar as unidades de participação dos fundos geridos pela Requerente, tendo esta ficado vinculada ao pagamento, como contraprestação económica, dos valores das comissões de comercialização.

  

Assim, no período entre outubro de 2021 e julho de 2023, a D... cobrou comissões de comercialização pelos serviços de comercialização que prestou à Requerente, tendo liquidado imposto de selo, à taxa de 4%, ao abrigo da verba 17.3.4 da Tabela Geral do Imposto do Selo (TGIS).

 

  No entanto, a sujeição a imposto de selo das comissões de comercialização, enquanto remuneração dos serviços prestados pelos intermediários financeiros na comercialização das unidades de participação em fundos de investimento, viola o artigo 5.º, n.º 2, alínea a), da Diretiva 2008/7/CE, denominada Diretiva de Reunião de Capitais.

 

E esse entendimento foi já confirmado pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) nos acórdãos proferidos nos Processos C-656/21, C-416/22 e C-335/22.

 

A Requerente apresentou reclamação graciosa, no dia 13 de outubro de 2023, peticionando o reembolso do montante total de € 675.656,06, relativo a imposto de selo sobre as comissões de comercialização, que foi indeferida por despacho de janeiro de 2024.

 

Conclui, requerendo que se julgue procedente o pedido de pronúncia arbitral e se anule a decisão de indeferimento da reclamação graciosa e as liquidações de imposto de selo efetuadas entre outubro de 2021 e julho de 2023, e, em consequência, se condene a Autoridade Tributária no reembolso do imposto indevidamente pago, no valor total de € 675.656,06, e no pagamento de juros indemnizatórios.

 

A Autoridade Tributária, na sua resposta, refere que não está em causa, na situação do caso, a autoliquidação do imposto do selo sobre entradas de capital ou operações de reestruturação ou a emissão de títulos e obrigações, mas a tributação das comissões cobradas pela intermediação das instituições bancárias na aquisição de unidades de participação, que se encontram sujeitas a imposto do selo nos termos do artigo 1.º, n.º 1, do Código do Imposto do Selo e da verba 17.3.4 da TGIS e não é desconforme com a Diretiva da União Europeia.

 

Embora constitua entendimento corrente que a emissão de obrigações, incluindo a emissão de papel comercial, não está sujeita a imposto de selo, em conformidade com o disposto com o artigo 5.º, n.º 2, da Diretiva 2008/7/CE, o certo é que a Requerente pretende que esta disposição incorpora também a proibição de sujeição a imposto do selo das comissões cobradas pelos bancos a título de prestação de um serviço financeiro que engloba a divulgação, distribuição, transmissão e venda de unidades de participação junto dos investidores.

 

De facto, o que é tributado é a remuneração de um serviço de intermediação financeira contratado pela Requerente em vista a transmissão das unidades de participação, a qual preenche os pressupostos de incidência objetiva e subjetiva previstos na verba 17.3.4 da TGIS, e é jurídica e materialmente distinta da constituição, entrada em circulação e transmissão da propriedade de valores mobiliários, bem como do cumprimento das formalidades relacionadas.

 

Ou seja, o imposto do selo previsto na verba 17.3.4. da TGIS incide apenas sobre as comissões cobradas pela prestação de serviços financeiros, que não tem a ver com a tributação específica relativa à reunião de capitais, não existindo paralelismo entre uma comissão de comercialização, que representa a remuneração pelo exercício de uma atividade de intermediação financeira, e operações de entradas de capital numa sociedade de capitais, de reestruturação ou emissão de determinados títulos e obrigações.

 

Interpretando o acórdão do TJUE proferido no Processo n.º C-656/21, a Autoridade Tributária considera ainda que a não sujeição a imposto do selo das comissões de comercialização está circunscrita à comercialização de novas subscrições de unidades de participação dos chamados fundos comuns de investimento previstos  na Diretiva 2009/65/CE, e que não é proibida a liquidação de imposto do selo sobre outras comissões que podem atingir os fundos e/ou as respetivas sociedades gestoras, tal como as comissões de gestão.

Conclui pela improcedência do pedido arbitral.

 

2. No seguimento do processo, por despacho arbitral de 11 de setembro de 2022, ao abrigo aplicação dos princípios da autonomia do tribunal arbitral na condução do processo, e da celeridade, simplificação e informalidade processuais, foi dispensada a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT bem como a apresentação de alegações.

 

3. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira nos termos regulamentares.

 

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral coletivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

As partes foram oportuna e devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e dos artigos 6.° e 7.º do Código Deontológico.

 

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral coletivo foi constituído em 19 de junho de 2024.

 

O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 30.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro.

 

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

 

O processo não enferma de nulidades e não foram invocadas exceções.

 

Cabe apreciar e decidir.

 

III - Fundamentação

 

Matéria de facto

 

5. Os factos relevantes para a decisão da causa que são tidos como assentes são os seguintes.

 

  1. A Requerente é uma sociedade pertencente ao Grupo C..., S.A., dedicada à gestão, administração e comercialização de fundos de investimento.
  2. A Requerente designa-se atualmente por A..., S.A. S.G.I.I.C., designação que passou a substituir a anterior designação B..., S.G.I.I., S.A.
  3.  Sendo uma sociedade constituída ao abrigo da legislação espanhola, a Requerente assume a forma jurídica de Sociedad Gestora de Instituciones de Inversion Colectiva, o equivalente em Portugal à Sociedade Gestora de Organismos de Investimento Coletivo, tendo como atividade principal a gestão, administração e comercialização de Instituciones de Inversion Colectiva, o equivalente em Portugal aos Organismos de Investimento Coletivo.
  4. A atividade desenvolvida pela Requerente é supervisionada pela Comisión Nacional del Mercado de Valores e encontra-se regulada pelo Reglamento de Instituciones de Inversión Colectiva, constante do Real Decreto 1082/2012, de 13 de julio.
  5. As funções da Requerente, enquanto sociedade gestora, abrange a comercialização das unidades de participação, ainda que seja assegurada de forma indireta, mediante o recurso aos serviços da D..., S.A.- Sucursal em Portugal, enquanto entidade comercializadora das unidades de participação junto de investidores.
  6. A Requerente, então denominada B..., SGIIC, S.A., e a D... formalizaram a relação de comercialização das unidades de participação sob a forma de um contrato de subfornecimento de organismos de investimento coletivo estrangeiros.
  7. Através do contrato referido na alínea antecedente, a D... brigou-se a comercializar as unidades de participação dos fundos geridos pela Requerente, tendo esta ficado vinculada ao pagamento, como contraprestação económica, dos valores das comissões de comercialização.
  8. A D... cobrou à Requerente comissões de comercialização de subscrições de unidades de participação, no período de outubro de 2021 e julho de 2023, que foram sujeitas a imposto do selo, em aplicação da verba 17.3.4 da Tabela Geral do Imposto do Selo, de acordo com os quadros que seguem:

 

Nº das faturas

Comissão            de comercialização

IS (4%)

Nº da

DMIS

Data de pagamento

Documento

FT FA.SRV21/74

2,352,520.17

94,100.81

...

19-10-2021

Documento n.º 5

FT FA.SRV22/1

2,438,763.43

97,550.54

...

18-02-2022

Documento n.º 6

FT FA.SRV22/24

2,430,320.19

97,212.81

 

19-05-2022

Documento n.º 7

FT FA.SRV22/62

2,221,521.94

88,860.88

 

19-08-2022

Documento n.º 8

FT FA.SRV22/85

2,035,350.99

81,414.04

 

21-11-2022

Documento n.º 9

FT FA.SRV23/5

1,931,904.63

77,276.19

 

17-02-2023

Documento n.º 10

FT FA.SRV23/10

138.17

5.53

 

17-02-2023

Documento n.º 11

FT FA.SRV23/19

436.45

17.46

 

17-03-2023

Documento n.º 12

FT FA.SRV23/20

226.77

9.07

 

17-03-2023

Documento n.º 13

FT FA.SRV23/25

1,754,358.11

70,174.32

 

18-04-2023

Documento n.º 14

FT FA.SRV23/59

1,516.89

60.68

 

19-06-2023

Documento n.º 15

FT FA.SRV23/58

500.09

20.00

 

19-06-2023

Documento n.º 16

FT FA.SRV23/71

2,083.79

83.35

 

19-07-2023

Documento n.º 17

FT FA.SRV23/77

1,721,759.41

68,870.38

 

19-07-2023

Documento n.º 18

Total

16,891,401.03

675,656.06

 

 

 

 

  1. Em 13 de outubro de 2023, a Requerente apresentou reclamação graciosa relativamente aos atos tributários de liquidação de imposto do selo.
  2. A reclamação graciosa foi indeferida por despacho do chefe de divisão do serviço central de 29 de dezembro de 2023, praticado ao abrigo de subdelegação de competências, com base na informação dos serviços n.º ...-ISCPS1/2023, que constitui o documento n.º 1 junto ao pedido arbitral, e que aqui se dá como reproduzida;
  3. No essencial, a informação dos serviços a que se refere a alínea antecedente, considera que não existe paralelismo entre uma comissão de comercialização, que representa a remuneração pelo exercício de uma atividade de intermediação financeira, e operações de entradas de capital numa sociedade de capitais, de reestruturação ou emissão de determinados títulos e obrigações, e só estas últimas operações é que são vedadas pelo artigo 5.º, n.º 2, alínea a), da Diretiva 2008/7/CE.
  4. O despacho de indeferimento da reclamação graciosa foi notificado à Requerente por ofício datado de 4 de janeiro de 2024, enviado pelo correio registado;
  5. O pedido arbitral deu entrada em 5 de abril de 2024.

 

Factos não provados

 

Não há factos não provados que tenham relevo para a apreciação da causa.

 

O Tribunal formou a sua convicção quanto à factualidade provada com base nos documentos juntos à petição e no processo administrativo junto pela Autoridade Tributária com a resposta.

 

Matéria de direito

 

6. A Requerente defende que não há lugar a imposto do selo pelos encargos suportados relativamente operações financeiras de comercialização de subscrição de unidades de participação realizadas por instituições de crédito, por violação do artigo 5.º, n.º 2, alínea a), da Diretiva 2008/7/CE do Conselho, de 12 de fevereiro de 2008, relativa aos impostos indiretos que incidem sobre a reunião de capitais.

 

Em contraposição, a Autoridade Tributária sustenta que não está em causa a liquidação do imposto do selo sobre entradas de capital ou operações de reestruturação ou a emissão de títulos e obrigações, mas a tributação das comissões cobradas pela intermediação das instituições bancárias na aquisição de unidades de participação, que se encontram sujeitas a imposto do selo nos termos do artigo 1.º, n.º 1, do Código do Imposto do Selo e da verba 17.3.4 da TGIS e às quais não é aplicável o disposto no artigo 5.º, n.º 2, alínea a), da Diretiva 2008/7/CE.

 

A questão foi já decidida em sentido negativo pela jurisprudência arbitral, designadamente nos acórdãos proferidos nos Processos n.ºs 856/2019-T, 37/2020-T e 502/2020-T, em que se considera, no essencial, que a proibição de incidência de imposto resultante do artigo 5.º, n.º 2, alínea a), da Diretiva 2008/7/CE opera relativamente a empréstimos contraídos sob a forma de emissão de obrigações, independentemente de quem os emitiu, mas que é distinta a situação quando o que está em causa é, não a própria emissão de empréstimos obrigacionistas e de papel comercial pelas sociedades comerciais, mas os encargos com comissões bancárias cobradas pelas instituições de crédito a título de prestação de serviços de intermediação nessas operações financeiras.

 

Segundo essa jurisprudência, esses encargos não podem ser tidos como correspondendo a formalidades conexas com a emissão de obrigações ou de papel comercial, visto que não constituem procedimentos intrinsecamente associados às operações financeiras que são objeto de isenção de imposto, mas antes a contraprestação pelos serviços bancários realizados no âmbito dessas operações e de que as Requerentes poderiam ter prescindido se tivessem procedido à emissão direta dos títulos.

 

No entanto, o acórdão do TJUE de 22 de dezembro de 2022, tirado no Processo n.º C-656/21, em reenvio prejudicial suscitado no processo arbitral n.º 88/2021-T, em que a mesma questão se colocava, efetua uma diferente interpretação do comando contido na Diretiva da União Europeia.

 

Como resulta do respetivo preâmbulo, e especialmente dos considerandos (2), (3), (4), (5) e (6), a Diretiva 2008/7/CE, relativa aos impostos indiretos que incidem sobre reunião de capitais e substituiu, a partir de 1 de janeiro de 2009, a Diretiva 69/335, visa promover a livre circulação de capitais, considerada essencial para a criação de uma união económica com características análogas às de um mercado interno e a prossecução dessa finalidade pressupõe, no que respeita à tributação que incide sobre as reunião de capitais, a supressão dos impostos indiretos até então em vigor nos Estados-Membros e a aplicação, em sua substituição, de um imposto cobrado uma única vez no mercado interno e de nível idêntico em todos os Estados-Membros (cfr. acórdão TJUE Isbelle Gielen vs Ministerraad, Processo n.º C-299/13, n.º 20).

 

Neste sentido, o artigo 5.º da Diretiva, no seu n.º 1, proíbe qualquer forma de imposto indireto, nomeadamente sobre as entradas de capital, e as alíneas a) e b) do n.º 2 dispõem nos seguintes termos.

 

2. Os Estados-Membros não devem sujeitar a qualquer forma de imposto indireto:

a) A criação, a emissão, a admissão à cotação em bolsa, a colocação em circulação ou a negociação de ações, de participações sociais ou de outros títulos da mesma natureza, bem como de certificados representativos desses títulos, independentemente de quem os emitiu;

b) Os empréstimos, incluindo os estatais, contraídos sob a forma de emissão de obrigações ou outros títulos negociáveis, independentemente de quem os emitiu, e todas as formalidades conexas, bem como a criação, emissão, admissão à cotação em bolsa, colocação em circulação ou negociação dessas obrigações ou de outros títulos negociáveis.

 

A Diretiva enuncia a proibição de incidência de imposto relativamente à criação, emissão, admissão à cotação em bolsa, colocação em circulação ou negociação de ações, de partes sociais ou de outros títulos da mesma natureza, bem como de certificados representativos desses títulos, independentemente de quem os emitiu.

 

Todavia, o citado acórdão do TJUE de 22 de dezembro de 2022, veio esclarecer que tendo em conta o objetivo prosseguido pela Diretiva 2008/7/CE, o seu artigo 5.º deve ser objeto de uma interpretação latu sensu, para evitar que as proibições que prevê sejam privadas de efeito útil. Assim, a proibição da imposição das operações de reunião de capitais aplica‑se igualmente às operações que não estão expressamente referidas nesta proibição, uma vez que essa imposição equivale a tributar uma operação que faz parte integrante de uma operação global do ponto de vista da reunião de capitais (considerando 28).

 

Assim, o Tribunal de Justiça declarou que, uma vez que uma emissão de títulos só tem sentido a partir do momento em que esses mesmos títulos são adquiridos, uma taxa sobre a primeira aquisição de títulos de uma nova emissão tributária, na realidade, a própria emissão dos títulos, na medida em que ela faz parte integrante de uma operação global do ponto de vista da reunião de capitais, tem o objetivo de preservar o efeito útil do artigo 5.º, n.º 2, alínea a), da Diretiva 2008/7 e implica assim que a «emissão», na aceção desta disposição, inclua a primeira aquisição dos títulos efetuada no quadro da sua emissão (considerando 29).

 

E acrescentou o seguinte.

 

31. Ora, uma vez que serviços de comercialização de participações em fundos comuns de investimento, como os que estão em causa no processo principal, apresentam uma ligação estreita com as operações de emissão e de colocação em circulação de partes sociais, na aceção do artigo 5.º, n.º 2, alínea a), da Diretiva 2008/7, devem ser considerados parte integrante de uma operação global à luz da reunião de capitais.


32. Com efeito, sob reserva de uma verificação pelo órgão jurisdicional de reenvio, esses fundos estão abrangidos pelo âmbito de aplicação da Diretiva 2009/65, por força do seu artigo 1.º, n.ºs 1 a 3. A este respeito, o pagamento do preço correspondente às participações adquiridas, único objetivo de uma operação de comercialização, está ligado à substância da reunião de capitais e é, como resulta do artigo 87.º da Diretiva 2009/65, uma condição que deve ser preenchida para que as participações de fundos em causa sejam emitidas.

 

33. Daqui resulta que o facto de dar a conhecer junto do público a existência de instrumentos de investimento de modo a promover a subscrição de participações de fundos comuns de investimento constitui uma diligência comercial necessária e que, a esse título, deve ser considerada uma operação acessória, integrada na operação de emissão e de colocação em circulação de participações nos referidos fundos.


34. Além disso, uma vez que a aplicação do artigo 5.º, n.º 2, alínea a), da Diretiva 2008/7 depende da ligação estreita dos serviços de comercialização com essas operações de emissão e de colocação em circulação, é indiferente, para efeitos dessa aplicação, que se tenha optado por confiar essas operações de comercialização a terceiros em vez de as efetuar diretamente.


35. A este respeito, há que recordar que, por um lado, esta disposição não faz depender a obrigação de os Estados‑Membros isentarem as operações de reunião de capitais de nenhuma condição relativa à qualidade da entidade encarregada de realizar essas operações. Por outro lado, a existência ou não de uma obrigação legal de contratar os serviços de um terceiro não é uma condição pertinente quando se trata de determinar se uma operação deve ser considerada parte integrante de uma operação global do ponto de vista da reunião de capitais (v., neste sentido, Acórdão de 19 de outubro de 2017, Air Berlin, C‑573/16EU:C:2017:772, n.º 37).

 

36. Daqui resulta que serviços de comercialização como os que estão em causa no processo principal fazem parte integrante de uma operação de reunião de capitais, pelo que o facto de os onerar com um imposto do selo está abrangido pela proibição prevista no artigo 5.º, n.º 2, alínea a), da Diretiva 2008/7.

 

Tendo em conta todas as precedentes considerações, o TJUE conclui que o artigo 5.º, n.º 2, alínea a), da Diretiva 2008/7 deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação nacional que prevê a incidência de um imposto do selo sobre a remuneração que uma instituição financeira recebe de uma sociedade de gestão de fundos comuns de investimento pela prestação de serviços de comercialização para efeitos de novas entradas de capital destinadas à subscrição de participações de fundos.

 

Atento o entendimento expresso pelo Tribunal de Justiça, há que efetuar uma  interpretação extensiva da referida norma de direito europeu de modo a abranger não apenas a operação financeira em si mesma considerada, mas os encargos com uma atividade bancária que apenas indiretamente se relacionam a emissão de títulos negociáveis.

 

Por outro lado, em decorrência do primado do Direito da União Europeia sobre o Direito Nacional, consagrado no artigo 8.º, n.º 4, da Constituição, e da obrigatoriedade do reenvio prejudicial, como previsto no artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, a jurisprudência do TJUE tem carácter vinculativo para os tribunais nacionais, quando tem por objeto questões de Direito da União Europeia (neste sentido, entre outros, os acórdãos do STA de 25 de outubro de 2000, Processo n.º 25128, de 7 de novembro de 2001, Processos n.ºs 26432 e 26404).

 

Em aplicação da jurisprudência do TJUE, haverá de concluir-se que a verba 17.3.4. da TGIS, que prevê a sujeição a imposto do selo de comissões e contraprestações por serviços financeiro é ilegal, quando aplicável à comercialização de valores mobiliários, por incompatibilidade com o artigo 5.º, n.º 2, alínea a), da Diretiva 2008/7/CE. E, desse modo, as liquidações de imposto do selo impugnadas, tendo tido por base aquela disposição da TGIS,  enferma de vício de violação de lei, por erro nos pressupostos de direito.

 

No mesmo sentido se pronunciou o acórdão proferido no Processo n.º 88/2021-T no qual foi suscitado o reenvio prejudicial que originou acórdão do TJUE de 22 de dezembro de 2022 aqui em análise.

 

Reembolso do imposto indevidamente pago e juros indemnizatórios

 

7. A Requerente pede ainda a condenação da Autoridade Tributária no reembolso do imposto indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios.

 

De harmonia com o disposto na alínea b) do artigo 24.º do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a Administração Tributária, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo, cabendo-lhe “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito”. O que está em sintonia com o preceituado no artigo 100.º da LGT, aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT.

 

Por efeito da reconstituição da situação jurídica em resultado da anulação do acto tributário, há assim lugar ao reembolso do imposto indevidamente pago.

 

Ainda nos termos do n.º 5 do artigo 24.º do RJAT “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previstos na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”, o que remete para o disposto nos artigos 43.º, n.º 1, e 61.º, n.º 5, de um e outro desses diplomas, implicando o pagamento de juros indemnizatórios desde a data do pagamento indevido do imposto até à data do processamento da respetiva nota de crédito.

 

Tratando-se, no entanto, de atos de autoliquidação de imposto que se repercutiram nos fundos de investimento, o erro imputável aos serviços, que justifica a obrigação de juros indemnizatórios, apenas opera, quando haja lugar a reclamação graciosa, com o indeferimento pela Autoridade Tributária da impugnação administrativa (cfr., neste sentido, os acórdãos do STA de 18 de janeiro de 2017, Processo n.º 0890/16, e de 29 de junho de 2022, Processo n.º 093/21).

 

E, assim, o termo inicial do cômputo dos juros indemnizatórios apenas se constitui, na situação do caso, em 30 de dezembro de 2023, havendo lugar ao pagamento de juros indemnizatórios desde essa data até à do processamento da respetiva nota de crédito.

 

 

III - Decisão

 

Termos em que se decide:

 

  1. Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral e declarar a ilegalidade e a anulação dos atos tributários de liquidação do imposto do selo impugnados, no montante total de € 675.656,06, relativos ao período de outubro de 2021 a julho de 2023, bem como a decisão de indeferimento da reclamação graciosa contra eles deduzido;
  2. Condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira no reembolso do imposto indevidamente pago e no pagamento dos juros indemnizatórios, à taxa legal, desde 30 de dezembro de 2023 até à data do processamento da respetiva nota de crédito.

 

Valor do Processo

 

De harmonia com o disposto nos artigos 306.º, n.º 2, do CPC, 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT e 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT), fixa-se ao processo o valor de € 675.656,06.

 

 

Custas

 

Nos termos do artigo 4.º, n.º 4 do citado RCPAT e artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4 do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 10.098,00, nos termos da Tabela I, anexa àquele regulamento, a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

Notifique.

 

Lisboa, 23 de outubro de 2024,

 

 

O Presidente do Tribunal Arbitral,

 

Carlos Fernandes Cadilha

 

A Árbitro vogal

 

Alexandra Gonçalves Marques

 

O Árbitro vogal

 

 

Paulo Ferreira Alves