SUMÁRIO
I. A Contribuição do Serviço Rodoviário é um tributo que contraria a Directiva 2008/118 relativa ao regime geral dos impostos especiais de consumo porque, pré-existindo um imposto sobre os produtos petrolíferos (o ISP), o Estado português apenas poderia fazer incidir novo imposto sobre os mesmos produtos se este tivesse em vista motivos específicos, o que não acontece, na medida em que não existe uma relação directa entre a utilização das receitas e as invocadas finalidades de redução da sinistralidade e de sustentabilidade ambiental.
II. O tribunal arbitral é competente para conhecer do pedido de pronúncia sobre o indeferimento tácito do pedido de revisão dos actos tributários de liquidação da Contribuição do Serviço Rodoviário, uma vez que este tributo deve ser tratado como imposto para efeitos da Portaria 112-A/20111 de 22.3, por não haver um nexo específico entre o benefício emanado da atividade pública do titular da contribuição (a Infraestruturas de Portugal, SA) e os sujeitos passivos (as empresas comercializadoras de combustíveis), desaparecendo, por isso, a natureza de contribuição financeira
III. É inepta a petição arbitral se não se comprovam, alegam ou identificam os atos de liquidação da CSR e o efetivo pagamento desse tributo, por repercussão.
IV. O repercutido económico ou de facto, carece de legitimidade para efeitos da revisão prevista na alínea a) do n.º 4, do artigo 18.º, da LGT porquanto só os repercutidos legais, embora não sendo sujeitos passivos, têm legitimidade para reclamar, recorrer, impugnar e formular pedido arbitral.
DECISÃO ARBITRAL
Os árbitros, José Poças Falcão (presidente), Hélder Faustino e Rui Miguel Zeferino Ferreira (vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral Colectivo, acordam no seguinte:
I – Relatório
A..., LDA., sociedade por quotas, com sede ..., ..., ...-... Montijo, matriculada na conservatória de registo comercial sob o número de pessoa coletiva n.º..., capital social de € 250.000,00, daqui em diante designada por Requerente, na sequência da formação da presunção de indeferimento tácito do pedido de promoção de revisão oficiosa apresentado, em 03.08.2023, junto da Alfândega de Alverca do Ribatejo, relativo às liquidações de Contribuição de Serviço Rodoviário[1] praticadas pela Administração Tributária e Aduaneira, alegadamente com base nas declarações de introdução no consumo[2] submetidas pelas fornecedoras de combustíveis, B..., S.A., C..., LDA., bem como, segundo alega, relativo aos consequentes atos e repercussão da referida CSR consubstanciados nas faturas referentes ao gasóleo rodoviário àquelas adquirido, pela Requerente, no período compreendido entre 26 de julho de 2019 a 31 de dezembro de 2022, apresentar, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 3.º- A, n.º 2, e 10.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária[3], apresenta pedido de pronúncia arbitral alegando ilegalidade dos sobreditos atos de liquidação de CSR e sobre os consequentes atos de repercussão.
Fundamentação do pedido
Alega, muito sinteticamente e no essencial, o seguinte:
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As identificadas fornecedoras de combustíveis [B... e C...] entregaram ao Estado, enquanto sujeitos passivos da respetiva relação jurídico-tributária, os valores apurados nos atos de liquidação conjunta de imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos e de CSR praticados pela Autoridade Tributária e Aduaneira com base nas DIC por aquela submetidas;
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No período compreendido entre 26 de julho de 2019 a 31 de dezembro de 2022, a Requerente, adquiriu às supras identificadas fornecedoras de combustíveis, 1 260 300,39 litros de gasóleo rodoviário [Cfr. faturas que se juntam sob os Docs. n.º 1 a 8];
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As mencionadas fornecedoras de combustíveis repercutiram nas respetivas faturas a CSR correspondente a cada um desses consumos, tendo a Requerente, por conseguinte, suportado integralmente o referido imposto [Cfr. Docs. n.º 1 a 8];
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Com a aquisição do referido combustível, a Requerente suportou, a título de CSR, a quantia global de € 139.893,34 (cento e trinta e nove mil oitocentos e noventa e três euros e trinta e quatro cêntimos) [Cfr. Docs. n.º 1 a 8];
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Assim, a Requerente deduziu no dia 03.08.2023, junto da Alfândega de Alverca do Ribatejo um pedido de promoção de revisão oficiosa com vista à anulação das referidas liquidações de CSR e dos consequentes atos de repercussão consubstanciados nas faturas emitidas pelas fornecedoras de combustíveis referentes ao gasóleo rodoviário, às mesmas adquirido pela requerente no período compreendido entre 26 de julho de 2019 a 31 de dezembro de 2022 [Cfr. pedido de revisão oficiosa que se junta sob o Doc. n.º 9];
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À liquidação, cobrança e pagamento da CSR é aplicável, com as devidas adaptações, o disposto no Código dos Impostos Especiais de Consumo[4], na Lei Geral Tributária[5] e no Código de Procedimento e de Processo Tributário[6], (Cfr. artigo 5.º, n.º 1, 2.ª parte, da Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto);
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O regime geral dos impostos especiais de consumo vertido na Diretiva de 2008/118 e fixado o regime jurídico-tributário da CSR através da Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto, consubstancia uma violação do direito da União Europeia com a consequente ilegalidade (abstrata) dos atos tributários, como os aqui em causa, praticados ao seu abrigo;
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Sobre esta matéria, já se pronunciou expressa e especificamente o TJUE, na sequência do reenvio prejudicial apresentado nos termos do artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia[7], pelo Tribunal constituído no âmbito do processo arbitral n.º 564/2020-T que correu termos neste Centro de Arbitragem Administrativa;
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Tal como veio a concluir o TJUE, «o artigo 1.º, n.º 2, da Diretiva 2008/118 deve ser interpretado no sentido de que não prossegue “motivos específicos”, na aceção desta disposição, um imposto, a CSR, cujas receitas ficam genericamente afetadas a uma empresa pública concessionária da rede rodoviária nacional e cuja estrutura não atesta a intenção de desmotivar o consumo dos principais combustíveis rodoviários» (Cfr. Despacho do TJUE, de 7 de fevereiro de 2022, proferido no caso Vapo Atlantic, Proc. C-460-21, n.º 36).
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Tal como resulta, das decisões proferidas nos processos arbitrais n.º 564/2020-T, 304/2022-T e 305/2022-T, impõe-se concluir que, «a CSR, criada pela Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto, não prossegue “motivos específicos”, na aceção do artigo 1.º, n.º 2, da Diretiva 2008/118, na medida em que as suas receitas têm essencialmente como fim assegurar o financiamento da rede rodoviária nacional, não podendo considerar-se como suficiente, para estabelecer uma relação direta entre a utilização das receitas e um “motivo especifico”, os objetivos genéricos de redução da sinistralidade e de sustentabilidade ambiental», consubstanciando, por conseguinte, todos os atos tributários praticados ao seu abrigo, designadamente os atos objeto do presente pedido de pronúncia arbitral, uma violação do Direito da União Europeia.
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Nos termos do artigo 8.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa[8], «as disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respetivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático»;
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Do transcrito artigo 8.º, n.º 4, da CRP, extrai-se, a par do reconhecimento do primado do Direito da União Europeia sobre o Direito nacional e da imunidade do mesmo face ao controlo da constitucionalidade das normas pelo Tribunal Constitucional, o dever dos serviços do Estado de «afastar as normas de direito ordinário internas pré-existentes que sejam incompatíveis com o direito da UE e tornar invalidadas ou, pelo menos, ineficazes e inaplicáveis, as normas subsequentes que o contrariem» (Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa anotada, volume I, 4.ª ed. Revista, Coimbra Ed., p.p. 264 a 273);
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A Administração Tributária Aduaneira, em face da identificada desconformidade entre as normas dispostas na Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto e a Diretiva 2008/118, estava vinculada a desaplicar as primeiras com fundamento na sua desconformidade com a segunda e, em consequência, tinha o dever de proceder à anulação dos atos tributários em causa, e, pelos mesmos motivos, proceder ao reembolso das quantias indevidamente suportadas pela Requerente a título de CSR;
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Assim não procedendo, esse erro da AT é imputável aos serviços para efeitos do artigo 78, n.º 1, da LGT;
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Razão pela qual se impõe, agora, em sede de contencioso arbitral, ao presente tribunal proceder à anulação dos mesmos e determinar a devolução à Requerente das quantias pagas a título de CSR no montante global de € 164.590,49, com juros indemnizatórios.
É requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante referida por AT ou Requerida.
Este Tribunal Arbitral, após os necessários prévios trâmites regulamentares, ficou constituído em 9-5-2024.
Resposta da AT
Notificada, nos termos e para os efeitos do artigo 17.º, do RJAT, a AT apresentou Resposta alegando, no essencial e muito sinteticamente:
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Aceita que tem sido assinalada na jurisprudência arbitral a desconformidade da CSR (criada pela Lei n.º 55/2007) com o direito da União Europeia (EU), concretamente com a Diretiva n.º 2008/118/CE, de 16-12-2008, desconformidade essa reconhecida pelo Despacho proferido pelo TJUE em 7-2-2022, no Proc n.º C-460/21;
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A eventual restituição da CSR só pode ser efetuada à entidade que, na respetiva cadeia de comercialização dos combustíveis, tenha suportado aquela contribuição;
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No caso, é impossível comprovar que, em cada nível/degrau de (re)venda ocorreu efetiva repercussão e, concretamente, é impossível concluir pela efetiva repercussão na esfera da Requerente;
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Defendendo-se por exceção, invoca a incompetência material do Tribunal Arbitral, citando algumas decisões arbitrais que sufragam a procedência dessa exceção;
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Alega, subsidiariamente, a “ilegitimidade processual e substantiva da Requerente” (artigos 63.º e segs., da Resposta) considerando, em síntese que não se encontram reunidos os pressupostos para a revisão dos atos tributários na medida em que tal direito não está, no caso, na esfera jurídica dos repercutidos económicos ou de facto porque a Requerente não é sujeito passivo da CSR;
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Por outro lado, carece a Requerente, alegadamente um repercutido económico ou de facto, de legitimidade por se encontrar fora do âmbito de aplicação da alínea a) do n.º 4, do artigo 18.º, da LGT que prevê que os repercutidos legais, embora não sendo sujeitos passivos, têm legitimidade para reclamar, recorrer, impugnar e formular pedido arbitral;
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Além disso não é feita sequer prova cabal de ser a Requerente repercutida e consumidora final, sendo óbvio que não se está perante um fenómeno de repercussão legal;
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A Requerente não demonstra que o valor pago pelos combustíveis adquiridos à B... e C... tem incluído o valor da CSR pago e, por outro lado, também não prova que não repassou tal encargo no preço dos produtos vendidos/serviços prestados aos seus clientes;
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Só os sujeitos passivos de imposto que tenham procedido à introdução no consumo dos produtos em território nacional e provem o pagamento do respetivo ISP/CSR possuem legitimidade para solicitar o reembolso dos valores pagos;
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Alega ainda, subsidiariamente, as exceções de ineptidão da petição inicial (artigos 145.º e ss., da Resposta) por alegada falta de objeto, designadamente a identificação de qualquer ato tributário de CSR e a caducidade do direito de ação (artigos 198.º e ss. da Resposta)
Resposta às exceções
Exercendo o direito ao contraditório relativamente à matéria das exceções suscitadas pela parte contrária, defendeu a Requerente, em longo e douto articulado, a total improcedência das exceções e veio pedir o reenvio prejudicial para o TJUE em caso de dúvidas sobre quaisquer das invocadas disposições do direito da União Europeia.
Alegações finais
O Tribunal Arbitral, considerando que as questões suscitadas foram amplamente debatidas quer nos articulados quer na jurisprudência arbitral, dispensou a apresentação de alegações finais.
II – Saneamento
A competência material do Tribunal
O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído e, como se concluirá infra, é materialmente competente, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, improcedendo, nessa medida a exceção de incompetência material suscitada.
O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, uma vez que foi apresentado no prazo previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º do RJAT.
As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e encontram-se legalmente representadas (cfr. artigo 4.º e n.º 2 do artigoº 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011 e artigo 1.º da Portaria n.º 112/2011, de 22 de março).
Não foram identificadas nulidades ou questões que obstem ao conhecimento do mérito, remetendo-se o tratamento das excepções de incompetência e legitimidade substantiva para a análise da matéria de Direito.
III – FUNDAMENTAÇÃO
Factos provados
Os factos provados e relevantes para a decisão da causa são os seguintes:
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No período compreendido entre 26 de julho de 2019 a 31 de dezembro de 2022, a Requerente, adquiriu, por compra, às fornecedoras de combustíveis, B..., S.A. e C..., Lda., 1 260 300,39 litros de gasóleo rodoviário [Cfr. faturas - Docs. n.º 1 a 8 - juntas com o pedido de pronúncia arbitral];
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Essas fornecedoras de combustíveis [B... e C...] terão entregue ao Estado, enquanto sujeitos passivos da respetiva relação jurídico-tributária, os valores apurados nos atos de liquidação conjunta de imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos e de CSR praticados pela Autoridade Tributária e Aduaneira com base nas DIC por aquela submetidas;
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A Requerente apresentou, no dia 03.08.2023, junto da Alfândega de Alverca do Ribatejo um pedido de promoção de revisão oficiosa com vista à anulação das referidas liquidações de CSR e dos atos de repercussão consubstanciados nas faturas emitidas pelas fornecedoras de combustíveis referentes ao gasóleo rodoviário, às mesmas adquirido pela requerente no período compreendido entre 26 de julho de 2019 a 31 de dezembro de 2022 [Cfr. pedido de revisão oficiosa junto pela Requerente sob o Doc. n.º 9];
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A Requerente não é sujeito passivo de ISP/CSR por não se enquadrar na previsão do artigo 4.º, do CIEC;
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A B..., S.A., vendeu gasóleo à Requerente mas não é sujeito passivo de CSR (Doc. n.º 1 junto aos autos pela Requerente em 29-7-2024);
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A C..., LDA., vendeu gasóleos e gasolinas à Requerente e submeteu as correspondentes declarações de introdução no consumo e pagou as taxas legais aplicáveis, nos casos em que atuou na qualidade de sujeito passivo de CSR, ou seja, na alienação de 316.033 litros de gasóleos rodoviários a que corresponde um valor de 35.080 Euros de CSR, tendo sido apresentados pedidos de revisão oficiosa e impugnações judiciais destinadas à recuperação dessa CSR (Doc. n.º 2 junto pela Requerente em 29-7-2024);
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A C..., LDA., não atuou como sujeito passivo da CSR na alienação à Requerente de 5.992 litros de gasóleos rodoviários a que corresponde um valor de CSR de 665 Euros “(...) valor esse que integrou o custo das existências vendidas, juntamente com o preço de aquisição dos produtos e demais encargos, tendo sido recuperado, no todo ou em parte, nas subsequentes transmissões onerosas à A..., Lda. (...) – (Doc 2, junto aos autos pela Requerente em 29-7-2024)
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Em 29-2-2024 (data da apresentação, no CAAD, do presente pedido de pronúncia arbitral) mantinha-se, sem decisão o citado pedido de revisão oficiosa.
Factos não provados
Não ficou provado:
- que as mencionadas fornecedoras de combustíveis tivessem repercutido nas respetivas faturas a CSR correspondente a cada um desses consumos;
- quais as concretas liquidações de CSR que sustentam o pedido de revisão oficiosa e o presente pedido de pronúncia arbitral;
- que tenha a Requerente suportado integralmente o sobredito imposto (CSR) na importância global de € 139.893,34 (cento e trinta e nove mil oitocentos e noventa e três euros e trinta e quatro cêntimos).
Fundamentação da apreciação matéria de facto
Os factos elencados supra foram considerados provados, ou não-provados, com base nas posições assumidas pelas partes nos presentes autos, nos documentos juntos ao PPA e com o citado requerimento de 29-7-2024 bem como no processo administrativo instrutor junto pela Requerida.
Cabe ao Tribunal Arbitral selecionar os factos relevantes para a decisão, em função da sua relevância jurídica, considerando as várias soluções plausíveis das questões de Direito, bem como discriminar a matéria provada e não provada (cfr. artigo 123.º/2 do CPPT e artigos 596.º/1 e 607.º/3 e 4 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º/1 a) e e) do RJAT), abrangendo os seus poderes de cognição factos instrumentais e factos que sejam complemento ou concretização dos que as Partes alegaram (cfr. artigos 13.º do CPPT, 99.º da LGT, 90.º do CPTA e artigos 5.º/2 e 411.º do CPC).
Segundo o princípio da livre apreciação das provas, o Tribunal Arbitral baseia a sua decisão, em relação aos factos alegados pelas Partes, na sua íntima e prudente convicção formada a partir do exame e avaliação dos meios de prova trazidos ao processo e de acordo com as regras da experiência (cfr. artigo 16.º e) do RJAT e artigo 607.º/4 do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º/1 e) do RJAT). Somente relativamente a factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, a factos que só possam ser provados por documentos, a factos que estejam plenamente provados por documentos, acordo ou confissão, ou quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (por exemplo, quanto aos documentos autênticos, por força do artigo 371.º do Código Civil), é que não domina, na apreciação das provas produzidas, o referido princípio da livre apreciação (cfr. artigo 607.º/5 do CPC ex vi artigo 29.º/1 e) do RJAT).
Além disso, não se deram obviamente como provadas ou não provadas alegações, comentários e conclusões das partes, apresentadas como factos e consistentes em afirmações estritamente opinativas ou conclusivas insuscetíveis, por conseguinte, de prova e cuja veracidade que se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada, nem os factos incompatíveis ou contrários aos dados como provados.
Por outro lado, e como é pacífico há muito na jurisprudência, não tem o Tribunal Arbitral o dever de apreciar os argumentos apresentados pelas Partes e que sustentam as suas posições.
Pelo contrário o que compete ao Tribunal Arbitral é resolver as questões que são suscitadas no processo, considerando que “questões” são «…todos os problemas concretos que haja sido chamado a resolver no quadro do litígio (tendo em conta o pedido, a causa de pedir e as eventuais excepções invocadas), ficando apenas excetuado o conhecimento das questões cuja apreciação e decisão tenha ficado prejudicada pela solução dada a outras. E questão, para este efeito (contencioso tributário), é tudo aquilo que é susceptível de caracterizar um vício, uma ilegalidade do ato tributário impugnado» (Cfr., v. g., Ac. do TCAN n.º 01258/05.4BEVIS de 11-04-2014, traduzindo vasta jurisprudência pacífica no mesmo sentido).
«Argumentos», pelo contrário, são os factos, razões, raciocínios que as partes mobilizam em defesa da procedência das «questões» que pretendem ver resolvidas (por via de ação ou por exceção) e submetem a tribunal, cabendo, também aqui, as controvérsias que as partes sobre elas suscitem (Cfr. Ac. da Subsecção do CA do STA n.º 01007/06 31-10-2007 Relator: PAIS BORGES).
Ou, como escreve o Professor Artur Anselmo de Castro, «a palavra questões deve ser tomada aqui em sentido amplo: envolverá tudo quanto diga respeito a concludência ou inconcludência das exceções e da causa de pedir (melhor, à fundabilidade ou infundabilidade dumas e doutras) e às controvérsias que as partes sobre elas suscitem (in Direito Processual Civil Declaratório, vol. III, Almedina, 1982, pp. 142).
In casu, o Tribunal Arbitral considera que as faturas das fornecedoras de combustível, apresentadas pela Requerente não identificam os originais ou verdadeiros sujeitos passivos de ISP e de CSR, não podendo substituir-se a documentos que possam comprovar a liquidação conjunta destes tributos pelos sujeitos passivos, ou seja, as Declarações de Introdução no Consumo ou o Documento Administrativo Único/Declaração Aduaneira de Importação ou documentos que, ao menos, permitissem identificar, com um mínimo de certeza, quem foram esses sujeitos passivos originários.
Por outro lado, os documentos juntos pela Requerente em 29-7-2024 o que demonstram é que uma das fornecedoras dos combustíveis à Requerente (a B..., S.A.) não é sujeito passivo da CSR e a outra fornecedora (C..., LDA.), apresentou pedidos de revisão oficiosa e impugnações judiciais destinadas à recuperação de CSR.
III. FUNDAMENTAÇÃO (CONT.)
O Direito
Reconhece este Tribunal Arbitral que a CSR é um tributo que contraria a Directiva 2008/118 relativa ao regime geral dos Impostos Especiais de Consumo.
De facto, pré-existindo um Imposto sobre os Produtos Petrolíferos (o ISP), o Estado português apenas poderia fazer incidir novo imposto sobre os mesmos produtos se este tivesse em vista motivos específicos (cfr. artigo 1.º/1 a) e 2 da referida Diretiva), o que não acontece, já que a mera afectação do produto desse tributo ao financiamento da concessionária da rede rodoviária nacional não é suficiente, mesmo se associada à redução da sinistralidade e de sustentabilidade ambiental.
Na verdade, não existe uma relação directa entre a utilização das receitas e essas finalidades (já que o produto da CSR não se destina exclusivamente ao financiamento de operações que supostamente concorrem para a realização desses dois objectivos), nem é evidente uma real vontade de desencorajar a utilização quer da rede quer dos principais combustíveis rodoviários, pelo que subsiste uma finalidade puramente orçamental.
As diretivas, como é sabido, são actos através dos quais os órgãos competentes da União impõem aos Estados-membros a transposição do respectivo regime, ou seja, a adoção de atos subsequentes que adequem a sua ordem jurídica às regras por elas fixadas.
Por não se dirigirem aos particulares, entende-se genericamente que não podem ser invocadas por estes como tendo criado direitos na respectiva esfera jurídica (não têm, portanto, efeito direto).
A jurisprudência europeia reconheceu, todavia, uma excepção (Ac. de 17.12.70 SACE, Proc. N.º 33/70): tratando-se de disposições precisas e incondicionais de directivas, a não transposição destas (ou a transposição incorrecta) no prazo por elas estabelecido, permite aos particulares invocá-las contra entes públicos (efeito directo vertical), já que, caso contrário, esses entes estaria a retirar vantagem de um incumprimento das obrigações gerais face ao Direito da União, privando esses mesmos particulares de direitos que teriam sido constituídos na sua esfera jurídica se a transposição tivesse ocorrido nos termos previstos.
Essa será a situação em apreço: a proibição constante do artigo 1.º da Diretiva 2008/118 pode ser invocada pela Requerente para arguir a ilegalidade dos actos de liquidação de CSR que a contrariam, por não se verificarem os necessários motivos específicos.
Isso mesmo foi reconhecido explicitamente pelo TJUE – a quem cabe determinar em exclusivo a interpretação do Direito da União (artigo 267.º TFUE) – no Despacho de 2.2.2022 (Vapo Atlantic SA c. Autoridade Tributária, proc. C-460/21).
Ora, o Direito da União aplica-se na ordem interna portuguesa nos termos por ele definidos (artigo 8.º/4 da Constituição), sendo que esses termos determinam a sua prevalência sobre o Direito nacional, por força do princípio do primado (ac. 15.07.1964 Costa c. ENEL, proc. 6/64 e Declaração sobre o primado do direito comunitário, anexa ao TFUE).
Neste enquadramento, dúvidas não subsistirão quanto à ilegalidade genérica dos actos de liquidação da CSR suscetíveis de anulação no caso de se demonstrarem.
As exceções suscitadas pela AT
Não obstante, no caso em apreço são arguidas pela AT diversas exceções, a saber: a incompetência do tribunal arbitral em razão da matéria (por não se tratar de um imposto mas de mera contribuição), a ilegitimidade da Requerente (por não ser o sujeito passivo da CSR mas mero repercutido eventual), a ineptidão da petição inicial (por falta de objecto, dada a não identificação dos atos tributários cuja nulidade é arguida) e a caducidade do direito de ação (por não ser possível efectuar contagem dos prazos dado não haver identificação – e consequentemente data – dos atos de liquidação).
Relativamente à pretendida incompetência do tribunal arbitral reconhece-se que a Portaria de vinculação à jurisdição arbitral (cfr., Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março) estabelece duas limitações: as pretensões relativas a impostos de entre aquelas que se enquadram na competência genérica dos tribunais arbitrais e a impostos cuja administração esteja acometida à AT. Conclui-se, portanto, que essa vinculação se reporta a qualquer das pretensões mencionadas no artigo 2.º/1 do RJAT que respeitem a impostos, com exclusão de outros atos tributários.
As contribuições financeiras são tributos com uma estrutura paracomutativa, dirigidas à compensação de prestações presumivelmente provocadas ou aproveitadas pelos contribuintes, distinguindo-se das taxas que são tributos rigorosamente comutativos e que se dirigem à compensação de prestações efectivas (Sérgio Vasques, Manual de Direito Fiscal, 2015, Coimbra, p. 287). E não há dúvidas que se distingam dos impostos.
No caso da CSR, esta visa financiar a rede rodoviária nacional (afetando-se, para esse efeito, as receitas dela decorrentes à Infraestruturas de Portugal, S.A., a qual assume esse encargo), sendo devida pelos sujeitos passivos do imposto sobre produtos petrolíferos (ISP), aplicando-se o CIEC à sua liquidação, cobrança e pagamento (nos termos do artigo 5.º/1 da Lei 55/2007, de 31 de agosto).
Dificilmente pode considerar-se a CSR como uma contribuição financeira já que não tem como pressuposto uma prestação a favor de um grupo de sujeitos passivos por parte de uma pessoa coletiva. Ela é estabelecida a favor da Infraestruturas de Portugal, SA, mas os sujeitos passivos (as empresas comercializadoras de combustíveis) não são os destinatários da atividade dessa empresa (que consiste na conceção, projeto, construção, conservação, exploração, requalificação e alargamento da rede de estradas – cfr. artigo 3.º/2 da Lei 55/2007, de 31 de agosto).
Inexistindo um nexo específico entre o benefício emanado da actividade pública titular da contribuição (a Intraestruturas de Portugal, S.A.) e os sujeitos passivos (as empresas comercializadoras de combustíveis), desaparece essa natureza de contribuição financeira, devendo, por isso, ser assumida como um imposto, para efeitos do artigo 2.º/1 do RJAT.
Segue-se, nesta questão a jurisprudência arbitral largamente maioritária que reconhece na CSR um verdadeiro imposto e, por isso integrando a competência arbitral (cfr., por todos, Acórdão relativamente recente proferido no Proc. Arbitral n.º 465/2023-T).
A AT, ainda sobre a pretendida incompetência do Tribunal Arbitral, entende que este não poderá conhecer do pedido, por este pretender discutir a legalidade do regime da CSR no seu todo e a sua desconformidade com o Direito da União.
Este reparo assenta num evidente equívoco já que, conforme se referiu supra, a efectiva desconformidade da CSR com a Directiva 2008/118 integra a competência do tribunal arbitral, por afectar a validade das liquidações desse tributo, da mesma maneira que essa validade poderia ser afectada por desconformidade com normas de direito interno, dado o regime de vigência do Direito da União.
Improcede, sem mais e totalmente a exceção de incompetência do tribunal.
Relativamente às outras excepções invocadas pela Requerida (ilegitimidade da Requerente, ineptidão da petição e caducidade do direito de acção), abordá-las-emos conjugadamente a partir de um elemento que, da análise do processo e da jurisprudência (nem sempre convergente) que vem surgindo na matéria, nos parece determinante: a imprescindibilidade da identificação dos atos tributários impugnados.
Essa identificação, conforme se referiu supra não resulta nem podia resultar das faturas dos fornecedores de combustível, apresentadas pela Requerente, já que nenhuma referência nelas surge sobre originais sujeitos passivos de ISP e de CSR (os quais constarão necessariamente das Declarações de Introdução no Consumo ou do Documento Administrativo Único/Declaração Aduaneira de Importação ou ainda eventualmente de outros documentos que lograssem tal identificação com um mínimo de certeza). Note-se que as declarações juntas pela Requerente em 29-7-2024 nada esclarecem ou provam relativamente ao pretendido pela Requerente quanto à identificação dos atos tributários.
E, no entanto, essa identificação é imprescindível já que a pretendida devolução dos montantes pagos em sede de CSR se funda na nulidade do acto de liquidação (que fundamenta o pedido de revisão oficiosa). E se dificilmente pode ser apreciado o vício do ato sem se demonstrar a sua existência, impossível será conferir da sua repercussão efetiva.
Assim, defende a Requerente que tendo as compras ocorrido na vigência da Lei 55/2207, de 31 de agosto, a sujeição à CSR seria obrigatória, o que, genericamente se poderia aceitar – embora se trate de mera presunção de facto –, mas que estaria ilidida pelas citadas declarações da B... e da C... juntas aos autos pela Requerente em 29-7-2024.
Todavia, o que está em questão, além de saber se os combustíveis em causa foram ou não sujeitos a CSR, será saber, também, quem terá suportado esse encargo e em quem o repercutiu, pois só a partir daí será possível atestar da sua existência e, além disso, conferir se foi realmente pago e repercutido na Requerente.
É que, não havendo repercussão legal da CSR, esse efeito não poderá presumir-se, carecendo de prova, a qual depende – novamente – da identificação dos atos tributários de liquidação originários.
Ora o que acontece nos autos é que a Requerente formula o pedido de anulação de atos de liquidação de CSR, mas não identifica os atos tributários que pretende que sejam anulados, limitando-se a enunciar uma pretensa correlação entre aquisição de combustíveis, a emissão de faturas e a eventual entrega de DIC pelas entidades fornecedoras dos referidos combustíveis. A circunstância da Requerente ter suportado o imposto por repercussão económica ou de facto não a exonera da obrigação de identificar os atos tributários cuja anulação pretende, bem como não lhe permite invocar a inversão do ónus da prova, porquanto, nos termos do n.º 1 do artigo 74.º da LGT “[o] ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da administração tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque”.
Por outro lado, ainda, a circunstância da violação do direito da União Europeia poder consubstanciar um erro imputável aos serviços da AT, não exonera – insiste-se – a Requerente da obrigação de ter de identificar os atos tributários cuja anulação é pedida. E o certo é que a Requerente, no pedido de pronúncia arbitral não concretiza quais são os atos tributários de liquidação de CSR cuja anulação pretende além de que o pedido está formulado em termos genéricos e abstratos, circunstância que conduz inevitavelmente à ineptidão da petição inicial por falta ou insuficiência da causa de pedir – cfr. artigo 186.º-1/a), do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, do RJAT.
Assim é que não é feita qualquer referência ou estabelecida a necessária ligação entre as DIC eventualmente apresentadas pelas entidades fornecedoras dos combustíveis, as faturas e os períodos de aquisição, tornando manifestamente insuficiente a identificação dos atos de liquidação de CSR e a sua alegada repercussão.
E também deste modo se alcança a ilegitimidade substantiva da Requerente, na medida em que, não sendo sujeito passivo, mas mero repercutido (eventual) de facto, teria de demonstrar essa repercussão sempre a partir dos atos tributários de liquidação da CRS.
Naturalmente que o Tribunal Arbitral não afasta a possibilidade de uma eventual repercussão mas não dispensa a sua demonstração, a qual depende – como se referiu – da identificação, a cargo da Requerente, do ato tributário original de liquidação.
Neste ponto, não deixa de impressionar o argumento da AT quando salienta o risco de o pedido de devolução de CSR poder ser feito por todos os intervenientes no processo de comercialização dos combustíveis. Esse risco só é controlável na medida em que, sendo identificado o ato ou atos tributários originais de liquidação, possa ser conferida a efetiva repercussão do imposto, a qual determinará o titular do direito à sua devolução, com exclusão dos demais (na medida em que tenham repercutido, a montante e não tenham sido repercutidos, a jusante, se surgirem no referido processo).
Neste ponto, será excessivo pretender que seja a AT a identificar os atos tributários em causa por força de um dever genérico de colaboração. Esse dever não pode equivaler (como parece pretender a Requerente) a uma verdadeira inversão do ónus da prova. E, por outro lado, nada impede que o consumidor obtenha dos seus fornecedores cópia das Declarações de Introdução no Consumo (DIC), ou, que estes efectuem essa mesma diligência, caso não tenham sido eles a fazer tal declaração.
Atente-se, finalmente, a que a referida imprescindibilidade da identificação do ato tributário se justifica ainda enquanto elemento essencial para a conferência dos prazos relevantes.
De facto, a contagem do prazo para o pedido de revisão oficiosa (e subsequentemente para a apresentação do pedido arbitral), dependem da identificação do ato tributário. Sem este será impossível fazer-se a necessária conferência. Trata-se, mais uma vez, de um elemento de prova cuja produção que compete ao interessado.
Nestes termos, entende o Tribunal Arbitral que, a imprescindibilidade da identificação do ato tributário cuja declaração de nulidade é requerida faz – insiste-se –, com que a inexistência dessa identificação torne a petição inepta por falta de objeto (artigo 186.º e 576.º/2 do CPC ex vi artigo 29.º/1 e) do RJAT) – para além de conduzir simultânea e subsidiariamente à ilegitimidade da Requerente, tornando ainda impossível conferir da tempestividade do exercício do direito de revisão do ato e do pedido arbitral (artigo 576.º/2 e 3 e 577.º a) ex vi artigo 29.º/1 e) do RJAT).
Concluindo: verifica-se uma falta de concretização do pedido, por omissão na identificação dos atos de liquidação da CSR, falta que torna ininteligível, verificando-se, em consequência, a ineptidão da petição inicial, cuja consequência é a nulidade de todo o processo, e que constitui uma exceção dilatória de conhecimento oficioso geradora da absolvição da instância, nos termos do artigo 98.º-1/a), do CPPT, artigo 193.º n.º 1, 493.º, n.ºs. 1 e 2, 494.º alínea b) e 495.º, do Código de Processo Civil.
A procedência da exceção de ineptidão da petição inicial determina a nulidade de todo o processo [artigos 98.º-1/a), CPPT, 186.º, n.º 1 do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, 1, e) do RJAT]. Trata-se de uma nulidade insanável [artigo 98.º, 1, a) do CPPT], e de uma exceção dilatória [artigo 577.º, b) do CPC], que obsta a que o Tribunal Arbitral conheça do mérito da causa, dando lugar à absolvição da instância, obstando, de imediato, ao conhecimento das demais exceções, nada podendo inferir-se, da sua não consideração por prejudicialidade, quanto à procedência ou improcedência de cada uma delas para efeitos de absolvição da instância ou do pedido.
IV – DECISÃO
Nestes termos, o Tribunal Arbitral decide:
a) Declarar nulo o processo, por ineptidão da petição inicial;
b) Absolver da instância a Autoridade Tributária e Aduaneira;
c) Julgar prejudicadas as demais questões suscitadas e
c) Condenar a Requerente no pagamento das custas do processo.
VALOR DO PROCESSO
Fixa-se o valor do processo em € 139.893,34, de harmonia com o disposto nos artigos 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT), artigo 97.º-A, n.º 1, al. a) do CPPT e artigo 306.º do Código de Processo Civil (CPC).
CUSTAS
O valor das custas é fixado em € 3.060,000 ao abrigo do artigo 22.º, n.º 4 do RJAT e da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT), a cargo da Requerente, de acordo com o disposto nos artigos 12.º, n.º 2 do RJAT e 4.º, n.º 5 do RCPAT.
Lisboa, 29 de outubro de 2024
O Tribunal Arbitral Coletivo,
José Poças Falcão (Presidente)
Hélder Faustino (vogal), com declaração de voto
Rui Miguel Zeferino Ferreira (vogal)
DECLARAÇÃO DE VOTO
Conquanto adira à conclusão de que a Requerente não logrou comprovar a qualidade de entidade repercutida e lesada no âmbito da relação jurídico-tributária, com todas as consequências para o desfecho deste processo, entendo que a excepção de ineptidão do pedido arbitral é logicamente precedida pela de ilegitimidade da Requerente, que entendo procedente, o que prejudicaria o conhecimento daquela excepção que veio a prevalecer.
Antes de mais, sempre se diga que o Tribunal Arbitral é competente para conhecer da ilegalidade de liquidações de CSR, por se tratar de um imposto, em linha com a argumentação constante da decisão do processo arbitral 304/2022-T, de 5 de Janeiro de 2023. Já em relação aos “actos de repercussão” impugnados, o Tribunal Arbitral não pode conhecer dos mesmos, pois não são actos tributários, não estando prevista a sua sindicabilidade (cfr. artigo 2.º do RJAT). No entanto, como foram, em simultâneo, contestados pela Requerente os actos de liquidação de CSR, é sobre estes que recai a pronúncia do Tribunal Arbitral.
Por outro lado, na situação em análise, a Requerente invoca a qualidade de repercutido para deduzir a acção arbitral.
Vejamos,
Importa começar por notar que a figura do repercutido não se enquadra na categoria de sujeito passivo, nos termos do artigo 18.º, n.º 3, da LGT, pelo que, não sendo parte em contratos fiscais, a legitimidade, neste caso, só pode advir da comprovação de que é titular de um interesse legalmente protegido (cfr. artigo 9.º, n.º 1 e n.º 4, do CPPT).
Apesar de o repercutido não ser sujeito passivo, a alínea a) do n.º 4 do artigo 18.º da LGT pressupõe que assiste o “direito de reclamação, recurso, impugnação ou de pedido de pronúncia arbitral nos termos das leis tributárias” a quem “suporte o encargo do imposto por repercussão legal”, estendendo a posição jurídica adjectiva ao repercutido (apesar de não o considerar sujeito passivo), na condição de estarmos perante um caso de “repercussão legal”.
A lei implica desta forma que o repercutido legal é titular de um interesse legalmente protegido, condição exigida para que possa intervir em juízo (cfr. artigo 9.º, n.º 1 e n.º 4, do CPPT).
Afigura-se claro que a CSR não constitui um caso de repercussão legal. A Lei n.º 55/2007, de 31 de Agosto, que instituiu a CSR, não contempla qualquer mecanismo de repercussão legal, nem sequer, adiante-se, de repercussão meramente económica, isto, sem prejuízo de ser um dado que, em princípio, as empresas repassam nos preços praticados os gastos em que incorrem, independentemente da sua natureza (e, portanto, incluindo os gastos tributários), por forma a concretizarem o objectivo lucrativo que preside à sua criação e manutenção (cfr. artigos 22.º do Código das Sociedades Comerciais e 980.º do Código Civil).
Infere-se do articulado da Requerente que esta legitima a sua intervenção processual no facto singelo de lhe ter sido repercutida a CSR pelas empresas distribuidoras de combustíveis.
Contudo, importa, antes de mais, salientar que a repercussão económica não é, por si só, atributo de legitimidade processual, pois o artigo 9.º do CPPT requer a demonstração de um interesse legalmente protegido, ou seja, que mereça a tutela do direito substantivo. Além de que a Requerente não tem a qualidade de “consumidor” de combustíveis, no sentido de consumidor final sobre o qual recai ou deve recair o encargo do tributo, na lógica da repercussão económica que subjaz nomeadamente aos impostos especiais sobre o consumo.
Na verdade, e começando por esta última parte, a Requerente é uma sociedade comercial que se dedica à actividade de transporte rodoviário de mercadorias (CAE: 49410 - Transportes rodoviários de mercadorias). Desta forma, o combustível adquirido é um factor de produção no circuito económico (de uma cadeia de comercialização de bens), um gasto da actividade comercial realizada pela Requerente, não configurando um consumo final.
Acresce que, nos termos da Lei que prevê a CSR (Lei n.o 55/2007, de 31 de Agosto), não existe qualquer referência sobre quem deve recair o encargo do tributo do ponto de vista económico. Basta atentar, para esta conclusão, no artigo 5.o, n.o 1, da citada lei: “A contribuição de serviço rodoviário é devida pelos sujeitos passivos do imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos, sendo aplicável à sua liquidação, cobrança e pagamento o disposto no Código dos Impostos Especiais de Consumo, na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e Processo Tributário, com as devidas adaptações.” Assim, o legislador limitou-se a identificar o sujeito passivo da CSR, nada acrescentando sobre a repercussão da mesma. Nem se identifica como prevendo tal repercussão a norma do artigo 3.º, n.º 1, da mesma lei que diz que a CSR “constitui a contrapartida pela utilização da rede rodoviária nacional, tal como esta é verificada pelo consumo dos combustíveis”.
Importa também assinalar, com relevância para esta questão, que a remissão para o CIEC efectuada pela Lei da CSR é expressamente circunscrita aos procedimentos de “liquidação, cobrança e pagamento”.
Em resultado do acima exposto, é possível concluir, em síntese, o seguinte: (i) a referida Lei n.º 55/2007, de 31 de Agosto, define o sujeito passivo e devedor da CSR, mas não contém qualquer regra de repercussão legal, nem se pronuncia sobre a sua repercussão económica; (ii) a Requerente não é consumidor final, o que significa que os gastos em que incorre são presumivelmente, de acordo com as regras da experiência comum, repercutidos no elo subsequente do circuito económico até atingirem os consumidores finais, esses sim, onerados com o encargo económico do imposto e demais gastos incorridos na produção dos bens e serviços; (iii) se a CSR foi economicamente repercutida pelos distribuidores de combustíveis à Requerente, não há razões para crer que estas, no exercício de uma actividade económica que visa o lucro e dentro dessa racionalidade, não tenham também repassado de alguma forma o encargo da CSR, no todo ou em parte, para os seus clientes.
Ora, não sendo as Requerentes o sujeito passivo da CSR, nem repercutido legais desta contribuição, não lhes assiste legitimidade processual, a menos que, como interessadas, aleguem e demonstre factos que suportem a aplicação da norma residual atributiva de legitimidade, ou seja, a menos que evidencie a existência de um interesse directo e legalmente protegido na sua esfera, passível de justificar a faculdade de demandar a Requerida em juízo, ónus que sobre a mesma impende.
Contudo, o único facto que a Requerente alega para este efeito é o de lhe ter sido repercutida a CSR.
Acresce que, sem prejuízo de a CSR ter sido consagrada como “contrapartida” da utilização da rede rodoviária nacional, a Lei não indica ou sequer sugere sobre quem é que deve constituir encargo.
Rigorosamente, a Requerente é tão-só cliente comercial do sujeito passivo que liquidou a CSR. Não é o sujeito passivo dos actos tributários – de liquidação de CSR – impugnados. Não integra, nem é parte da relação tributária, nem sé repercutido legal. E também não se descortina, nem disso foi feita prova, que tenham sido a Requerente a suportar economicamente o imposto, para o que seria necessário demonstrar duas vertentes cumulativas: (i) que a CSR foi repercutida à Requerente, quais os montantes e em que períodos; (ii) que, por sua vez, o preço dos serviços que presta aos seus clientes não comporta a repercussão de CSR (ou a medida em que não a comporta, se se tratar de repercussão parcial), por forma a poderem sustentar que suportou, de forma efectiva, o encargo do imposto e o respectivo quantum.
A Requerente limitou-se a juntar declarações genéricas dos fornecedores de combustíveis, a qual estão longe de conter os elementos concretos indispensáveis à comprovação do acima exposto. De notar, ainda, que das facturas do fornecedor de combustíveis anexas ao pedido arbitral apenas constam valores referentes ao IVA, não contendo aquelas facturas qualquer referência a montantes pagos a título de CSR, sendo absolutamente omissas nesse aspecto. Não logrou, por isso, atestar que suportou o tributo contra o qual reage. E esta seria, segundo entendemos, a única forma de lhe poder ser reconhecida a legitimidade residual para a presente acção arbitral, tendo em conta que não é sujeito passivo, nas diversas modalidades que o conceito acomoda, nem repercutido legais da CSR.
Aliás, compreende-se que o legislador não tenha adoptado um conceito irrestrito de legitimidade activa, rodeando-se de algumas cautelas, atentas as dificuldades práticas que uma tal abertura suscitaria, quer na ligação entre o acto de liquidação do imposto, a determinação da sua efectiva repercussão (económica) e a determinação do seu quantum; quer ainda no potencial desdobramento / duplicação de devoluções de imposto indevidas: simultaneamente ao sujeito passivo e ao(s) múltiplo(s) repercutido(s) económicos da cadeia de valor. Ou seja, o mesmo imposto poderia ser restituído a diversos intervenientes, de forma dificilmente controlável e mapeável, com manifesto prejuízo para o Estado, em colisão com os princípios da igualdade e
da praticabilidade.
De assinalar, adicionalmente, que a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo já entendeu, em relação a um caso de liquidação de Imposto Automóvel (correspondente ao actual Imposto sobre Veículos), que o adquirente não tem legitimidade para impugnar a respectiva liquidação precisamente por não se tratar de um caso de repercussão legal (cfr. Acórdão de 1 de Outubro de 2003, processo n.º 0956/03).
A procedência da excepção dilatória de ilegitimidade da Requerente obstaria a que o Tribunal Arbitral conhecesse a questão de fundo e demais questões suscitadas (cfr. artigo 608.º do CPC) e teria determinado igualmente a absolvição da Requerida da instância, nos termos do disposto nos artigos 9.º do CPPT, 65.º da LGT, 55.º, n.º 1, alínea a), e 89.º, n.º 2 e n.º 4, alínea e), do CPTA, ex vi artigo 29.º, n.º 1, do RJAT.
Hélder Faustino
[1] Daqui em diante designado por CSR.