Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 277/2024-T
Data da decisão: 2024-10-28  IRS  
Valor do pedido: € 391.944,65
Tema: Cláusula Geral Anti-abuso
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SUMÁRIO: Uma doação de pai a filho (isenta de Imposto do Selo e originando a reavaliação das ações doadas, nos termos do art. 15º do CIS) seguida da venda por este de tais ações a um terceiro configura um planeamento fiscal ilícito, uma vez que não ficou provada qualquer razão para esta operação, nem para um conjunto de atos anteriores e posteriores à mesma, salvo a significativa economia fiscal que dela resultou.

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

 

A..., NIF ..., residente na ..., n.º..., ..., ..., ...-... Braga, veio, nos termos legais, apresentar pedido de pronúncia arbitral.

É requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

  • RELATÓRIO

 

  1. O Pedido

 

O Requerente pede a anulação da liquidação adicional de IRS, relativa ao ano de 2019, com o número 2022... e a anulação da respetiva liquidação de juros compensatórios, a que corresponde a demonstração de acerto de contas com o número 2023..., num valor global a pagar de € 391.944,65.

 

Pede ainda a “anulação do ato de indeferimento tácito” da reclamação graciosa por si apresentada contra o ato de liquidação adicional que ora impugna.

 

 

  1. O litígio

 

A liquidação impugnada resultou da invocação e aplicação da CGAA (cláusula geral anti-abuso)

Transcrevemos da resposta da AT: Em síntese, concluiu-se que (ponto III.5, página 10 do RIT) “(…) estarmos perante um esquema de planeamento fiscal abusivo, desenhado com o objetivo concreto de eliminar eventuais mais-valias obtidas com a alienação das participações sociais detidas na B..., em abril de 2019. É nossa convicção que estamos perante uma situação de planeamento fiscal abusivo cujas consequências só poderão ser revertidas através da aplicação dos mecanismos previstos no artigo 38.º, n.º 2, da LGT, e no artigo 63.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT)14(…)”.  Com a celebração de um contrato de doação e a posterior alienação por parte dos donatários, envolveu uma sucessão de negócios ou atos que, embora ocorressem em momentos temporais diferentes e com entidades diferentes, não deixaram de ocorrer no seio de um grupo familiar, tendo como objetivo primordial a obtenção de vantagens fiscais. Trataram-se de um conjunto de atos e negócios jurídicos essencial, ou principalmente dirigidos por meios artificiosos e com abuso das formas jurídicas, à redução de impostos (IRS) que seriam devidos sem a utilização desses meios, que constituem fundamento para proceder à aplicação da norma legal anti-abuso prevista no n.º 2 do art.º 38.º da LGT e do art.º 63º do CPPT, cuja autorização foi dada a 13-07-2022, por despacho da Sr.ª Diretora-geral da AT. 

Estamos na presença de rendimentos da categoria G (mais-valias) por força da al. a) do n.º 1 do art.º 9.º do Código do IRS e com a aplicação da CGAA, a tributação será efetuada de acordo com as normas aplicáveis na ausência de atos jurídicos artificiosos e com abuso de formas jurídicas, nos termos da alínea b) do n.º 1 e da alínea a) do n.º 4 do artigo 10.º do CIRS ( o ganho sujeito a IRS constituído pela diferença entre o valor de realização e o valor de aquisição), sendo o valor de aquisição a considerar no apuramento das mais-valias o definido nos termos da alínea b) do art.º 48.º do mesmo Código. Assim, a menos-valia de 2.171.678,00€ resultante dos valores declarados pelo Requerente será corrigida para uma mais-valia de 1.960.709,50€, numa diferença global de 4.132.387,50€ [2.171.678,00€ + 1.960.709,50€].

 No entanto, considerando que estamos perante alienação de ações de uma pequena e microempresa (B...), nos termos previstos no art.º 43.º, n.º 3, do CIRS, a mais-valia obtida pode ser considerada em apenas 50% do seu valor, ou seja, em 980.354,75€ (50% de 1.960.709,50€).

 

O Requerente aponta à liquidação impugnada os seguintes vícios:

- sua ilegitimidade passiva, considerando que as liquidações resultantes da aplicação da CGAA, a existirem, deveriam ter sido feitas em nome de C... (seu pai), pois seria a ele que a AT imputa o suposto caráter artificioso dos atos;

- caducidade do direito à liquidação;

- não preenchimento dos requisitos constantes no art.º 38º nº 2 da LGT;

- ilegalidade e inconstitucionalidade da fixação dos juros compensatórios ao abrigo do artigo 38º, nº 6 da LGT.

 

Estes são os temas que cumpre a este tribunal apreciar e decidir. Os argumentos esgrimidos por ambas as partes serão, no considerado necessário, resumidos (e ponderados) adiante, quando se proceder à apreciação do mérito da causa.

 

 

 c) Tramitação Processual

 

O pedido foi aceite em 28/02/2024.

Os membros deste tribunal foram designados pelo Sr. Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, tendo aceitado a nomeação. Nenhuma das partes se opôs.

O tribunal arbitral ficou constituído em 09/05/2024.

A Requerida apresentou resposta e juntou o PA.

Em 12/09/2024 foi realizada a reunião a que se refere o art. 18º do RJAT. Na sequência, o Requerente prescindiu da audição das testemunhas que havia arrolado.

As partes apresentaram alegações nas quais mantiveram as posições assumidas nos articulados.

 

d) Saneamento

 

O processo não enferma de nulidades ou irregularidades. Não foram alegadas nem detetadas questões suscetíveis de impedir o conhecimento do pedido. Adiante se apreciará da questão da inutilidade parcial superveniente da lide suscitada pela Requerida.

 

 

 

III – PROVA

 

III.1 - Factos Provados

 

Considera-se provado que:   

 

  1. As liquidações impugnadas são datadas de 2/12/2022.
  2. O Requerente é filho de C... (doravante, C...), empresário que esteve na origem de um conjunto de empresas a seguir denominado Grupo D... .
  3.  A criação do Grupo D...  remonta ao início da atividade individual de C..., em 1962, em França e, em 1968, em Portugal (Braga), com atuação predominantemente no setor imobiliário, nacional e internacional, sendo hoje constituído por várias sociedades.
  4. Os filhos de C... (o Requerente, A..., e o seu irmão, E...) cedo foram integrados pelo pai na gestão de sociedades do grupo, na perspetiva de virem a ser continuadores da atividade empresarial iniciada pelo pai.
  5. A sociedade B... era especialmente relevante no contexto do Grupo D... na medida em que era detentora de imóveis que geravam fluxos de tesouraria relevantes, nomeadamente imóveis onde se encontravam instalados supermercados.
  6. Na data da sua constituição, em 2008, os membros da Família D... detinham 50% do respetivo capital, como se segue: C... 30%; E... 10%; A... 10%.
  7. Em 20.03.2013, o Requerente transmitiu a quota que detinha para sociedade F..., S.A., de que é hoje administrador único.
  8. Na mesma data, o seu irmão E... também transmitiu a quota que detinha para a sociedade G..., S.A., de que é administrador único.
  9. Na mesma data, o então também sócio da B... H... dividiu a quota que detinha, representativa de 25% do capital, em três novas quotas, tendo-as cedido a C..., à F... e à G... .
  10. Assim, desde essa data, o capital social da B... passou a ser detido por C... (30% + 10%), I... (25%), F... (10%+ 7,5%) e G..., S.A. (10% + 7,5%).
  11. Em 07.07.2014, I... transmitiu a sua quota a C..., passando a totalidade do capital social da B... a ser detida (direta ou indiretamente) pela Família D...:
  12. Em 29.12.2017, os sócios deliberaram em Assembleia Geral sobre a transformação da B... em sociedade anónima, o que obrigou ao aumento do respetivo capital social para € 50.000,00 e ao aumento do número de sócios para cinco, tendo entrado novamente como sócios o Requerente e o seu irmão (E...), mantendo-se a posição relativa das participações, diretas e indiretas, dos sócios.
  13. Nessa altura, C... era ainda credor da B... em 450.000 euros, resultantes de prestações acessórias.
  14. Em 20.12.2017, os sócios deliberaram proceder a um novo aumento do capital social, desta feita para € 500.000,00, tendo o aumento de € 450.000,00 sido integralmente subscrito em dinheiro por C... .
  15. Este aumento de capital foi seguido do reembolso a C..., no dia 28.12.2017, do valor de € 469.500,00 de que era credor da sociedade.
  16. Não foram convertidas em capital as prestações suplementares de E... e A..., no valor de € 49.375,00 cada um.
  17. Em 14.12.2018, C... e J... (Mãe do Requerente) doaram a cada um dos seus filhos (o ora requerente e o seu irmão, E...) 48.250 ações que detinham na B... .
  18. Dessa forma, o capital social da B... passou a estar estruturado do seguinte modo: A..., titular de 48,30%; E..., titular de 48,30%;F..., titular de 1,70%; G..., titular de 1,70%.
  19. Na sequência desta doação, a AT procedeu à avaliação do valor das ações transmitidas, com base na fórmula prevista no artigo 15.º do Código do Imposto do Selo, tendo concluído pela atribuição a cada um dos conjuntos de 48.250 ações transmitidos do valor de € 4.554.800,00 euros.
  20. O Requerente (bem como o seu irmão E...) vendeu as suas participações à K..., Lda., como se segue:
  21. Em 19.02.2019, foi celebrado o respetivo contrato promessa, no qual foi fixado o preço global de € 4.934.000,00, e foi pago, a título de sinal e princípio de pagamento, o montante de € 1.000.000,00, recebido na proporção do capital detido por cada sócio.
  22. Em 12.04.2019, celebrou-se o contrato final, tendo os alienantes recebido os restantes valores acordados.
  23. Em 15.03.2019, o Requerente transferiu para a Grupo D... SGPS, S.A., a título de empréstimo, € 500.000,00, correspondente à sua parte no primeiro pagamento realizado pela K... .
  24. Este valor de € 500.000,00 foi, depois, contabilizado pela Grupo D... SGPS, S.A. na conta da sociedade L... S.A. a título de suprimentos.
  25. A sociedade L... S.A. é detida por C..., pelo Requerente e pelo irmão deste, E... .
  26. Em 16.04.2019, o Requerente depositou um cheque na conta da Grupo D... SGPS, S.A., no valor de € 1.900.000,00, correspondente ao segundo pagamento efetuado pela K...;
  27.  Este valor de € 1.900.000,00 foi, depois contabilizado pela Grupo D... SGPS, S.A.na conta da L... S.A., a título de suprimentos
  28. O irmão do Requerente (E...) procedeu de igual modo.
  29. Em resultado da alienação das ações à K..., o Requerente apurou uma menos-valia no valor de € 2.171.678,00, que declarou na respetiva declaração Modelo 3 de IRS, relativa a 2019.
  30. O Requerente foi objeto de uma ação inspetiva que deu origem à liquidação adicional que ora impugna, na qual foi decidida a aplicação da CGAA.
  31. A fundamentação da aplicação da CGA ao Requerente foi a seguinte: (“informação” a pág. 91 do PPA): Nestes termos, a tributação "deverá produzir os seus efeitos na esfera jurídico-tributária do sujeito passivo A..., enquanto alienante das 48.300 ações detidas na B... pelo valor de 2.383.122,00€ e beneficiário efetivo da vantagem fiscal. Este beneficio traduziu-se no apuramento artificioso de uma menos-valia fiscal, consequência de uma doação que mais não visou que substituir o título aquisitivo das participações sociais alienadas, de forma a que o respetivo valor de aquisição passasse a beneficiar de uma avaliação fiscal com base no último balanço da sociedade, por força da conjugação do n.º 1 do artigo 45.º do CIRS com o artigo 15.0 do CIS." 19. No PRIT da DF de Braga, no ponto IJl.6, é explicado corno foi apurado o valor de realização e de aquisição para efeitos de cálculo do valor a tributar: "para efeitos de apuramento das mais ou menos-valias na esfera jurídico-tributária de A..., relativas à venda das participações sociais da B..., será tido como valor de aquisição das ações doadas por C... o valor pelo qual este as adquiriu, nos termos da alínea b) do art.º 48.º do CIRS. Ao valor de aquisição acrescem as despesas necessárias e efetivamente praticadas, inerentes à alienação, conforme permitido pela alínea b) do n.0 1 do artigo 51.º do Código do IRS. Contudo, no caso em concreto, não se identificaram despesas efetivamente praticadas inerentes à alienação. No cálculo das mais e menos-valias relativas à transmissão de partes sociais aplica-se ao valor de aquisição o coeficiente de desvalorização da moeda, conforme preconiza o n.º 1 do artigo 50. 0 do CIRS. Apesar de A... ter adquirido as participações por doação formalizada quatro meses antes da alienação, o que inviabilizaria a aplicação desta norma por não ter decorrido 24 meses, a desconsideração da doação leva-nos a considerar a data original de ,aquisição das partes de capital por C..., conforme discriminado no ponto 111.2. O valor de realização corresponde àquele que a K... pagou pelas 48.300 ações da B... detidas à data por A..., ou seja, 2.383.122,00€ (cf. anexo 4)." 20. Em seguida, e após evidenciação da forma de cálculo da mais-valia, conclui o PRIT que: "Assim, a menos-valia de 2.171.678,00€ resultante dos valores declarados pelo SP será corrigida para uma mais-valia de 1.960.709,50€, numa diferença global de 4.132.387,50€ [2.171.678,00€ + 1.960.709,50€] ( ... ) .
  32. O Requerente reclamou graciosamente, mantendo-se o silêncio administrativo para além do prazo legal de decisão.
  33. Consta da resposta da AT no presente processo arbitral o seguinte: Face ao atrás exposto, é nosso entendimento que deve ser acolhida a pretensão do Requerente e anulada a liquidação de juros compensatórios nº 2023 ... referente à majoração em 15 pontos percentuais (nº 6 do art.º 38 da LGT), uma vez que a norma em causa não se aplica aos factos tributários ocorridos antes de 04-05-2019, aqui sindicados. 70. Sendo que o referido agravamento foi introduzido no ordenamento fiscal com o art.º 3.º da Lei nº 32/2019, de 03/05, que entrou em vigor em 04-05-2019. 71. Assim, a AT procedeu à revogação parcial do acto impugnado, nestes termos, e nesta parte da Liquidação controvertida supra identificada, deve ser declarada a inutilidade superveniente da lide.

 

Estes factos resultam da documentação junta aos autos, não tendo suscitado divergências entre as partes que, aliás, os mencionam expressamente nos respetivos articulados.

 

II.2- Factos não Provados

 

Não foram considerados quaisquer factos, relevantes para a decisão, tidos por não provados.

 

III - DO MÉRITO

 

  1. Ilegitimidade do Requerente

 

Afirma o Requerente:

- se a AT sustenta que as opções adotadas visaram que o pai,  C..., pudesse vender ações sem mais-valias e manter o controlo dos fundos gerados com essa venda – no que, repita-se, não se concede –, então sempre se diga que o destinatário das correções efetuadas pela AT teria sempre de ser C... e essa ilação extrai-se forçosamente das próprias premissas da AT para aplicar a CGAA (nº 73 e 74 do PPA).

Cita, a propósito, a seguinte passagem do RIT: Não é o que se verifica neste caso, em que o doador, por força do retorno do valor de venda das participações sociais doadas à esfera de uma empresa familiar – a JCF -, da qual é acionista maioritário e presidente do Conselho de Administração e beneficia da doação efectuada. […] os impostos que seriam devidos pela operação ficam a ser geridos pelo doador na actividade da JCF, somados ao valor obtido com a alienação das acções doadas.

 

Conclui o Requerente que, no caso concreto, não lhe foi imputada a prática de qualquer ato artificioso ou fraudulento, pois, verdadeiramente, em face da argumentação expendida pela AT no Relatório, só se pode concluir que a AT imputa o suposto caráter artificioso dos atos aí descritos ao seu Pai, C... (nº 75ª do PPA).

 

Apreciando:

Esta em causa a legitimidade material do Requerente (a legitimidade processual decorre do simples facto de a liquidação impugnada ter sido processada em seu nome), saber se ele foi ou não beneficiário da(s) operações alegadamente abusivas.

 

Como nota primeira, temos que poderão ser vários os beneficiários de uma operação abusiva. O facto de C... poder ser um dos beneficiários, não impede, só por si, que o Requerente também o tenha sido. E não impede que a fundamentação das liquidações adicionais, muito embora constando de um mesmo RIT, possa ter algumas diferenciações relativamente a cada um dos envolvidos, como acontece no caso presente. O que é vedado é a cumulação injustificada de tributações na esfera dos diferentes beneficiários. Questão que, porém, não surge colocada neste processo, talvez porquanto só um dos interessados nele figura como Requerente uma vez que não foi feita a opção pela coligação de autores.

 

Segunda nota: o Requerente é, indiscutivelmente, coautor das operações em causa. Independentemente de a decisão inicial de proceder à doação caber aos doadores (aos pais do Requerente), uma doação depende da aceitação pelo beneficiário, pois não é um negócio jurídico puramente unilateral. A aceitação de tal doação, no contexto em que aconteceu, seguida da alienação das participações recebidas em doação, consubstancia o “qualquer ato artificioso ou fraudulento” que o Requerente afirma lhe ter sido imputado.

O Requerente foi, pois, “coautor” do primeiro passo do conjunto de operações tido por abusivo, a doação, operação essencial pois que originou a reavaliação fiscal das ações assim transmitidas. E foi o autor do “segundo passo”, a venda das ações a um terceiro.

Foi, também, autor das transferências bancárias, relativas aos montantes recebidos pela venda das ações, dadas como provadas. As quais (conjugadas com idênticas operações realizadas pelo seu irmão E..., ao terem como destinatário uma sociedade do grupo, beneficiaram o pai C..., que assim, em termos práticos, integrou no seu património (através de uma sociedade em que é sócio maioritário) grande parte do produto da venda das ações, que eram então propriedade dos filhos. Mas a “economia fiscal” em causa nos presentes autos, referida à liquidação processada em nome do Requerente, resultou apenas dos dois” passos” anteriormente referidos.

 

Não existe qualquer violação do princípio da legalidade na sua dimensão de tipicidade. Pois não é exato que a fundamentação enunciada pela AT apresente C... como o impulsionador e o beneficiário do dito esquema que descreve, no entanto, no fim da linha, faz recair a cominação, isto é, a tributação, incompreensivelmente, sobre os seus filhos, isto é, sobre A... e E... .

Existe uma fundamentação específica relativamente às razões que determinaram a aplicação da CGAA a este Requerente, as únicas que cumpre apreciar neste processo.

 

Também não é de aceitar a afirmação da Requerente (nº 110 do PPA) que a aplicação das normas mobilizadas pela AT, em suporte da sua fundamentação, é ainda abertamente violadora do princípio da igualdade tributária, por flagrante violação da capacidade contributiva do sujeito passivo visado – neste caso, do ora requerente - conforme decorre do art. 104 da CRP.

 

Ao contrário do alegado, não existe qualquer violação do princípio da capacidade contributiva. Ao Requerente é imputado um enriquecimento fiscalmente ilícito. A capacidade contributiva acrescida que se pretende tributar é manifesta: está em causa o rendimento correspondente ao produto da venda das ações.

 

A única questão que se coloca é a de saber qual o imposto devido pelo Requerente em resultado dessa alienação, se o pretendido pelo Requerente se o considerado pela AT.

 

Improcede, pois, a invocada ilegitimidade material do Requerente.

 

 

  1. Caducidade do Direito à Liquidação

 

A invocação desta “exceção” decorre da argumentação do Requerente no sentido de que a legitimidade material, enquanto destinatário da aplicação da CGAA, caberia apenas ao seu pai,  C..., antes analisada e considerada improcedente.

Como conclui a Requerente no nº 96 do seu PPA encontrando-se, assim, integralmente decorrido o prazo extintivo do direito de a AT instaurar um procedimento de aplicação da CGAA contra C... .

Assim sendo, é manifesto que esta exceção se refere à situação jurídica de C... e não à do Requerente, que nada alega no sentido de que a notificação da liquidação que ora impugna, datada de 2/12/2022, não tenha por ele sido recebida para além do prazo de 4 anos contado desde 01/01/2020, início do ano seguinte àquele em que se completaram a totalidade das transações tidas, no seu conjunto, por abusivas.

 

 

  1. Da ilegalidade da Liquidação por erro na interpretação dos factos e do Direito aplicável

 

Aceitemos, como ponto de partida, que a aplicação da CGDA, pelo menos na redação vigente ao tempo, pressupõe a presença de quatro elementos, o que de seguida se analisará[1].

 

Elemento meio: estamos perante uma sucessão de negócios jurídicos, um alegado esquema de step transaction: primeiro passo seria a doação de ações feita pelo pai aos filhos; segundo passo, a venda, por estes, de tais ações.

Aceitamos que cada um destes negócios é “normal”, que em abstrato nada tem de artificioso ou fraudulento.

É normal que um pai de idade avançada, como é o caso, se pretenda desligar das empresas de que é proprietário, transferido a sua propriedade e gestão para os filhos (ou alguns dos filhos). O negócio jurídico apto para realizar tal desiderato é a doação. Aliás, a lei fiscal como que reconhece a “equivalência” entre sucessão mortis causa e doação em vida, na medida em que prevê idêntica isenção para ambos os casos.

A venda de ações corresponde também ao negócio típico de alienação onerosa de bens inter vivos.

A questão da adequação do meio não resulta, aqui, da sua “anormalidade” em abstrato, mas sim das circunstâncias em que foi utilizado. Como dissemos, é legítimo, é normal – é até desejável, segundo entendemos – que os empresários pretendam que os filhos (ou alguns deles) lhes sucedam na propriedade e direção, de forma a assegurar a continuidade das empresas familiares; e que, para tal, efetuem “partilhas em vida”, as quais podem ser concretizadas através de doações.

Porém, (à falta de melhor explicação) surge como anómala uma doação aos filhos de ações representativas do capital da sociedade que titula parte importante do património empresarial criado pelo pai quando não está em causa a continuidade da empresa familiar, quando se perspetiva a sua alienação a terceiros. E não se diga que tal perspetiva não existia quando a doação teve lugar. Não está em causa determinar a intencionalidade subjetiva dos participantes nas operações em causa, mas sim concluir objetivamente, tendo em conta todos os factos e circunstâncias relevantes, como hoje – ainda que sem nada acrescentar de substantivo - diz expressamente a lei.

 

Aqui, elementos relevantes são a proximidade temporal entre a aquisição por doação e venda das ações e, também, o facto de o pai do Requerente ter, previamente à doação, procedido a um (segundo) aumento de capital – para o qual não foram provadas razões explicativas consideradas suficientes –, através da conversão em capital de créditos que detinha, o que, objetivamente, lhe permitiu fazer aos filhos doações de maior valor.

Assim sendo, há que concluir que o elemento meio, no contexto dos factos apurados, se pode considerar preenchido.

 

Elemento resultado: é evidente que o conjunto das operações realizadas gerou uma significativa economia de imposto. A doação (isenta de Imposto do Selo) conduziu à reavaliação das ações, nos termos do art. 15º do CIS, o que implicou que, aquando da venda, o valor de aquisição a ser considerado fosse maior e, consequentemente, não existisse mais-valia tributável.

 

A vantagem fiscal, comparativamente à situação que ocorreria se a doação não tivesse tido lugar, ou seja, se o vendedor tivesse sido o pai do Requerente, é evidente. Como já adiantámos, aqui surge como algo irrelevante a questão de saber qual dos intervenientes deve ser havido como beneficiário da vantagem fiscal.

As operações em causa aconteceram num seio familiar restrito: pai (e mãe) e filhos, que atuaram como uma “unidade” económica. O pai doou as ações aos filhos; estes alienaram-nos, pagando menos imposto que o que seria devido caso a alienação fosse feita pelo pai. Mas os filhos não dispuseram do preço da venda que, direta e indiretamente, obtiveram para fins pessoais: essas importâncias “retornaram” à sociedade JFC, continuando afetos aos interesses empresariais da família, considerada no seu conjunto.

Em resumo, todos os intervenientes (pais e filhos) beneficiaram economicamente do esquema, da inexistência de imposto que este originou.

 

Quanto ao elemento intelectual, há que considerar que esteve presente: os intervenientes nas operações em causa, nomeadamente o Requerente, não podiam ignorar que a venda das ações, se feita pelos filhos, originaria muito menos imposto (no concreto, nenhum imposto) que se feita pelos originários proprietários, os pais. Também aqui se impõe uma análise objetiva das circunstâncias, não assumindo relevância o animus subjetivo dos agentes.

 

O elemento normativo, no essencial correspondente à aplicabilidade da estatuição da norma, decorre da verificação dos outros três elementos, já analisados que nos levam a concluir pela “censurabilidade fiscal” do conjunto de operações em causa.

 

Por último: a questão, expressamente referida pelo Requerente, das razões para o (segundo) aumento de capital, ter sido realizado apenas por C... (nº 182 a 196 do PPA) é irrelevante. Com ou sem tal aumento de capital, os pressupostos da aplicação CGAA estariam verificados. Apenas seria diferente o valor da liquidação adicional. Tal aumento de capital, quando muito, releva como facto instrumental, que poderá ajudar a concluir pela motivação fiscal das operações em causa (aquisição por doação isenta das ações em causa, seguida da sua alienação),

É também irrelevante para o presente processo, que se refere à liquidação adicional processada em nome do Requerente, saber das atuações ou omissões da AT relativamente a terceiros, como sejam as sociedades F... e G... (nº 197 do PPA),

 

  1. Da ilegalidade e inconstitucionalidade da fixação dos juros compensatórios ao abrigo do artigo 38.º, n.º 6, da LGT

 

O Requerente alega a inconstitucionalidade do disposto no artigo 38.º, n.º 6, da LGT por violação dos princípios ne bis in idem e da capacidade contributiva.

Como veremos de seguida, a questão pode e deve ser resolvida no plano infraconstitucional. Isto sem prejuízo de se deixar afirmada a nossa concordância com o que sobre este ponto, louvando-se em Tomás Cantista Tavares, o Requerente deixou alegado.

 

O nº 6 do art. 38º da LGT entrou em vigor em maio de 2019 (Lei 32/2019). O último ato da série de transações tida, neste processo, por abusiva (a venda das ações pelo Requerente) ocorreu em 12 de abril desse ano. Assim, a aplicação da lei nova aos factos sub judice implicaria retroatividade, constitucionalmente inadmissível por estarem em causa direitos e garantias dos cidadãos.

 

Na sua resposta, a Requerida coincide neste entendimento[2]. A mesma é a opinião do tribunal, pelo que deve ser acolhida a pretensão do Requerente, sendo anulada a liquidação de juros compensatórios, uma vez que a norma em que se baseia não se aplica aos factos aqui sindicados.

 

 

V – DECISÃO

 

Pelo exposto,

  1. Improcede o pedido de anulação da liquidação adicional de IRS, relativa ao ano de 2019, com o número 2022..., no montante 273.112,67.
  2. Procede o pedido de anulação da respetiva liquidação de juros compensatórios. no montante de 116. 754, 39.

 

Valor: € 391.944,65 – cfr. ata da reunião do art. 18º do RJAT.

Custas arbitrais, num total 6.426,00 euros, na proporção do decaimento, que é de 70,22% para o Requerente e de 29,78% para a Requerida.

 

28 de outubro de 2024

 

 

Os árbitros

 

 

 

Rui Duarte Morais (relator)

 

 

 


Maria Antónia Torres

 

 

 

 

 

Ana Teixeira de Sousa 

*

 



[1] Os tribunais seguem, normalmente, a exposição feita por Gustavo Courinha em   A Cláusula Geral Anti-Abuso no Direito Tributário, 2004.

[2] A Requerida, na sua resposta, alega ter acontecido a revogação administrativa da liquidação de juros impugnada. Porém, não consta do processo documento comprovativo de que tal tenha acontecido, pelo que não se pode colocar a questão da inutilidade superveniente da lide.