Sumário:
I – No quadro legal que vigorou até 31-12-2023, a aplicação do regime do residente não habitual a cidadão estrangeiro não depende da prévia inscrição pelo sujeito passivo nessa situação no Portal das Finanças; a aplicação desse regime, designadamente para os efeitos previstos no artigo 72.º, n.º 10 do CIRS depende apenas da verificação dos requisitos de facto que constam do artigo 16.º, n.º 8, em qualquer caso dentro do circunstancialismo previsto nos números 9 e 11 do mesmo artigo.
II – A inscrição como residente não habitual, por via eletrónica, no Portal das Finanças, solicitada pelo contribuinte, tem natureza meramente declarativa.
DECISÃO ARBITRAL
O árbitro Nuno Maldonado Sousa designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formar o Tribunal Arbitral Singular constituído em 27-02-2024, decide no processo identificado nos seguintes termos:
1 Relatório
A..., com o número de identificação fiscal (“NIF”) ..., residente na Rua ..., n.º ... –..., ... –... Amadora, doravante designado por “Requerente”, requereu a constituição de tribunal arbitral e formulou pedido de pronuncia arbitral em matéria tributária, tema que é regulado nos termos do regime jurídico da arbitragem em matéria tributária constante do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (“RJAT”). O Requerente assenta processualmente os seus pedidos nas normas do artigo 2.º, n.º 1 alínea a), do artigo 5.º n.º 2 e do artigo 10.º n.º 1 alínea a) e n.º 2 todos do citado RJAT.
O Requerente peticiona a anulação da liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (“IRS”), n.º 2021..., no valor de €3.094,96, do ano de 2020, que foi objeto da reclamação graciosa n.º ...2023..., indeferida pela AT, e cuja pretensão de anulação é também peticionada. O Requerente peticiona ainda o pagamento de juros indemnizatórios vencidos e vincendos.
A pretensão do Requerente, na sua tese, tem por fundamento a violação de lei, designadamente da disciplina regulada no artigo 16.º, em especial no n.º 8 e do n.º 9 do CIRS, porque entende que a taxa especial de tributação em IRS aplicável ao abrigo do regime do residente não habitual (“RNH”) é um benefício fiscal de caráter automático, por depender diretamente da lei (45.º do PPA[1]) e a qualificação subjetiva, ou dito de outro modo, a aplicação do estatuto de RNH apenas depende da verificação das condições de facto previstas na lei (44.º do PPA) e não depende da prévia inscrição dessa qualidade do sujeito passivo nos registos da AT.
É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA, doravante designada também pelas formas abreviadas “AT” ou “Requerida”, que sustenta que a aplicação dos benefícios concedidos pelo regime do RNH assenta num procedimento prévio e independente da liquidação, de reconhecimento da condição de RNH ao sujeito passivo.
2Tramitação
O pedido de constituição do tribunal arbitral foi feito em 19-12-2023 e aceite pelo Presidente do CAAD em 21-12-2023, que na mesma data o notificou à Requerida.
O árbitro identificado e signatário desta decisão, manifestou a aceitação das suas funções no prazo legal. Em 09-02-2024 as Partes foram notificadas da designação do árbitro e não manifestaram intenção de o recusar, nos termos previstos nas normas do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e nas normas dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico. Em conformidade com a disciplina constante do artigo 11.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, o Tribunal Arbitral foi constituído em 27-02-2024. O prazo para a decisão foi prorrogado por períodos de dois meses, por despachos fundamentados de 26-08-2024 e de 28-10-2024.
Foram juntos documentos de natureza probatória pelo Requerente. A Requerida apresentou resposta (“R-AT”) em 12-04-2024 e juntou o processo administrativo (“PA”). Seguindo tramitação fixada pelo Tribunal, o Requerente apresentou resposta escrita à defesa por exceção da Requerida.
Por despacho de 15-04-2024 foi dispensada a 1.ª reunião do Tribunal com as partes, por inexistência de razão para a sua realização. Foi concedido prazo às Partes para alegarem por escrito e estas optaram por não o fazer.
3Saneamento
O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído, em subordinação às normas dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, do RJAT.
Foi suscitada pela Requerida a exceção da incompetência do Tribunal Arbitral e da impossibilidade de impugnação do ato de liquidação com fundamento no suposto estatuto de RNH. Pela interdependência destas questões com o mérito da causa, apreciar-se-ão essas exceções no capítulo desta decisão relativo à solução jurídica da causa.
O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, porque apresentado em 21-12-2023, antes do termo do prazo previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do já referido regime, considerando que o termo inicial ocorreu em 10-10-2023, data em que foi notificada ao Requerente o indeferimento da reclamação graciosa obrigatória, também ela tempestiva, porque apresentada em 20-02-2023, dentro do prazo de dois anos contado do termo do prazo legal para a entrega da declaração (30-06-2021), nos termos do artigo 60.º, n.º 1 e do artigo 140.º, n.º 2 do CIRS, como faz notar a AT no PA (pp. 94-95). Trata-se afinal de declaração apresentada pelo Requerente sem nela poder incluir o anexo L, relativo a rendimentos de RNH.
As partes estão devidamente patrocinadas e a Requerida goza de personalidade e capacidade judiciárias (artigo 4.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
O processo não enferma de nulidades pelo que cumpre decidi-lo.
4Decisão da matéria de facto
4.1 Matéria de facto assente
Para decidir a ação este Tribunal considera assente:
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O Requerente é um cidadão de nacionalidade britânica. [PPA, 9.º: doc. 3]
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O Requerente inscreveu-se em 22-09-2019 no Sistema de Gestão de Registo de Contribuintes, onde passou a constar como “residente no estrangeiro”. [PPA, 10.º: doc. 4]
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Em 18-01-2020 o Requerente alterou a sua residência no Sistema de Gestão de Registo de Contribuintes, onde passou a constar como residente em Portugal. [PPA, 11.º: doc. 4]
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O Requerente celebrou contrato de trabalho por tempo indeterminado com a B..., Unipessoal Lda., para exercer as funções de C..., com data de início a 31-01-2020, registado em 19-03-2020 na Autoridade para as Condições do Trabalho. [PPA, 12.º e 13.º: docs. 6 e 7]
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O Requerente, não solicitou junto da AT a sua inscrição no regime dos Residentes Não Habituais, por via eletrónica, até 31-03-2021. [PPA, 14.º]
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Em 06-07-2021 o Requerente apresentou a sua declaração de IRS Modelo 3 de 2020. [PPA, 15.º: doc. 8]
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Não foi possível ao Requerente submeter o Anexo L (Residentes Não Habituais) com a sua declaração Modelo 3, uma vez que o sistema informático da Autoridade Tributária e Aduaneira não permite a entrega deste anexo em relação aos contribuintes que não estejam previamente inscritos nessa qualidade nesse sistema. [facto não controvertido]
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O Requerente foi notificado liquidação de IRS n.º 2021..., do ano de 2020, no valor a pagar de € 3.094,96, tendo procedido ao pagamento do imposto. [facto não controvertido]
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Em 20.02.2023 o Requerente apresentou reclamação graciosa da liquidação de IRS, na qual peticionou a anulação de tal ato e a validação da declaração de substituição que tinha entregado (PPA, 18.º: doc. 9; facto não controvertido)
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Em 01.09.2023 o Requerente foi notificado do projeto de decisão da reclamação graciosa, com o número de processo ...2023... e para exercer o seu direito de participação na decisão na modalidade de audição prévia. [PPA, 18: doc. 9]
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Em 10.10.2023 o Requerente foi notificado da decisão final de indeferimento da reclamação graciosa. [PPA, 20.º: doc. 2 e PA, p. 103]
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O despacho de indeferimento da reclamação datado de 02-10-2023 tem o seguinte teor: [PA, p. 98]
Concordo, pelo que convolo em definitivo o projeto de decisão, com base nos fundamentos dele constantes, com a informação e parecer prestados infra, e com os demais elementos integrantes dos autos, indefiro o pedido do Reclamante, nos termos e com os fundamentos propostos.
(…)
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Na fundamentação da decisão da reclamação graciosa, feita por remissão para o projeto de decisão, pode ler-se, para além do mais que dela consta: [PA, p. 94]
(…)
5 — Em conformidade com o n.º 10º do art.º 16º do CIRS, o sujeito passivo deve solicitar a inscrição como residente não habitual, por via eletrónica, no Portal das Finanças, posteriormente ao ato da inscrição como residente em território português a até 31 de março, inclusive, do ano seguinte àquele em que se torne residente nesse território. (Redação do Decreto-Lei nº 41/2016, de 1 de agosto)
5.1-Para o efeito o contribuinte deveria solicitar, no Portal das Finanças, após se ter inscrito como residente em território português, a respetiva senha de acesso e preencher o formulário com os dados solicitados.
5.2-Da decisão do pedido, em caso de deferimento, o interessado pode obter o respetivo comprovativo do portal, onde consta, designadamente, a informação sobre o ano do início e fim do estatuto.
5.3-Em caso de indeferimento, o requerente é notificado do projeto de decisão de indeferimento onde constam os respetivos fundamentos, para querendo, apresentar as suas alegações, remetendo-as para a Direção de Serviços de Registo de Contribuintes.
5.4-Não se verifica em sistema que o reclamante possua estatuto de "Residente não Habitual" nem o reclamante apresenta quaisquer documentos que o comprovam ou façam supor o seu pedido.
Assim de harmonia com o exposto apesar dos documentos juntos ao presente processo, verifica-se que o reclamante não solicitou até 31 de março de 2021 o estatuto de "Residente Não Habitual" em conformidade com o nº 10 do artº 16º do CIRS, sendo meu parecer de que o pedido deve ser indeferido, mantendo-se a liquidação reclamada como válida e correta.
(…)
4.2Factos não provados
Não existem factos relevantes trazidos aos autos que não se tenham considerado provados.
4.3 Fundamentação da seleção da matéria de facto
Ao Tribunal Arbitral incumbe o dever de selecionar os factos que interessam à decisão da causa e discriminar a matéria que julga provada e declarar a que considera não provada, não tendo de se pronunciar sobre todos os elementos da matéria de facto alegados pelas partes, tal como decorre da aplicação conjugada do artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e do artigo 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT. Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram selecionados e conformados em função da sua relevância jurídica, determinada com base nas posições assumidas pelas partes e nas várias soluções plausíveis das questões de direito para o objeto do litígio, conforme decorre do artigo 596.º, n.º 1 do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n. 1, alínea e), do RJAT. Aliás, crê-se que a matéria de facto relevante não é controvertida e é até confirmada pela Requerida, que admite expressamente que a atividade prosseguida pelo Requerente é suscetível de ser qualificada como atividade de elevado valor acrescentado (167.º) da sua resposta.
Os factos dados como provados resultaram do confronto da posição manifestada relativamente a cada facto pelas Partes e da apreciação da prova documental, o que foi feito com base nas regras da experiência, da normalidade e da racionalidade, em conformidade com o previsto no artigo 16.º, alínea e) do RJAT, bem como no artigo 607.º, n.º 5 do CPC aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT, das quais resulta que o julgador apreciará livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto. A prova documental encontra-se identificada relativamente a cada facto, junto ao seu relacionamento.
5Fundamentação – matéria de direito
5.1 A posição das partes e o objeto do litígio
O Requerente considera que a AT comete erro de direito, na modalidade de errónea qualificação do facto tributário, por interpretar indevidamente as normas do artigo 16.º, designadamente do seu n.º 8 do n.º 9 do CIRS, pois, sustentam, que o benefício estabelecido à tributação em IRS dos RNH tem a natureza de benefício automático, porque resulta diretamente da lei, designadamente dos citados preceitos e das normas que fixam as taxas bonificadas aplicáveis em cada situação concreta, designadamente no artigo 72.º, n.º 10 do CIRS, que estabelece em 20 % a taxa aplicável aos rendimentos das categorias A e B em atividades de elevado valor acrescentado, com carácter científico, artístico ou técnico.
A Requerida sustenta que a aplicação da taxa especial prevista no artigo 72.º, n.º 10 do CIRS, na redação vigente até 31-12-2023, não depende apenas e só do preenchimento dos requisitos do n.º 8 do artigo 16.º do CIRS mas também do prévio reconhecimento por parte da AT desse estatuto, que deve ser requerido pelo contribuinte em causa.
Constitui objeto do litígio a natureza constitutiva ou meramente declarativa da inscrição como residente não habitual, prevista no artigo 16.º, n.º 10 do CIRS, ou, dito de outro modo, saber se a aplicação da taxa especial que até 31-12-2023 estava prevista no artigo 72.º, n.º 10 do mesmo Código, depende do prévio reconhecimento de estatuto do RNH pela AT.
5.2Apreciação jurídica da questão
Por facilidade de leitura, reproduzam-se as normas jurídicas do CIRS que são aplicáveis ao caso sub judicio e que vigoraram até 31-12-2023, de acordo com o artigo 317.º, alínea b) e com o artigo 320.º da Lei n.º 82/2023, de 29 de dezembro:
CIRS
Artigo 16.º - Residência
1 - São residentes em território português as pessoas que, no ano a que respeitam os rendimentos:
a) Hajam nele permanecido mais de 183 dias, seguidos ou interpolados, em qualquer período de 12 meses com início ou fim no ano em causa;
b) Tendo permanecido por menos tempo, aí disponham, num qualquer dia do período referido na alínea anterior, de habitação em condições que façam supor intenção atual de a manter e ocupar como residência habitual;
c) Em 31 de dezembro, sejam tripulantes de navios ou aeronaves, desde que aqueles estejam ao serviço de entidades com residência, sede ou direção efetiva nesse território;
d) Desempenhem no estrangeiro funções ou comissões de carácter público, ao serviço do Estado Português.
2 - Para efeitos do disposto no número anterior, considera-se como dia de presença em território português qualquer dia, completo ou parcial, que inclua dormida no mesmo.
3 - As pessoas que preencham as condições previstas nas alíneas a) ou b) do n.º 1 tornam-se residentes desde o primeiro dia do período de permanência em território português, salvo quando tenham aí sido residentes em qualquer dia do ano anterior, caso em que se consideram residentes neste território desde o primeiro dia do ano em que se verifique qualquer uma das condições previstas no n.º 1.
4 - A perda da qualidade de residente ocorre a partir do último dia de permanência em território português, salvo nos casos previstos nos n.ºs 14 e 16.
5 - A residência fiscal é aferida em relação a cada sujeito passivo do agregado.
6 - São ainda havidos como residentes em território português as pessoas de nacionalidade portuguesa que deslocalizem a sua residência fiscal para país, território ou região, sujeito a um regime fiscal claramente mais favorável constante de lista aprovada por portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças, no ano em que se verifique aquela mudança e nos quatro anos subsequentes, salvo se o interessado provar que a mudança se deve a razões atendíveis, designadamente exercício naquele território de atividade temporária por conta de entidade patronal domiciliada em território português.
7 - Sem prejuízo do período definido no número anterior, a condição de residente aí prevista subsiste apenas enquanto se mantiver a deslocação da residência fiscal do sujeito passivo para país, território ou região, sujeito a um regime fiscal claramente mais favorável constante de lista aprovada por portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças, deixando de se aplicar no ano em que este se torne residente fiscal em país, território ou região distinto daqueles.
8 - Consideram-se residentes não habituais em território português os sujeitos passivos que, tornando-se fiscalmente residentes nos termos dos n.ºs 1 ou 2, não tenham sido residentes em território português em qualquer dos cinco anos anteriores.
9 - O sujeito passivo que seja considerado residente não habitual adquire o direito a ser tributado como tal pelo período de 10 anos consecutivos a partir do ano, inclusive, da sua inscrição como residente em território português.
10 - O sujeito passivo deve solicitar a inscrição como residente não habitual, por via eletrónica, no Portal das Finanças, posteriormente ao ato da inscrição como residente em território português e até 31 de março, inclusive, do ano seguinte àquele em que se torne residente nesse território. (Redação do Decreto-Lei n.º 41/2016, de 1 de agosto)
11 - O direito a ser tributado como residente não habitual em cada ano do período referido no n.º 9 depende de o sujeito passivo ser considerado residente em território português, em qualquer momento desse ano.
12 - O sujeito passivo que não tenha gozado do direito referido no número anterior em um ou mais anos do período referido no n.º 9 pode retomar o gozo do mesmo em qualquer dos anos remanescentes daquele período, a partir do ano, inclusive, em que volte a ser considerado residente em território português.
13 - Enquadra-se no disposto na alínea d) do n.º 1 o exercício de funções de deputado ao Parlamento Europeu.
14 - Sem prejuízo do disposto no número seguinte, um sujeito passivo considera-se residente em território português durante a totalidade do ano no qual perca a qualidade de residente quando se verifiquem, cumulativamente, as seguintes condições:
a) Permaneça em território português mais de 183 dias, seguidos ou interpolados, nesse ano; e
b) Obtenha, no decorrer desse ano e após o último dia de permanência em território português, quaisquer rendimentos que fossem sujeitos e não isentos de IRS, caso o sujeito passivo mantivesse a sua qualidade de residente em território português.
15 - O disposto no número anterior não é aplicável caso o sujeito passivo demonstre que os rendimentos a que se refere a alínea b) do mesmo número sejam tributados por um imposto sobre o rendimento idêntico ou substancialmente similar ao IRS aplicado devido ao domicílio ou residência:
a) Noutro Estado membro da União Europeia ou do Espaço Económico Europeu, desde que, neste último caso, exista intercâmbio de informações em matéria fiscal e que se preveja a cooperação administrativa no domínio da fiscalidade; ou
b) Noutro Estado, não abrangido na alínea anterior, em que a taxa de tributação aplicável àqueles rendimentos não seja inferior a 60 % daquela que lhes seria aplicável caso o sujeito passivo mantivesse a sua residência em território português.
16 - Um sujeito passivo considera-se, ainda, residente em território português durante a totalidade do ano sempre que volte a adquirir a qualidade de residente durante o ano subsequente àquele em que, nos termos do n.º 4, perdeu aquela mesma qualidade.
Reproduza-se também a norma então vigente que fixava a taxa de imposto:
Artigo 72.º - Taxas especiais
(…)
10 - Os rendimentos líquidos das categorias A e B auferidos em atividades de elevado valor acrescentado, com carácter científico, artístico ou técnico, a definir em portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças, por residentes não habituais em território português, são tributados à taxa de 20 %. (Anterior n.º 6, redação da Lei n.º 3/2019, de 9 de janeiro)
(…)
Sem prejuízo da análise interpretativa das normas em causa, que se fará, importa ter presente que há duas regras relativas à aplicação do direito que têm especial pertinência em situações como a que é retratada nos autos; (i) a obrigação do tribunal, nas decisões que proferir, ter em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito, prevista na norma do artigo 8.º, n.º 3 do Código Civil; (ii) a importância que a o Regime Tributário confere à uniformização da interpretação e aplicação das normas tributárias e o papel que confere à jurisprudência para configuração das orientações genéricas a seguir pela AT (artigo 68.º-A, n.º 1 e n.º 4 da Lei Geral Tributária), apesar de as decisões dos tribunais não serem decididamente fonte de direito (artigo 1.º do Código Civil).
A questão em apreciação tem sido tratada pelos tribunais arbitrais e não se conhecem deliberações tomadas nos tribunais do Estado sobre a matéria. É certo que a Requerida traz notícia de existirem decisões dos Tribunais Tributários de 1.ª instância que versam sobre o tema, mas não referenciando a sua publicação, não pode este Tribunal aquilatar da identidade de situações, que é a pedra basilar do recurso à jurisprudência como apoio à aplicação do direito.
Nos tribunais que funcionaram no CAAD, pelo menos desde a prolação do Acórdão de 2021-09-24 no processo nº 188/2020-T [José Pedro Carvalho et al.] que a orientação tem sido quase unânime[2]. Neste acórdão sumariou-se:
A inscrição no registo de residentes não habituais, tem natureza exclusivamente declarativa, e não efeitos constitutivos do direito a ser tributado nos termos do respectivo regime.
No mesmo sentido pronunciaram-se o acórdão de 2021-12-15 no processo nº 777/2020-T [Manuel Macaísta Malheiros et al.] e o acórdão de 2023-09-25 no processo nº 57/2023-T, [Manuel Macaísta Malheiros, João Santos Pinto et. al.]. Foram proferidas decisões, também no mesmo sentido, nos processos em que os tribunais arbitrais funcionaram com árbitro singular, por diferentes árbitros, no processo nº 146/2024-T [Ricardo Rodrigues Pereira], no processo nº 1041/2023-T [Ricardo Marques Candeias], no processo nº 894/2023-T [Augusto Vieira], no processo nº 881/2023-T [José Joaquim Monteiro Sampaio e Nora[3]], no processo nº 797/2023-T [Vítor Braz], no processo nº 764/2023-T [Susana Mercês de Carvalho], no processo nº 707/2023-T [Alexandra Gonçalves Marques], no processo nº 656/2023-T [Fernando Miranda Ferreira], no processo nº 574/2023-T [António Cipriano da Silva[4]], no processo nº 547/2023-T [Paulo Lourenço], no processo nº 544/2023-T [Júlio Tormenta], no processo nº 422/2023-T [Francisco Nicolau Domingos[5]], no processo nº 386/2023-T [Susana das Mercês de Carvalho], no processo nº 705/2022-T [João Menezes Leitão] e no processo nº 782/2021-T [Vasco Valdez].
Não pode deixar de se concordar com a linha de orientação que vem já do acórdão de 2021-09-24 no processo nº 188/2020-T, que se segue de muito perto.
o0o
A Requerida suscita a exceção da incompetência material do Tribunal Arbitral por entender que a única causa de pedir subjacente ao articulado apresentado pelo Requerente respeita à sua não inscrição como residente não habitual e que “sem se apreciar se o Requerente pode ou não estar inscrito como RNH, não há como avançar para a apreciação para a ilegalidade que se imputa ao ato de liquidação de IRS”.
Nestes autos o Requerente peticiona a anulação da liquidação de IRS e a subsequente decisão de indeferimento do processo de reclamação graciosa e não pede que o tribunal lhe reconheça o estatuto de RNH. O Requerente assenta o seu pedido na circunstância de ser cidadão britânico, que só em 18-01-2020 passou a residir em Portugal, onde exerce funções de C..., desde 31-01-2020 e que considera a liquidação de IRS incorreta, porque não lhe foi possível submeter o Anexo L (Residentes Não Habituais) com a sua declaração Modelo 3 e assim ser tributado pela taxa especial de 20 %, então prevista no artigo 72.º, n.º 10 do CIRS.
A causa de pedir é efetivamente a não observância da sua condição de residente não habitual, mas o Requerente ataca a liquidação que não observou a sua condição de RNH e não lhe permitiu beneficiar da taxa especial e não pede que lhe seja abstratamente reconhecido qualquer estatuto.
A competência deste Tribunal, para o que aqui interessa, está, prima facie, delimitada, pela norma do artigo 2.º, n.º 1, alínea a) do RJAT que lhe confere competência para a apreciação da pretensão da declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos.
Como tem sido entendido e faz notar o citado acórdão de 2021-09-24, no processo nº 188/2020-T, “Na esteira da lição do Juiz-Conselheiro Jorge Lopes, “Embora na alínea a) do nº 1 do artigo 2º do RJAT apenas se faça a referência explícita a competência dos Tribunais Arbitrais para declararem a ilegalidade de atos de liquidação, essa competência estende-se também a atos de segundo e terceiro graus que apreciem a legalidade desses atos primários, designadamente atos de indeferimento de reclamações graciosas e atos de indeferimento de recursos hierárquicos interpostos das decisões destas reclamações”.
Sobre este aspeto em concreto, no acórdão do Tribunal Arbitral em funcionamento no CAAD de 2022-11-15, processo nº 330/2022-T, [Regina de Almeida Monteiro, Tomás Cantista Tavares et. al.], sumariou-se:
I – O tribunal arbitral é competente na medida em que se impugnam liquidações adicionais de IRS, independentemente de qualquer ato relativo à não concessão do estatuto de residente não habitual.
II – Os rendimentos de capitais dos filhos menores são tributados de acordo com o regime fiscal aplicável aos filhos (não são residentes não habituais), independentemente de os pais beneficiarem desse regime (residente não habitual).
Considera-se improcedente, pelas razões invocadas, a exceção da incompetência material do Tribunal Arbitral.
o0o
A Requerida suscita ainda a inadequação do meio processual por o pedido do Requerente se basear – na leitura da AT – no prévio reconhecimento do estatuto de RNH, que assenta num procedimento preliminar e independente da liquidação.
Na apreciação da exceção da incompetência deixou-se dito que a tese do Requerente não tem esse percurso. O Requerente não pede a este Tribunal que confirme o seu estatuto de RNH e como não o pede, não está sequer em discussão se este é ou não é o meio processual para esse inexistente pedido.
Considera-se improcedente, pelas razões invocadas, a exceção da inadequação do meio processual.
o0o
Importa agora apreciar a questão e fundo, que consiste em saber se os rendimentos do Requerente da categoria A e B devem ser tributados à taxa especial aplicável à sua invocada situação de residente não habitual ou, se ao invés, deve seguir o regime aplicável a qualquer outro contribuinte residente, que não reúna as condições de RNH.
O Requerente sustenta que o regime do RNH é um benefício automático que se torna efetivo quando os requisitos de facto previstos na lei estão reunidos, quer dizer, opera quando essas condições objetivas de residência e de tempo de permanência no exterior, que são apreensíveis de forma imediata estão preenchidas, pelo que não se pode negar o benefício com base no incumprimento do prazo para requerer a inscrição como residente não habitual.
Se se pode argumentar que a AT não podia conhecer a efetiva ocorrência desses requisitos, há que ter presente que, como se assentou, foi o próprio sistema informático da AT que impediu que a condição de que o Requerente se arroga fosse invocada, e, de todo o modo, na reclamação graciosa foi já alegada a condição de RNH e juntos comprovativos idóneos.
Por seu lado, a Requerida defende que o regime do residente não habitual é um benefício fiscal sujeito a reconhecimento, sendo um direito subjetivo, que se encontra dependente de impulso formal do sujeito passivo. A sua linha de raciocínio socorre-se do prazo fixado no artigo 16.º n.º 8 do Código do IRS para que seja requerida a inscrição como residente não habitual e que este passo é uma condição indispensável para o exercício do direito, o qual, não sendo exercido atempadamente determina a sua extinção.
Nos termos da norma do artigo 16.º, n.º 9 do CIRS, “O sujeito passivo que seja considerado residente não habitual adquire o direito a ser tributado como tal pelo período de 10 anos consecutivos a partir do ano, inclusive, da sua inscrição como residente em território português”. Note-se que a norma afirma “o sujeito passivo que seja considerado residente não habitual” e não refere que “tenha sido considerado pela AT” ou “a quem tenha sido deferido o estatuto pela AT”. A fórmula impessoal utilizada – que seja considerado – inculca a ideia de que a condição de RNH é mero resultado da aplicação do direito à situação de facto. A tributação dos sujeitos passivos, em geral, não depende da sua inscrição ou de qualquer reconhecimento; depende da existência da relação jurídico tributária, por mera aplicação do direito. Crê-se que esta é a regra geral. Qualquer titular de rendimentos é sujeito passivo independentemente de estar inscrito no registo civil ou no cadastro fiscal, de ter ou não ter número de identificação fiscal. Quando outra regra não disciplinar a situação, a norma do artigo 18.º, n.º 3 da LGT é bem clara: “O sujeito passivo é a pessoa singular ou coletiva, o património ou a organização de facto ou de direito que, nos termos da lei, está vinculado ao cumprimento da prestação tributária, seja como contribuinte direto, substituto ou responsável.”, donde resulta que, em geral, não é através do reconhecimento que a pessoa singular – como é o caso – se torna contribuinte; é contribuinte nos termos da lei e é à lei que cabe definir que circunstâncias especiais devem ser observadas em determinadas situações. Quando não o fizer, como parece ser o caso, a simples aplicação do direito é suficiente para trazer esse sujeito para o universo tributário, com as obrigações que a lei desenha sejam as de sujeitar os rendimentos à taxa geral ou a taxa especial.
Por seu lado, a regra do mesmo artigo 16.º, no seu n.º 8, expressa que “Consideram-se residentes não habituais em território português os sujeitos passivos que, tornando-se fiscalmente residentes nos termos dos n.ºs 1 ou 2, não tenham sido residentes em território português em qualquer dos cinco anos anteriores.”
Considerando este quadro legal, a tributação do RNH tem como pressupostos, com natureza cumulativa, que resultam da lei e que aqui interessam:
-
Que o sujeito passivo se torne fiscalmente residente em território português, por nele ter permanecido mais de 183 dias, seguidos ou interpolados, em qualquer período de 12 meses com início ou fim no ano em causa;
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Que não tenha sido residente em território português em qualquer dos cinco anos anteriores.
Resulta assim que o enquadramento de determinado contribuinte na disciplina fiscal aplicável aos residentes não habituais depende apenas do preenchimento dos requisitos do citado artigo 16.º, n.º 8 do artigo do CIRS, mas já não depende da respetiva inscrição como residente não habitual. Esta inscrição como residente não habitual prevista no artigo 16.º, n.º 10 do CIRS é uma mera obrigação declarativa, não sendo, por isso, constitutiva do direito. Como refere o citado douto acórdão de 2021-09-24 no processo nº 188/2020-T, cuja orientação se vem seguindo:
Não obstante, como por regra ocorre, a interpretação da lei fiscal não pode, nem deve, ficar-se pelo teor literal dos normativos imediatamente aplicáveis, devendo, antes, e mais não seja pela imposição da realização dos princípios da tributação da capacidade contributiva e da justiça material, decorrentes dos artigos 4.º, n.º 1, e 5.º, n.º 2, da LGT, identificar-se a finalidade material do regime a aplicar, através da compreensão da natureza das normas convocáveis, das finalidades por si visadas, e do contexto sistemático das mesmas.
Sob esta perspetiva, a norma do n.º 10 do artigo 16.º do CIRS, que disciplina a data limite até à qual os sujeitos passivos que reúnam os pressupostos materiais de que depende a tributação de acordo com o regime dos residentes não habituais podem requerer a inscrição como residente não habitual - até 31 de Março, inclusive, do ano seguinte àquele em que se torne residente em território nacional -, deverá entender-se como uma norma essencialmente procedimental, de organização do sistema operacional de tributação, que visa assegurar sua efectividade e o seu normal funcionamento, sendo, especialmente e desde logo de notar que a norma em causa, não tem subjacentes quaisquer finalidades de evitar a fraude ou a evasão fiscal.
E, nem se diga, como faz a AT, que não tendo o Requerente respeitado o prazo previsto no n.º 10 do artigo 16.º do Código do IRS para requerer a sua inscrição como residente não habitual, não pode beneficiar desse regime em qualquer um dos dez anos a que teria direito se tivesse apresentado o pedido dentro do prazo. Tratando-se a obrigação de apresentar o pedido de inscrição como residente não habitual, de uma obrigação meramente declarativa e, portanto não constitutiva do direito a beneficiar daquele regime, o atraso na entrega de declarações constitui uma contraordenação tributária prevista e punida nos termos do artigo 116.º do RGIT, e não deverá ter como consequência, sem mais, o não enquadramento no regime do residente não habitual.
Do exposto resulta – em suma – que o pedido de inscrição como residente não habitual não tem efeito constitutivo, mas meramente, declarativo, tudo o que, como adiante se verá, será de relevar na solução jurídica a formular no caso concreto.
Está assente nos autos (“A” a “D”) que o Requerente é um cidadão de nacionalidade britânica que passou a constar no Sistema de Gestão de Registo de Contribuintes em 22-09-2019 como “residente no estrangeiro” e que em 18-01-2020 o Requerente alterou a sua residência no referido Sistema, onde passou a constar como residente em Portugal. Em 31-01-2020 o Requerente celebrou contrato de trabalho por tempo indeterminado com a B..., Unipessoal Lda., para exercer as funções de C... . Essas funções, que compreendem a gestão de dados complexos, de operações avançadas de segurança e na execução de algoritmos tendentes à criação de inteligência artificial para a otimização de aplicações de software, são suscetíveis de ser qualificadas como atividade de elevado valor acrescentado, como reconhece a Requerida em 168.º da sua Resposta.
Da matéria de facto assim exposta e da sua subsunção às normas aplicáveis, há que concluir que no ano de 2020 e pelo menos desde 31-01-2020 o Requerente é RNH em Portugal, regime que é aplicável aos seus rendimentos de 2020.
Não tendo, como acima se referiu, o pedido de inscrição como residente não habitual, natureza constitutiva do direito a ser tributado enquanto tal e, cumprindo o Requerente os requisitos materiais de que depende a aplicação daquele regime, sempre deveria o Requerente ser tributado de acordo com o citado regime, se não era possível no momento da liquidação inicial, deveria pelo menos a Requerida ter feito a respetiva retificação quando apreciou a reclamação graciosa e garantidamente se assegurou do preenchimento dos requisitos necessários à aplicação do regime do RNH. Em sentido contrário, a Requerente fundamentou o indeferimento da reclamação graciosa com a falta de registo no sistema do Requerente possuir o estatuto de residente não habitual ou sequer o pedido nesse sentido. A norma invocada para sustentar esta conclusão foi só e apenas a que consta do artigo 16.º, n.º 10 do CIRS que, viu-se já, tem natureza de obrigação acessória, de natureza meramente declarativa, ao contrário das normas do n.º 8 do mesmo artigo que, em conjugação com o seu n.º 1 e n.º 9, contêm o recorte das fronteiras do regime do RNH.
É ilegal a aplicação do regime feita neste caso pela Requerida, pelo que a impugnação tem de proceder, nessa parte.
5.3 A inconstitucionalidade referida pela Requerida
No artigo 136.º e nos artigos seguintes da sua Resposta, a Requerida afirma que a interpretação adotada pelo Requente, no sentido de ter efeito meramente declarativo a inscrição prevista no artigo 16.º n.º 10 do CIRS, porque, na sua ótica, “consubstancia uma violação frontal aos princípios da Legalidade, do Sistema Fiscal e da Segurança Jurídica (cf. artigos 3º nº 3, 103º nº 2, 267º nº 2 e 2º todos da CRP). Termina com a conclusão de que a interpretação da norma do artigo 16.º, n.º 10 do CIRS, no sentido exposto “viola claramente os artigos 3.º n.º 3, 103.º n.º 2, 267.º n.º 2 e 2.º todos da CRP, o que se invoca, para os devidos efeitos legais.”. Note-se que a interpretação em causa, não é posta em crise, por confronto direto com os princípios gerais que a Requerida refere, quer dizer, a Requerida não expressa em que parte e medida são violados tais princípios, bastando-se com afirmações genéricas.
Vejamos detalhadamente: nos artigos 137.º, 138.º, 139.º e 140.º da Resposta, a Requerida limita-se a reproduzir o texto da lei, no artigo 141.º menciona a importação dos princípios fiscais para a LGT e nos artigos 142.º a 147.º, 153.º, 157.º e 158.º discorre sobre as razões históricas que, na sua ótica, levaram o legislador, a criar as normas do regime do RNH e qual a interpretação que considera dever ser adotada. Em concreto, mas sem conteúdo útil, a Requerente limita-se a afirmar:
148.º
A possibilidade do contribuinte se inscrever no regime de RNH e fazer prova material do disposto no n.º 8 do artigo 16.º do CIRS a qualquer momento mediante declaração tardia e pagamento de multa nos termos do RGIT resultaria numa “anarquia declarativa” que colocaria em causa a segurança jurídica no apuramento, determinação e pagamento dos impostos devidos pelos contribuintes alegadamente beneficiários.
149.º
De igual modo, obrigaria a Requerida a inúmeras revisões oficiosas de liquidação de impostos, incertezas e injustiças quanto à determinação concreta de tributação dos contribuintes – Violação manifesta dos artigos 2.º e 267.º n.º 2 da CRP –
153.º
Tal interpretação permitiria uma verdadeira opção “à la carte” para o contribuinte que teria o “privilégio” de determinar o início da sua inscrição no regime do RNH conforme melhor lhe aprouvesse.
154.º
Também colocaria em causa a própria existência do normativo do n.º 10 do artigo 16.º do CIRS in fine. – Violação manifesta do artigo 3.º n.º 3 da CRP;
156.º
Assim como a intenção inicial do legislador plasmada no n.º 7 do artigo 16.º do CIRS (versão 2009) que pretendeu atribuir à inscrição um verdadeiro caráter constitutivo – Violação manifesta dos artigos 3.º n.º 3 e 103.º n.º 2 da CRP.
Se bem se entende a questão da Requerida, esta considera que é contrária a determinados comandos constitucionais a interpretação da norma do artigo 16.º, n.º 10 do CIRS, no sentido de a inscrição como residente não habitual aí prevista ter natureza meramente declarativa.
A Requerente afirma que essa interpretação viola o artigo 2.º da CRP. Recorde-se que o artigo 2.º da CRP é uma disposição proclamatória que afirma que Portugal é um Estado de direito democrático. A Requerida considera a interpretação em causa violadora da norma constitucional porque a interpretação que critica “obrigaria a Requerida a inúmeras revisões oficiosas de liquidação de impostos, incertezas e injustiças quanto à determinação concreta de tributação dos contribuintes” e que ”Tal interpretação permitiria uma verdadeira opção “à la carte” para o contribuinte que teria o “privilégio” de determinar o início da sua inscrição no regime do RNH conforme melhor lhe aprouvesse. E mais não diz. O Tribunal não consegue alcançar que dimensão do princípio constitucional é afinal contrariado pela interpretação criticada.
A Requerente afirma também que a interpretação que veio a ser adotada pelo Tribunal viola a norma do artigo 267.º n.º 2 da CRP, pelas mesmíssimas razões. Esta norma dispõe que “a lei estabelecerá adequadas formas de descentralização e desconcentração administrativas, sem prejuízo da necessária eficácia e unidade de ação da Administração e dos poderes de direção, superintendência e tutela dos órgãos competentes.”. Também aqui o Tribunal não consegue alcançar em que medida é que a interpretação criticada contraria as regras gerais de organização administrativa, que, para mais, são estabelecidas a nível infraconstitucional.
Em suma, não tem qualquer procedência o argumento da desconformidade da interpretação da norma do artigo 16.º, n.º 10 do CIRS, no sentido de a inscrição como residente não habitual aí prevista ter natureza meramente declarativa, com os princípios e normas identificados pela Requerida e os parcos fundamentos por ela apresentados não apoiam a arguição que pretendeu fazer.
5.4 O pedido de juros indemnizatórios
No seu pedido arbitral a Requerente peticionou o pagamento de juros indemnizatórios pelo período em que se viu privada da quantia indevidamente paga.
No local próprio deste acórdão assentou-se que a Requerente realizou o pagamento do imposto que resultou da liquidação impugnada.
No que concerne a juros indemnizatórios há que levar em conta que a ilegalidade que está na génese da anulação dos atos tributários, é inteiramente imputável à Requerida, que adotou errada interpretação da lei, apesar de conhecer a jurisprudência publicada, que unanimemente se tem pronunciado em sentido contrário àquele que defende. E se dúvidas pudesse ter aquando da liquidação, por eventual falta de elementos de facto, isso deixou de acontecer a partir da instrução da reclamação graciosa. O erro na apreciação da matéria de facto está perfeitamente ao alcance de qualquer homem médio e o conhecimento rigoroso da lei é, muito mais do que uma obrigação, uma vocação e um princípio de atuação da AT. Neste caso concreto a AT não logrou satisfazer esses princípios (artigo 8.º, n.º 1 e n.º 2, al. a) da LGT) e a sua conduta, comparada com o padrão citado e com as obrigações que a lei lhe exige, leva a que se considere que agiu com negligência.
Nos termos das normas dos artigos 43.º, n.º 1 e 100.º, n.º 1 da LGT a Requerida deve pagar juros indemnizatórios à Requerente, para conseguir a almejada reconstituição da situação pretérita à emissão da liquidação anulada.
6Decisão
Pelas razões expostas este Tribunal Arbitral decide:
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Julgar procedente o pedido de anulação da liquidação de IRS, na parte em que esta excede a liquidação resultante da aplicação aos rendimentos do Requerente do regime do residente não habitual.
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Anular o indeferimento da reclamação graciosa interposta pelo Requerente.
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Condenar a Requerida no pagamento dos juros indemnizatórios incidentes sobre o excesso de imposto, resultante da anulação que consta do ponto I. supra, contados nos termos da lei.
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Condenar a Requerida no pagamento das custas do processo, apuradas no capítulo próprio deste acórdão.
7Valor do processo
Nos termos do artigo 3.º, n.º 3 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e cumprindo com a previsão do artigo 306.º, n.º 2 do CPC e do artigo 94.º, n.º 2 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, aplicáveis ex-vi artigo 29.º, n.º 1, alínea c) e alínea e) do RJAT, fixa-se ao processo o valor de 3.094,96 €, que foi, aliás, aquele que foi atribuído pelo Requerente.
8Custas
O valor da taxa de arbitragem é fixado em 612,00 €, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária e fica a cargo da Requerida, que deu causa a esta impugnação, ao indeferir, erradamente, a reclamação graciosa.
Notifique-se.
Lisboa, 29 de outubro de 2024
O árbitro
Nuno Maldonado Sousa
[1] Sigla de “pedido de pronúncia arbitral”.
[2] Localizou-se, em sentido aparentemente diverso, a decisão de 2024-08-05 no processo nº 906/2023-T [Jorge Bacelar Gouveia].
[3] Também na decisão de 2024-01-16, processo nº 13/2023-T.
[4] Também na decisão de 2023-09-08, processo nº 76/2023-T.
[5]Também na decisão de 2022-08-29, processo nº 815/2021-T.