Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 652/2024-T
Data da decisão: 2024-10-11  IRC  
Valor do pedido: € 154.343,28
Tema: IRC - RFAI – Criação de postos de trabalho
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SUMÁRIO:

  1. Os contratos de trabalho relativos a postos de trabalho criados por investimentos abrangidos pelo RFAI não precisam de ser, ab intio, sem termo. O que releva é a estabilidade do emprego criado e não a forma inicial do contrato.
  2. Não é condição de acesso ao benefício fiscal RFAI a exigência de uma situação de “criação líquida de emprego” pelo sujeito passivo investidor.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

 

A... S.A., NIPC..., sediada na Rua ..., ... e ..., ..., ...-... ..., veio, nos termos legais, requerer a constituição de tribunal arbitral.

É requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

  • RELATÓRIO

 

  1. O Pedido

 

A Requerente peticiona a anulação das liquidações de IRC n.º 2024... e n.º 2024..., relativas aos períodos de tributação de 2018 e 2019, respetivamente, das quais resultaram valores a pagar (incluindo juros compensatórios) de 78.629,12 EUR e de 75.714,16 EUR, respetivamente.

Peticiona ainda a condenação da Requerida no pagamento de juros indemnizatórios.

 

  1.  O litígio

 

As liquidações adicionais impugnadas decorreram de dois procedimentos inspetivos de que a Requerente foi objeto. (o procedimento interno  que visou o período de 2018 e externo o relativo ao período de 2019), realizados pelos Serviços de Inspeção Tributária (SIT) da Direção de Finanças de Braga, levados a cabo ao abrigo das Ordens de Serviço n.os OI2023... (2018) e OI2023... (2019).

Está em causa, em suma, a desconsideração da totalidade do benefício fiscal de IRC, invocado pela Requerente nos períodos de 2018 e 2019, no âmbito do Regime Fiscal de Apoio ao Investimento (RFAI).

 

A correção efetuada, que deu origem às liquidações impugnadas, funda-se apenas no não preenchimento da condição relacionada com a criação de postos de trabalho, prevista na alínea f) do n.º 4 do art.º 22.º do Código Fiscal ao Investimento (CFI), no não cumprimento “Obrigação de criação e manutenção de postos de trabalho e de emprego”, tal como consta de V.1.5 dos RIT que fundamentam tais liquidações.

A AT entende ser também requisito de acesso ao RFAI o preenchimento das condições gerais exigíveis para que os auxílios com finalidade regional sejam compatíveis com o mercado interno, ou seja: i) ser necessário que se verifique um aumento efetivo do número de postos de trabalho no estabelecimento em causa (criação líquida de emprego); e ii) essa criação de emprego ocorra “num contexto sustentável”, o qual a AT entende como correspondendo à celebração de contratos sem termo.

 

O entendimento da AT louva-se no  Ofício Circulado n.º 20259, de 2023-06-2, que visou  clarificar o “cumprimento das condições relativas à criação e manutenção de postos de trabalho”, nomeadamente no constante do respetivo ponto 18, onde se alude à necessidade de “(…) contratação líquida de pessoas (ainda que um único trabalhador), com contrato sem termo (sustentável), e se o nível de empregabilidade (trabalhadores com contrato sem termo no final do período) se mantiver superior à média dos 12 meses precedentes ao início do investimento relevante, durante o período mínimo imposto pelo regime do RFAI.”

 

A Requerente entende que cumpriu a condição de acesso ao RFAI relativa ao “emprego”, pois o investimento em causa propiciou a criação de vários postos de trabalho, não sendo a criação líquida de emprego, condição para beneficiar do incentivo fiscal em causa

 

  1. Tramitação processual

 

O pedido foi aceite em 17/05/2024.

 Os árbitros foram nomeados pelo Conselho Deontológico do CAAD, aceitaram as nomeações, as quais não foram objeto de oposição.

O tribunal arbitral ficou constituído em 29/07/2024.

A Requerida apresentou resposta e juntou o PA.

Por despacho 01/10/2024 foi dispensada a realização da reunião a que se refere o art. 18º do RJAT bem como a produção de alegações. Nenhuma das partes se opôs.

 

 

d) Saneamento

 

O processo não enferma de nulidades ou irregularidades. Não existem outras questões que obstem ao conhecimento do mérito para além das exceções invocadas pela AT, que de seguida se analisarão

 

 

III PROVA

 

III.1 – Factos provados

 

Consideram-se provados os seguintes factos:

 

 

  1. A Requerente realizou, no período de tributação de 2018, investimentos no valor de 535.136,28 EUR, os quais proporcionaram uma dedução à coleta do IRC, a título de RFAI, no montante de 133.784,07 EUR.
  2.  Por insuficiência de coleta, apenas foi deduzida no período de tributação de 2018 a importância de 66.961,34 EUR, tendo o remanescente, no valor de 66.822,73 EUR, sido deduzida no período de tributação seguinte, 2019.
  3. Os quatro trabalhadores admitidos para o exercício de funções diretamente relacionadas com o investimento em causa (que constam no Avexo VI dos RIT’s) celebraram contratos a termo certo.
  4. Três desses trabalhadores mantiveram-se ligados à Requerente por um período superior a três anos, sendo que dois deles ainda se mantêm ligados à empresa.
  5. Os contratos destes trabalhadores foram alterados, passando a ser sem termo.
  6. Os dois trabalhadores que cessaram funções foram substituídos por outros dois trabalhadores no mês anterior à saída daqueles (Anexo V dos RIT’s).
  7. Dos RIT´s consta um quadro em que:

– relativamente a 2018, compara o número de trabalhadores em dezembro desse ano com a “média dos doze meses precedentes ao momento de conclusão do projeto”, ou seja, o período de dezembro de 2017 a novembro de 2018;

– relativamente a 2019, compara o número de trabalhadores em dezembro de 2018 com a “média dos doze meses precedentes ao momento de início do projeto”, ou seja, no período de janeiro de 2017 a dezembro de 2017.

  1. Relativamente aos dois quadros inseridos na parte final do capítulo V dos RIT’s, relacionados com a criação líquida de emprego em termos globais, no primeiro apenas foram considerados os trabalhadores com contratos sem termo, no segundo foram considerados os dois tipos de contratos.
  2. Tendo em conta apenas as entradas e saídas de trabalhadores com contratos sem termo, verifica-se uma diminuição de seis trabalhadores em cada um dos anos de 2018 e 2019.
  3. Refere-se nos RIT’s que, em 2018, foram admitidos seis trabalhadores com contratos a termo e, em 2019, foram admitidos mais dezoito trabalhadores com contratos a termo, tendo, em sentido contrário, saído dois trabalhadores em 2018 e mais oito trabalhadores em 2019 com contratos sem termo.
  4. Tendo em conta os dois tipos de contratos (sem e com termo) apura-se uma diferença positiva de dois trabalhadores no conjunto dos dois anos.
  5. Sobre este ponto concluem os RIT’s:

- Com efeito, o n.º de trabalhadores em exercício no final do ano de 2018, era inferior ao valor médio dos últimos 12 meses, não se verificando assim a condição geral de criação de emprego. (citação retirada do RI referente ao ano de 2018)

- Com efeito, o n.º de trabalhadores em exercício no final do ano de 2018, era inferior ao valor médio dos últimos 12 meses ao início do investimento, não se verificando assim a condição geral de criação de emprego”. (citação retirada do RI referente ao ano de 2019)

  1. Existem várias faturas datadas de 2017 relativas a equipamentos necessários aos investimentos em causa, os quais foram fornecidos e instalados em 2018.
  2. No que se refere à construção dos dois pavilhões (lotes 15 e 16), a primeira fatura tem a data de 07-02-2017, sendo que, neste período de 2017, foi considerado pela Requerente como investimento elegível o montante global de 203.559,00 EUR (110.966,28 EUR + 92.592,72 EUR), o qual proporcionou uma dedução à coleta, neste período, de 50.889,75 EUR (27.741,57 EUR + 23.148,18 EUR), dedução esta que não foi posta em causa pelos SIT.

 

 

Estes factos resultam da documentação junta aos autos, nomeadamente dos RIT’s, não tendo sido objeto de qualquer divergência entre as partes.

 

 

III.2- Factos não provados

 

Não foram considerados não-provados quaisquer factos tidos por relevantes para a decisão da causa.

 

 

 

III - DO MÉRITO

 

 

Existem duas questões que cumpre apreciar:

- Se o investimento em causa proporcionou, diretamente, a criação de emprego.

- Se, no período em causa, houve criação líquida de emprego pela Requerente. Esta questão subdivide-se em duas: primeira, se tal criação líquida de emprego constitui uma condição legal para acesso ao benefício fiscal RFAI; se se concluir afirmativamente, haverá então que decidir se a AT fez prova bastante de que a Requerente não preencheu tal condicionalismo ou, talvez melhor, se se mostram corretos os critérios por ela utilizados para concluir pela não verificação desta condição.

 

 

  1. Criação de emprego pelo investimento

 

 

Está em causa o disposto no art.º 22.º, n.º 4, al. f) do CFI, o qual, na redação então vigente dispunha efetuem investimento relevante que proporcione a criação de postos de trabalho e a sua manutenção até ao final do período mínimo de manutenção dos bens objeto de investimento, nos termos da alínea c)[1].

 

Ora, ficou provado, por constar do teor dos RIT’s, que a Requerente contratou quatro trabalhadores em razão do investimento, que três deles se mantiveram ligados à Requerente por um período superior a três anos, sendo que dois desses se mantinham ainda ligados à empresa aquando da inspeção tributária. Ou seja, o requisito temporal mostra-se cumprido.

 

A argumentação da AT resulta apenas do facto de tais trabalhadores terem sido contratados a prazo. Esquecendo, desde logo, que, no decurso do tempo. os contratos dos trabalhadores que permaneceram na empresa Requerente passaram (necessariamente, por força da lei) a ser sem termo.

 

Apreciando:

Temos, em primeiro lugar, que não tem um suporte mínimo na norma, atrás transcrita, a pretensão de que os trabalhadores relevantes para efeito do acesso aos benefícios do RFAI sejam contratados, ab initio, sem termo. O que importa é a estabilidade do emprego (a criação e manutenção de mais postos de trabalhos – que não terão necessariamente que ser preenchidos, durante o período relevante, por um mesmo trabalhador - e não o tipo de contrato inicialmente celebrado.

Como é próprio do direito fiscal, também aqui deve prevalecer a substância sobre a forma.

Coincidimos com o que se decidiu no processo arbitral n.º 307/2019-T, “o que está em causa é que o investimento realizado por determinada empresa será elegível para usufruir do benefício fiscal em questão se, e na medida em que, dele resulte, de forma causalmente adequada, a criação de, pelo menos, um posto de trabalho, e a sua manutenção”.

Assim sendo, improcede o primeiro argumento fundamentador das liquidações impugnadas.

 

  1. Criação líquida de emprego

 

A argumentação da AT, constante dos RIT’s, encontra-se sintetizada nos passos da resposta que, por simplicidade, a seguir se transcrevem:

Mais se acrescenta que, a par do cumprimento das condições específicas previstas no artigo 22.º/4-f) do CFI, terão igualmente que ser cumpridas as condições gerais previstas no RGIC, entre elas, a condição de “criação de emprego”, ou seja, que se verifique, em termos líquidos, um aumento efetivo do número de postos de trabalho, e, consequentemente, do número de trabalhadores do estabelecimento.

Esta condição de “aumento líquido do número de trabalhadores” encontra-se ainda definida no § 32 do artigo 2.º do Regulamento (UE) n.º 651/2014 da Comissão, de 2014-0616, no qual se estabelece ter de existir «O aumento líquido do número de trabalhadores no estabelecimento em causa em comparação com a média durante um determinado período de tempo (…).»

 Por sua vez, o artigo 14.º/9-a) do Regulamento (UE) n.º 651/2014 da Comissão, de 2014-06-16, estipula que deve ocorrer «(…) Um aumento líquido do número de trabalhadores do estabelecimento em causa, em comparação com a média dos 12 meses anteriores, ou seja, qualquer perda de postos de trabalho deve ser deduzida do número aparente de postos de trabalho criados nesse período.».

Acresce que alínea k) do ponto 20 das Definições das Orientações relativas aos auxílios estatais com finalidade regional para 2014-2020 encontra-se a definição para “criação de emprego”: «Um aumento líquido do número de trabalhadores do estabelecimento em causa, em comparação com a média dos 12 meses anteriores, após deduzir, do número de postos de trabalho criados, os postos de trabalho suprimidos durante o mesmo período, expresso em unidades de trabalho anuais.»

Ou seja, na definição de “criação de emprego” está implícita, uma vez que a mesma abarca dois conceitos distintos, mas complementares:

• A criação líquida de postos de trabalho: «(…) após deduzir, do número de postos de trabalho criados, os postos de trabalho suprimidos durante o mesmo período (…)»;

• O aumento do nível de empregabilidade, esse aferido pelo «aumento líquido do número de trabalhadores do estabelecimento em causa, em comparação com a média dos 12 meses anteriores (…) expresso em unidades de trabalho anuais», ajustado pela criação líquida de postos de trabalho.

 

Apreciando,

O tema é conhecido, tendo sido objeto de numerosas decisões arbitrais, numa jurisprudência que, se não pacífica, é largamente maioritária.

O relevante não será certamente, o número de decisões, mas sim o facto de este tribunal arbitral com elas se identificar.

 

Transcrevemos da decisão do processo arbitral n.º 307/2019-T, ao que cremos pioneiro na corrente jurisprudencial que acabámos de referir: “(…)  Ora, como se viu já, o RFAI foi sempre um apoio ao investimento, e é calculado com base nos custos de investimento em activos corpóreos e/ou incorpóreos, e não com base nos custos de investimento em postos de trabalho ou em custos salariais estimados. Daí que não seja fundada, julga-se, a invocação do conceito de criação líquida de postos de trabalho do Regulamento em questão, para a interpretação a fazer da al. f) do n.º 4 do art.º 22.º do CFAI. De resto, terá sido por ter noção do quanto se expôs que o legislador não utilizou a expressão “criação líquida de emprego”, quando a mesma era utilizada, por exemplo, no art.º 19.º do EBF vigente à data, esse sim, um benefício fiscal que tem por base os custos de investimento em postos de trabalho. Considerando-se, então, que a al. f) do n.º 4 do art.º 22.º do CFI, não se reporta à criação líquida de postos de trabalho, nos termos em que, por exemplo, o referido art.º 19.º do EBF e as Directivas sobre apoios de Estado o fazem, é ainda necessário densificar qual o sentido e alcance da expressão “criação de postos de trabalho”, ali empregue, tem. Tendo em conta que, pelos fundamentos expostos, não se deverá equiparar a expressão “criação de postos de trabalho” a “criação líquida de postos de trabalho”, dever-se-á, em obediência ao princípio hermenêutico do legislador razoável, obter um resultado interpretativo que seja coerente com a teleologia do benefício fiscal em questão e que tenha um efectivo conteúdo prático. Nessa perspectiva, a única interpretação que não se reconduza à “criação líquida de postos de trabalho”, será, julga-se, a de que a “criação de postos de trabalho” pressuposta pelo benefício fiscal em questão se refere à criação de postos de trabalho, e a sua manutenção, causalmente associáveis ao investimento realizado, independentemente de, sob um ponto de vista global, a empresa ter verificado, ou não, um aumento do número de trabalhadores ao seu serviço. Ou seja: o que está em causa é que o investimento realizado por determinada empresa será elegível para usufruir do benefício fiscal em questão se, e na medida em que, dele resulte, de forma causalmente adequada, a criação de, pelo menos, um posto de trabalho, e a sua manutenção”.

 

Apenas acrescentaremos, citando o acórdão arbitral  proferido no processo n.º 561/2022-T: “(…) Mas é de realçar que apenas é feita menção no RGIC, no capítulo específico sobre os auxílios com finalidade regional (subsecção A, da Secção I, capítulo III), às condições relativas ao número de trabalhadores, concretamente no n.º 9 do artigo 14.º, “[q]uando os custos elegíveis são calculados por referência aos custos salariais estimados”, descritos no n.º 4 (alíneas b) e c)), ou seja, “decorrentes da criação de emprego, em virtude de um investimento inicial, calculados ao longo de um período de dois anos”. (…) . O que, acrescentamos nós, não é o caso do RFAI.

 

Sendo legalmente irrelevante, para efeitos de acesso ao RFAI, saber se houve ou não criação líquida de emprego pela empresa, considerada a globalidade do estabelecimento, resulta inútil apreciar a bondade dos critérios utilizados pela AT para concluir que não houve uma tal criação líquida de emprego.

Assim sendo, há que concluir também pela improcedência do segundo (e último) argumento fundamentador das liquidações impugnadas.

 

Por último:

A Requerente peticionou o pagamento de juros indemnizatórios uma vez que se encontram integralmente pagos, desde 26-02-2024 e 06-03-2024 (liquidações de 2018 e 2019, respetivamente), os valores contestados e que se pretende ver anulados.

Só que, não tendo sido feito a prova de tais pagamentos, tal pedido não pode proceder. O que em nada prejudica a Requerente desde logo porquanto cabe à AT, em execução voluntária desta decisão arbitral, conhecer oficiosamente desta questão.

 

IV - DECISÃO

 

Termos em que se conclui pela procedência total do pedido, sendo anuladas as liquidações impugnadas, com todas as legais consequências.

 

 

VALOR: € 154.343,28.

CUSTAS, no montante de € 3.672,00, a cargo da Requerida por ter sido total o seu decaimento.

 

 

11 de outubro de 2024

 

Os árbitros

 

 

Rui Duarte Morais (relator)

 

 

 

Sara Barros

 

 

Maria da Graça Martins 

 

 

 



[1] Na atual redação foi acrescentado, na parte final da norma qui se incluindo os postos de trabalho criados nos termos da alínea c) do n.º 2., acrescento que sempre resultaria irrelevante para o presente caso.