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Sumário:
O art. 22.º, n.º 1, parte final e n.º 3 do Estatuto dos Benefícios Fiscais, ao estabelecerem um tratamento fiscal mais favorável para os organismos de investimento coletivo que operem em Portugal de acordo com a legislação portuguesa, em relação aos organismos equiparáveis que tenham sido constituídos de acordo com a legislação de outro Estado Membro viola o princípio da liberdade de circulação de capitais consagrado no artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia.
Tomás Cantista Tavares, árbitro nomeado pelo CAAD, acorda em tribunal arbitral singular:
I – Relatório
1. A..., Organismo de Investimento Coletivo constituído de acordo com o direito alemão, com o número de contribuinte português ..., com sede em ..., ... Frankfurt am Main, Alemanha vem requerer a constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro,
para apreciar a legalidade dos atos de retenção na fonte de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC), que incidiram sobre os dividendos auferidos em território nacional no ano de 2020, bem como, de forma reflexa, do ato de indeferimento da reclamação graciosa prévia, intentada sobre o mesmo tema,
requerendo ainda a condenação da Autoridade Tributária no reembolso do imposto indevidamente pago e no pagamento de juros indemnizatórios.
A Requerente é um organismo de investimento coletivo com residência fiscal na Alemanha, constituído sob a forma contratual e não societária; tendo auferido dividendos da sua participação no capital social de sociedades residentes em Portugal, foi objeto de retenção na fonte a título definitivo, à taxa de 25%.
No entanto, tais dividendos, se auferidos por um Organismo de Investimento Coletivo (OIC) constituído e a operar de acordo com a legislação nacional, estariam excluídos de tributação, nos termos do artigo 22.º, n.º 3, do Estatuto dos Benefícios Fiscais (EBF).
A Requerente advoga que o tratamento fiscal conferido pela legislação nacional – que distingue o tratamento a conferir aos dividendos auferidos por fundos de investimento consoante a sua residência fiscal – configura uma restrição à liberdade de circulação de capitais, que é proibida pelo artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE). Sendo que a jurisprudência do TJUE tem vindo constantemente a opor-se a restrições à circulação de capitais no âmbito das relações entre Estados-membros e países terceiros.
O art. 22.º, n.º 1 e 3, do EBF distingue consoante a residência organismos de investimento coletivo (doravante OIC): exclui de tributação apenas os dividendos auferidos por OIC residentes em Portugal e, desse modo, não estabelece um tratamento equivalente entre OIC residentes e OIC não residentes, gerando um tratamento discriminatório que constitui uma restrição à livre circulação de capitais.
Na resposta, a Autoridade Tributária refere, em suma, que o regime fiscal aplicável aos OIC constituídos ao abrigo da legislação nacional, embora consagre a isenção dos dividendos distribuídos por sociedades residentes, não afasta a tributação desses rendimentos por outras formas, seja por tributação autónoma, seja em imposto do selo, quando os mesmos rendimentos integram o valor líquido destes organismos, logo, não pode afirmar-se que, em substância, as situações em que se encontram aqueles OIC e os Fundos de Investimentos constituídos e estabelecidos noutros Estados que auferem dividendos com fonte em Portugal, sejam objetivamente comparáveis.
Não podendo concluir-se que o regime fiscal dos OIC, que não se contém em exclusivo no n.º 3 do artigo 22.º do EBF, se não encontre em conformidade com as obrigações que decorrem do artigo 63.º do TFUE, sendo que o tratamento diferenciado entre residentes e não residentes não constitui em si mesmo qualquer discriminação proibida por aquela disposição do TFUE.
2. O árbitro foi designado pelo Conselho Deontológico; comunicou a aceitação em tempo, não tendo as partes manifestado vontade de o recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e dos artigos 6.° e 7.º do Código Deontológico.
3. O Tribunal foi constituído em 11/6/2024. A requerida foi notificada para apresentar resposta, que o fez em tempo; o tribunal arbitral determinou a dispensa da reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT, bem como de alegações – atenta a clareza das peças processuais, ausência de testemunhas, na celeridade do processo e livre condução do processo.
O tribunal arbitral foi regularmente constituído.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
O processo não enferma de nulidades e não foram invocadas exceções.
Cabe apreciar e decidir.
II - Fundamentação
Matéria de facto
Os factos relevantes para a decisão da causa que são tidos como assentes são os seguintes.
A) O Requerente é um organismo de investimento coletivo, com residência fiscal na Alemanha, constituído sob a forma contratual e não societária.
B) O Requerente é um sujeito passivo de IRC não residente, para efeitos fiscais, em Portugal e sem qualquer estabelecimento estável no país.
C) Em 2020, o Requerente detinha participações sociais nas seguintes sociedades com sede e direção efetiva em Portugal: B..., C..., SGPS, SA e D..., SA, tendo auferido, nesse ano, dividendos da sua participação no capital social destas sociedades.
E) Os dividendos auferidos pelo Requerente foram objeto de retenção na fonte a título definitivo, à taxa de 25%, conforme se discrimina no quadro abaixo:
F) Em 15/6/2022, a Requerente deduziu reclamação graciosa contra os atos de retenção na fonte de 2020.
H) Em 28/12/2023, a Requerente foi notificada do indeferimento expresso da reclamação graciosa relativa aos impostos de 2020.
I) A Requerente apresentou pedido de pronúncia arbitral em 25 de março de 2024.
Factos não provados
Não há factos não provados que se considerem relevantes para a decisão da causa.
Motivação da matéria de facto
O Tribunal formou a sua convicção quanto à factualidade provada com base nos documentos juntos à petição e no processo administrativo junto pela Autoridade Tributária com a resposta.
Matéria de direito
A. Na decisão deste processo, segue-se de perto, por adesão e concordância após ponderação e análise apurada, ao que foi decidido no processo arbitral fiscal com o n.º 842/2023-T.
A Requerente sustenta que existe um regime especial e favorável de tributação aplicável aos OIC que se constituam e operem de acordo com a legislação nacional, nos termos da parte final do n.º 1 e do n.º 3 do artigo 22.º do EBF; mas que implicam a exclusão desse regime jurídico dos organismos equiparáveis que operem em Portugal de acordo com a legislação portuguesa mas tenham sido constituídos de acordo com a legislação de outro Estado-Membro da União Europeia; e que isso viola o princípio da liberdade de circulação de capitais consagrado no artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE).
A Autoridade Tributária contrapõe que o artigo 22.º do EBF, aplicável aos rendimentos obtidos por fundos de investimento que se constituam e operem de acordo com a legislação nacional, estabelece uma exclusão na determinação do lucro tributável dos rendimentos de capitais, prediais e mais-valias, deslocando a tributação para a esfera do imposto do selo, além de que sujeita os OIC às taxas de tributação autónoma previstas no artigo 88.º do Código do IRC. Não podendo afirmar-se, neste condicionalismo, que se esteja perante situações objetivamente comparáveis, porquanto, a tributação dos dividendos opera segundo modalidades diferentes, e nada indica que a carga fiscal que onera os dividendos auferidos pelos OIC abrangidos pelo artigo 22.º do EBF possa ser mais reduzida do que a que recai sobre os dividendos auferidos em Portugal pela Requerente.
A mesma e exata questão que nestes termos vem colocada a este Tribunal, foi já analisada e decidida no acórdão do Tribunal de Justiça (TJUE) de 17 de março de 2022, proferido no Processo n.º C-545/19, em reenvio prejudicial suscitado no Processo n.º 93/2019-T em que se extrai a seguinte conclusão:
O artigo 63.° do TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado‑Membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um organismo de investimento coletivo (OIC) não residente são objeto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção.
O Tribunal Arbitral sufraga este entendimento, por força do primado do Direito Europeu, tal como interpretado pelo TJUE – e dada a identidade do presente caso com o que foi decidido pelo TJUE.
O artigo 22.º do EBF, na redação introduzida pelo Decreto-Lei n.º 7/2015, de 31 de janeiro, e pela Lei n.º 42/2016, de 28 de dezembro, na parte que mais interessa considerar, dispõe o seguinte:
Artigo 22.º
Organismos de Investimento Coletivo
1 – São tributados em IRC, nos termos previstos neste artigo, os fundos de investimento mobiliário, fundos de investimento imobiliário, sociedades de investimento mobiliário e sociedades de investimento imobiliário que se constituam e operem de acordo com a legislação nacional.
2 – O lucro tributável dos sujeitos passivos de IRC referidos no número anterior corresponde ao resultado líquido do exercício, apurado de acordo com as normas contabilísticas legalmente aplicáveis às entidades referidas no número anterior, sem prejuízo do disposto no número seguinte.
3 – Para efeitos do apuramento do lucro tributável, não são considerados os rendimentos referidos nos artigos 5.º, 8.º e 10.º do Código do IRS, exceto quando tais rendimentos provenham de entidades com residência ou domicílio em país, território ou região sujeito a um regime fiscal claramente mais favorável constante de lista aprovada em portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças, os gastos ligados àqueles rendimentos ou previstos no artigo 23.º-A do Código do IRC, bem como os rendimentos, incluindo os descontos, e gastos relativos a comissões de gestão e outras comissões que revertam para as entidades referidas no n.º 1.
4 - Os prejuízos fiscais apurados nos termos do disposto nos números anteriores são deduzidos aos lucros tributáveis nos termos do disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 52.º do Código do IRC.
5 – Sobre a matéria coletável correspondente ao lucro tributável deduzido dos prejuízos fiscais, tal como apurado nos termos dos números anteriores, aplica -se a taxa geral prevista no n.º 1 do artigo 87.º do Código do IRC.
6 – As entidades referidas no n.º 1 estão isentas de derrama municipal e derrama estadual.
(…)
8 - As taxas de tributação autónoma previstas no artigo 88.º do Código do IRC têm aplicação, com as necessárias adaptações, no presente regime.
Como resulta, em especial, do disposto nos n.ºs 3 e 6, as entidades referidas no n.º 1, beneficiam de um regime consideravelmente mais favorável que o regime geral de tributação em IRC, porquanto não são considerados, para efeitos do apuramento do lucro tributável, os rendimentos de capitais, os rendimentos prediais e mais-valias, além de que essas entidades estão isentas de derrama municipal e derrama estadual. Por outro lado, nos termos do transcrito n.º 1, o benefício fiscal assim estabelecido aplica-se aos organismos de investimento coletivo que se constituam e operem de acordo com a legislação nacional, o que conduz a afastar, numa interpretação literal do preceito, os organismos equiparáveis que operem no território nacional segundo o direito interno, mas tenham sido constituídos segunda legislação de um outro Estado-membro da União Europeia ou de Estado terceiro.
A questão carece de ser analisada, nestes termos, à luz da alegada violação do princípio da proibição da liberdade de circulação de capitais.
B. No caso, como resulta da matéria de facto tida como assente, a Requerente é um organismo de investimento coletivo mobiliário, constituída segundo o direito da Alemanha, desempenhando em Portugal o mesmo papel económico que as sociedades de investimento mobiliário de capital variável heterogeridas, efetuando a angariação de investimento da mesma natureza e oferecendo aos seus clientes o mesmo tipo de condições de mercado.
Alega a Requerente, neste contexto, que as normas do artigo 22.º, n.ºs 1 e 3, do EBF se tornam incompatíveis com o princípio da liberdade de circulação de capitais consagrado no artigo 63.º do TFUE.
Conforme tem sido entendimento comum, o princípio da proibição de discriminação em razão da nacionalidade consagrado no artigo 18.º do TFUE apenas deve ser objeto de aplicação autónoma quando esse mesmo princípio se não encontre concretizado em disposições específicas do Tratado relativas às liberdades de circulação. E, nesse sentido, pode dizer-se que o princípio da não discriminação se realiza, designadamente, por via do direito à livre circulação de movimentos de capitais a que se refere o artigo 63.º do Tratado (cfr. Paula Rosado Pereira, Princípios do Direito Fiscal Internacional – Do Paradigma Clássico ao Direito Fiscal Europeu, Coimbra, 2011, pág. 254).
O artigo 63.º proíbe todas as restrições aos movimentos de capitais, bem como todas as restrições aos pagamentos entre Estados-Membros e entre Estados-Membros e países terceiros. O artigo 65.º consigna, todavia, que o artigo 63.º não prejudica o direito de os Estados-Membros aplicarem as disposições pertinentes do seu direito fiscal que estabeleçam uma distinção entre contribuintes que não se encontrem em idêntica situação no que se refere ao seu lugar de residência ou ao lugar em que o seu capital é investido (n.º 1), esclarecendo o n.º 3, em todo o caso, que essa possibilidade não deve constituir um meio de discriminação arbitrária, nem uma restrição dissimulada à livre circulação de capitais e pagamentos.
Em relação à liberdade de circulação de capitais, o citado acórdão do Tribunal de Justiça de 17 de março de 2022, proferido em reenvio prejudicial no âmbito do Processo n.º C-545/19 de 10 de Abril de 2014, esclarece o âmbito de aplicação desse princípio, formulando, na parte que mais interessa reter, os seguintes considerandos:
36 Resulta de jurisprudência constante do Tribunal de Justiça que as medidas proibidas pelo artigo 63.°, n.° 1, TFUE, enquanto restrições aos movimentos de capitais, incluem as que são suscetíveis de dissuadir os não residentes de investir num Estado‑Membro ou de dissuadir os residentes de investir noutros Estados (-).
37 No caso em apreço, é facto assente que a isenção fiscal prevista pela legislação nacional em causa no processo principal é concedida aos OIC constituídos e que operam de acordo com a legislação portuguesa, ao passo que os dividendos pagos a OIC estabelecidos noutro Estado‑Membro não podem beneficiar dessa isenção.
38 Ao proceder a uma retenção na fonte sobre os dividendos pagos aos OIC não residentes e ao reservar aos OIC residentes a possibilidade de obter a isenção dessa retenção na fonte, a legislação nacional em causa no processo principal procede a um tratamento desfavorável dos dividendos pagos aos OIC não residentes.
39 Esse tratamento desfavorável pode dissuadir, por um lado, os OIC não residentes de investirem em sociedades estabelecidas em Portugal e, por outro, os investidores residentes em Portugal de adquirirem participações sociais em OIC e constitui, por conseguinte, uma restrição à livre circulação de capitais proibida, em princípio, pelo artigo 63.° TFUE (-).
40 Não obstante, segundo o artigo 65.°, n.° 1, alínea a), TFUE, o disposto no artigo 63.° TFUE não prejudica o direito de os Estados‑Membros aplicarem as disposições pertinentes do seu direito fiscal que estabeleçam uma distinção entre contribuintes que não se encontrem em idêntica situação no que se refere ao seu lugar de residência ou ao lugar em que o seu capital é investido.
41 Esta disposição, enquanto derrogação ao princípio fundamental da livre circulação de capitais, é de interpretação estrita. Por conseguinte, não pode ser interpretada no sentido de que qualquer legislação fiscal que comporte uma distinção entre os contribuintes em função do lugar em que residam ou do Estado‑Membro onde invistam os seus capitais é automaticamente compatível com o Tratado FUE. Com efeito, a derrogação prevista no artigo 65.º, n.º 1, alínea a), TFUE é ela própria limitada pelo disposto no artigo 65.º, n.º 3, TFUE, que prevê que as disposições nacionais a que se refere o n.º 1 desse artigo «não devem constituir um meio de discriminação arbitrária, nem uma restrição dissimulada à livre circulação de capitais e pagamentos, tal como definida no artigo 63.º [TFUE]» (-).
42 O Tribunal de Justiça declarou igualmente que, por conseguinte, há que distinguir as diferenças de tratamento permitidas pelo artigo 65.°, n.° 1, alínea a), TFUE das discriminações proibidas pelo artigo 65.°, n.° 3, TFUE. Ora, para que uma legislação fiscal nacional possa ser considerada compatível com as disposições do Tratado FUE relativas à livre circulação de capitais, é necessário que a diferença de tratamento daí decorrente diga respeito a situações que não sejam objetivamente comparáveis ou se justifique por uma razão imperiosa de interesse geral (-).
Quanto à existência de situações objetivamente comparáveis, o Tribunal de Justiça concluiu que o “critério de distinção a que se refere a legislação nacional (…), que tem por objeto unicamente o lugar de residência dos OIC, não permite concluir pela existência de uma diferença objetiva de situações entre os organismos residentes e os organismos não residentes (considerando 73), havendo de entender-se que, “no caso em apreço, a diferença de tratamento entre os OIC residentes e os OIC não residentes diz respeito a situações objetivamente comparáveis (considerando 74).
E não há motivo para que o tribunal arbitral, face aos elementos factuais conhecidos, deva dissentir do entendimento formulado, quanto a esta matéria, em sede de reenvio prejudicial.
Em relação à possibilidade de uma restrição à livre circulação de capitais ser admitida por razões imperiosas de interesse geral, o Tribunal de Justiça declarou que, para esse efeito, “é necessário que esteja demonstrada a existência de uma relação direta entre o benefício fiscal em causa e a compensação desse benefício por uma determinada imposição fiscal” (considerando 78). Concluindo que, no caso, “não há uma relação direta (…) entre a isenção da retenção na fonte dos dividendos de origem nacional auferidos por um OIC residente e a tributação dos referidos dividendos enquanto rendimentos dos detentores de participações sociais nesse organismo” e a “necessidade de preservar a coerência do regime fiscal nacional não pode, por conseguinte, ser invocada para justificar a restrição à livre circulação de capitais induzida pela legislação nacional (…) (considerandos 80 e 81).
Em todo este contexto, a doutrina fixada pelo TJUE é a seguinte:
O artigo 63.° TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado‑Membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um organismo de investimento coletivo (OIC) não residente são objeto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção.
C. Revertendo à situação do caso, e como resulta do ponto II e notas explicativas da nomenclatura anexa à Diretiva 88/361/CEE, o conceito de movimentos de capitais, para efeito da liberdade de circulação a que refere o artigo 63.º do TFUE, abrange os investimentos mobiliários (cfr. considerandos 21 e 22 do acórdão do TJUE de 16 de março de 1999, no Processo C-222/97).
O artigo 22.º, n.º 1, do EBF, ao circunscrever o regime de tributação constante do n.º 3 aos fundos e sociedades de investimento mobiliário que se constituam e operem de acordo com a legislação nacional, estabelece um regime mais gravoso para as entidades equiparáveis que operem no território nacional mas se tenham constituído segundo o direito de um outro Estado-Membro ou de Estado terceiro, sem que tenha sido apresentada qualquer justificação para esse tratamento discriminatório.
Segundo o disposto no artigo 65.º, n.º 3, do TFUE, os Estados-Membros podem estabelecer distinções em matéria fiscal entre sujeitos passivos que não se encontrem em idêntica situação em função do lugar da nacionalidade ou residência desde que não implique uma discriminação arbitrária ou uma restrição dissimulada à livre circulação de capitais e pagamentos.
Havendo de entender-se, tal como refere o acórdão do TJUE proferido no Processo n.º C-545/19, que a diferença de tratamento na legislação fiscal nacional, em relação à livre circulação de capitais, apenas é compatível com as disposições do Tratado se respeitarem a situações objetivamente não comparáveis ou se se justificar por razões imperiosas de interesse geral (cfr. ainda considerando 58 do acórdão de 10 de fevereiro de 2011, nos Processos C-436/08 e C-437/08).
De acordo com o disposto no artigo 8.º, n.º 4, da CRP, as disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições são aplicáveis na ordem interna, e nesse sentido prevalecem sobre as normas do direito nacional, motivo por que os tribunais devem recusar a aplicação de lei ou norma jurídica que se encontre em desconformidade com o direito europeu (cfr., entre outros, o acórdão do STA de 1 de julho de 2015, Processo n.º 0188/15).
Resta acrescentar que o recente acórdão do STA de 28 de setembro de 2023 (Processo n.º 093/19), tirado em recurso por oposição de julgados entre as decisões arbitrais proferidas nos Processos n.ºs 96/2019-T e 90/2019-T, tomando em consideração o citado acórdão do TJUE proferido no Processo n.º C-545/19, uniformizou a jurisprudência no sentido de que a interpretação do artigo 63.º do TFUE é incompatível com o artigo 22.º do EBF, na medida em que limita o regime de isenção nele previsto aos OIC constituídos segundo a legislação nacional, dele excluindo os OIC constituídos segundo a legislação de outros Estados Membros da União Europeia.
D. Os atos de liquidação em IRC impugnados e as decisões de indeferimento expresso das reclamações graciosas são assim ilegais por assentarem em disposição legal que viola o princípio da liberdade de circulação de capitais consagrado no artigo 63.º, n.º 1, do TFUE.
Reembolso do imposto indevidamente pago e juros indemnizatórios
E. A Requerente pede ainda a condenação da Autoridade Tributária no pagamento de juros indemnizatórios, à taxa legal, calculados sobre o imposto, até ao reembolso integral da quantia devida.
De harmonia com o disposto na alínea b) do artigo 24.º do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a Administração Tributária, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo, cabendo-lhe “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito”. O que está em sintonia com o preceituado no artigo 100.º da LGT, aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT.
Ainda nos termos do n.º 5 do artigo 24.º do RJAT “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previstos na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”, o que remete para o disposto nos artigos 43.º, n.º 1, e 61.º, n.º 5, de um e outro desses diplomas, implicando o pagamento de juros indemnizatórios desde a data do pagamento indevido do imposto até à data do processamento da respetiva nota de crédito.
No entanto, em caso de retenção na fonte, o erro imputável aos serviços, que justifica a obrigação de juros indemnizatórios, apenas opera, quando haja lugar a reclamação graciosa, a partir da data do indeferimento tácito pela Autoridade Tributária da impugnação administrativa (cfr., neste sentido, os acórdãos do Pleno do STA de 18 de janeiro de 2017, Processo n.º 0890/16, e de 29 de junho de 2022, Processo n.º 093/21); que ocorre, se a reclamação graciosa não tiver sido decididas, como não foi, no prazo de quatro meses a contar da data de apresentação das reclamações graciosas (art. 57.º, n.º 1 e 5, da LGT): a partir de 16/10/2022 para as retenções na fonte de 2020.
Há assim lugar, na sequência de declaração de ilegalidade dos atos tributários de retenção na fonte, ao pagamento de juros indemnizatórios, nos termos dos artigos 43.º, n.º 1, da LGT e 61.º, n.º 5, do CPPT, desde 16/10/2022, calculados sobre a quantia que a Requerente pagou indevidamente, à taxa dos juros legais (artigos 35.º, n.º 10, e 43.º, n.º 4, da LGT).
III - Decisão
Termos em que se decide:
a) Julgar procedente o pedido arbitral e anular os atos de retenção na fonte de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC), que incidiram sobre os dividendos auferidos pela requerente em território nacional no ano de 2020 (no valor de 19.497,22€), bem como anular a decisão de indeferimento expressos da reclamação graciosa contra eles deduzida;
b) Condenar a Administração Tributária no reembolso do imposto indevidamente pago e pagamento de juros indemnizatórios desde 16/10/2022, à taxa legal, até à data do processamento da respetiva nota de crédito.
Valor da causa
A Requerente indicou como valor da causa o montante de € 19.497,22, que não foi contestado pela Requerida e corresponde ao valor das liquidações a que se pretendia obstar, pelo que se fixa nesse montante o valor da causa.
Custas
Nos termos dos artigos 12.º, n.º 3, do RJAT, e 5.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e Tabela II anexa a esse Regulamento, fixa-se o montante das custas em € 1.224,00, que fica a cargo da Requerida.
Notifique.
Porto, 21 de outubro de 2024,
Tomás Cantista Tavares (árbitro singular)