Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 201/2024-T
Data da decisão: 2024-10-23   Outros 
Valor do pedido: € 138.295,58
Tema: Contribuição do serviço rodoviário (CSR).
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SUMÁRIO

I.          A Contribuição do Serviço Rodoviário é um tributo que contraria a Directiva 2008/118 relativa ao regime geral dos impostos especiais de consumo porque, pré-existindo um imposto sobre os produtos petrolíferos (o ISP), o Estado português apenas poderia fazer incidir novo imposto sobre os mesmos produtos se este tivesse em vista motivos específicos, o que não acontece, na medida em que não existe uma relação directa entre a utilização das receitas e as invocadas finalidades de redução da sinistralidade e de sustentabilidade ambiental.

II.        O tribunal arbitral é competente para conhecer do pedido de pronúncia sobre o indeferimento tácito do pedido de revisão dos actos tributários de liquidação da Contribuição do Serviço Rodoviário, uma vez que este tributo deve ser tratado como imposto para efeitos da Portaria 112-A/20111 de 22.3, por não haver um nexo específico entre o benefício emanado da actividade pública titular da contribuição (a Intraestruturas de Portugal, SA) e os sujeitos passivos (as empresas comercializadoras de combustíveis), desaparecendo, por isso, a natureza de contribuição financeira.

III.  A não identificação dos actos de liquidação da CSR cuja devolução é pedida resulta na ineptidão da petição por ficar por demonstrar a existência desses actos e o efectivo pagamento do tributo, o que impossibilita também a demonstração da repercussão – gerando, como consequência, a ilegitimidade – e da verificação da tempestividade do pedido de revisão oficiosa em que assenta o pedido de pronúncia arbitral.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

 

Os árbitros, Victor Calvete (presidente), Rui M. Marrana e António de Barros Lima Guerreiro, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral Colectivo, acordam no seguinte:

 

Relatório

1.A..., S.A., titular do número único de pessoa colectiva ..., na Rua ..., ..., ...-... Rio Tinto – doravante referida por Requerente – veio requerer, ao abrigo do disposto nos art.os 2.º/1 a), 3.º-A/2 e 10.º/1 a) e 2 do DL 10/2011, de 20.1 (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária - RJAT) e dos art.os 1.º e 2.º da Portaria 112-A/2011, de 22.3 a constituição de Tribunal Arbitral e deduzir o respectivo pedido de pronúncia sobre o acto de indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa apresentado em 21.7.2023 junto da Direcção Geral das Alfândegas e dos Impostos Especiais sobre o Consumo (DGAIEC) com o n.º 2023... .

2.É requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante referida por AT ou Requerida.

3.Em 14 de Fevereiro de 2024 o pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Ex.mo Presidente do CAAD e seguiu a sua normal tramitação com a notificação da AT.

4.Ainda antes da constituição do tribunal - em 15 de Fevereiro de 2024 -, a Requerente apresentou um pedido de junção de documentos aos autos.

5.Em 11 de Março de 2024 a AT apresentou um requerimento no qual solicitava que a Requerente identificasse os actos de liquidação cuja legalidade pretende ver sindicada, tendo o Ex.mo Presidente do CAAD, nessa data, determinado o envio do mesmo ao tribunal arbitral a constituir, por ser o órgão competente para a sua apreciação.

6.De acordo com o preceituado nos art.os 5.º/3 a), 6.º/2 a) e 11.º/1 a) do RJAT, o Ex.mo Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os árbitros do Tribunal Arbitral colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável. As Partes, notificadas dessas designações, não manifestaram vontade de as recusar.

7.O Tribunal Arbitral ficou constituído em 23 de Abril de 2024, tendo, nessa data, o árbitro-presidente proferido despacho para notificação do dirigente máximo do serviço da administração tributária, para, querendo, apresentar resposta e solicitar a produção de prova adicional no prazo de 30 dias, nos termos do art. 17.º/1 do RJAT.

8.Em 23 de Maio de 2024 a Requerida apresentou Resposta, com defesa por excepção e impugnação, juntando o processo administrativo.

9.Em 11 de Junho de 2024 o árbitro-presidente proferiu despacho dispensando a reunião prevista no art. 18.º do RJAT e concedendo à Requerente um prazo de 15 dias sucessivos para se pronunciar sobre as excepções suscitadas pela AT.

10.Em 24 de Junho a Requerente apresentou requerimento no qual se pronunciou relativamente a tais excepções.

Posição da Requerente 

11.A Requerente, ainda antes de expor os termos do pedido arbitral, começou por sustentar a adequação e tempestividade do pedido de revisão oficiosa nos termos do art. 78.º/1 da LGT, tal como vem sendo reconhecido pela jurisprudência judicial e arbitral.

12.Assim, enquanto consumidora final, pretendeu a revisão das liquidações de CSR cujos encargos foram por si suportados durante o período de Maio de 2019 a Dezembro de 2022 e, consequentemente, o reembolso dos montantes indevidamente liquidados, já que essa contribuição, introduzida pela Lei 55/2007, de 31.8, viola o disposto no art. 1.º /2 da Directiva 2008/118, de 6.12.2008, sendo, por isso, contrária às disposições do Direito da União Europeia e, assim, manifestamente ilegal, conforme declarou o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), em 07.02.2022, no processo C-460/21.

13.Essa ilegalidade da CSR redunda num erro de direito (em virtude da aplicação de uma lei contrária ao direito da União) sendo esse erro imputável à AT, por não ter por base qualquer informação prestada pelo contribuinte (ac STA 22.3.2.21, proc. 01009/10; tb. decisão arbitral proc. 304/2022-T).

14.A tempestividade do pedido resulta do facto de não terem decorrido quatro anos entre a data das liquidações e a data do pedido de revisão oficiosa, que foi apresentado e recebido a 21 de Julho de 2023.

15.Pronuncia-se, depois, a Requerente sobre a competência do tribunal arbitral para apreciar o pedido, face à presunção de indeferimento estatuída no art. 57.º/5 da LGT,

16.Sendo que o acto de indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa comporta a apreciação da legalidade do acto de liquidação cuja revisão foi pedida, pelo que o meio contencioso adequado para impugnar é o processo de impugnação judicial e o processo arbitral, tal como foi referido nas decisões dos proc.os 0306/09 (08.07.2009), 0681/09 (12.11.2009), 01950/13 (02.07.2014) e 597/2020-T (31.09.2021).

17.No caso, tendo sido apresentado o pedido de revisão oficiosa em 21 de Julho de 2023, a AT dispunha de um prazo de quatro meses para a sua apreciação, o que significa que teria de emitir uma decisão até ao dia 21 de Novembro de 2023, presumindo-se o indeferimento tácito a partir do dia seguinte.

18.A Requerente dispunha, a partir desse momento, de um prazo de 90 dias para apresentação do pedido de pronúncia arbitral junto do CAAD – até 19 de Fevereiro de 2024, nos termos do art. 10.º/1 a) do RJAT – pelo que o presente pedido deverá ser considerado como tempestivo.

19.Esclarece, depois, a Requerente que – tal como resulta da jurisprudência arbitral – a CSR é um imposto, para efeitos do disposto no art. 2.º da Portaria 112-A/2011 de 22.3, não se colocando, portanto, qualquer questão de competência do tribunal arbitral.

20.Pronunciando-se, depois, relativamente à sua legitimidade processual, a Requerente recorda que, nos termos do art. 65.º da LGT e do art. 9.º/1 do CPPT, isso decorre [além de qualidade de sujeito passivo que abrange não só os contribuintes directos, mas também os substitutos e os responsáveis - cfr. decisão arbitral proc. 304/2022-T, de 05.01.2023] da existência de um interesse legalmente protegido, situação essa que é evidente no presente processo,

21.Até por o direito de reclamação, recurso, impugnação ou pedido de pronúncia arbitral ser reconhecido a quem suporte o imposto por repercussão (art. 18.º/4 da LGT).

22.Ora, conforme decorre do disposto no art. 65.º/1 da Lei 55/2007 que institui a CSR, esta é devida pelos sujeitos passivos do imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos, sendo aplicável à sua liquidação, cobrança e pagamento o disposto no Código dos Impostos Especiais de Consumo, na lei geral tributária e no Código do Procedimento e do Processo Tributário, com as devidas adaptações.

23.Sucede, porém, que o mecanismo de liquidação da CSR representa uma espécie de substituição tributária, na medida em que este tributo é devido pelos sujeitos passivos de Imposto sobre os Produtos Petrolíferos (ISP), que se substituem à Infraestruturas de Portugal, IP, S.A. (IP), a quem é destinada a CSR liquidada e cobrada pela AT, como contrapartida pela utilização dos serviços prestados por aquela aos utentes das vias rodoviárias (cfr. decisão arbitral no proc. 304/2022-T).

24.Ou seja, apesar de ser o sujeito passivo o obrigado a entregar o montante do imposto, é o consumidor final, i.e., o consumidor do combustível, que o suporta efectivamente.

25.Isso mesmo foi defendido pela AT no âmbito das decisões dos proc.os 629/2021-T, de 03.08.2022 e n.º 305/2022-T, de 16.01.2023, nas quais se reiterou que o sujeito passivo da CSR não tinha legitimidade na lide, na medida em que, ao dedicar-se à comercialização de produtos petrolíferos (qualificando-se como sujeito passivo de CSR), repercutiu no preço de venda todas as despesas por si assumidas a título de liquidação desse tributo.

26.Nesse sentido, a doutrina e a jurisprudência têm entendido que os IEC configuram situações de repercussão legal por onerarem os contribuintes finais, na medida dos custos que estes provocam nos domínios do ambiente e da saúde pública. Por essa razão, deverá ser o verdadeiro titular da capacidade contributiva a ser onerado com o encargo do imposto (por todos, v. A. Brigas Afonso, ‘Noções gerais sobre os impostos especiais de consumo’, Revista da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, 2006, p. 21).

27.Ora a Requerente entre Julho e 2019 e Dezembro de 2022 adquiriu combustíveis em cujo preço foram incluídos pela entidade comercializadora de produtos petrolíferos os montantes pagos pela vendedora a título de CSR, totalizando o valor de € 138.295,58 (cento e trinta e oito mil, duzentos e noventa e cinco euros e cinquenta e oito cêntimos), o qual foi integralmente repercutido na Requerente.

28.Donde, constatando-se uma repercussão legal da CSR sobre a Requerente – que assume, portanto, a qualidade de contribuinte de facto – esta tem legitimidade para apresentar o pedido arbitral no sentido de obter a revisão das liquidações de CSR e o consequente reembolso dos valores indevidamente liquidados.

29.Entrando na identificação da factualidade relevante, a Requerente explica que por não concordar com as liquidações supra-referidas, apresentou, no dia 20 de Julho 2023, um pedido de revisão oficiosa de acto junto da DGAIEC, o qual deu entrada no dia seguinte, sob o n.º 2023..., junto da Alfândega do Freixieiro com o n.º de processo ...2023... .

30.Não tendo obtido resposta da AT, formou-se uma presunção de indeferimento tácito desse pedido de revisão oficiosa.

31.A Requerente é uma sociedade comercial de direito português que dedica a sua actividade principal ao comércio, por grosso e a retalho, de vários tipos de bebidas, produtos alimentares enlatados, café, açúcar e especiarias, bem como à torrefacção do café.

32.No âmbito da sua actividade, a Requerente suportou um montante de €138.295,58 a título de CSR, correspondente aos actos de liquidação relativos ao período compreendido entre Agosto de 2019 e Dezembro de 2022, conforme decorre dos extractos de aquisição de combustíveis juntos o processo.

33.Esse montante resulta da aquisição de 1.246.030,03 litros de combustível, relativamente aos quais suportou um encargo económico por via da repercussão de CSR pela entidade que comercializa estes produtos petrolíferos, correspondente a € 0,087/Litro, no caso da gasolina, e a € 0,111/Litro, no caso do gasóleo.

34.A distribuição desses encargos nos diferentes anos, tendo em conta que, em virtude da Lei 82-B/2014, de 31.12, a CSR passou a ser de € 87/1000L para a gasolina e de € 111/1000L para o gasóleo é a seguinte:

Ano

Litros de combustível

CSR suportada

2019

193 333.58

21 459.81 €

2020

336 955.05

37 402.01 €

2021

360 206.07

39 971.00 €

2022

355 535.33

39 462.76 €

Total

1 246 030.03

138 295.58 €

 

35.Demonstrando que suportou o encargo por repercussão do sujeito passivo, a Requerente juntou aos autos as facturas dos gastos com a aquisição de gasóleo e gasolina rodoviários, bem as declarações emitidas pelos postos de combustíveis, na qualidade de sujeitos passivos do imposto, nos termos da qual se afirma a repercussão do encargo.

36.De facto, os sujeitos passivos da CSR eram os sujeitos passivos de imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos (ISP), havendo, todavia, uma repercussão legal desse montante sobre o consumidor (tal como acontece com a generalidade dos impostos sobre o consumo).

37.Ora, sendo indevido o pagamento a título de CSR da referida quantia de 138 295,58 €, a Requerente apresentou um pedido de revisão do acto tributário, ao abrigo do disposto no art. 78.º/1 e 7 da LGT e no art. 9.º/1 b) do CPPT, com vista ao seu reembolso.

38.A ilegalidade da CSR (que assumiu desde sempre a natureza de imposto e não de uma contribuição financeira – cfr. decisões nos proc. 629/2021-T, 304/2022-T, 24/2023-T) resulta de o seu regime (introduzido pela Lei 55/2007 de 31.8) contrariar o disposto no art. 1.º/2 da Directiva 2008/118 de 16.12.2008 (Directiva IEC), o qual condiciona a cobrança pelos Estados-membros de outros impostos indirectos sobre produtos sujeitos a impostos especiais de consumo, à existência de motivos específicos (e à conformidade com as demais normas do Direito da União). Ora, as finalidades orçamentais não podem ser consideradas como motivos específicos – que é o que acontece com a CSR, a qual visa o financiamento da EP - Estadas de Portugal (art. 2.º da Lei 55/2007 de 31.8), tal como reconheceu o TJUE no seu Despacho de 7.2.2021 (Vapo Atlantic, C‐460/21).

39.E, nos termos do art. 100.º/1 da LGT a administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos, ou de processo judicial a favor do sujeito passivo, à plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos e condições previstos na lei.

40.Essa obrigação decorre ainda do Direito da União (cf. referido ac. no proc. C-460/21)

41.A Requerente peticiona, portanto, a anulação do acto de indeferimento tácito do pedido de revisão dos actos de liquidação de CSR e o reembolso dos montantes pagos bem como o pagamento de juros indemnizatórios.

Posição da Requerida

42.A Autoridade Tributária, na sua resposta, começa por fazer um enquadramento da situação explicando a criação da CSR pela Lei 55/2007, a qual assumia a finalidade de financiar a rede rodoviária nacional, no que respeitava à respectiva concepção, projecto, construção, conservação, exploração, requalificação e alargamento. Essas funções eram atribuídas à EP – Estradas de Portugal, EPE, entidade que, na sequência do Decreto-Lei 91/2015 foi incorporada, por fusão, na Rede Ferroviária Nacional – REFER, EPE., que foi transformada em sociedade anónima, assumindo a designação Infraestruturas de Portugal, SA. 

43.Nos termos do art. 3.º/1 da Lei 55/2007, a CSR representava a contrapartida pela utilização da rede rodoviária nacional, tal como esta é verificada pelo consumo dos combustíveis, incidindo sobre a gasolina e o gasóleo rodoviário, sujeitos ao ISP) e dele não isentos (art. 4.º/1 do mesmo diploma), sendo devida pelos sujeitos passivos desse imposto, com a introdução ao consumo (formalizada através da respectiva declaração, processada por transmissão electrónica de dados). Na prática, a CSR acrescia ao ISP, sendo as respectivas taxas estabelecidas pela Portaria 16-C/2008, de 9.1.

44.As introduções no consumo (formalizadas através da Declaração de Introdução no Consumo – DIC – , processada por transmissão electrónica de dados nos termos do art. 10.º do Código dos Impostos Especiais de Consumo - CIEC) efectuadas num determinado mês pelos sujeitos passivos que detenham um dos estatutos previstos no CIEC são globalizadas no mês seguinte, numa única liquidação, processada de forma automática (art. 10.º-A do CIEC), sendo estes notificados da liquidação do imposto até ao dia 15 do mês da globalização, devendo o tributo ser pago até ao último dia útil do mês em que foi notificada a liquidação (art. 11.º e 12.º do CIEC).

45.Depois de introduzidos no consumo (feitas as respectivas declarações) estes combustíveis são, por sua vez, destinados a uma multiplicidade de destinos/clientes (grossistas, distribuidores, postos de abastecimento e consumidores finais).

46.Feito o enquadramento da CSR, a Autoridade Tributária suscita seguidamente as excepções da incompetência do tribunal em razão da matéria e em razão da causa de pedir.

47.Neste ponto, contrariando a argumentação da Requerente, a AT lembra que a sua vinculação à jurisdição dos Tribunais arbitrais ocorre nos termos da Portaria 112-A/2011, de 22.3, sendo que no objecto desta vinculação, definido pelo art. 2.º, se refere a apreciação das pretensões relativas a impostos. Apenas impostos, portanto, deixando de fora outras contribuições ou tributos, como é o caso da CSR.

48.Fundamenta o seu entendimento no facto de o legislador não ter enquadrado a CSR no conceito, tal como é referido no art. 4.º da LGT. Cita, a propósito, o entendimento convergente de alguma jurisprudência do CAAD (nomeadamente do Conselheiro Lopes de Sousa no proc. 31/2023-T – reiterada nas decisões dos proc.os  508/2023- T, 520/2023-T e 675/2023-T –, o qual encontra do regime definido na Portaria 112-A/2011 um intuito claramente restritivo que impõe uma leitura no mesmo sentido).

49.Nestes termos (estando a CSR excluída da arbitragem tributária por força do disposto nos art.os 2.º e 3.º do RJAT e art. 2.º da Portaria 112-A/2011, pelas quais a vinculação da Administração Tributária à jurisdição dos tribunais arbitrais se reporta apenas à apreciação de pretensões relativas a impostos, não abrangendo os tributos que devam ser qualificados como contribuição), não se encontra verificada a arbitrabilidade do thema decidendum,. Ou seja, não são os tribunais arbitrais do CAAD materialmente competentes para conhecer do mérito do pedido em apreço, o que prejudica o conhecimento do mérito da causa.

50.Além disso, entende e AT que a incompetência material do tribunal em razão da matéria é alcançável por outra via: é que o pedido de pronúncia arbitral visa a não aplicação da CSR, supondo, portanto, a apreciação genérica da sua legalidade do respectivo regime, o que excede a competência da instância arbitral, enquanto contencioso de mera anulação.

51.Há, portanto, novamente incompetência material do tribunal arbitral.

52.E mesmo que se admitisse a competência do tribunal arbitral para a apreciação da legalidade dos actos de liquidação de ISP/CSR, essa incompetência material ressurgiria como resultado do facto de o tribunal arbitral não poder pronunciar-se sobre actos de repercussão da CSR, subsequentes e autónomos dos actos de liquidação de ISP/CSR (cf. proc.os 296/2023-T, 332/2023-T, 375/2023-T, 408/2023-T, 466/2023-T, 467/2923-T e 490/2023-T).

53.Argui, depois, a Requerida, a ilegitimidade processual da Requerente, por não ser o sujeito passivo que procedeu à introdução no consumo dos produtos no território nacional, provando o pagamento dos respectivos ISP/CSR.

54.No caso, seria às empresas que procederam a essa introdução no consumo que caberia identificar os actos de liquidação e solicitar, em caso de erro, a sua revisão, com vista ao reembolso dos montantes cobrados (art.os 15.º e 16.º do CIEC, ex vi art. 5.º/1 L 55/2007; tb. art. 78.º/1 da LGT), já que estamos na presença de impostos monofásicos.

55.Não se encontram, portanto, reunidos os pressupostos para a revisão dos actos tributários, porquanto tal direito não se encontra incluído na esfera jurídica do repercutido económico ou de facto, não podendo a entidade, em que alegadamente teria sido repercutido o imposto, apresentar pedido de revisão ou de reembolso por erro. Donde, não sendo a Requerente sujeito passivo nos termos e para o efeito do disposto no art. 4.º do CIEC, não tem legitimidade, nos termos supra, nem para apresentar pedido de revisão oficiosa nem, consequentemente, o presente pedido arbitral.

56.Esta situação é reforçada pelo facto de a Requerente não ser também o sujeito passivo que suporta o encargo do imposto por repercussão legal, pelo que, a falta de legitimidade decorre também do disposto no art. 18.º/4 a) da LGT.

57.No caso, não existe repercussão legal, mas meramente de facto ou económica. De facto, os sujeitos passivos poderão eventualmente, no âmbito das suas relações comerciais proceder (ou não), à transferência, parcial ou total, da carga fiscal para outrem (os seus clientes), tendo em conta a política de definição dos preços de venda e as consequências para a sua actividade.

58.Assim – tal como acontece, em geral, com a CSR –, não existem actos de repercussão legal subsequentes e autónomos da liquidação, sendo que as facturas apresentadas não corporizam actos de repercussão de CSR, nem atestam que tal tributo foi suportado pela Requerente enquanto consumidora final.

59.Neste ponto, será relevante o facto de a B..., enquanto fornecedora declarar que nuns casos actuou na qualidade de sujeito passivo e apresentou pedidos de revisão oficiosa e impugnações no sentido de recuperar o valor pago a título de CSR, e noutros não actuou como sujeito passivo tendo repercutido no todo em parte o valor da CSR no preço das vendas efectuadas à Requerente. Fica, assim, por demonstrar qual o valor pretensamente repercutido.

60.Por outro lado, mesmo que se considerasse que os fornecedores de combustível foram os sujeitos passivos de CSR, sempre seria necessária a identificação das DIC’s e as liquidações a montante, bem como os períodos em causa, o que permitiria a respectiva conexão aos actos tributários que constituem objecto desta acção arbitral.

61.Isto porque, as declarações dos sujeitos passivos não podem ser consideradas prova bastante de que estes repercutiram a jusante a CSR (cf. decisão no proc. 681/2023-T).

62.Constata-se, portanto, que a Requerente não consegue demonstrar que o valor pago pelo combustível que adquiriu às suas fornecedoras, tem incluído o valor da CSR pago pelos sujeitos passivos de ISP/CSR, nem que suportou, a final, o encargo de tal tributo, isto é, que não o repassou no preço dos serviços praticados aos seus clientes, enquanto consumidores finais.

63.Conclui-se, portanto, pela ilegitimidade da Requerente, no sentido de diversas decisões arbitrais (proc. 296/2023-T, 332/2023-T, 375/2023-T, 408/2023-T, 438/2023-T, 466/2023-T, 467/2023-T e 490/2023-T, 681/2023-T e 633/2023-T), já que esta não é o sujeito passivo de ISP/CSR e não integra a relação tributária subjacente à liquidação, ou liquidações, contestadas, não sendo devedora, nem estando obrigada ao seu pagamento ao Estado. Está a jusante do sujeito passivo na cadeia económica (que, em termos jurídicos, não é um terceiro substituído). Não suporta a contribuição por repercussão legal, nem tão pouco corresponde ao consumidor final, pelo que não tem legitimidade nem para apresentar pedido de revisão oficiosa nem, consequentemente, o presente pedido arbitral, nos termos do artigo 15.º/2 do CIEC e do art. 18.º/3 e 4 a) da LGT.

64.A AT levanta ainda um problema prático concorrente: caso se aceite que a Requerente tenha legitimidade para efectuar o pedido de revisão e de anulação parcial da liquidação do ISP, reclamando o reembolso da CSR alegadamente suportada, poder-se-ia estar perante uma situação de ilegítima, infundada e indevida restituição reiterada de elevadas quantias monetárias a diversas entidades intervenientes no ciclo de comercialização com base nos mesmos (alegados) factos, sem qualquer possibilidade de controlo.

65.Na verdade, sem a possibilidade de se identificar o registo de liquidação correspondente às transacções posteriores, a Requerida poderia vir a ser sucessivamente condenada a pagar os mesmos montantes de CSR a qualquer operador económico que tenha tido intervenção na cadeia comercial de combustíveis: desde o sujeito passivo de imposto, passando pelos grossistas, distribuidores e revendedores, até ao consumidor final (tenham ou não estes suportado os valores em causa) – tal como se referiu no voto de vencida da decisão do proc. 491/2023-T.

66.A AT invoca, de seguida, a ineptidão do pedido arbitral por falta de objecto, dado não estarem identificados os actos tributários objecto do pedido (as liquidações e as alegadas repercussões), conforme determina o art. 10.º/2 b) do RJAT – questão que, aliás, havia referido logo no requerimento apresentado ainda antes da constituição do tribunal (cf. supra § 5).

67.De facto, a Requerente limita-se a identificar facturas de aquisição de combustíveis às suas fornecedoras, sem identificar quaisquer actos de liquidação de ISP/CSR praticados pela administração tributária e aduaneira, nem as Declarações de Introdução no Consumo (DIC) submetidas pelos sujeitos passivos de imposto.

68.Por outro lado, os documentos juntos aos autos pela Requerente não fazem referência a quaisquer elementos dos alegados actos de repercussão da CSR, nem permitem esclarecer os termos que foram definidos na relação contratual entre os sujeitos passivos e os restantes intervenientes na cadeia de comercialização, acerca da repercussão no âmbito das transacções comerciais referentes ao fornecimento de combustíveis pelo sujeito passivo aos posteriores intervenientes.

69.Nestas circunstâncias, o pedido arbitral não preenche nem satisfaz os pressupostos legais de aceitação, uma vez que viola o artigo 10.º/2 b) do RJAT, devendo, consequentemente, ser declarado inepto.

70.Atente-se que, com os dados indicados pela Requerente, seria impossível à Requerida identificar os actos e factos essenciais omitidos por aquela. Assim, a introdução no consumo é feita diariamente, mas as declarações são globalizadas mensalmente para efeitos de liquidação, e a alfândega competente não coincide necessariamente com a sede/domicílio do sujeito passivo (que pode apresentar as suas declarações em mais do que uma). Além disso, o combustível abrangido por uma liquidação é destinado a uma multiplicidade de clientes.

71.Subsiste ainda uma manifesta contradição entre o pedido e a causa de pedir porquanto a Requerente vem pedir, por um lado, a anulação de actos de liquidação não identificados e o indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa, mas a causa de pedir é a repercussão da CSR, por não conformidade com as normas da União Europeia, e o consequente reembolso do encargo suportado. Fica, assim, por estabelecer qualquer conexão entre aquilo que a Requerente alega e aquilo que documentou, o que geral alguma ininteligibilidade na indicação do pedido e uma contradição entre o pedido e a causa de pedir – com a consequente ineptidão da petição.

72.A Requerida prossegue invocando, depois, a caducidade do direito de acção, a qual decorrerá da falta de indicação dos actos de liquidação, o que impede a aferição da tempestividade do pedido de revisão oficiosa das liquidações, já que o prazo previsto no art. 78.º/1 da LGT se conta a partir do termo do prazo de pagamento do imposto, tendo por referência a data do acto de liquidação.

73.Ora a tempestividade da apresentação do pedido arbitral decorre da tempestividade do pedido de revisão, o que, face à não identificação dos actos tributários, é impossível.

74.No caso, a Requerente apresentou impugnação no tribunal arbitral em 10 de Fevereiro de 2024, do indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa apresentado em 21de Julho de 2023 junto da AT. Ora, para a apreciação da tempestividade da apresentação do pedido arbitral não pode deixar de ser previamente apreciada a questão da tempestividade do pedido de revisão, o que, como supra se demonstrou (face à não identificação dos actos tributários em litígio) é impossível.

75.De qualquer forma, a intempestividade sempre decorreria do facto de as aquisições terem ocorrido no período compreendido entre Julho de 2019 e 31 de Dezembro de 2022, pelo que em 21 de Julho 2023, já se encontrava ultrapassado o prazo da reclamação graciosa de 120 dias a contar do termo do prazo do pagamento do ISP/ CSR, previsto no artigo 78.º/1, primeira parte, da LGT.

76.Ou, mesmo que assim se não entenda, já que no âmbito dos IEC, os pedidos de reembolso apresentados nas alfândegas devem ser apreciados à luz do disposto nos art.os 15.º a 20.º do CIEC, em 21 de Julho 2023, já teria terminado o prazo de 3 anos previsto no art. 15.º/3 do CIEC para requerer o reembolso do alegado valor pago por alegada repercussão económica de CSR, pelo menos no que se refere a todas as aquisições efectuadas pela Requerente em datas anteriores a 21de Julho de 2020.

77.Donde, forçoso será concluir que a falta de identificação dos actos tributários em crise tem, entre outros, como efeito a impossibilidade de se aferir em pleno da tempestividade do pedido de revisão oficiosa e de reembolso por alegado pagamento de valores a título de alegada repercussão económica da CSR, e, consequentemente, da tempestividade do pedido arbitral, o que consubstancia uma excepção peremptória, devendo, nessa medida, a Requerida ser absolvida do pedido. Ou, se não se entender, sempre subsistirá uma excepção dilatória nos termos dos art.os 89.º/1, 2 e 4 k) do CPTA, o que conduz à absolvição do pedido ou da instância.

78.Respondendo, depois, por impugnação, a AT insiste no facto de a Requerente não fazer prova de que pagou e suportou integralmente o encargo da CSR, por repercussão (sendo que esse ónus recaía sobre si, nos termos do art. 74.º da LGT, não ocorrendo qualquer inversão desse ónus, como parece pretender a Requerente).

79.De facto, a Requerente não identifica quaisquer liquidações de ISP/CSR – o que teria de fazer com base em Declarações de Introdução no Consumo (DIC) – assumindo, aparentemente, que tais declarações terão sido apresentadas pelas fornecedoras.

80.As facturas apresentadas pela Requerente não fazem prova do alegado pagamento de CSR já que nelas apenas constam valores referentes ao IVA, sem qualquer referência a montantes pagos a título de ISP ou CSR.

81.Além disso, as facturas referem a existência de descontos (sem descritivo dos mesmos) o que denota falta de rigor e suscita dúvidas quanto a própria presunção da repercussão da CSR.

82.Ora, a própria jurisprudência do CAAD tem convergido no sentido de que a prova desses factos (a repercussão efectiva da CSR e, bem assim de que a Requerente é o consumidor final) seria essencial e cabia às Requerentes (cf. 364/2023-T, 633/2023-T).

83.Considera-se, portanto, que nenhum dos elementos de prova apresentados, sustentam qualquer alegado facto invocado no pedido arbitral.

84.Ressurge, neste enquadramento, o risco (já referido anteriormente – cf. § 64) de, por falta de identificação dos actos relevantes, se estar a admitir restituição reiterada de elevadas quantias monetárias a diversas entidades intervenientes no ciclo de comercialização com base nos mesmos (alegados) factos, sem qualquer possibilidade de controlo.

85.Impugna ainda a Requerida o montante de CSR alegadamente suportado pela Requerente por se limitar a aplicar à quantidade de litros fornecidos e constantes das facturas dos fornecedores, a taxa de CSR que se encontrava em vigor às datas das mesmas. Ora nos termos do art. 91.º do CIEC a unidade tributável dos produtos petrolíferos e energéticos (e consequentemente da CSR) é de 1000 litros convertidos para a temperatura de referência de 15º C, o que faz com que, não tendo existido certificação da medição da temperatura ambiente na descarga do combustível adquirido, não seja possível realizar a correspondência para o número de litros a 15º C. O que torna incorrectos os números aduzidos pelas Requerentes.

86.A AT debruça-se depois sobre o Despacho do TJUE de 7 de Fevereiro de 2022 no proc. C-460/21, explicando que a sua análise se limitou aos termos específicos das questões colocadas sem ter analisado a CSR com profundidade (§ 33.º e 34.º), não havendo, em rigor, qualquer decisão judicial que considere ilegal a CSR, pelo que também não existe qualquer erro imputável aos serviços da Requerida. 

87.Por outro lado, ao contrário do que afirma a Requerente, subsiste um motivo específico subjacente à CSR, em sede de diminuição da sinistralidade rodoviária.

88.A AT termina contestando o pedido do pagamento de juros indemnizatórios, os quais serão devidos apenas depois de decorrido um ano após a apresentação dos pedidos de revisão oficiosa, e não desde a data do pagamento do imposto (ac.s STA de 28.1.2015, proc. 0722/14, de 11.12.2019, proc. 058/19.9BALSB, 20.5.2020, proc. 05/19.8BALSB e de 26.5.2022, proc. 159/21.3BALSB – e, no mesmo sentido, as decisões do CAAD nos proc. 296/2020-T, 18/2021-T, 785/2020-T e 271/2021-T).

Posição da Requerente relativamente às excepções

89.Pronunciando-se relativamente às excepções invocadas pela AT, a Requerente começa por contestar a pretendida incompetência do tribunal por o art. 2.º da Portaria 112-A/2011 de 22.3 apenas considerar arbitráveis as pretensões relativas a impostos (quando a CSR será uma contribuição).

90.Invoca, em favor do seu entendimento, uma extensa jurisprudência arbitral (859/2023-T, 486/2023-T, 523/2023-T, 534/2023-T, 465/2023-T, e 374/2023-T) que afirma tratar-se de um verdadeiro imposto.

91.Responde depois, a Requerente, à invocada incompetência absoluta deste Tribunal Arbitral por via da impossibilidade de ser sindicada nesta sede a validade intrínseca dos actos normativos que constituem o regime da CSR, constantes da Lei n.º 55/200, repisando a decisão do proc. 534/2023-T.

92.Contesta, de seguida, a Requerente, a sua suscitada ilegitimidade processual e substantiva, recordando, para o efeito, os termos das decisões proferidas nos proc.os 465/2023-T (que reconhece a legitimidade dos repercutidos) e 486/2023-T (que considera que o ónus de identificação dos actos de liquidação e a prova da sua conexão com as factura de combustível caberá à AT).

93.Respondendo à excepção de ineptidão da petição a Requerente insiste que as facturas de venda de combustíveis juntas aos autos permitem apurar os montantes de CSR cuja anulação se pretende, conforme se afirmou na decisão arbitral no proc. 486/2023-T.

94.Respondendo à excepção de caducidade do direito de acção a Requerida lembra que a violação do Direito da União pela CSR, deve ser equiparada a um erro de direito e, consequentemente, considerado como um erro imputável aos serviços, pelo que beneficia do mecanismo e do prazo de quatro anos previsto no art. 78.º/1, segunda parte, da LGT, o qual foi manifestamente cumprido. Invoca, neste sentido, uma extensa jurisprudência do CAAD (proc. 486/2023-T, 523/2023-T, 534/2023-T, 465/2023-T e 374/2023-T).

 

Saneamento

95.O tribunal foi regularmente constituído e as partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e encontram-se regularmente representadas (art.os 4.º e 10.º/2 do RJAT e art. 1.º da Portaria 112-A/2011, de 22.3).

96.Não foram identificadas nulidades ou questões que obstem ao conhecimento do mérito, remetendo-se o tratamento das excepções para a análise da matéria de Direito.

 

Matéria de facto

Factos provados

97.Os factos relevantes para a decisão da causa que são tidos como assentes são os seguintes:

A.  A Requerente é uma sociedade comercial de direito português que dedica a sua actividade principal ao comércio, por grosso e a retalho, de vários tipos de produtos alimentares. 

B.  No período compreendido entre Agosto de 2019 e Dezembro de 2022, a Requerente adquiriu 1 246 030.03 litros de gasolina e gasóleo.

C.  Alegando ter sido integralmente repercutido sobre si o montante de 138 295.58 € de CSR, através das facturas emitidas pelos fornecedores a Requerente apresentou em 20 de Julho de 2023 um pedido de revisão oficiosa junto da DGAIEC, o qual deu entrada no dia seguinte, sob o n.º 2023..., junto da Alfândega do Freixieiro com o n.º de processo ...2023..., com vista à revisão das liquidações de CSR e o consequente reembolso

D. Esses pedidos foram tacitamente indeferidos.

E.  Em 14 de Fevereiro de 2024 a Requerente apresentou no CAAD o Pedido de Pronúncia Arbitral que deu origem ao presente processo.

Factos não provados

98.Com relevância para a questão a decidir, ficou por provar:

A. Quais os valores de CSR liquidados e pagos pelos sujeitos passivos;

B. Que a CSR tenha sido repercutida total ou parcialmente na Requerente;

C. Quais os efeitos económicos de tais repercussões.

99.Os factos elencados supra foram dados como provados, ou não-provados, com base nas posições assumidas pelas partes nos presentes autos, e nos documentos juntos.

100.Cabe ao Tribunal Arbitral seleccionar os factos relevantes para a decisão, em função da sua relevância jurídica, considerando as várias soluções plausíveis das questões de Direito, bem como discriminar a matéria provada e não provada (cfr. art. 123.º/2 do CPPT e art.os 596.º/1 e 607.º/3 e 4 do Código de Processo Civil - CPC, aplicáveis ex vi art. 29.º/1 a) e e) do RJAT), abrangendo os seus poderes de cognição factos instrumentais e factos que sejam complemento ou concretização dos que as Partes alegaram (cfr. art.os 13.º do CPPT, 99.º da LGT, 90.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos - CPTA e art.os 5.º/2 e 411.º do CPC).

101.Segundo o princípio da livre apreciação dos factos, o tribunal baseia a sua decisão, em relação aos factos alegados pelas partes, na sua íntima e prudente convicção formada a partir do exame e avaliação dos meios de prova trazidos ao processo, e de acordo com as regras da experiência - cfr. art. 16.º e) do RJAT e art. 607.º/4 do CPC, aplicável ex vi art. 29.º/1 e) do RJAT.

102.Somente relativamente a factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, a factos que só possam ser provados por documentos, a factos que estejam plenamente provados por documentos, acordo ou confissão, ou quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (por exemplo, quanto aos documentos autênticos, por força do art. 371.º do Código Civil), é que não domina, na apreciação das provas produzidas, o referido princípio da livre apreciação - cfr. art. 607.º/5 do CPC ex vi art. 29.º/1 e) do RJAT.

103.Além disso, não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insusceptíveis de prova e cuja veracidade que se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada, nem os factos incompatíveis ou contrários aos dados como provados.

104.O tribunal considera que as facturas das fornecedoras de combustível, apresentadas pela Requerente não identificam os originais sujeitos passivos de ISP e de CSR, não podendo substituir-se a documentos que possam comprovar a liquidação conjunta destes tributos pelos sujeitos passivos: as Declarações de Introdução no Consumo, ou o Documento Administrativo Único/Declaração Aduaneira de Importação ou documentos que, ao menos, permitissem identificar, com um mínimo de certeza, quem foram esses sujeitos passivos originários.

 

Matéria de Direito

105.Reconhece este tribunal que a CSR é um tributo que contraria a Directiva 2008/118 relativa ao regime geral dos impostos especiais de consumo.

106.De facto, pré-existindo um imposto sobre os produtos petrolíferos (o ISP), o Estado português apenas poderia fazer incidir novo imposto sobre os mesmos produtos se este tivesse em vista motivos específicos (cf. art. 1.º/1 a) e 2 da referida directiva), o que não acontece, já que a mera afectação do produto desse tributo ao financiamento da concessionária da rede rodoviária nacional não é suficiente, mesmo se associada à redução da sinistralidade e de sustentabilidade ambiental.

107.Na verdade, não existe uma relação directa entre a utilização das receitas e essas finalidades (já que o produto da CSR não se destina exclusivamente ao financiamento de operações que supostamente concorrem para a realização desses dois objectivos), nem é evidente uma real vontade de desencorajar a utilização quer da rede quer dos principais combustíveis rodoviários, pelo que subsiste uma finalidade puramente orçamental.

108.As directivas são actos através dos quais os órgãos competentes da União impõem aos Estados-membros a transposição do respectivo regime, ou seja, a adopção de actos subsequentes que adeqúem a sua ordem jurídica às regras por elas fixadas.

109.Por não se dirigirem aos particulares, entende-se genericamente que não podem ser invocadas por estes como tendo criado direitos na respectiva esfera jurídica (não têm, portanto, efeito directo).

110.A jurisprudência europeia reconheceu, todavia, uma excepção (ac. 17.12.70 SACE, proc. 33/70): tratando-se de disposições precisas e incondicionais de directivas, a não transposição destas (ou a transposição incorrecta) no prazo por elas estabelecido, permite aos particulares invocá-las contra entes públicos (efeito directo vertical), já que, caso contrário, esses entes estariam a retirar vantagem de um incumprimento das obrigações gerais face ao Direito da União, privando esses mesmos particulares de direitos que teriam sido constituídos na sua esfera jurídica se a transposição tivesse ocorrido nos termos previstos.

111.Essa será a situação em apreço: a proibição constante do art. 1.º da Directiva 2008/118 pode ser invocada pelas Requerentes para arguir a ilegalidade dos actos de liquidação de CSR que a contrariam, por não se verificarem os necessários motivos específicos.

112.Isso mesmo foi reconhecido explicitamente pelo TJUE – a quem cabe determinar em exclusivo a interpretação do Direito da União (art. 267.º TFUE) – no Despacho de 2.2.2022 (Vapo Atlantic SA c. Autoridade Tributária, proc. C-460/21).

113.Ora, o Direito da União aplica-se na ordem interna portuguesa nos termos por ele definidos (art. 8.º/4 da Constituição), sendo que esses termos determinam a sua prevalência sobre o Direito nacional, por força do princípio do primado (ac. 15.07.1964 Costa c. ENEL, proc. 6/64 e Declaração sobre o primado do direito comunitário, anexa ao TFUE).

114.Neste enquadramento, dúvidas não subsistirão quanto à ilegalidade genérica dos actos de liquidação da CSR.

115.Não obstante, no caso em apreço, são arguidas pela AT diversas excepções. A saber: a incompetência do tribunal arbitral em razão da matéria (por não se tratar de um imposto mas de mera contribuição), a ilegitimidade das Requerentes (por não serem os sujeitos passivos da CSR mas meras repercutidas), a ineptidão da petição inicial (por falta de objecto, dada a não identificação dos actos tributários cuja nulidade é arguida) e a caducidade do direito de acção (por não ser possível efectuar contagem dos prazos dado não haver identificação – e consequentemente data – dos actos de liquidação).

116.Relativamente à pretendida incompetência do tribunal arbitral reconhece-se que a Portaria de vinculação à jurisdição arbitral (Port.ª 112-A/2011 de 22.3) estabelece duas limitações: as pretensões relativas a impostos de entre aquelas que se enquadram na competência genérica dos tribunais arbitrais e a impostos cuja administração esteja acometida à AT. Conclui-se, portanto, que essa vinculação se reporta a qualquer das pretensões mencionadas no art. 2.º/1 do RJAT que respeitem a impostos, com exclusão de outros actos tributários.

117.As contribuições financeiras são tributos com uma estrutura paracomutativa, dirigidas à compensação de prestações presumivelmente provocadas ou aproveitadas pelos contribuintes, distinguindo-se das taxas que são tributos com rigorosamente comutativos e que se dirigem à compensação de prestações efectivas (Sérgio Vasques, Manual de Direito Fiscal, 2015, Coimbra, p. 287). Não há dúvidas que se distingam dos impostos.

118.No caso da CSR, esta visa financiar a rede rodoviária nacional (afectando-se, para esse efeito, as receitas dela decorrentes à Infraestruturas de Portugal SA, a qual assume esse encargo), sendo devida pelos sujeitos passivos do imposto sobre produtos petrolíferos (ISP), aplicando-se o CIEC à sua liquidação, cobrança e pagamento (nos termos do art. 5.º/1 da Lei 55/2007 de 31.8).

119.Dificilmente pode considerar-se a CSR como uma contribuição financeira, já que não tem como pressuposto uma prestação a favor de um grupo de sujeitos passivos por parte de uma pessoa colectiva. Ela é estabelecida a favor da Infraestrururas de Portugal, SA, mas os sujeitos passivos (as empresas comercializadoras de combustíveis) não são os destinatários da actividade dessa empresa (que consiste na concepção, projecto, construção, conservação, exploração, requalificação e alargamento da rede de estradas – cf. art. 3.º/2 da Lei 55/2007).

120.Inexistindo um nexo específico entre o benefício emanado da actividade pública titular da contribuição (a Intraestruturas de Portugal, SA) e os sujeitos passivos (as empresas comercializadoras de combustíveis), desaparece essa natureza de contribuição financeira, devendo, por isso, ser assumida como um imposto, para efeitos do art. 2.º/1 do RJAT.

121.Segue-se, nesta questão a orientação maioritária do CAAD, que reconhece na CSR um verdadeiro imposto e, por isso integrando a competência arbitral (por todos, v. proc. 465/2023-T).

122.A AT, ainda sobre a pretendida incompetência do tribunal arbitral, entende que este não poderá conhecer do pedido, por este pretender discutir a legalidade do regime da CSR no seu todo e a sua desconformidade com o Direito da União.

123.Este reparo assenta num evidente equívoco já que, conforme se referiu supra, a efectiva desconformidade da CSR com a Directiva 2008/118 integra a competência do tribunal arbitral, por afectar a validade das liquidações desse tributo, da mesma maneira que essa validade poderia ser afectada por desconformidade com normas de direito interno, dado o regime de vigência do Direito da União.

124.Improcede, portanto, a excepção de incompetência do tribunal.

125.Relativamente às outras excepções invocadas pela Requerida (ilegitimidade das Requerentes, ineptidão da petição e caducidade do direito de acção), abordar-se-ão conjugadamente a partir de um elemento que, da análise do processo e da jurisprudência (nem sempre convergente) que vem surgindo na matéria, parece determinante: a imprescindibilidade da identificação dos actos tributários impugnados.

126.Essa identificação, conforme se referiu supra (§ 104), não resulta das facturas dos fornecedores de combustível apresentadas pela Requerente, já que nenhuma referência nelas surge sobre originais sujeitos passivos de ISP e de CSR (os quais constarão das Declarações de Introdução no Consumo, ou do Documento Administrativo Único/Declaração Aduaneira de Importação ou eventualmente de outros documentos que lograssem tal identificação com um mínimo de certeza).

127.Ora essa identificação é imprescindível, já que a pretendida devolução dos montantes pagos em sede de CSR se funda na nulidade do acto de liquidação (que fundamenta o pedido de revisão oficiosa). E se dificilmente pode ser apreciado o vício do acto sem se demonstrar a sua existência, impossível será conferir da sua repercussão efectiva.

128.Assim, assume a Requerente que tendo as compras das mercadorias ocorrido na vigência da Lei 55/2207, a sujeição à CSR seria obrigatória, o que, genericamente se poderia aceitar – conquanto ignoremos que se trata de mera presunção de facto.

129.Todavia, o que está em questão, mais do que saber se os combustíveis em causa foram ou não presumivelmente sujeitos a CSR, será saber, também, quem terá suportado esses encargos originária e efectivamente, pois só a partir daí será possível atestar da sua existência e, além disso, conferir se foram efectivamente pagos e repercutidos na Requerente.

130.É que, não havendo repercussão legal da CSR, esse efeito não poderá presumir-se, carecendo de prova, a qual depende - novamente - da identificação dos actos tributários de liquidação originários.

131.Chega-se, assim, à ilegitimidade da Requerente, a qual, não sendo sujeito passivo, mas mero repercutido (eventuais) de facto, terá de demonstrar essa repercussão. E a prova desta só poderá fazer-se a partir dos actos tributários da liquidação da CSR. Não sendo os mesmos identificados, impossível se torna a demonstração da repercussão.

132.Atente-se ao facto de que este tribunal arbitral não afasta a possibilidade de uma eventual repercussão, mas também não dispensa a sua demonstração, a qual depende - como se referiu - da identificação dos actos tributários originais de liquidação.

133.Neste ponto, releva o argumento da AT quando salienta o risco de o pedido de devolução de CSR poder ser feito por todos os intervenientes no processo de comercialização dos combustíveis.

134.Esse risco só é controlável na medida em que, sendo identificados os actos tributários originais de liquidação, possa ser conferida a efectiva repercussão do imposto, a qual determinará o titular do direito à sua devolução, com exclusão dos demais (na medida em que tenham repercutido, a montante e não tenham sido repercutidos, a jusante, se surgirem no referido processo).

135.Neste ponto, será excessivo pretender que seja a AT a identificar os actos tributários em causa por força de um dever genérico de colaboração. Esse dever não pode equivaler (como parece pretender a Requerente) a uma verdadeira inversão do ónus da prova. E, por outro lado, nada impede que os consumidores obtenham dos seus fornecedores cópias das declarações de introdução ao consumo (DIC), ou, que estes efectuem essa mesma diligência, caso não tenham sido eles a fazer tal declaração.

136.Atente-se, finalmente, a que a referida imprescindibilidade da identificação do acto tributário se justifica ainda enquanto elemento essencial para a conferência dos prazos relevantes.

137.De facto, a contagem do prazo para o pedido de revisão oficiosa (e subsequentemente para a apresentação do pedido arbitral), dependem da identificação dos actos tributários de liquidação. Sem estes será impossível fazer-se a necessária conferência. Trata-se, conforme se referiu anteriormente, de um elemento de prova cuja produção compete ao interessado.

138.Nestes termos, entende o tribunal que, a imprescindibilidade da identificação dos actos tributários cuja declaração de nulidade é requerida faz com que a inexistência dessa identificação torne a petição inepta por falta de objecto - art. 186.º e 576.º/2 do CPC ex vi art. 29.º/1 e) do RJAT - para além de conduzir simultânea e subsidiariamente à ilegitimidade das Requerentes, tornando ainda impossível conferir da tempestividade do exercício do direito de revisão do acto e do pedido arbitral (art. 576º/2 e 3 e 577.º a)  ex vi art. 29.º/1 e) do RJAT).

139.A procedência das excepções impede o conhecimento da demais matéria da presente acção arbitral.

 

Decisão

Em face do supra exposto, decide-se:

  1. Considerar totalmente improcedente o pedido por procedência das excepções de ineptidão da petição, ilegitimidade e caducidade do direito de acção, com as consequências legais, mormente a nulidade do processo;
  2. Condenar a Requerente no pagamento integral das custas do presente processo.

 

Valor do processo

Fixa-se o valor do processo em 138.295,58 € (cento e trinta e oito mil duzentos e noventa e cinco euros e cinquenta e oito cêntimos) nos termos do disposto no art. 32.º do CPTA e no art. 97.º-A do CPPT, aplicáveis por força do disposto no art. 29.º/1 a) e b), do RJAT, e do art. 3.º/2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).

 

Custas

Nos termos da Tabela I anexa ao RCPAT, as custas são no valor de 3.060 € (três mil e sessenta euros), a pagar pela Requerente, nos termos dos art.os 12.º/2, e 22.º/4, do RJAT, e art. 4.º/5, do RCPAT.

 

Notifique-se.

Lisboa, 23 de Outubro de 2024

 

Os Árbitros,

 

 

 

Victor Calvete (Presidente, com a declaração de que, apurada a ilegitimidade da Requerente, não faria a avaliação de qualquer outra excepção, por mais evidente que fosse, e de que não subscrevo – por me parecer incompatível com o poder jurisdicional exercido no caso – nem o ponto 1 do Sumário, nem a conclusão do decisório sobre a improcedência do pedido).

 

 

António de Barros Lima Guerreiro (vogal)

 

 

 

Rui M. Marrana (vogal, relator)

 

Texto elaborado em computador.

A redacção da presente decisão rege-se pela ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.