Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 243/2024-T
Data da decisão: 2024-10-09  IRS  
Valor do pedido: € 123.996,96
Tema: IRS; cláusula geral antiabuso; amortização de quota; dividendos ocultos
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SUMÁRIO:

Sendo sobre a AT que recai o ónus da prova dos factos que invoca com pressupostos de aplicação da CGAA (artigo 74.º, n.º 1, da LGT), a mera dúvida razoável sobre a existência de um planeamento com o objetivo de obter vantagens fiscais a nível da hipotética ulterior distribuição de dividendos justifica a anulação da liquidação impugnada, por força do preceituado no artigo 100.º, n.º 1, do CPPT, não estando preenchido o requisito enunciado no artigo 63.º, n.º 3, alínea b), do CPPT, necessário para a aplicação da CGAA.

 

ACÓRDÃO ARBITRAL

Os árbitros Guilherme W. d'Oliveira Martins (Presidente) Ricardo Marques Candeias e Jónatas Eduardo Mendes Machado (vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, acordam no seguinte:

 

1RELATÓRIO

 

1. A..., NIF..., e B..., NIF ..., (doravante “Requerentes”)  com residência na Travessa da ..., n.º ..., ...-... Coimbra, notificados da decisão de indeferimento da reclamação graciosa apresentada contra o ato de liquidação de IRS de 2018, proferido pelo Diretor de Finanças de Coimbra, vieram requerer pronúncia arbitral, nos termos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro e das suas atualizações, sendo requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira,(doravante “AT”) , tendo em vista a anulação da decisão de indeferimento da reclamação graciosa n.º ...2023..., com a consequente anulação da liquidação adicional de IRS de 2018 n.º 2022..., atentos os vícios de que padecem, e a  condenação da AT a pagar aos Requerentes juros indemnizatórios sobre o valor de 123.996,96 € até integral liquidação.

 

2. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD, em 23.02.2024, e automaticamente notificado à Requerida.

 

3. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do art. 6.º e da alínea b) do n.º 1 do art. 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os três árbitros do tribunal arbitral coletivo, no dia 12.05.2024.

 

4. As partes foram devidamente notificadas dessa nomeação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do art. 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT, e dos art.s 6.º e 7.º do Código Deontológico e, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do art. 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral ficou constituído em 02.05.2024.

 

5.A AT, tendo para o efeito sido devidamente notificada, ao abrigo do disposto no artigo 17.º do RJAT, apresentou a sua resposta, em 05.06.2024, onde, por impugnação, sustentou a improcedência do pedido, por não provado, e a absolvição da Requerida.

 

6. Por ter sido requerida e ter sido considerada necessária, a audiência prevista no artigo 18.º do RJAT teve lugar no dia 27.09.2024, para ouvir as testemunhas C... e D..., Contabilista Certificada, tendo o Tribunal proferido despacho, nesse mesmo dia, concedendo às partes oportunidade para produzirem alegações finais simultâneas no prazo de 10 dias.

 

7. Findo o prazo, as partes apresentarem as suas alegações em 08.10.2024 tendo o a Requerente reiterado o essencial da sua argumentação e a Requerida rebatido alguns dos argumentos trazidos à audiência pública e pugnado pela manutenção das correções efetuadas.

 

1.1Dos factos alegados pela Requerente

 

8. No ano de 2018, a Requerente A... era uma das duas sócias da sociedade E..., Lda., NIPC ..., tendo as sócias começado, no início desse ano, a equacionar uma potencial venda das participações sociais dessa sociedade. Com este intuito começaram, em fevereiro de 2018, a desenvolver contactos com vista a encontrar um potencial comprador para a sociedade. Um dos interessados na aquisição das participações sociais foi C..., NIF..., que à data era sócio-gerente da F..., Lda., NIPC..., pessoa que as responsáveis da sociedade já conheciam bem, atenta a longa e sólida relação comercial existente entre as duas sociedades.

 

9. Perante o interesse demonstrado por C... na aquisição da sociedade, tiveram início diversas conversações e reuniões entre as partes sobre as condições do negócio de venda das participações, tendo aquele indicado que, para adquirir as participações sociais, pretendia ver cumpridas algumas das condições prévias, nomeadamente a saída da Requerente, A..., do capital social da mesma.

 

10. Concordando com as condições propostas para a operação de venda, as sócias começaram a preparar as necessárias operações societárias com vista a criar o cenário de venda da sociedade solicitado por C... . Atenta a premência da venda da sociedade, a solução que se revelava mais rápida e eficiente para atingir o cenário pretendido seria a amortização de quotas, seguida da necessária redução do capital social, decisão que foi tomada mediante deliberação social, de 28.02.2018, aprovada em assembleia universal de sócios.

 

11. Já depois de a Requerente se ter exonerado do capital da sociedade, as restantes partes envolvidas começaram a encetar contactos mais concretos sobre a venda da sociedade, chegando a preparar um contrato-promessa de cessão de quotas, por forma a fixar as condições para o idealizado negócio, embora este não se tenha concretizado, por desistência do potencial comprador C... .

 

12. Na sequência da amortização da sua quota e respetiva saída da sociedade, atento o disposto no artigo 10.º, n.º 1, alínea b), subalínea 2), do CIRS, no anexo G da declaração Modelo 3 de IRS referente ao ano de 2018 entregue pelos Requerentes em 2019, foi declarada a mais-valia decorrente da amortização da participação social e pago o correspondente valor de imposto que era devido.

 

13. Na sequência de ação inspetiva interna de âmbito parcial, dirigida pelos Serviços de Inspeção Tributária da Direção de Finanças de Leira, creditada pela Ordem de Serviço n.º OI2022..., e no âmbito da qual foi analisada a operação de amortização de quota e redução do capital social, a AT concluiu o procedimento decidindo pela aplicação da cláusula geral antiabuso prevista no artigo 38.º, n.º 2, da LGT e notificando os Requerentes da liquidação adicional de IRS n.º 2022... e correspondente acerto de contas, do qual resultou o montante de imposto a pagar de 123.966,96 €.

 

1.2Argumentos das partes

14. Os Requerentes sustentam a ilegalidade das liquidações acima mencionadas com os argumentos de facto e de direito que a seguir se sintetizam:

Direitos procedimentais

  1. Ao longo de todo o procedimento, a AT utilizou sempre a redação dos artigos 38.º, n.º 2 da LGT e 63.º do CPPT dada pela Lei n.º 30-G/2000, de 29/12 e pela Lei n.º 64-B/2011, de 30/12, respetivamente, as quais foram tacitamente revogadas pela Lei n.º 32/2019, de 03/05, que introduziu alterações muito significativas à redação quer do artigo 38.º, n.º 2, da LGT quer ao artigo 63.º do CPPT;
  2. De acordo com o n.º 3 do artigo 12.º da LGT, aplicável ex vi artigo 4.º, n.º 1, alínea a), do Regime Complementar do Procedimento de Inspeção Tributária e Aduaneira (“RCPITA”), as normas sobre procedimento e processo são de aplicação imediata, sem prejuízo das garantias, direitos e interesses legítimos anteriormente constituídos dos contribuintes;
  3. À data em que o procedimento inspetivo se iniciou (2022), eram as “novas” redações dos artigos 38.º da LGT e 63.º do CPPT dadas pela Lei n.º 32/2019 que estavam em vigor e não as redações dadas pela Lei n.º 64-B/2011, de 30/12, ao contrário do que foi concretizado pela AT ao longo de todo o procedimento inspetivo;
  4. No procedimento inspetivo instaurado aos Requerentes, a AT aplicou a antiga redação dos artigos 38.º, da LGT, e 63.º, do CPPT, por forma a justificar o facto de não ter sido instaurado qualquer procedimento inspetivo à sociedade E..., Lda., mas apenas aos alegados beneficiários do rendimento, os aqui Requerentes, violando o princípio da legalidade;
  5. Não poderia ter sido aplicada a anterior redação, pois a nova versão do 63.º do CPPT, introduziu uma nova redação das alíneas do n.º 3, acrescentando a nova alínea d), bem como uma nova redação do n.º 4 e das alíneas a) e b) do mesmo, sendo certo que, da nova alínea b), do n.º 4, do artigo 63.º do CPPT, resulta que, nos casos em que seja aplicável o disposto no artigo 38.º, n.º 5 da LGT, concretamente, as regras sobre o instituto da substituição tributária, é condição necessária para a aplicação da CGAA, que seja também instaurado um procedimento inspetivo à entidade sobre a qual incide a responsabilidade tributária decorrente do instituto da substituição tributária, consubstanciando um vício que afeta todo o procedimento e, consequentemente, a validade das correções promovidas no relatório final, traduzido numa violação dos artigos 8.º, 12.º, n.º 3, 38.º, n.º 2 e 55.º, todos da LG,  e, ainda, do próprio artigo 63.º do CPPT;
  6. Para além disso, não tendo sido exercido o direito de audição no âmbito do procedimento inspetivo, os Requerentes ainda não tinham participado em nenhum procedimento referente ao IRS do período de 2018, um sinal evidente de que a realização do direito de audição em sede de procedimento de reclamação graciosa não constituía um ato dilatório ou inútil, bem pelo contrário;
  7. Na reclamação graciosa apresentada foi requerida a inquirição de C..., potencial comprador das participações sociais que tinha conhecimento direto do contexto de preparação da venda das mesmas, dado que o seu testemunho se revelava essencial para o apuramento da verdade material, mormente, para explicitar o contexto e pressupostos inerentes à operação de amortização de quota e redução do capital social, mas esta diligência nunca se realizou;
  8. A limitação dos meios de prova no âmbito do procedimento de reclamação graciosa prevista na alínea e) do artigo 69.º do CPPT não impõe uma restrição a outros meios de prova que não a documental, devendo a AT fundamentar a recusa de outros meios de prova na decisão final;
  9. Nos termos do n.º 7, do artigo 60.º, da LGT, os novos elementos suscitados na audição dos contribuintes devem obrigatoriamente ser tidos em consideração na fundamentação da decisão da Administração, o que não se verificou, já que os elementos carreados pelos Requerentes não foram sequer mencionados nem apreciados pela AT na decisão final sobre a reclamação graciosa apresentada;

Cláusula-Geral Antiabuso

  1. Resulta do artigo 54.º, n.º 1, do Código das Sociedades Comerciais (CSC) que, em qualquer tipo de sociedade, os sócios podem tomar deliberações unânimes por escrito, e bem assim reunir-se em assembleia geral, sem observância de formalidades prévias, desde que todos estejam presentes e todos manifestem a vontade de que a assembleia se constitua e delibere sobre determinado assunto;
  2. A validade formal e substancial de uma deliberação social sujeita a registo é sempre objeto de controlo prévio pela Conservatória do Registo Comercial que leva a mesma a registo;
  3. Do artigo 94.º, do CSC, que respeita aos pressupostos formais para as convocatórias de assembleia geral de sócios na qual se preveja a discussão de uma deliberação sobre a redução do capital de uma sociedade, não decorre uma qualquer condição substantiva da validade jurídica de uma deliberação social de redução do capital social, mas, outrossim, indicações sobre o conteúdo da convocatória de assembleia geral na qual se preveja a discussão de deliberação social de redução do capital social;
  4. No artigo 94.º n.º 1, alínea a), do CSC o legislador não oferece qualquer definição do conceito de “finalidade especial”, nem tampouco oferece uma qualquer listagem taxativa que permita ao intérprete aplicador concretizar e limitar esse conceito;
  5. Tendo as deliberações sociais tomadas pelas então sócias da sociedade e refletidas na ata n.º 47 sido discutidas e aprovadas por unanimidade em assembleia universal de sócios, não se vislumbra que, quer a constituição da assembleia geral, quer a aprovação das referidas deliberações, padeçam de qualquer ilegalidade, já que a sua validade foi devidamente verificada pela Conservatória do Registo Comercial que procedeu ao seu registo;
  6. Se a AT reconhece que uma das finalidades especiais admitidas pelo CSC para a redução do capital social é a saída de algum dos sócios do capital social (artigo 232.º, do CSC) não pode depois ignorar que a sócia A... se desvinculou do capital social através da amortização integral da sua quota para sustentar que tudo não passou de um “planeamento fiscal abusivo” que visou frustrar os fins do ordenamento jurídico-tributário;
  7. Não foram distribuídos resultados pela sociedade à Requerente, tendo-lhe sido paga a quantia a que tinha direito como contrapartida da amortização da sua quota, sendo que esse montante foi efetivamente tributado em sede de IRS, a título de rendimento decorrente de mais-valias;
  8. Não se verificou abuso de formas jurídicas, nem tão pouco a inexistência de verdadeira substância económica subjacente às operações societárias praticadas, porque a operação de amortização onerosa de quota e subsequente redução do capital social é uma operação absolutamente válida no plano societário, tendo, no caso em apreço, um verdadeiro substrato comercial válido, ou seja, a venda da sociedade;
  9. Sendo sobre a AT que recai o ónus da prova dos factos que invoca com pressupostos de aplicação da cláusula geral antiabuso (artigo 74.º, n.º 1, da LGT), a mera dúvida sobre a existência de um planeamento com o objetivo de obter vantagens fiscais a nível da hipotética ulterior distribuição de dividendos justificaria a anulação das liquidações, por força do preceituado no artigo 100.º, n.º 1, do CPPT, não estando preenchido o requisito enunciado no artigo 63.º, n.º 3, alínea b), do CPPT, necessário para a aplicação da CGAA;
  10. De acordo com o disposto no artigo 40.º-A, n.º 1, do CIRS, os lucros devidos por pessoas coletivas sujeitas e não isentas de IRC são, no caso de opção pelo englobamento, considerados em apenas 50% do seu valor, sendo que o n.º 2 do mesmo artigo estabelece que o n.º 1 é aplicável se a entidade devedora dos lucros ou que é liquidada tiver a sua sede ou direção efetiva em território português e os respetivos beneficiários residirem neste território;
  11. Nesse caso, mesmo que seja aplicável à coleta de IRS a taxa máxima de imposto – 48% – a taxa de tributação desses rendimentos seria de 24%, ao contrário do que sugere a AT no RIT. Sendo certo que, nos termos da redação em vigor até dezembro de 2018 do artigo 71.º, n.º 5 e 6, do CIRS, a retenção que tiver sido efetuada assumia a natureza de pagamento por conta do imposto devido a final;
  12. Estando estes rendimentos sujeitos a retenção na fonte, à taxa de 28%, ao abrigo do disposto no artigo 71.º, n.º 1, alínea a), do CIRS, o dever de reter o imposto que seja devido e proceder à sua entrega ao Estado cabe, nos termos do disposto nos artigos 103.º, do CIRS, e 28.º, da LGT, à entidade responsável pelo seu pagamento aos beneficiários dos mesmos, isto é, à sociedade E..., Lda.;
  13. A AT olvida por completo o instituto da substituição tributária consagrado através do mecanismo de retenção na fonte, ao abrigo do qual sempre seria a sociedade devedora dos rendimentos a responsável primária pela liquidação e entrega ao Estado dos montantes de imposto que seriam devidos a título de retenção na fonte em sede de IRS, e não aos substitutos tributários, no caso concreto, a Requerente A...;
  14. Deve ser anulada a decisão de indeferimento da reclamação graciosa, com a consequente a anulação da liquidação adicional de IRS aqui em crise, atentos os erros sobre os pressupostos de facto e de direito de que padecem e já supra explanados;
  15. Nos termos do artigo 43.º, n.º 1 da LGT e 24.º, n.º 5 do RJAT, estando em causa uma situação em que, por erro imputável aos serviços, in casu, violação do disposto nos artigos 12.º, n.º 4, 38.º, n.º 2 e 74.º da LGT, 63.º do CPPT, 10.º, 43.º e 48.º todos do CIRS, o ato de liquidação de IRS resultou em montante de imposto pago em excesso, acrescido de juros compensatórios também estes indevidos, tendo os Requerentes o direito a receber a juros indemnizatórios, contados desde da data em que foi emitida a nota de liquidação de IRS pela Requerida e até à emissão da correspondente nota de liquidação corrigida e consequente nota de acerto de contas.

 

15. A AT defende a manutenção do ato impugnado com base nos fundamentos sinteticamente elencados:

Procedimento

  1. Durante o procedimento inspetivo, os factos tributários foram analisados tendo em conta a redação vigente no ano de 2018 (Leis n.ºs 30-G/2000 de 29/12 e 64-B/2011, de 30/12, para os artigos 38.º da LGT e 63.º do CPPT respetivamente), uma vez que, à data da ocorrência dos mesmos, a Lei n.º 32/2019, de 03/05 não estava em vigor, sob pena de violação do principio da não retroatividade da lei fiscal e da CRP (art.º 103.º, n.º 3, da CRP, art.º 12.º, n,º 1, da LGT);
  2. A Lei n.º 32/2019, de 03.05 veio transpor, em Portugal, a Diretiva Anti-elisão Fiscal (UE) 2016/1164 do Conselho, de 12.07.2016, tendo sido introduzidas alterações ao n.º 2 do artigo 38.º da LGT e no n.º 3, do artigo 63.º, do CPPT que, tendo entrado em vigor em 04.05.2019, vieram dar corpo às prioridades definidas ao nível da União Europeia, definindo e alargando conceitos (fala-se agora em a construção ou série de construções) e introduzindo penalizações até então não existentes, como por exemplo a majoração em 15 pontos percentuais dos juros compensatórios (n.º 6 do artigo 38.º da LGT);

CGAA

  1. O combate ao planeamento fiscal abusivo constitui uma prioridade na União Europeia, sendo que as regras gerais antiabuso servem para combater a erosão das bases tributáveis no mercado da UE, tendo como função colmatar lacunas existentes nas leis, devendo ser aplicadas a montagens que não sejam genuínas;
  2. A dispensa do direito de participação consignado no artigo 60.º da LGT justifica-se considerando o disposto no artigo 57.º da LGT, que proíbe a prática de atos inúteis ou dilatórios, e no n.º 3 da Circular n.º 13/1999, pois a administração tributária limitou-se, na sua decisão, a fazer a interpretação das normas legais aplicáveis ao caso, conhecendo a Requerente todos os factos em discussão, e tendo já tido oportunidade de sobre eles se pronunciar, no âmbito do direito de audição facultado no procedimento inspetivo, e na petição inicial;
  3. Nos termos do artigo 69.º do CPPT, na Reclamação Graciosa (de que resultou o despacho objeto deste pedido de pronuncia arbitral), vigoram como regras fundamentais a simplicidade, a dispensa de formalidades essenciais e a limitação dos meios probatórios à forma documental e aos elementos oficiais de que os serviços disponham, sem prejuízo do direito de o órgão instrutor ordenar outras diligências complementares manifestamente indispensáveis à descoberta da verdade material;
  4. Nos termos dos artigos 58.º e 72.º, da LGT, o órgão instrutor pode utilizar para o conhecimento dos factos necessários à decisão do procedimento, todos os meios de prova admitidos em direito tendo em vista à descoberta da verdade material, não estando sujeito à iniciativa do autor do pedido, não sendo a AT obrigada a realizar todas as diligências requeridas pelos contribuintes, se entender que as mesmas diligências não acrescentam nada aos factos já apurados;
  5. O sentido do n.º 2, do artigo 38.º, da LGT, na redação dada pela Lei n.º 30-G/2000 de 29/12 vigente à data dos factos, consiste na aplicação da CGAA como medida de prevenção e combate à fraude e evasão fiscais e destina-se a combater o chamado planeamento fiscal abusivo, que resulta da contradição entre as formas jurídicas adotadas pelas partes na realização de determinado ato ou negócio jurídico e os verdadeiros fins económicos desse ato ou negócio;
  6. O n.º 1, do artigo 63.º, do CPPT, na redação dada pela Lei n.º 64-B/2011, de 30/12, e vigente à data dos factos, determina que a liquidação de tributos com base na disposição antiabuso constante do n.º 2, do artigo 38.º, da LGT, segue os termos previstos neste artigo, incluindo o n.º 3 que refere os termos da fundamentação do projeto e da decisão de aplicação da CGAA;
  7. As correções/apuramentos relativas aos rendimentos de capitais - Cat. E nos termos do n.º 4, do artigo 65.º, do CIRS, foram refletidas na esfera jurídico-tributária do titular dos rendimentos de capitais (dividendos) auferidos pela ora Requerente, enquanto beneficiária efetivo dos dividendos, não constituindo as conclusões da AT inversão de ónus de prova em direta violação dos artigos 74.º da LGT e 63.º do CPPT, porquanto, nos termos do artigo 77.º da LGT, a decisão de procedimento é sempre fundamentada pelas razões de facto e de direito que a motivaram;
  8. A AT fundamentou de facto e de direito as correções efetuadas (conforme descrito nos pontos V do RIT) nos termos referidos no art.º 77º da LGT, contendo todos os factos relevantes para a decisão, bem como o itinerário cognoscitivo e valorativo seguido;
  9. Os factos tributários em discussão resultam das conclusões do procedimento inspetivo realizada pela DF de Leiria credenciado pela ordem de serviço nº OI2022... de 25.07.2022, realizado pelo facto de ter sido declarada a amortização de quota da sociedade E... Lda., NIPC..., com redução de capital social no valor de 25.000€, de que era detentora a Requerente,  A..., que recebeu em troca o valor de 743.957,96€, tendo-se concluído que a referida amortização de quota consubstanciava, na prática, uma distribuição de resultados não declarada, beneficiando indevidamente os sujeitos passivos de tributação claramente mais favorável e desadequada ao facto tributário descoberto;
  10. A Ata nº 47 de 28.02.2018, não referiu claramente os motivos pelos quais é deliberada amortização de quotas com redução de capital, considerando-se apenas que a mesma ocorreu “(…) nos termos do artigo 7.º dos Estatutos da Sociedade e 232.º e seguintes do Código das Sociedades Comerciais”;
  11. A operação de amortização com redução de capital da sociedade (conforme consta no RIT) não se destinou a cobertura de prejuízos uma vez que a sociedade apresentava valores excessivos decorrentes da sua política de retenção de lucros;
  12. A situação líquida da sociedade, que corresponde ao valor dos capitais próprios não é inferior à soma do capital e da reserva legal, pelo que, não ocorre a finalidade especial (artigos 236.º, n.º 1 e artigo 188.º, n.º 1 do CSC), verificando-se que a quota da Requerente estava integralmente realizada, pelo que, não ocorreu a extinção das obrigações de entradas diferidas de capital, inicial ou provenientes de aumento de capital (artigo 27.º, n.º 1 do CSC), a Requerente se desvinculou do capital social da sociedade e não houve cisão;
  13. A norma do artigo 94.º do CSC não é uma norma referente ao conteúdo das convocatórias de assembleias gerais de sócios em que se preveja discutir deliberações sociais de redução de capital, mas uma norma referente à validade substantiva das deliberações sociais de redução do capital social;
  14. A expressão “finalidade especial”, decorrente da alínea a), do n.º 1, do artigo 94.º do CSC, limita-se a quatro hipóteses, a saber: a) extinção das obrigações de entrada diferidas de capital, inicial ou provenientes de aumento de capital; b) amortização de quotas ou de partes de capital, em sociedades por quotas ou em nome coletivo, se a situação líquida da sociedade daquelas sociedades for inferior à soma do capital social e da reserva legal ou se sair algum dos sócios; c) cisão da sociedade; d)  extinção e anulação de ações próprias, sendo que uma deliberação de redução do capital social que não se enquadre numa, se aprovada, não terá substância económica válida;
  15. Não se descortina que a amortização total da quota que determinou a redução do capital social em 25.000,00 € seja justificável no plano da racionalidade económica e da atividade empresarial, tanto mais que não se enquadra em nenhuma das situações previstas em que a mesma é admitida pelo direito societário;
  16. Ocorre uma contradição entre a amortização da quota e a constituição simultânea de prestações suplementares, considerando que, se por um lado reduz o capital social, em simultâneo, delibera-se a entrada de prestações suplementares em 200.000,00€, sendo que estas são parte integrante do capital próprio e representam um reforço do capital subscrito, podendo ser restituídas se os sócios deliberarem sobre tal e desde que o capital próprio não fique inferior à soma do capital e da reserva legal;
  17. As relações familiares entre os vários sócios intervenientes nas operações societárias justifica, não só esta aparente desregulação na forma como as operações foram realizadas, como evidenciam também o caracter de artificialidade das mesmas;
  18. Não tendo a operação enquadramento no direito societário, conclui-se que a mesma visou transferir para a esfera da sócia e ora Requerente os resultados positivos acumulados, porquanto desprovida de racionalidade económica e consequentemente, configura distribuição de lucros ou rendimento de capitais (Cat. E), no valor de 743.957,96€, de acordo com a norma de incidência prevista no nº. 1 e alínea h), do n.º 2, do artigo 5º, do CIRS;
  19. Assim sendo, incumbe à AT de considerar ineficaz (em termos fiscais/tributários), a qualificação como amortização de quota com redução de capital do sujeito passivo e ora Requerente (no total de 743.957,96€ em 2018), requalificando-a como dividendos distribuídos pela sociedade E... Lda., NIPC..., ocorrendo, assim, a tributação de acordo com as normas aplicáveis, nos termos da alínea h), do n.º 2, do artigo 5º, artigos 40.º-A, n.º 1 e 72.º n.ºs 1 alínea d), ambos do CIRS (Rendimentos de Categoria E – Capitais), não se produzindo as vantagens fiscais referidas, tal como dispõe o n.º 2 do artigo 38.º da LGT, devendo o valor da contraprestação recebida pela Requerente ser tributado em sede de categoria E de IRS, a uma taxa especial de 28 %; com possibilidade de englobamento;
  20. Tanto no procedimento inspetivo, como em sede de reclamação graciosa, os requerentes não manifestaram a opção pelo englobamento dos rendimentos, razão pela qual a mesma não foi considerada;
  21. Não há direito a juros indemnizatórios nos termos previstos no art.º 43º nº1 da LGT, uma vez que não se vislumbra erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.

 

1.3. Saneamento  

 

 

16. O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, nos termos n.º 1 do artigo 10.º do RJAT e as partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e mostram-se devidamente representadas.

 

17. O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído (artigos 5.º, n.º 2, 6.º, n.º 1, e 11.º do RJAT), e é materialmente competente (artigos 2.º, n.º 1, alínea a) do RJAT), de acordo com os fundamentos infra. 

 

18. O processo não padece de nulidades podendo prosseguir-se para a decisão sobre o mérito da causa.

 

2FUNDAMENTAÇÃO

2.1Factos dados como provados

 

19. Com base nos documentos trazidos aos autos são dados como provados os seguintes factos relevantes para a decisão do caso sub judice:

 

  1. Mediante deliberação social de 28.02.2018, aprovada em assembleia universal de sócios, conforme ata n.º 47 da sociedade E..., Lda., foi tomada decisão de amortização das quotas; (Doc. n. º1)
  2. É elaborado um projeto de contrato-promessa de cessão de quotas, por forma a fixar as condições para o idealizado negócio; (Docs.º 2 e 3)
  3. O contrato-promessa não chegou a ser a ser assinado porque, entretanto, a negociação havia soçobrado; (Audiência do artigo 18.º do RJAT)
  4. O Requerente B..., cônjuge da Requerente, nunca fez parte do capital social da sociedade E..., Lda., (Anexo 1 ao RIT);
  5. No anexo G da declaração Modelo 3 de IRS referente ao ano de 2018 entregue pelos Requerentes em 2019, foi declarada a mais-valia decorrente da amortização da participação social e pago o correspondente valor de imposto que era devido;
  6. Foi realizada uma ação inspetiva interna de âmbito parcial, dirigida pelos Serviços de Inspeção Tributária da Direção de Finanças de Leira, creditada pela Ordem de Serviço n.º OI2022...;
  7. A AT notificou os Requerentes da liquidação adicional de IRS n.º 2022 ... e correspondente acerto de contas, do qual resultou o montante de imposto a pagar de 123.966,96 €;
  8. Em 24.01.2023 os Requerentes pagaram o imposto liquidado no montante de 123.966,96 €; (Doc. n.º 4)
  9. Os Requerentes apresentaram reclamação graciosa contra a liquidação adicional de IRS aqui em crise, a que foi atribuído o n.º ...2023...; (Doc. n. º 5) À
  10. A referida reclamação graciosa foi indeferida por decisão final datada 17.11.2023, notificada através do Ofício n.º 2023... . (Doc. n.º 6)

 

 

 

2.2Factos não provados

 

20. Com relevo para a decisão do caso, como resulta da fundamentação do presente ac

Cordão, não foi dado como provado que a amortização de quotas em causa foi realizada com a finalidade principal ou uma das finalidades principais de obter uma vantagem fiscal não conforme com o objeto ou a finalidade do direito fiscal aplicável.

 

2.3Motivação

 

21. Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da matéria não provada (cf. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

 

22. Os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis das questões objeto do litígio (v. 596.º, n.º 1, do CPC, ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

 

2.4Questão decidenda

 

23. A questão decidenda prende-se com a legitimidade da aplicação da CGAA do artigo 28.º, n.º 2, da LGT, a uma operação de amortização de quota, estando em causa saber se a mesma consubstanciou uma distribuição oculta de dividendos aos sócios, isto é, se foi realizada com a finalidade principal ou uma das finalidades principais de obter uma vantagem fiscal não conforme com o objeto ou a finalidade do direito fiscal aplicável.

 

24. De acordo com o disposto no Código das Sociedades Comerciais (CSC), as deliberações dos sócios, obedecem ao princípio da taxatividade, podendo ser tomadas em assembleia-geral convocada (artigo 189.º, n.º 1, artigo 247.º, n.º 1, in fine, artigo 373.º, n.º 1, e artigo 472.º, n.º 1), em assembleia universal (artigo 54.º, n.º 1, 2.ª parte) e por escrito, em unanimidade (artigo 54.º, n.º 1, 1.ª parte). Nas assembleias-gerais convocadas, as formalidades exigidas por lei – artigo 248.º, n.º 3, do CSC – ou pelo contrato tutelam interesses dos sócios e não de terceiros, pelo que a nulidade decorrente da falta de tal convocatória não subsiste se todos os sócios estiverem presentes ou representados e manifestarem a vontade de que a assembleia se constitua e delibere sobre determinado assunto (artigos 54.º, n.º 1, e 56.º do CSC)[1].

 

25. Assim, insista-se, o artigo 54.º, n.º 1, do CSC admite que, em qualquer tipo de sociedade, os sócios possam tomar deliberações unânimes por escrito, e, bem assim, reunir-se em assembleia geral, sem observância de formalidades prévias, desde que todos estejam presentes e todos manifestem a vontade de que a assembleia se constitua e delibere sobre determinado assunto. O mesmo permite, respetivamente, que a vontade social se manifeste fora do conclave ou em assembleia não regularmente convocada, ou sobre assunto não previamente tabelado. Assim sendo, não se aplica in casu o artigo 94.º do CSC, sobre a convocatória da assembleia, na medida em que assembleia universal de sócios, por definição, não carece de convocatória.

 

26. Com efeito, a assembleia universal pressupõe a presença de todos os sócios – pessoalmente ou devidamente representados por mandatário com poderes especiais – estando ínsito o propósito de deliberar sobre assuntos de interesse para a sociedade e a existência de acordo unânime em deliberar sobre determinado assunto[2]. Nela estão cumpridos os objetivos inerentes às normas sobre o tempo, o modo e o conteúdo das convocatórias. Entende-se que os direitos e interesses dos sócios ficam inteiramente salvaguardados quando se verifica a presença de todos e existe a oportunidade dialética de troca de argumentos e contra-argumentos em torno dos assuntos em discussão.  

 

27. Assim sucedeu no caso concreto, na deliberação social da redução do capital social aprovada, no dia 28.02.2018, em assembleia universal de sócios da sociedade E..., Lda. Nessa reunião, foi deliberada a amortização total da quota em nome da sócia A... e amortização parcial da quota em nome da sócia G...– as duas únicas sócias, cada uma delas com uma quota no valor nominal de 25.000,00€ – sendo que após a amortização da quota da sócia A... o capital social da sociedade passou a ser de 25.000,00€ composto por uma só quota titulada por  G..., ocorrendo, em ato sequencial, amortização parcial desta quota que determinou que o capital passasse para 6.084,00€.

 

28. Os artigos 232.º e seguintes do CSC admitem a possibilidade de amortização total ou parcial das quotas por deliberação unânime dos sócios – fazendo aplicar as normas sobre a exoneração dos sócios –, com a devida contrapartida pelo valor da liquidação da quota, calculado nos termos do artigo 105.º, n.º2, do CSC – que remete para o artigo 1021.º do Código Civil – com referência à data em que o sócio declare à sociedade a intenção de se exonerar, que é, no caso em apreço, a data da deliberação em assembleia universal de sócios. 

 

29. As deliberações sociais tomadas pelas então sócias da sociedade e refletidas na ata n.º 47 foram discutidas e aprovadas por unanimidade em assembleia universal de sócios, não se vislumbrando que, quer a constituição da assembleia geral, quer a aprovação das referidas deliberações, padeçam de qualquer ilegalidade, tanto mais quanto é certo que a sua validade foi devidamente verificada pela Conservatória do Registo Comercial que procedeu ao seu registo, tendo o montante pago como contrapartida da amortização sido efetivamente tributado em sede de IRS, a título de rendimento decorrente de mais-valias. Isto, sem prejuízo de a validade jurídico-comercial de uma operação, por si só, não se traduzi necessariamente num juízo normativo positivo em sede jurídico-tributária.

 

30. Atendendo aos valores entregues às sócias, esteve bem a AT quando – com base no chamado “smell test” – decidiu encarar a transação sob suspeita e colocar a CGAA do artigo 38.º, n.º 2, da LGT, em situação de alerta máximo, cláusula essa que, na redação vigente à data dos factos, dizia serem ineficazes no âmbito tributário os atos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, atos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios, efetuando-se então a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as vantagens fiscais referidas[3].

 

31. Recorde-se que à sócia A... foi entregue o valor de 743.957,96€ (25.000,00€ relativos à restituição do capital investido e 718.957,96€ respeitante aos lucros não distribuídos) e à sócia G... foi entregue a quantia de 562.836,28€ (18.916,00€ relativo à restituição do capital investido e 543.920,28€ correspondentes aos lucros não distribuídos ao longo dos anos). Aparentemente, o IRS devido pela distribuição de lucros no valor de 743.957,96€ seria de 208.308,23€ e o IRS devido pela amortização de quota com redução de capital foi no valor de 99.219,11€, permitindo uma poupança/vantagem fiscal de 109.089,12€, resultante da diferença entre os dois valores.

 

32. Qualquer fiscalista responsável não hesitaria, numa análise prima facie, em ver nessa operação de amortização da quota uma estratégia artificiosa e abusiva de ocultação de uma distribuição de dividendos acumulados, suscetível de se repercutir negativamente na base tributária. Sucede, todavia, que a aplicação da CGAA não pode assentar unicamente numa análise prima facie, exigindo uma análise completa, contextual e definitiva da operação sub judice e das suas motivações, em ordem a indagar se as mesmas serviam algum propósito comercial com substância económica.

 

33. É certo que a AT, valendo-se certamente da lógica da transação por passos (step transaction), chamou a atenção, com toda a pertinência, para o facto de que o contrato promessa apresentado não continha qualquer assinatura e um dos e-mails alegadamente trocados na altura da negociação e preparação da alienação da sociedade E..., Lda nem sequer tinha sido entregue ao seu destinatário, fortalecendo a sua convicção de que a amortização das quotas não era o objetivo pretendido, mas sim a distribuição oculta ou indireta de resultados, tanto mais que pouco depois se verificou a um aumento de capital. 

 

            34. No entanto, na audiência de julgamento o presente tribunal teve a oportunidade de ouvir as testemunhas a explicarem, com suficiente plausibilidade racional, que a amortização das quotas de devera ao facto de, atendendo à idade avançada e ao cansaço físico e doença do Senhor H..., ter sido preparada em reuniões com ele e a sua esposa G... a alienação da sociedade E..., Lda. ao senhor C..., um potencial comprador com o qual aqueles tinham um historial de relações comerciais – ambas as sociedades se dedicavam a obras na parte de eletricidade especializando-se em tensões diferentes – pretendendo este reservar para si a totalidade do capital social, o que obrigava à sua redução através da amortização de quotas, especialmente da quota da sócia A..., cuja saída da sociedade se preconizava porque esta se mantinha totalmente alheada da atividade económica da sociedade e com a qual o senhor C... não mantinha qualquer relação pessoal, profissional ou comercial. O valor da sociedade era muito elevado, pelo que,  juntamente com a Contabilidade, tentou-se encontrar uma solução para diminuir o valor da mesma e, em consequência, o preço do negócio ficar mais baixo, o que passaria pela amortização das quotas.

 

            35. Por razões que se prenderam essencialmente com a necessidade previsível e indesejável de partilha de espaço físico (i.e. escritório e estaleiro) entre a sociedade E..., Lda e uma outra sociedade comercial, o potencial adquirente C... decidiu não levar avante a operação – dada impraticabilidade da solução – o que explica o facto de o contrato promessa de alienação da sociedade não ter sido assinado. Não sendo propriamente uma justificação habitual, o presente tribunal, diante da substância e da forma do depoimento, decidiu conceder-lhe o benefício da dúvida. Do mesmo modo, a necessidade de acudir urgentemente a necessidades de tesouraria resultantes da drástica redução do capital da empresa motivado pela amortização das quotas explica a necessidade de prestações suplementares, no valor de 200 000€, que se fez sentir pouco depois dessa operação.

 

36. Estes dados factuais são relevantes – uma vez explicados pelas testemunhas através de um discurso internamente coerente, externamente consistente e factualmente congruente – na medida em que permitem contextualizar e plausibilizar a operação de amortização de quotas num quadro mais amplo da negociação da alienação de uma sociedade por um potencial adquirente –C...– que seria gorada por razões económicas de inviabilidade comercial e impraticabilidade operacional.

 

37. No seu conjunto, os esclarecimentos prestados na audiência do artigo 18.º do RJAT – cuidadosamente analisados e ponderados por este tribunal – enfraquecem a aplicação dos elementos intencionais e estratégicos (fim/meio) da CGAA avançada pela AT, evidenciando a razoabilidade do fim económico prosseguido pela E..., Lda. (alienação) e dos meios escolhidos para a respetiva prossecução (amortização de quotas) e lançando dúvidas razoáveis sobre a resultante conclusão da AT – que esteve na base da liquidação impugnada – de que se estaria diante um negócio jurídico essencial ou principalmente dirigido, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos.

 

38. Na verdade, não existem fundamentos suficientes para sustentar uma aplicação ao caso da CGAA, em face dos requisitos exigidos pela lei. Conclui-se, assim, que não se verifica um dos pressupostos de facto de que depende a aplicação da cláusula geral anti abuso, que é o ato ou negócio ter sido essencial ou principalmente dirigido à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos. À face do artigo 38.º, n.º 2, da LGT, quando esta norma refere que, para aplicação da cláusula geral anti abuso, os negócios devem ser dirigidos à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos, não basta que sejam obtidas vantagens fiscais, sendo antes indispensável que a obtenção destas tenha sido um objetivo essencial ou principal visado pelo contribuinte. Ora é a prova da essencialidade desse objetivo para finalidades de menor tributação, o que, no caso, não se afigura evidente.

 

39. Sendo sobre a AT que recai o ónus da prova dos factos que invoca com pressupostos de aplicação da CGAA (artigo 74.º, n.º 1, da LGT), a mera dúvida sobre a existência de um planeamento com o objetivo de obter vantagens fiscais a nível da hipotética ulterior distribuição de dividendos justificaria a anulação das liquidações, por força do preceituado no artigo 100.º, n.º 1, do CPPT, não estando preenchido o requisito enunciado no artigo 63.º, n.º 3, alínea b), do CPPT, necessário para a aplicação da CGAA.

 

40. Ora, a dúvida suscitada pela prova testemunhal relativamente à tese da AT segundo a qual a operação era destituída de substância económica (economic substance) e propósito comercial (business purpose) – que esteve na base da aplicação da CGAA do artigo 38.º, n.º 2, da LGT – afigura-se decisiva, no caso concreto, visto que, nos termos do artigo 100.º, n.º1, do CPPT, “[s]empre que da prova produzida resulte a fundada dúvida sobre a existência e quantificação do facto tributário, deverá o ato impugnado ser anulado.”

 

            41. De acordo como a lógica subjacente ao artigo 124.º do CPPT, respeitante à ordem de conhecimento dos vistos, o presente coletivo entende que esta conclusão a que chegou prejudica a necessidade de conhecer das questões suscitadas e relacionadas, respeitantes ao direito de audição em sede de reclamação graciosa, aos tramites do procedimento inspetivo, à consideração da substituição tributária e à aplicabilidade de uma ou outra redação dos artigos 38.º, n.º 2, da LGT, e 63.º do CPPT (i.e. Lei n.º 30-G/2000, de 29/12, Lei n.º 64-B/2011, de 30/12 ou Lei n.º 32/2019, de 03/05), na medida em que o presente tribunal arbitral, ao sobrepor um juízo material de invalidade do ato tributário em discussão aos juízos de natureza procedimental que eventualmente pudessem vir a ser formulados, decide de modo a conferir uma tutela mais estável e eficaz dos contribuintes.

 

42. Nos termos do artigo 43.º, n.º 1, da LGT, e 24.º, n.º 5 do RJAT, estando em causa uma situação em que, por erro imputável aos serviços, in casu, violação do disposto nos artigos 38.º, n.º 2 e 74.º da LGT, 63.º do CPPT, o ato de liquidação de IRS resultou em montante de imposto pago em excesso, acrescido de juros compensatórios também estes indevidos, tendo os Requerentes o direito a receber a juros indemnizatórios, contados desde da data em que foi emitida a nota de liquidação de IRS pela Requerida e até à emissão da correspondente nota de liquidação corrigida e consequente nota de acerto de contas, para a reconstituição da situação atual hipotética nos termos do artigo 100.º, n.º1, da LGT.

 

 

3DECISÃO

 

 

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral:

 

  1. Anular a decisão de indeferimento da reclamação graciosa n.º ...2023...;
  2. Anular a liquidação adicional de IRS de 2018 n.º 2022 ...;
  3. Condenar a Requerida a pagar aos Requerentes juros indemnizatórios sobre o valor de 123.996,96 € até integral liquidação.

 

4VALOR DO PROCESSO

 

Fixa-se o valor do processo em 123.996,96€, nos termos do artigo 306.º, n.º 1 do CPC e do 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, interpretados em conformidade com o artigo 10.º, n.º 2, alínea e), do RJAT.

 

5CUSTAS

 

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em 3 060,00€[4], a cargo da Requerida, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e do artigo 4.º, n.º 4, do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária e da Tabela I anexa ao mesmo.

 

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 9 de outubro de 2024

 

Os Árbitros

 

 

 

Guilherme W. d'Oliveira Martins 

(Presidente)

 

 

Ricardo Marques Candeias

(Vogal)

 

 

 

Jónatas E. M. Machado

(Relator)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 



[1] Nestes termos, o Acórdão do STJ n.º 1352/08.0TYLSB.L1.S1, de 03.04.2014.

[2] Acórdão do STJ, n.º 06A1106, de 18.05.2006.

[3] Lei nº 30-G/2000, de 29 de dezembro, que, entretanto, foi revogada pela redação introduzida pela Lei nº 32/2019, de 3 de maio.

[4] De acordo com o Despacho de Retificação de 2024-10-11