Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 198/2024-T
Data da decisão: 2024-10-14  IRC IRS  
Valor do pedido: € 201,38
Tema: IRS; IRC — transparência fiscal; créditos de cobrança duvidosa; imparidades; princípio da especialização de exercícios; princípio da justiça; 18.º, a), 23.º, 1, 28.º-A, a), 1, 28.º - B, 1, todos do CIRC, e ainda arts. 266.º, 2, CRP, e 55.º, LGT.
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Sumário:

            I — O princípio da especialização dos exercícios (artigo 18.º, CIRC) determina que não podem ser constituídas imparidades num determinado período de tributação tendo por base créditos cujo risco de incobrabilidade já existia e era manifestamente conhecido em períodos anteriores.

            II — O sujeito passivo não pode, arbitrariamente, qualificar o risco de incobrabilidade dos créditos de modo a, depois, utilizar essa qualificação em período que ele próprio fixou.

            III — O princípio da especialização de exercícios não pode ser interpretado e aplicado à margem de uma interpretação sistemática do direito constitucional e legal relevante, nomeadamente, o princípio da justiça. No entanto, este princípio exige uma ponderação de direitos e interesses e deve ser considerado com o propósito de corrigir situações excecionais de manifesta injustiça provocadas por situações externas incontroláveis, que se devem verificar no caso concreto.

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

            O árbitro Ricardo Marques Candeias, designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formar o presente Tribunal Arbitral, decide nos termos que se seguem:

 

            I — RELATÓRIO

 

            A. Dinâmica processual

  1. A..., NIF..., residente na Rua ..., ..., ...- ... Porto apresentou pedido de pronúncia arbitral ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro (doravante, abreviadamente designado RJAT), para que seja anulada parcialmente a liquidação n.º 2022..., relativa ao Rendimento das Pessoas Singulares (‘IRS’) do período tributário de 2019, no montante de € 201,38, com as legais consequências.
  2. No dia 14 de fevereiro de 2024 o pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite e automaticamente notificado ao Requerentes e à AT.
  3. O Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, 1, e artigo 11.º, 1, b), ambos do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou o signatário como árbitro do tribunal arbitral singular, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.
  4. Em 3 de abril de 2024 as partes foram notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar.
  5. Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral Singular foi constituído a 23 de abril de 2024.
  6. A 28 de maio de 2024, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua resposta, excecionando e impugnando.
  7. A 12 de junho de 2024 foi proferido despacho arbitral facultando prazo para o Requerente, querendo, se pronunciar sobre a alegada exceção, o que fez, a 18 de junho de 2024, bem como notificadas as partes para se pronunciarem, querendo, sobre a intenção do tribunal de dispensar a reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT, dado não existir prova testemunhal a produzir.
  8. Ao abrigo do disposto nas als. c) e e) do art. 16.º, e n.º 2 do art. 29.º, ambos do RJAT, a 10 de julho de 2024 foi dispensada a realização da reunião a que alude o art. 18.º do RJAT, bem como a de apresentação de alegações escritas. Mais foi indicado que a decisão final seria notificada até ao dia 15 de outubro de 2024.
  9. Entretanto, a AT juntou aos autos cópia da decisão arbitral proferida no proc. 196/2024. Notificado para se pronunciar, querendo, o Requerente nada disse.

 

            B. Posição das partes

 

            Para fundamentar o seu pedido alega o Requerente, em síntese, que é advogado e sócio da B..., SP, RL, com o CAE 69101, enquadrada pelo regime da transparência fiscal.

            A citada sociedade foi objeto de procedimento inspetivo interno, credenciado pela Ordem de Serviço n.º OI2022..., de âmbito parcial IRC e extensão ao ano de 2019. 

            Daí resultaram correções meramente aritméticas à matéria coletável declarada no ano de 2019, no montante de € 41.649,08, devido a gastos não dedutíveis, relativos a imparidade em dívidas a receber.

            Com base nas correções efetuadas à matéria coletável, foi o Requerente, por via da aplicação do regime da transparência fiscal, notificado da liquidação de IRS de 2019, n.º 2022..., e respetivos juros compensatórios, tendo sido apurado um montante a pagar de € 23.958,40.

            Isto porque entendeu a AT desconsiderar uma perda por imparidade, no montante de € 25.357,35, relativa a um crédito que a sociedade detinha sobre a C..., Lda., bem como outras perdas por imparidade, que a sociedade tinha contabilizado no ano de 2019, relativas a outros clientes.

            Entende a AT, à luz do princípio da especialização dos exercícios, previsto no art. 18.º, CIRC, que tais perdas por imparidade deveriam ter sido reconhecidas nos exercícios em que os clientes foram declarados insolventes e, bem assim, nos exercícios em que a sociedade enviou as comunicações aos devedores a solicitar o pagamento dos serviços prestados.

            No entanto, de acordo com o ora Requerente, de nenhum excerto da lei se pode extrair — expressa ou tacitamente — que uma perda por imparidade deve ser obrigatoriamente constituída caso se verifique qualquer uma dessas realidades previstas nas alíneas a) e b) do n.º 1 do art. 28.º-B, CIRC.

            Embora admita que a existência de um processo de insolvência comporte um risco acrescido de incobrabilidade de alguns créditos sobre a entidade insolvente, daí o legislador a ter tipificado como um dos motivos com base nos quais o SP pode constituir perdas por imparidade, o que ficou estabelecido legalmente foi uma mera possibilidade e não uma obrigatoriedade, pois a insolvência não determina automática e necessariamente que um crédito sobre a insolvente seja insuscetível de ser satisfeito. Do mesmo modo, ainda com maior pertinência, com relação aos credores que se encontram numa situação de mora.

            Na perspetiva do Requerente, tal atuação é frontalmente violadora do princípio da justiça, consagrado nos artigos 266.º, 2, CRP, e 55.º, LGT.

            Do mesmo modo, deve o princípio da especialização dos exercícios ser conformado e interpretado de acordo com o referido princípio da justiça, por forma a permitir a imputação a um exercício de custos referentes a exercícios anteriores, desde que não resulte de omissões voluntárias e intencionais, com vista a operar a transferência de resultados entre exercícios.

            Este princípio da especialização dos exercícios surge como corolário do princípio da anualidade dos tributos, sendo ele o garante da tributação real.

            Todavia, considerando os factos resulta evidente que o não cumprimento do princípio da especialização dos exercícios não proveio de omissões voluntárias e intencionais da sociedade transparente, resultantes de estratégias deliberadas com vista a manipular resultados ou operar a sua transferência entre exercícios, contornando-se, dessa forma, as finalidades visadas por lei com a consagração do princípio da especialização dos exercícios. Pelo contrário, o gasto fiscal deveria ter sido considerado em anos anteriores, anos em que apurou um lucro tributável suficiente para absorver as referidas perdas por imparidade.

            Consequentemente, bate-se pela ilegalidade do ato de liquidação com as devidas consequências legais.

            Por sua vez, a AT defende-se excecionando a legitimidade processual ativa do Requerente, pois, na lide, deveria estar a sociedade transparente porquanto estão em causa correções à matéria coletável em sede de IRC ao exercício de 2019 a ela efetuadas.

            Sendo assim, como nem a sociedade nem o sócio reclamaram/impugnaram a matéria coletável corrigida em sede IRC, esta tornou-se definitiva, não podendo, agora, o sócio, por falta de legitimidade, reagir contra as alterações que foram efetuadas em sede de sociedade, na liquidação de IRS que lhe é feita em resultado da imputação referida.

            Desta forma, verifica-se uma exceção dilatória nos termos do vertido dos ns. 1 e 2 do art. 576.º e na alínea e) do art. 577.º, ambos do CPC, ex vi, alínea e) do n. 1 do art. 29.º, RJAT, devendo, consequentemente, a Requerida ser absolvida da instância.

            Quanto à questão de fundo, entende a AT que não assiste razão ao Requerente. Todas as diligências para o recebimento dos créditos dos clientes relacionados foram efetuadas em data anterior a 2019, isto é, entre 2011 e 2017, decorridos em alguns casos oito anos, períodos em que deveriam ter sido constituídas as respetivas imparidades, e não no período de tributação de 2019, como aconteceu.

            Desta forma, constata-se ter a sociedade conhecimento do risco de incobrabilidade e consequente imparidade dos créditos em data anterior ao período de tributação de 2019, não sendo aquelas imparidades imprevisíveis ou desconhecidas nos períodos nos quais foram efetuadas as diligências para a sua cobrança nem nos períodos nos quais foram instaurados os processos de insolvência.

            Para fundamentar a sua posição alega o regime dos créditos de cobrança duvidosa (art. 28.º-B, 1, CIRC) e o Sistema de Normalização Contabilística (SNC), aprovado pelo DL n.º 158/2009, de 13 de julho (§23 da Norma Contabilística e de Relato Financeiro 27), para concluir que o risco de incobrabilidade não é arbitrária e indiscriminadamente fixado pelo SP.

            Depois, advoga o disposto no art. 28.º-A, 1, CIRC, para justificar que o legislador indica o período de tributação no qual podem ser reconhecidas perdas por imparidade (as que, no fim do período de tributação, possam ser considerados de cobrança duvidosa e sejam evidenciados como tal na contabilidade»), considerando a periodização do lucro tributável (art. 18.º, 1, CIRC), para concluir que a sociedade poderia ter atuado em conformidade com estes dispositivos, não o tendo feito.

            Quanto ao princípio da justiça como garantia constitucional, considera o n.º 2 do art. 18.º, CIRC, que prevê uma exceção apenas para as componentes positivas ou negativas do lucro tributável que, na data de encerramento das contas de determinado exercício, sejam imprevisíveis ou manifestamente desconhecidas, o que revela bem que, nos outros casos, essas componentes positivas ou negativas apuradas à data do encerramento das contas relevam para apuramento da liquidação desse período de tributação. O presente caso não cai, manifestamente, na previsão normativa que é a exceção.

            Além disso, só seria possível a derrogação do princípio da especialização dos exercícios por prevalência do princípio da justiça nos casos de manifesta injustiça, o que não se verifica, pois o diferimento dos custos/gastos para o exercício de 2019 não se deveu ao facto de serem imprevisíveis ou manifestamente desconhecidos, como resulta da factualidade provada, nem de erro do Requerente.

            Posto este enquadramento, pelas razões sobreditas, conclui a AT pela manutenção do ato impugnado.

 

            C. Thema decidendum

 

            A questão que constitui o thema decidendum centra-se no regime fiscal dos gastos qualificados como perdas por imparidades de créditos a receber, nomeadamente, como são configurados e quando são periodicamente relevantes.

 

           

            II — SANEAMENTO

 

            O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído, nos termos dos arts. 2.º, 1, a), 5.º, 6.º, 1, e 10.º, 1, RJAT.

            As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, e encontram-se regularmente representadas (cf. arts. 4.º e 10.º, 2, RJAT, e art. 1.º, Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

            O processo não enferma de nulidades.

            Suscita a Requerida a exceção de ilegitimidade processual ativa do Requerente.

            Preliminarmente, importa apreciar esta questão sendo que, para nos debruçarmos sobre ela, é relevante determinar a factualidade dada como provada e como não provada.

 

            III — FUNDAMENTAÇÃO

            A. MATÉRIA DE FACTO

 

            A.1. Factos dados como provados

A) O Requerente exerce a atividade profissional de advogado, encontra-se inscrito na Ordem dos Advogados Portugueses, sendo portador da cédula profissional n.º ... .

B) O Requerente é titular de uma quota representativa de 1% do capital social da B..., SP, RL, contribuinte n.º..., com sede Rua ..., n.º..., ... ..., ...-... Porto, com o capital social de € 10.000,00.

C) A B..., SP, RL, encontra-se sujeita ao regime de transparência fiscal previsto no art. 6.º do CIRC.

D) A referida sociedade foi objeto de procedimento inspetivo interno, credenciado pela Ordem de Serviço no OI2022..., de âmbito parcial IRC e extensão ao ano de 2019, tendo sido efetuadas correções à matéria coletável declarada pela sociedade no montante de 41.649,08€, devido a gastos não dedutíveis, relativos a imparidade em dívidas a receber.

E) A B..., SP, RL, tinha um crédito global por prestação de serviços no montante de € 41.649,08.

F) A AT desconsiderou uma perda por imparidade, no montante de € 25.357,35, relativa a um crédito que a B..., SP, RL, detinha sobre o cliente C..., Lda., resultante de faturas emitidas entre 2013 e 2015, além de outras perdas por imparidade que a sociedade tinha contabilizado no ano de 2019, relativas a outros clientes, no valor de € 16.291,73 (9.124,50 + 7.167,23), cf. a seguinte informação (RIT):

 

 

G) A C..., Lda., foi declarada insolvente, tendo o credor conhecimento do risco de incobrabilidade daquele crédito em 2015.

H) Os créditos sobre outros clientes eram reconhecidos desde as datas indicadas nas grelhas tendo a sociedade desenvolvido procedimentos de cobrança nessas alturas.

I) O Requerente foi notificado do ato de liquidação de IRS n.º 2022..., referente ao ano de 2019, tendo sido apurado imposto a pagar resultante do estorno liq. de 2019 e do acerto liq. 2019, acrescido dos respetivos compensatórios, no montante global de € 201,38, a pagar até 16.01.2023.

J) A liquidação ora posta em crise resultou de uma correção à matéria coletável da B..., SP, RL.

K) O Requerente apresentou reclamação graciosa, tendo sido notificado do seu indeferimento por via do Ofício n.º 2023..., de 6 de novembro de 2023, com a seguinte fundamentação:

 

 

 

            A.2. Factos dados como não provados

            Com relevo para a decisão, não foram identificados factos que devam considerar-se como não provados.

 

            A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada

            Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem de se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. art. 123.º, 2, CPPT, e art. 607.º, 3, CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, 1, a) e e), RJAT).

            Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de direito (cfr. anterior art. 511.º, 1, CPC, correspondente ao atual art. 596.º, aplicável ex vi art. 29.º, 1, e), RJAT).

            Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do art. 110.º, 7, CPPT, e a prova documental aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.

            Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada.

            Na verdade, segundo o princípio da livre apreciação da prova, o Tribunal baseia a decisão, em relação às provas produzidas, na íntima convicção, formada a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo e de acordo com a experiência de vida e conhecimento das pessoas, conforme o n.º 5 do art. 607.º do CPC.

            Somente quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (v.g., força probatória plena dos documentos autênticos, conforme artigo 371.º, CCiv.) é que não domina na apreciação das provas produzidas o princípio da livre apreciação.

           

 

            B — DE DIREITO

 

            A. Legitimidade processual ativa

 

            Como vimos, para a Requerida, o Requerente não tem legitimidade para estar na lide, pois discutem-se correções à matéria coletável em sede de IRC ao exercício de 2019 da B..., SP, RL. Esta entidade, sim, é que deveria estar ativamente a litigar.

            Por sua vez, o Requerente defende a legitimidade em estar presente, pois, a sociedade transparente pode ser considerada formalmente um sujeito passivo de IRC, na medida em que sujeita ao cumprimento das obrigações declarativas e de retenção na fonte.  No entanto, não é menos verdade que o sujeito passivo obrigado ao pagamento do imposto apurado no regime da transparência fiscal é o respetivo sócio, pessoa coletiva ou singular. Daí que, a matéria coletável positiva da sociedade transparente seja imputada aos sócios, a quem foi feita a liquidação adicional aqui impugnada, não lhes podendo estar vedado que nesta sede discutam a legalidade das correções efetuadas à sociedade, pois tal constituiria uma intolerável e inconstitucional denegação da tutela jurisdicional de um interesse legalmente protegido.

            Tal questão foi abordada no âmbito do proc. 196/2024, CAAD (Relator: Jónatas E. M. Machado), que transcrevemos: "Nos termos do artigo 12.º do CIRC, as sociedades a que, nos termos do artigo 6.o do mesmo diploma, seja aplicável o regime de transparência fiscal, não são tributadas em IRC, salvo quanto às tributações autónomas. A sociedade transparente, enquanto sujeito passivo de IRC, para além de estar sujeita às respetivas obrigações declarativas, pode reclamar da matéria coletável que lhe for fixada e que não dê origem a liquidação de IRC, nos termos do artigo 137.º, n.º 5, do CIRC.

            No entanto, o regime da transparência fiscal previsto no artigo 6.º do CIRC — entre outras — para as sociedades profissionais determina que a matéria coletável é imputável aos sócios, integrando-se no seu rendimento tributável, para efeitos de IRS. Sendo os sócios da sociedade transparente notificados de uma liquidação adicional de IRS, consubstanciando um ato administrativo tributário autónomo, dotado de eficácia externa e efeito ablativo, aos mesmos assiste o direito de procederem à respetiva impugnação.

            Assim decorre do princípio da tutela jurisdicional efetiva – que assegura uma proteção jurisdicional sem lacunas –, que milita contra a negação da legitimidade processual ativa à Recorrente, sob pena, em abstrato, de ficarem os sócios individualmente considerados dependentes da vontade, dos argumentos e da conduta da sociedade transparente e privados do necessário meio processual para a defesa dos seus direitos e interesses.

            O princípio da tutela jurisdicional efetiva compreende o direito de obter, em prazo razoável, e mediante um processo equitativo, uma decisão judicial que aprecie, com força de caso julgado, cada pretensão regularmente deduzida em juízo, sendo que a todo o direito ou interesse legalmente protegido corresponde a tutela adequada junto dos tribunais competentes, compreendendo esta a anulação de todos os atos administrativo-tributários lesivos. Ora o processo judicial tributário tem por função a tutela plena, efetiva e em tempo útil dos direitos e interesses legalmente protegidos em matéria tributária.

            Aderimos à sustentação formulada, que se aplica, integralmente, in casu.

            Com efeito, o que ora se discute são direitos e interesses legalmente protegidos do Requerente. Daí que se deve reconhecer que este tem legitimidade processual ativa para impugnar os atos em causa (cfr. arts. 4.º, 1, 2, CPTA; 9.º, 96.º, 1, 99.º, CPPT).

            Consequentemente, não se dá provimento à invocada exceção de ilegitimidade ativa invocada pela AT.

 

 

            B. Do mérito

           

            Como vimos, o thema decidendum consiste na apreciação do regime fiscal dos gastos qualificados como perdas por imparidades de créditos a receber, nomeadamente, como são configurados e quando são periodicamente relevantes.        

            Já tomamos em devida conta a posição das partes, descrita supra.

            A mesma questão tópica foi abordada no citado proc. 196/2024, CAAD (Relator: Jónatas E. M. Machado), que considerou matéria de facto idêntica, embora a relevante para a outra sócia da citada B..., SP, RL.

            Aderimos à fundamentação aduzida, que reza assim: a questão exige a consideração de três temas fundamentais, a saber, a) regime da transparência fiscal, b) conceito de crédito de cobrança duvidosa; c) momento do reconhecimento das perdas por imparidade de créditos a receber, a saber, 2015 ou 2011 a 2017 ou 2019, consoante os casos.

2.4.2.1. Regime de transparência fiscal

29. No tocante à primeira questão, (já antes se disse que) do regime da transparência fiscal previsto no artigo 6.º do CIRC, resulta que a matéria coletável da sociedade sujeita a tal regime, embora determinada segundo as regras do CIRC, é imputada ao rendimento dos sócios para efeitos de IRC ou IRS, consoante os casos. Neste regime, os lucros da sociedade transparente são apurados em sede do IRC, na própria sociedade, de acordo com o artigo 6.º do CIRC, e imputados aos sócios como rendimento líquido da categoria B, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 20.º do CIRS. Trata-se de um ponto incontroverso, o que nos permite passar de imediato para o ponto seguinte.

2.4.2.2. Crédito de cobranças duvidosa

30. Relativamente à segunda questão, atinente ao conceito de crédito de cobrança duvidosa, o que está em causa é saber se a B..., SP, RL, foi consequente com as suas obrigações e se, nesse sentido, procedeu ao correto registo contabilístico e fiscal dos créditos de cobrança duvidosa, isto é, se aquele sujeito passivo aferiu corretamente o risco de incobrabilidade dos créditos que originaram a correção postulada pelo Relatório de Inspeção n.º ...2023... e se o fez no período de tributação devido.

31. A este propósito, importa recuperar a argumentação e a conclusão do RIT, em que, relativamente ao cliente C..., Lda., NIPC ..., se aferiu da constituição de uma imparidade (em 100%) no valor de 25.357,35€. Neste caso, verificou- se que a sociedade havia emitido faturas a este cliente, entre 2013 e 2015, relativas a serviços prestados, no montante total 25.357,35€, tendo reconhecido, em 2019, uma perda por imparidade em créditos de clientes no montante total do mesmo.

32. A qualificação dos créditos como sendo de cobrança duvidosa não está na livre disponibilidade dos sujeitos passivos, porquanto, é o próprio legislador que estabiliza as situações passíveis de se considerarem integrantes naquele conceito. Nos termos do artigo 28.º- A, n.º 1, do CIRC, respeitante a perdas por imparidade em dívidas a receber, podem ser deduzidas para efeitos fiscais as perdas por imparidade relacionadas com créditos resultantes da atividade normal, incluindo os juros, pelo atraso no cumprimento de obrigação, que, no fim do período de tributação, possam ser considerados de cobrança duvidosa e sejam evidenciados como tal na contabilidade, quando contabilizadas no mesmo período de tributação ou em períodos de tributação anteriores.

33. Relativamente ao que sejam créditos de cobrança duvidosa, o artigo 28.º-B, n.º 1, do CIRC, esclarece que se trata daqueles créditos em que o risco de incobrabilidade esteja devidamente justificado, o que sucede quando a) o devedor tenha pendente processo de execução, processo de insolvência, processo especial de revitalização ou procedimento de recuperação de empresas por via extrajudicial ao abrigo do Sistema de Recuperação de Empresas por Via Extrajudicial (SIREVE), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 178/2012, de 3 de agosto; b) os créditos tenham sido reclamados judicialmente ou em tribunal arbitral, ou c) os créditos estejam em mora há mais de seis meses desde a data do respetivo vencimento e existam provas objetivas de imparidade e de terem sido efetuadas diligências para o seu recebimento, caso em que estabelecem montantes anuais acumulados por perdas de imparidade de crédito de acordo com percentagens dos créditos em mora (25% a 100%) variáveis de acordo com os meses em mora (6-24).

34. Como prova das diligências efetuadas para o recebimento deste crédito, nos termos da alínea c), do artigo 28.º-B, n.º 1, do CIRC , a sociedade apresentou cartas enviadas ao cliente e à sua mandatária, ambas no ano de 2015, tendo ainda apresentado prova de uma reclamação de créditos, relevante para a alínea b) do mesmo artigo — correndo trâmites como processo n.º .../08...TBMTS-A — em ação de processo comum, em que é autor B... e réu o cliente C..., cuja petição inicial deu entrada em 11.06.2015. Este aspeto adquire relevância no desfecho do caso concreto, na medida em que indicia que já nesse ano a sociedade estava consciente das dificuldades de cobrança dos montantes em dívida.

35. Subjacente ao conceito legal de crédito de cobrança duvidosa encontra-se a realidade contabilística e os deveres inerentes que impendem sobre as sociedades. Nos termos do n.º 1 do artigo 123.º do CIRC, «as sociedades comerciais ou civis sob forma comercial, as cooperativas, as empresas públicas e as demais entidades que exerçam, a título principal, uma atividade comercial, indústria ou agrícola, com sede ou direção efetiva em território português, bem como as entidades que, embora não tendo sede ou direção efetiva em território português, bem como as entidades que, embora não tendo sede nem direção efetiva em naquele território, aí possuam estabelecimento estável, são obrigadas a dispor de contabilidade organizada nos termos da lei que, além dos requisitos indicados no n.º 3 do artigo 17.º, permite o controlo do lucro tributável».

36. A organização da contabilidade passa pelo cumprimento do Sistema de Normalização Contabilística (SNC) aprovado pelo DL N.º 158/2009, de 13 de julho, sendo que o enquadramento contabilístico do conceito de perdas por imparidade em dívidas de clientes consta da Norma Contabilística de Relato financeiro (NCRF) 27 – Instrumentos Financeiros. No respetivo §23 estabelece-se que à data de cada período de relato financeiro, uma entidade deve avaliar a imparidade de todos os ativos financeiros que não sejam mensurados ao justo valor através de resultados. Se existir uma evidência objetiva de imparidade, a entidade deve reconhecer uma perda por imparidade na demonstração de resultados.

37. Para efeitos da NCRF 27, o conceito de evidência objetiva de que um ativo financeiro ou um grupo de ativos está em imparidade inclui dados observáveis que chamem a atenção ao detentor do ativo para os seguintes eventos de perda: a) Significativa dificuldade financeira do emitente ou devedor; b) quebra contratual, tal como não pagamento ou incumprimento no pagamento do juro ou amortização da dívida; c) O credor, por razões económicas ou legais relacionados com a dificuldade financeira do devedor, oferece ao devedor concessões que o credor de outro modo não consideraria; d) Torne-se provável que o devedor irá entrar em falência ou qualquer outra reorganização financeira; e) O desaparecimento de um mercado ativo para o ativo financeiro devido a dificuldades financeiras do devedor; ou f) Informação observável indicando que existe uma diminuição na mensuração da estimativa dos fluxos de caixa futuros de um grupo de ativos financeiros desde o seu reconhecimento inicial, embora a diminuição não possa ser ainda identificada para um dado ativo financeiro individual do grupo, tal como sejam condições económicas nacionais, locais ou sectoriais adversas.

38. Assim, embora o conceito de créditos de cobrança duvidosa tenha um sentido mais restrito em sede jurídico-fiscal, é, pois, evidente que a qualificação do risco de incobrabilidade não é arbitrariamente e indiscriminadamente fixada pelos sujeitos passivos, antes obedece a princípios legais e contabilísticos que visam estruturar e clarificar, de forma precisa e inteligível, o funcionamento de toda a atividade económica.

2.4.2.3. Momento de reconhecimento das perdas por imparidade

39. Relativamente à terceira questão, respeitante ao momento do reconhecimento das perdas por imparidade de créditos a receber, começaremos por analisar a questão a partir do princípio da especialização de exercícios, para verificar, em seguida, se o mesmo admite alguma flexibilização com base no princípio da justiça. Assim, importa ter presente, num primeiro momento, o disposto no artigo 18.º do CIRC:

Artigo 18.º Periodização do lucro tributável

1 — Os rendimentos e os gastos, assim como as outras componentes positivas ou negativas do lucro tributável, são imputáveis ao período de tributação em que sejam obtidos ou suportados, independentemente do seu recebimento ou pagamento, de acordo com o regime de periodização económica.

2 — As componentes positivas ou negativas consideradas como respeitando a períodos anteriores só são imputáveis ao período de tributação quando na data de encerramento das contas daquele a que deviam ser imputadas eram imprevisíveis ou manifestamente desconhecidas.

40. Este preceito é particularmente relevante quanto se trata de interpretar e aplicar as normas e os procedimentos respeitantes à constituição das imparidades/incobrabilidades verificadas um determinado período de tributação, dele decorrendo que as demonstrações financeiras devam ser elaboradas com base no regime do acréscimo, ou periodização económica, que determina que os efeitos das transações e de outros acontecimentos são reconhecidos no momento em que ocorrem e não quando caixa ou equivalentes de caixa sejam recebidos ou pagos. Assim deve ser organizada a contabilidade e assim deve proceder quem tem contabilidade organizada, como resulta do mencionado artigo 123.o, n.o1, do CIRC.

41. O n.º 2, do artigo 18.º, do CIRC, reveste-se de grande importância contabilística na medida em que restringe a imputação a um dado período de tributação de componentes positivas ou negativas respeitantes a períodos anteriores aos casos em que as mesmas eram imprevisíveis, ou manifestamente desconhecidas, na data do encerramento das contas do período em que deviam ter sido imputadas, não podendo ser constituídas imparidades num período de tributação relativamente a créditos cujo risco de incobrabilidade já existia e era manifestamente conhecido em períodos anteriores.

42. A esta luz, existindo nos exercícios anteriores ao de 2019 indicadores objetivos claros do risco de incobrabilidade dos créditos, e não tendo a Requerente aduzido quaisquer razões que tenham levado a sociedade B..., SP, RL, a localizar temporalmente, no concreto exercício de 2019, o juízo do risco de incobrabilidade subjacente ao reconhecimento da correspondente perda, mostra-se destituída de fundamento essa concreta localização temporal e, assim sendo, a perda por imparidade do lucro tributável considerada com referência ao exercício de 2019. Por outras palavras, além de a Requerente não demonstrar que o risco de incobrabilidade era imprevisível ou manifestamente desconhecido em períodos tributários anteriores a 2019, a mesma oferece aos autos indícios claros e seguros de que o momento de cognoscibilidade do risco de incobrabilidade foi anterior a 2019 em pelo menos quatro anos.

43. Do artigo 18.º do CIRC depreende-se que o reconhecimento das perdas por imparidade destas dívidas a receber de clientes deve ser avaliada em cada data de relato, ou seja, no final do período contabilístico. No entanto, este reconhecimento de perdas por imparidade apenas deve ser efetuado se existir uma evidência objetiva de um evento de perda, conforme referido no elenco de dados observáveis constante do § 24 da NCRF 27. Quando existam dúvidas na cobrabilidade de uma dívida a receber de clientes deve ser reconhecida uma perda por imparidade1(Seguimos aqui o parecer técnico do departamento de consultoria da Ordem dos Contabilistas Certificados Imparidades, PT27250 - novembro de 2022.). Desta forma, comprovando-se a existência de um risco de incobrabilidade em anos anteriores, aquelas perdas por imparidade, constituídas no período de tributação de 2019, não são aceites fiscalmente, à luz do disposto no n.º 1, do artigo 28.º - B, do CIRC, conjugado com o n.º 2 do artigo 18.º do mesmo Código.

44. De acordo com o princípio da especialização de exercícios, o montante de 41.649,08€ (= 25.357,35€ + 16.291,73€) reconhecido pelo sujeito passivo no ano de 2019 como imparidade em dívidas a receber, não é aceite fiscalmente nos termos da alínea a), do n.º 1, do artigo 28.º-A, n.º 1, do artigo 28.º-B e do n.º 2, do artigo 18.º todos do CIRC, pelo que se procedeu ao seu acréscimo ao lucro tributável declarado pelo sujeito passivo. Estas correções em sede de IRC têm efeito fiscal na esfera pessoal dos sócios Odete Pereira e Pedro Archer Cameira, na medida em que a sociedade é tributada por transparência fiscal, pelo que a imputação em sede de IRS, foi, respetivamente, de 41.232,59€, [41.649,08€ * 99% (% de imputação)], e 416,49€ [41.649,08€ * 1% (% de imputação)].»

45. Se sociedade em causa já em períodos de tributação anteriores tinha efetuado diligências de tentativa de cobrança das referidas dívidas de clientes, e não existindo qualquer pagamento do cliente ou sido estabelecido qualquer acordo para o pagamento, a mesma sociedade deveria, nesse momento, ter reconhecido a respetiva perda por imparidade, sendo vedada a posterior aceitação dessas perdas como gasto fiscal, por não ter sido cumprido o referido regime do acréscimo e o inerente princípio da especialização de exercícios (Parecer técnico do departamento de consultoria da Ordem dos Contabilistas Certificados, PT19184 - Imparidades em dívidas de clientes, de 01.05.2017). Tal solução interpretativa decorre imediatamente das próprias regras da contabilidade, nas quais o legislador formula um juízo seletivo do risco de incobrabilidade.

46. Efetivamente, tratando-se de créditos cujos vencimentos ocorreram nos períodos de tributação entre 2013 a 2015, e comprovando-se a existência de um risco de incobrabilidade logo em 2015, não poderiam ser aceites, como gasto fiscal, as perdas por imparidade reconhecidas em 2019, devendo estas ter sido contabilizadas e consideradas nesse período de 2015, à luz do disposto no n.º 1 do artigo 28.º - B do CIRC, conjugado com o artigo 18.º, n.º 2 do mesmo Código, ou seja, estas perdas por imparidade, no valor de 25.357,35€ não seriam aceites fiscalmente no período de tributação de 2019, nos termos dos referidos normativos.

47. A mencionada indisponibilidade do conceito de créditos de cobrança duvidosa associada às exigências formais de organização contabilística, fazem impender sobre os sujeitos passivos o dever de procederem ao registo contabilístico e fiscal dos créditos de cobrança duvidosa, mediante a prévia aferição da existência objetiva do risco de incobrabilidade daqueles créditos em determinado período, tomando em consideração os critérios normativos avançados pelo legislador, o que não significa que o juízo subjacente à avaliação do risco de incobrabilidade seja definitivo e impeditivo de um escrutínio a posteriori, mormente, pela AT em sede inspetiva.

2.4.2.4. Princípio da especialização de exercícios e princípio da justiça

48. Dito isto, importa ter presente que o que distingue, ao menos tendencialmente, os princípios das regras é que os primeiros podem admitir ponderação e uma leitura flexível, ao passo que estas são de aplicação definitiva, de acordo com uma lógica binária do tipo “all-or-nothing”. A dogmática dos princípios jurídicos tem salientado que os mesmos devem ser entendidos como exigências de otimização que podem ceder no confronto – e diante da necessidade de harmonização – com outros princípios vigentes no sistema jurídico. Assim se compreende que o princípio da especialização de exercícios, apesar de estar vertido em regra no artigo 18.º do CIRC, não seja totalmente imune à necessidade de ponderação e concordância prática com o princípio da justiça e as suas implicações práticas.

49. Interpretando o artigo 18.º, n.º 1, do CIRC, em conjugação com artigo 23.º, n.º 1, do mesmo Código, conclui-se que as perdas por imparidade se consideram componente negativa do lucro tributável do exercício em que devem ser reconhecidas, sendo, em princípio, apenas nesse exercício que lhe pode ser atribuída relevância fiscal.

50. No entanto, o princípio da especialização de exercícios não pode ser interpretado e aplicado à margem de uma interpretação sistemática do direito constitucional e legal relevante, que tenha em conta a relevância do princípio da justiça invocado pela Requerente, cuja observância é imposta à globalidade da atividade da AT, pelos artigos 266.º, n.º 2, da CRP e 55.º da LGT. O mesmo implica que o dever de a AT aplicar o princípio da legalidade não se traduz numa mera subordinação formal às normas que especificamente regulam determinadas situações, antes impõe o dever de esta ter em conta as consequências da sua atividade e abster-se da aplicação estrita de normas quando dela decorra um resultado manifestamente injusto (cfr., Acórdão do CAAD prolatado no Processo n.º 724/2023-T, de 23.02.2024).

51. Da jurisprudência do STA resulta que o principio da justiça pode ser convocado para atenuar a rigidez do princípio da especialização dos exercícios, numa lógica de ponderação proporcional de direitos e interesses dos contribuintes e do Estado. A nossa suprema instância administrativa e tributária tem vindo a sustentar que o princípio da especialização de exercícios «deve tendencialmente conformar-se e ser interpretado de acordo com o princípio da justiça, com conformação constitucional e legal (artigos 266.o, n.o 2 da CRP e 55.o da LGT), por forma a permitir a imputação a um exercício de custos (agora gastos) referentes a exercícios anteriores, desde que não resulte de omissões voluntárias e intencionais, com vista a operar a transferência de resultados entre exercícios» (Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo, nos Processos n.º 0807/07, de 02.04.2008; n.º 01648/02, de 05.02.2003; n.º 0291/08, de 25.06.2008; n.º 0809/12, de 21.11.2012; n.º 01278/12.2BELRS 0574/18, de 09.10.2019; n.º  01540/13.7BELRS, de 28.04.2021; n.º 0610/15.1BELRA, de 27.10.2021; n.º 0304/15.8BELLE, de 07.22.2022; n.º 01292/20.4BEBRG, de 08.02.2023 e n.º 0655/16.4BEBRG, de 08.11.2023.

52. Ponto é, para esta suprema orientação jurisprudencial, que o sujeito passivo tenha sido prejudicado ou não tenha tido qualquer vantagem pelo atraso da relevância fiscal dos gastos por perdas por imparidade, realidade que, a verificar-se, constitui um elemento de relevo decisivo para presumir que os erros foram involuntários e não intencionais. Igualmente relevante, na jurisprudência do STA é a questão de saber se a AT ainda poderia efetuar correções simétricas para determinação dos respetivos lucros tributáveis, imputando a cada um desses anos as perdas respetivas que não são aceites em relação ao ano de que se trate (in casu, 2019), de forma a evitar situações de manifesta injustiça.

53. No caso em apreço, não se demonstra ter havido qualquer vantagem da sociedade e dos respetivos sócios individualmente considerados decorrente do atraso da relevância fiscal das referidas perdas por imparidade, não havendo evidência de uma qualquer estratégia deliberada e intencional de manipular resultados ou operar a sua transferência entre exercícios e de contornar por essa via a letra e a razão de ser do princípio da especialização de exercícios. Pelo contrário, nos anos anteriores havia lucro tributável suficiente para absorver essas perdas por imparidade, nada impedindo a sua consideração nessa altura.

54. Todavia, as exigências de legais normalização contabilística, a que se subordina o princípio da especialização de exercícios, desempenham uma importante função regulatória de toda a atividade empresarial – essencial para financiadores, fornecedores, investidores, consumidores, AT – fornecendo ao sistema económico globalmente considerado os necessários e desejáveis níveis de transparência, mensurabilidade, comparabilidade, segurança, prestação de contas, previsibilidade e calculabilidade, valores inscritos no princípio do Estado de direito e considerados indispensáveis a numa economia social de mercado – conceito com acolhimento expresso no artigo 3.º, n.º 3, do TUE – bem organizada, não podendo essas exigências contabilísticas, pelo interesse público que têm subjacente, ser colocadas na disponibilidade dos contribuintes e preteridas de ânimo leve, mediante a simples invocação do princípio da justiça.

55. A relevância sistémica da contabilidade permite compreender, por exemplo, que na Estrutura Conceptual do SNC, § 22, se diga que, a fim de satisfazerem o seu objetivo, as demonstrações financeiras são preparadas segundo o regime contabilístico do acréscimo, nos termos do qual os efeitos das transações e de outros acontecimentos são reconhecidos quando ocorram e registados contabilisticamente e relatados nas demonstrações financeiras dos períodos com os quais se relacionem. Na mesma linha, ela explica o relevo que o § 37 confere ao princípio da prudência e a razão pela qual os § 77 e § 78 referem que as perdas representam diminuições em benefícios económicos e como tal não são na sua natureza diferentes de outros gastos, e que, quando reconhecidas na demonstração de resultados, são geralmente mostradas separadamente pois o seu conhecimento é útil para a tomada de decisões económicas.

56. A função regulatória sistémica das exigências contabilísticas, inscritas nas NCRF e no CIRC, tem como objetivo repercutir-se positivamente na atividade económica e beneficiar, mesmo que indiretamente, o Estado, as empresas e as famílias. Essas exigências já refletem uma complexa ponderação multidimensional de direitos e interesses, com implicações sistémicas, que não pode ficar na dependência de apreciações subjetivas e casuísticas. Naturalmente que o princípio da justiça, na medida em que vincula toda a atividade estadual, com especial relevo para a AT, pode e deve operar, como válvula de segurança do sistema, numa ótica de ponderação de direitos e interesses conflituantes, para corrigir situações excecionais de manifesta injustiça.

57. Todavia, a Requerente limita-se a dizer que a não aceitação das perdas por imparidade contabilizadas, pela sociedade B..., é manifestamente ilegal, sendo frontalmente violadora do princípio da justiça consagrado nos artigos 266.º, n.º 2, da Constituição, e 55.º da LGT, e que caberia a essa sociedade, e só a ela, aferir o momento em que passa a existir um risco de incobrabilidade e, bem assim, qual o grau/probabilidade de incobrabilidade. Isso, como se a fixação do momento de reconhecimento e dedução de perdas por imparidade estivesse na total disponibilidade dos contribuintes. Do mesmo modo, ela nada prova, nem alega, acerca da eventual impossibilidade de a AT operar as “correções simétricas” aquando da inspeção.

58. A Requerente pretende refletida no cálculo do seu IRS, no quadro do regime da transparência fiscal, perdas reconhecidas e imputadas pela sociedade B... ao exercício de 2019, quando as mesmas deveriam ter imputadas a exercícios anteriores em cumprimento do princípio – vertido em norma legal – da especialização dos exercícios (artigo 18.º do CIRC e demais normas aplicáveis), sem que tenha sido feita qualquer prova ou alegadas razões, de natureza factual, que a sociedade pudesse ter tido para não proceder ao reconhecimento das perdas no exercício em que lhe era devido fazer, em aplicação da lei, ou seja, sem justificar a violação do referido princípio, insistindo, ao invés, na ideia errónea, à face da lei e das regras de contabilidade, de que é sempre ao contribuinte — em primeira e última instância — que cabe formular uma apreciação subjetiva acerca do risco de incobrabilidade, sem atender à existência de critérios objetivos.

59. Determinando o princípio da especialização de exercícios, ou do acréscimo, que os proveitos e os custos devem ser imputados ao período a que respeitam, independentemente do seu recebimento ou pagamento, só a imprevisibilidade ou manifesto desconhecimento quanto a um gasto respeitante a um período anterior, e sendo ao sujeito passivo que aproveita a sua dedutibilidade fiscal, tal princípio faz impender sobre este o ónus probatório quanto a tais circunstâncias excecionais. Ónus que não foi cumprido, sem que a Requerente tenha invocado, como comprovada justificação desse incumprimento, situações externas que não podia controlar5. Recorde-se que no caso da B... estamos diante de uma sociedade de advogados com dois sócios, sendo que a Requerente detém uma participação no respetivo capital de 99%, facto que a coloca, para todos os efeitos substantivos, processuais e probatórios relevantes, numa confortável posição de controlo total.

            Com efeito, conforme foram articulados e interpretados os arts. 18.º, a), 23.º, 1, 28.º-A, a), 1, 28.º - B, 1, todos do CIRC, e ainda arts. 266.º, 2, CRP, e 55.º, LGT, indo ao âmago da questão, o Requerente não fez qualquer prova de que a sociedade tinha justificação para não proceder ao reconhecimento das perdas no exercício nos anos que o deveria ter feito, pois o ónus da prova sobre ele recai.

            Face ao exposto, não é possível dar razão ao Requerente, decidindo-se pela improcedência do pedido.

 

* * *

 

            IV — DECISÃO

 

            Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral:

            a) julgar improcedente a exceção invocada e improcedente o pedido arbitral formulado e, em consequência, manter a liquidação de IRS respeitante ao período tributário de 2019, com as legais consequências;

            b) Condenar o Requerente no pagamento integral das custas do presente processo.

 

            V — Valor do processo

       Fixa-se o valor do processo em € 201,38, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 3 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

            VI — Custas

       Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 306,00 nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, conforme o disposto no artigo 22.º, 4, RJAT.

 

Notifique-se.

 

Bom Sucesso, 14 de outubro de 2024

 

O Árbitro Singular

 

(Ricardo Marques Candeias)