SUMÁRIO:
I. Tendo a Autoridade tributária procedido à correção do lucro tributável de uma sociedade, no exercício de 2019, por desconsideração de uma imparidade por crédito de cobrança duvidosa, por aplicação do princípio da especialização dos exercícios, tem a Autoridade Tributária a obrigação de proceder à correção simétrica desse acréscimo, permitindo a anulação da reversão da imparidade no exercício de 2021, em que tal reversão foi efetuada.
II. Tal correção simétrica impõe-se ao abrigo do princípio da justiça consagrado nos artigos 266.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, e 50.º da Lei Geral Tributária.
III. Sendo a sociedade em causa abrangida pelo regime da transparência, fiscal, a correção simétrica refletir-se-á necessariamente no rendimento da sócia, cujo rendimento tributável deve igualmente ser expurgado do rendimento proveniente da reversão da imparidade.
DECISÃO ARBITRAL
I - RELATÓRIO
A..., contribuinte n.º..., residente na Rua ..., ..., ...-... Porto, apresentou, em 12.02.2024, nos termos dos art.ºs 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”) e do artigo 99º, al. a) do CPPT, pedido de constituição de tribunal arbitral, com vista à declaração de ilegalidade da liquidação de IRS n.º 2022..., referente ao ano de 2021.
É Requerida no pedido a Autoridade Tributária.
Por decisão do Presidente do Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa foi designado o árbitro Sérgio Matos, que aceitou o encargo no prazo legal, tendo nessa sequência o tribunal arbitral disso constituído em 23.04.2024.
Por impedimento do árbitro, foi a signatária designada para árbitro do processo, o que a mesma aceitou, em 14.06.2024, vindo a ser nomeada em 09.07.2024.
Por despacho do tribunal de 23.04.24, nos termos do artigo 17.º, n.ºs 1 e 2 do RJAT, a AT foi notificada para, no prazo de 30 dias, apresentar resposta, e, no mesmo prazo, remeter ao Tribunal cópia do processo administrativo, o que aquela fez em 27.05.2024.
Por despacho do Tribunal de 11.07.2024, foi a Requerente notificada para se pronunciar sobre a necessidade de suspender a instância e para clarificar a factualidade integrante da causa de pedir; e a Requerida notificada para juntar ao processo cópia do processo 196/24-T, a fim de poder ser apreciada necessidade de suspender a instância por estar pendente decisão prejudicial em processo arbitral.
Em 17.07.2024, veio a Requerida através de requerimento remeter ao Tribunal arbitral cópia da decisão arbitral proferida no processo n.º 197/2024-T CAAD.
Por despacho de 26.09.2024, foi dispensada a reunião prevista no art.º 18º do RJAT bem a de alegações finais.
Por requerimento apresentado em 26.09.2024 veio a Requerente responder ao despacho do Tribunal de 11.07.2024, do mesmo tendo sido notificada a Autoridade Tributária para, querendo exercer o contraditório. Notificada, a AT pronunciou-se requerendo o desentranhamento do requerimento da Requerente, por ter sido remetido após dispensa de alegações finais. Considerando que o requerimento, efetivamente, consubstanciava alegações, o Tribunal, por despacho de 09.10.2024, ordenou o desentranhamento do referido requerimento.
II - SANEAMENTO
O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído.
As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciária e encontram-se devidamente representadas.
O processo não padece de vícios que o invalidem e não existem incidentes que importe decidir.
III – POSIÇÃO DAS PARTES
Considera a Requerente que, tendo a AT, em procedimento de inspeção levado a cabo em 2021, corrigido o lucro tributável de 2019 da B..., SP, RL, anulando uma imparidade relativa ao um crédito sobre a sociedade C..., Lda., mas tendo tal imparidade sido objeto de uma reversão reconhecida no ano 2021, não pode a Requerente ser obrigada a suportar IRS sobre o lucro imputado correspondente à imparidade registada no ano 2019 e anulada pela AT, e sobre o lucro resultante da reversão da mesma imparidade efetuada pela própria Sociedade B..., SP, RL em 2021, pois tal significaria uma duplicação de coleta.
Por seu lado, a AT considera que não se está perante uma situação de duplicação de coleta, pois não se verificam os pressupostos, previstos no art.º 205º do CPPT, para que tal situação ocorra, nomeadamente:
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O facto tributário não é o mesmo, sendo a perda por imparidade reconhecida no exercício de 2019 um facto tributário, que consiste num excedente da quantia escriturada de um ativo em relação à sua quantia recuperável, e a reversão da perda por imparidade um facto tributário diferente, que ocorre quando deixam de se verificar as condições objetivas que justificaram a constituição da imparidade;
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Também não é o mesmo o período temporal, pois a «perda por imparidade» inscrita pelo sujeito passivo diz respeito ao exercício de 2019, ao passo que «a reversão por perda» corresponde ao exercício de 2021.
Além disso, o princípio do acréscimo, vertido no art.º 18º nº 1 do CIRC, seria comprometido caso a AT aceitasse que o gasto de um exercício pretérito (2019) servisse de fundamento para justificar (ou anular) o rendimento de exercício posterior (2021).
IV – QUESTÕES A DECIDIR
A questão a decidir no presente processo arbitral consiste em saber se, tendo a sociedade da qual a Requerente é sócia, submetida ao regime de transparência fiscal, reconhecido uma perda por imparidade no exercício de 2019 relativa a um crédito de cobrança duvidosa, tendo essa perda por imparidade sido revertida no exercício de 2021 por o crédito ter, entretanto, sido cobrado, tendo a Autoridade Tributária, em procedimento de inspeção levado a cabo em 2021, anulado a perda por imparidade reconhecida em 2019, pode a AT incluir o valor da imparidade anulada no rendimento tributável em IRS da Requerente referente ao ano de 2019.
V – FUNDAMENTAÇÃO - MATÉRIA DE FACTO
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Factos considerados provados
O Tribunal Arbitral dá como provados os seguintes factos:
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A Requerente, com domicílio fiscal na Rua ..., ..., ...-... Porto, encontra-se coletada desde 06/06/1989 para a atividade de advocacia a que corresponde o código CIRS 6010, encontrando-se inscrita na ordem dos advogados com a cédula profissional nº ...;
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A Requerente era, à data dos factos, sócia da Sociedade B..., SP, RL, NIPC..., sociedade de profissionais (adiante designada como “Sociedade”), com sede na Rua ..., n.º ..., ..., na freguesia de ..., no Porto, que iniciou a atividade em 08/01/1985 para “atividades jurídicas”, a que corresponde o CAE 69101;
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A Sociedade tem um capital social de € 10.000,00, detido pelos sócios A... (NIF...) e D... (NIF...), com as percentagens de participação de 99% e 1%, respetivamente;
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A Sociedade emitiu faturas à sua cliente C..., Lda., entre 2013 e 2015, relativas a serviços prestados, no montante total € 25.357,35;
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Em 2019, a Sociedade reconheceu na sua contabilidade uma perda por imparidade em créditos de clientes, no montante de € 25.357,35, em razão da impossibilidade de cobrança das faturas emitidas sobre a cliente C..., Lda;
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Como prova da imparidade (impossibilidade de cobrança dos créditos sobre a C..., Lda.) a Sociedade apresentou cartas remetidas para a cliente e sua mandatária em 2015, apresentando ainda reclamação de créditos, cuja petição inicial tem data de 11/06/2015;
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Em 30.09.2021, a Sociedade recebeu da cliente C..., Lda. o valor de 24.393,06 euros, em pagamento parcial da dívida desta para com a Sociedade, tendo emitido o recibo n.º R 2021A/293 (doc. 4 inserto no PA), em que dava, à sociedade C..., Lda., quitação desse valor;
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Na sequência deste recebimento, a Sociedade contabilizou, no exercício de 2021, uma reversão da imparidade que havia registado em 2019, relativa ao seu crédito sobre a C..., Lda., no valor de 24.393,06 euros;
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Em 30 de junho de 2022, a Requerente procedeu à entrega da Modelo 3 de IRS, referente ao ano de 2021;
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No anexo D da respetiva declaração, a Requerente declarou um rendimento no valor de 31.167,38 euros, que lhe foi imputado, ao abrigo do regime de transparência fiscal previsto no artigo 6º do CIRC, pela B..., SP, RL;
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Nesse mesmo anexo, foi também declarado que a imputação antes referida, se realizou de acordo com uma taxa de 99,0%, correspondente à percentagem que a quota da Requerente representa no capital da sociedade B..., SP, RL;
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Em 2022 a B..., RL foi objeto de um procedimento inspetivo interno de âmbito parcial em sede IRC, credenciado pela Ordem de Serviço n° OI2022..., emitida para o período de tributação de 2019;
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No âmbito do referido procedimento inspetivo foram propostas correções meramente aritméticas, ao lucro tributável e matéria coletável declaradas pela sociedade no ano de 2019, em sede de IRC, no montante de € 41.649,08, devido a gastos não dedutíveis, relativos a imparidade em dividas a receber, nos termos da alínea a) do n.º 1 do art.º 28.º-A e do n.º 2 do art.º 18.º todos do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (CIRC);
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O valor das correções, de € 41.649,08, inclui o valor de € 25.357,35 que a sociedade tinha contabilizado como perda por imparidade referente ao crédito que a sociedade detinha sobre o cliente C..., Lda., no montante de €25.357,35 (vinte e cinco mil trezentos e cinquenta e sete euros e trinta e cinco cêntimos);
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No Relatório de Inspeção n.º OI2022..., a propósito do crédito sobre a C..., Lda., lê-se:
«Relativamente ao cliente C... a sociedade reconheceu, no ano de 2019, perdas por imparidade no montante de € 25.357,35, apresentando cartas remetidas para o cliente e sua mandatária em 2015, apresentando ainda reclamação de créditos, cuja petição inicial tem data de 11/06/2015, ficando provado que a sociedade teve conhecimento do risco de incobrabilidade daquele crédito em data anterior, isto é, em 2015, período em que deveria ter constituído a imparidade sobre o mesmo crédito, e não no período de tributação de 2019, após decorridos 4 anos, como aconteceu. Efetivamente, tratando-se de créditos cujos vencimentos ocorreram nos períodos de tributação entre 2013 a 2015, e comprovando-se a existência de um risco de incobrabilidade logo em 2015, não pode ser aceite como gasto fiscal as perdas por imparidade reconhecidas em 2019, e que deviam ter sido contabilizadas e consideradas nesse período de 2015, à luz do disposto no n.º 1 do artigo 28.º - B do CIRC, conjugado com o artigo 18.º, n.º 2 do mesmo Código. Face ao exposto, estas perdas por imparidade, no valor de € 25.357,35 não são aceites fiscalmente no período de tributação de 2019, nos termos dos referidos normativos.”».
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Na sequência das correções efetuadas ao lucro da Sociedade referente a 2019, A AT, munida da Ordem de Serviço interna n.º OI2022..., emitida para análise do período de tributação de 2019 da Requerente, em sede de IRS, procedeu à correção do rendimento tributável da mesma, imputando-lhe um acréscimo, a integrar na categoria B de rendimentos, no montante de € 41.232,58 [€ 41.649,08 * 99% (% de imputação)];
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Nessa sequência, foi emitida a nota de liquidação n.º 2022..., cujo ato foi contestado pela Requerente através de reclamação graciosa, que foi tramitada com o nº ...2023....
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A Requerente foi notificada do indeferimento da reclamação graciosa por carta expedida sob registo no dia 11.01.2024.
VI – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
A Requerente é sócia da sociedade B..., RL que, por ser uma sociedade de profissionais (advogados) está sujeita ao regime de transparência fiscal, de acordo com o artigo 6º do CIRC, o que significa que é apurado o seu lucro tributável, mas este não é tributado na sociedade, mas sim imputado aos sócios e incluído no rendimento destes, em sede de IRS.
Nos anos de 2013 e 2015, a sociedade de que a Requerente é sócia prestou serviços a uma sociedade sua cliente – a C..., Lda, tendo, por esses serviços, faturado a importância de € 25.357,35.
Esses montantes constituíram rendimento – tributado, uma vez que foi incluído no lucro tributável respetivo – nos exercícios de 2013, 2014 e 2015.
Contudo, esses montantes não foram pagos à sociedade no tempo devido.
Em 2019, encontrando-se ainda por pagar os montantes em dívida, a sociedade reconheceu uma perda por imparidade, a qual tem a função de anular o rendimento que foi contabilizado como tal aquando da faturação, mas que não se traduziu em rendimento efetivo, uma vez que não foi pago.
A constituição de perdas por imparidade, para efeitos fiscais, está sujeita a apertadas regras temporais, que se encontram previstas no artigo 28º-B do CIRC.
De acordo com estas regras, estando o crédito em mora há mais de seis meses e até doze meses (e existindo provas objetivas de risco de cobrança e de terem sido efetuadas diligências para o seu recebimento), pode/deve ser reconhecida uma imparidade de 25% do montante do crédito; estando o crédito em mora há mais de doze meses e até dezoito meses, pode/deve ser reconhecida uma imparidade de 50% do montante do crédito; estando o crédito em mora há mais de dezoito meses e até 24 meses, pode/deve ser reconhecida uma imparidade de 75% do montante do crédito; e estando o crédito em mora há mais de 24 meses, pode/deve ser reconhecida uma imparidade de 100% do montante do crédito.
Encontrando-se o crédito em mora já em 2015 e havendo, ou considerando a AT que havia, já então, prova do risco de cobrança, as perdas por imparidade deveriam ter (para efeitos fiscais) começado a ser reconhecidas nessa data e sucessivamente nos anos seguintes de acordo com as percentagens anteriormente referidas.
Não foi o que aconteceu, tendo a perda por imparidade sido reconhecida, em 100%, apenas no exercício de 2019.
No ano de 2019, portanto, o lucro tributável da B..., RL veio diminuído pelo valor da imparidade reconhecida, no montante de € 25.357,35.
Em 2021, a sociedade B..., RL recebeu parte do valor em dívida da cliente C... . O valor recebido foi de 24.393,06 euros. Na sequência desse recebimento, a perda por imparidade reconhecida em 2019 foi revertida em 24.393,06 euros, tendo como consequência que parte do montante deduzido ao lucro tributável de 2019 como perda, parte no valor de 24.393,06 euros, foi acrescido ao lucro tributável de 2021.
Tendo sido acrescido ao lucro tributável de 2021 da Sociedade, foi imputado à Requerente, em 99%, de acordo com a percentagem detida por esta no capital da Sociedade, no rendimento de 2021, e assim sujeito a IRS.
Em 2022, a sociedade B..., RL é objeto de uma inspeção incidente sobre o exercício de 2019. Na sequência dessa inspeção, a Autoridade Tributária, considerando que a imparidade reconhecida nesse exercício não respeitava as regras de imputação temporal do artigo 28.º-B do CIRC, anulou essa imparidade, acrescendo o respetivo montante ao lucro tributável do exercício de 2019.
Temos então que o mesmo valor de 24.393,06 euros foi acrescido como rendimento ao lucro tributável de 2015; como não foi recebido, foi deduzido (como imparidade) ao lucro de 2019; e como foi, finalmente, recebido, voltou a ser acrescido ao lucro de 2021.
A Requerente, na qualidade de sócia, viu também o seu rendimento pessoal incrementado, na proporção da sua quota (99%) em 2015, depois teve o seu rendimento diminuído pelo mesmo montante em 2019 e, finalmente, teve novamente o seu rendimento aumentado em 2021.
Em 2022, a Requerente pagou IRS sobre o montante faturado em 2015, mas apenas recebido em 2021.
Ao mesmo tempo, a Autoridade Tributária corrigiu o lucro tributável de 2019, aumentando-o no valor da dívida, e, consequentemente, aumentou também o rendimento pessoal da Requerente no mesmo montante.
É evidente que, desta forma, a Autoridade Tributária impõe à Requerente que pague duas vezes o imposto correspondente ao mesmo rendimento.
A Requerente alega que este procedimento é ilegal, pois se traduz numa duplicação de coleta. A Autoridade Tributária contrapõe não se verificarem os pressupostos de uma situação de duplicação de coleta, previstos no n.º 1 do artigo 205.º do CPPT, desde logo porque não existe identidade do facto tributário, e, em segundo lugar, porque o tributo não se refere ao mesmo período de tempo.
E, para fundamentar esta posição, diz a AT que:
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O facto tributário não é o mesmo nos dois atos de tributação. Um facto tributário é a “perda por imparidade reconhecida no exercício de 2019”, e outro facto tributário é “a reversão da perda por imparidade”.
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Também não é o mesmo o período temporal, pois a «perda por imparidade» inscrita pelo sujeito passivo diz respeito ao exercício de 2019, ao passo que «a reversão por perda» corresponde ao exercício de 2021.
Com o devido respeito, o facto tributário é o mesmo. Num imposto sobre os lucros (IRC ou IRS), o facto tributário é o lucro, o qual é composto, positivamente, por rendimentos e, negativamente, por gastos e perdas. Se podemos dizer, por necessidade de análise, que um determinado rendimento, que contribui positivamente para o lucro, é um facto tributário - é na verdade, uma parcela do facto tributário – nunca se poderá dizer que uma perda é um facto tributário, pois sobre uma perda não incide qualquer imposto.
Nos dois atos de tributação, o facto tributário é o rendimento proveniente da prestação de serviços efetuada à C..., Lda. A “perda por imparidade reconhecida no exercício de 2019” não é nem nunca poderia ser um facto tributário, desde logo, por ser uma perda. A reversão da imparidade não é, em si mesma, um rendimento. É o reconhecimento de um rendimento. O rendimento que é reconhecido nessa reversão da imparidade é sempre o mesmo: é o rendimento proveniente da prestação de serviços efetuada à C..., Lda entre 2013 e 2015.
O facto tributário é o mesmo e diz respeito ao mesmo exercício, que é o exercício em que o rendimento foi reconhecido pela primeira vez (exercícios de 2013 a 2015).
Portanto, existe, sem dúvida, uma duplicação de coleta.
A questão, contudo, não deve ser resolvida com recurso à figura da duplicação de coleta que, aliás, constitui um fundamento de oposição à execução e não um vício do ato de liquidação.
Os tribunais administrativos têm repetidamente afirmado que, em observância do princípio da Justiça, quando a administração tributária anula um gasto reconhecido erradamente pelo sujeito passivo, está obrigada a efetuar a correção simétrica.
Assim, no acórdão do STA no processo 1874/05.4BEPRT (ac. STA 2 Sec de 18.05.2022, Rel: Pedro Vergueiro), lê-se no respetivo sumário: “A desconsideração fiscal de uma provisão para despesas para crédito vencido implica a anulação do correspondente proveito, tendo presente que, no caso, tais despesas não se encontravam garantidas e que não surge controvertido que a cobrança não se realizou até ao final do terceiro mês posterior ao vencimento do crédito.”
Já no texto do acórdão o Tribunal afirma: “No entanto, o art. 58.º da LGT e o art. 6.º do RCPIT, que definem os princípios do inquisitório e da verdade material, impõem à AT a realização oficiosa de todas as diligências necessárias à descoberta da verdade material, a nível do apuramento da situação tributária do contribuinte, o que permite concluir que é dever da AT, no âmbito do apuramento da matéria tributável, não só retirar relevância fiscal aos elementos de facto resultantes de atos dos contribuintes que os favoreçam indevidamente, mas também atribuir relevância tributária a situações de facto que os favoreçam, independentemente de estes terem praticado os atos que deveriam evidenciá-las”.
No acórdão do mesmo tribunal no processo 655/16.4BEBRG (Ac. STA 2 Sec. de 08.11.2023. Rel: Joaquim Condesso), lê-se no respetivo sumário: “III. Do referido artº.18, do C.I.R.C., resulta uma vinculação para a A. Fiscal, a qual, em regra, deve aplicar o princípio da especialização dos exercícios na sua actividade de fiscalização das declarações apresentadas pelos contribuintes. Mas, o exercício deste poder de controlo, predominantemente vinculado, pode conduzir a uma situação flagrantemente injusta e, nessas situações, é de fazer operar o princípio da justiça, consagrado nos artºs.266, nº.2, da C.R.P., e 55, da L.G.T., para obstar a que se concretize essa situação de injustiça repudiada pela Constituição. IV. Numa situação destas, em que não seja possível a "correção simétrica", por razões de tempestividade, a doutrina e a jurisprudência veem afirmando que o custo, ainda que indevidamente contabilizado, deve ser aceite, quando a respetiva imputação não tenha resultado de omissões voluntárias e intencionais do sujeito passivo, com vista a operar a transferência de resultados entre exercícios, tudo tendo por fundamento o princípio da capacidade contributiva, o qual não permite a duplicação de imposto incidente sobre o mesmo facto tributário.”
No texto da decisão lê-se: “Na ponderação dos valores em causa (por um lado o princípio da especialização dos exercícios que é uma regra legislativamente arbitrária de separação temporal, para efeitos fiscais, de um facto tributário que pode abarcar mais do que um ano fiscal e, por outro lado, o princípio da justiça, que reflete uma das preocupações nucleares de um Estado de Direito), é manifesto que, numa situação de conflito, se deve dar prevalência a este último princípio.”
No acórdão do STA no processo 1417/15.1BEALM (Ac. STA 2 Sec. de 31.05.2023. Rel: Paula Cadilhe Ribeiro), lê-se no sumário: “I - A correção em razão da aplicação do princípio da especialização de exercícios impõe a correção do exercício onde foi omitida a dedução do gasto, pelo que nos casos em que tal operação se torna inviável é convocável o princípio da justiça.”
É ainda especialmente importante, pela extensão e detalhe da fundamentação, o acórdão do STA no processo 291/08 (Ac. STA 2 Sec. de 25.06.2008. Rel: Brandão de Pinho), em que o tribunal discorre nos seguintes termos: “O princípio da especialização económica dos exercícios traduz-se justamente em que devem ser considerados como custos de determinado exercício os encargos que economicamente lhe sejam imputáveis, sendo, em consequência, irrelevante o exercício em que se efectua o seu pagamento. Assim, tal princípio, no seu extremo rigor, leva a que só possam ser imputados a cada ano os proveitos e custos nele verificados, independentemente dos respetivos recebimentos e pagamentos. O princípio não pode, todavia, ser entendido com uma tal rigidez. Como logo resulta do próprio texto legal. Dispõe efetivamente o n.º 2 do predito artigo 18.º que ‘as componentes positivas ou negativas consideradas como respeitando a exercícios anteriores só são imputáveis ao exercício quando na data de encerramento das contas daquele a que deveriam ser imputadas eram imprevisíveis ou manifestamente desconhecidas’. Ao contrário do que pretende a recorrente, não é esse, todavia, o caso dos autos. Aí, como ela própria reconhece, o diferimento dos custos resultou de erro devido ao seu sistema informático pelo que, como refere a sentença, sibi imputet. Pois que erros humanos não são imprevisíveis nem podem ser manifestamente desconhecidos. Como bem refere o Exmo. Magistrado do Ministério Público, tal n.º 2 não pode cobrir erros contabilísticos ou atos do próprio contribuinte: ‘a norma há de interpretar-se no sentido de que essa impossibilidade e/ou esse desconhecimento, para serem relevantes, hão de decorrer de situações externas que o contribuinte não pode controlar’. Todavia, a predita rigidez ainda por outros caminhos deve ser atenuada. O que tem tido eco tanto na doutrina como na jurisprudência e, até, na própria administração fiscal. Na verdade e em idêntica matéria, ainda que respeitante à abolida Contribuição Industrial, onde vigoravam princípios e normas semelhantes, aquela rigidez foi flexibilizada, através do Ofício-Circular C-1/84, de 18 de Junho, consequência do parecer do Centro de Estudos Fiscais publicado in Ciência e Técnica Fiscal 307/309, p. 781 e ss., sobre que recaiu despacho de concordância do Secretário de Estado do Orçamento de 8 de Junho de 1984, acabando o fisco por adotar, pois, posição mais flexível quanto ao problema. E, bem assim, a jurisprudência deste STA – cfr. os acórdãos de 13 de Novembro de 1996 – recurso n.º 20.456, de 23 de Fevereiro de 2000 – rec. 24.039 e, mais recentemente, de 25 de Janeiro de 2006, recurso n.º 0830/05. Assim, sem pôr em causa a relevância fiscal do princípio da especialização dos exercícios, permite-se a imputação de custos a exercícios anteriores, quando ela não tenha resultado de omissões voluntárias e intencionais, com vista a operar transferência de resultados entre exercícios, exemplificando-se com casos - em que tal se presumiria - como “quando está para acabar ou, para se iniciar um período de isenção, quando há interesse em reduzir os prejuízos de determinado exercício, para retirar benefícios do seu reporte e quando se pretende reduzir o montante dos lucros tributáveis para reduzir a contribuição industrial” - Cfr. Ciência e Técnica Fiscal 349-84 e Manuel Henrique de Freitas Pereira, A periodização do lucro tributável, 1986. Como, aliás, desenvolvidamente comentam Diogo Leite Campos, Benjamin Rodrigues e Jorge de Sousa, in Lei Geral Tributária anotada, 3.ª edição, pp. 242-243: Transcorrido ‘o prazo em que podiam ser efetuadas correções”, “se a administração fiscal tinha razão na correção que efetuou, o contribuinte, em princípio, teria sido prejudicado pelo seu próprio erro ao declarar a matéria coletável, pois, abatendo um custo no ano seguinte àquele em que o deveria ter deduzido, deixou de ver diminuído o montante do imposto correspondente no ano em que tal diminuição deveria ter ocorrido, para só ver tal diminuição ocorrer no ano seguinte e, paralelamente, a administração fiscal não tinha tido qualquer prejuízo, pois recebera no ano anterior o imposto sem que fosse tido em conta esse custo que o deveria diminuir’ pois, em tal circunstância, ‘o contribuinte, que já era o único prejudicado pelo seu erro, veria ainda agravada a sua situação, vendo-se impossibilitado de efetuar a dedução desse custo em qualquer dos anos. A administração fiscal, assim, reteria em seu poder um imposto a que manifestamente não teria direito. Esta é uma situação em que o exercício de um poder vinculado (correção da matéria coletável em face de uma violação do princípio da especialização dos exercícios) conduz a uma situação flagrantemente injusta e em que, por isso, se coloca a questão de fazer operar o princípio da justiça, consagrado nos artigos 266.º, n.º 2, da Constituição, e 50.º da Lei Geral Tributária, para obstar à possibilidade de efetuar a referida correção. Há, nesta situação, dois deveres a ponderar, ambos com cobertura legal: um é o de repor a verdade sobre a determinação da matéria coletável dos exercícios referidos, dando execução ao princípio da especialização, reposição essa que a administração fiscal deve efetuar mesmo que não lhe traga qualquer vantagem; outro é o de evitar que a actividade administrativa se traduza na criação de uma situação de injustiça. Entre esses dois valores, designadamente nos casos em que a administração fiscal não teve qualquer prejuízo com o erro praticado pelo contribuinte, deve optar-se por não efetuar a correção, limitando aquele dever de correção por força do princípio da justiça. Por outro lado, é de notar que numa situação deste tipo não se verifica sequer qualquer interesse público na atuação da administração fiscal, pois não está em causa a obtenção de um imposto devido, pelo que, devendo toda a actividade administrativa ser norteada pela prossecução deste interesse, a administração deveria abster-se de atuar. Consequentemente, serão de considerar anuláveis, por vício de violação de lei, atos de correção da matéria tributável que conduzam a situações injustas deste tipo’.”
No caso dos autos, já não se trata de anular as correções que a Autoridade Tributária efetuou ao exercício de 2019. Aliás, a decisão arbitral proferida no processo nº 196/2024, que a Requerida invocou como prejudicial à presente instância, veio solidificar na ordem jurídica a quantificação do lucro tributável de 2019 incluindo eliminando dele as imparidades discutidas.
O que a Requerente pretende é que seja efetuada no exercício de 2021 a correção simétrica daquela efetuada em 2019, sendo o resultado absolutamente o mesmo.
Vejamos, de acordo com a posição que a Autoridade Tributária expressa no relatório de inspeção à sociedade B..., SP, RL, esta devia ter reconhecido as imparidades relativas aos créditos em mora sobre a C..., Lda.
A sociedade não o fez, vindo a reconhecer as imparidades em causa em 2019. Com este procedimento, a sociedade, ao invés de retirar para si uma vantagem fiscal, criou para si uma desvantagem e um benefício para o Estado, pois protelou a dedução do gasto em entre quatro a seis anos. A sociedade reverteu a imparidade no ano em que o devia fazer, 2021. Admitindo que a sociedade cometeu um erro contabilístico em 2013, 2014 ou 2015, o que aqui não está em causa, com esse erro não causou qualquer prejuízo ao Estado.
Ora, como se diz no acórdão do STA de 31.05.2023 citado, a correção em razão da aplicação do princípio da especialização de exercícios impõe a correção do exercício onde foi omitida a dedução do gasto. No caso, esta correção já não era possível, pois o exercício a corrigir seria o de 2015, estando a correção a ser efetuada em 2022. Mas como se diz no mesmo acórdão, nos casos em que a correção simétrica é impossível, é convocável o princípio da justiça.
Como se diz no acórdão do mesmo tribunal de 08.11.2023, igualmente citado supra, fazer operar o princípio da justiça, implica que a desconsideração fiscal de uma provisão para despesas para crédito vencido seja compensada pela anulação do correspondente proveito. Pois “[n]a ponderação dos valores em causa (por um lado o princípio da especialização dos exercícios que é uma regra legislativamente arbitrária de separação temporal, para efeitos fiscais, de um facto tributário que pode abarcar mais do que um ano fiscal e, por outro lado, o princípio da justiça, que reflete uma das preocupações nucleares de um Estado de Direito), é manifesto que, numa situação de conflito, se deve dar prevalência a este último princípio.”
Ao não permitir a correção do lucro de 2021, como se afirmou no acórdão do STA de 31.05.2023, também citado supra, a administração fiscal reteria em seu poder um imposto a que manifestamente não teria direito, pois já cobrou imposto sobre o mesmo facto tributário num exercício fiscal anterior. Citando o mesmo aresto, “[e]sta é uma situação em que o exercício de um poder vinculado (correção da matéria coletável em face de uma violação do princípio da especialização dos exercícios) conduz a uma situação flagrantemente injusta e em que, por isso, se coloca a questão de fazer operar o princípio da justiça, consagrado nos artigos 266.º, n.º 2, da Constituição, e 50.º da Lei Geral Tributária, para obstar à possibilidade de efetuar a referida correção. Há, nesta situação, dois deveres a ponderar, ambos com cobertura legal: um é o de repor a verdade sobre a determinação da matéria coletável dos exercícios referidos, dando execução ao princípio da especialização, reposição essa que a administração fiscal deve efetuar mesmo que não lhe traga qualquer vantagem; outro é o de evitar que a actividade administrativa se traduza na criação de uma situação de injustiça.”
Ora, a verdade sobre a determinação da matéria coletável é que o facto jurídico – o rendimento de 24.393,06 euros recebido da C..., Lda. foi tributado no exercício de 2019.
Tendo a Requerente pedido à Autoridade Tributária, na reclamação graciosa deduzida, que expurgasse o rendimento de 2021 desse rendimento já tributado, a requerente formulou um pedido coerente com o princípio da justiça, com a verdade sobre a determinação da matéria coletável e com o princípio da tributação segundo o princípio da capacidade contributiva, tendo a AT o dever, em face da jurisprudência consolidada, de conceder provimento ao pedido da Requerente.
VII – DECISÃO
Pelo exposto, o Tribunal Arbitral decide julgar totalmente procedente o pedido e anular a liquidação de IRS nº 2022..., referente ao rendimento da Requerente do ano de 2021, na parte correspondente à imputação à Requerente, ao abrigo do regime da transparência fiscal, do rendimento de 24.393,06 euros tributado na sociedade B..., SP, RL em 2019, que, por não ter sido este valor contestado pela AT, se computa em 11.708,67 euros.
VIII - VALOR DO PROCESSO
Em conformidade com o disposto nos artigos 306.º, n.º 2 do CPC e 97.ºA do CPPT, e artigo 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, o valor do pedido é fixado em 11.708,67 € (onze mil, setecentos e oito euros e sessenta e sete cêntimos).
IX - CUSTAS ARBITRAIS
Nos termos do disposto nos artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e no artigo 4.º, n.º 4 do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o valor da taxa de arbitragem em 918.00 € € nos termos da Tabela I do mencionado Regulamento, a cargo da Requerida Autoridade Tributária e Aduaneira.
Registe-se e notifique-se.
Porto, 18 de outubro de 2024
O Árbitro
(Nina Aguiar)