Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 179/2024-T
Data da decisão: 2024-10-08  IMT  
Valor do pedido: € 96.000,00
Tema: IMT – Litispendência substantiva.
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SUMÁRIO

  1. A litispendência ocorre quando duas ações idênticas se encontram em curso ao mesmo tempo, constituindo uma exceção dilatória que tem por objetivo evitar que o tribunal contradiga ou reproduza uma outra decisão judicial (ou arbitral) que venha a ser proferida numa ação ainda em curso.
  2. A litispendência ocorre se, cumulativamente, numa ação, intervierem as mesmas partes, sob a mesma qualidade jurídica, pretendendo obter, nessa ação, o mesmo efeito jurídico e esse efeito jurídico tiver por causa o mesmo facto jurídico (tríplice identidade dos elementos que definem a acção).
  3. Todavia, para determinar se ocorre litispendência, deve atender-se não só ao critério formal (assente na tríplice identidade dos elementos que definem a acção) fixado e desenvolvido no artigo 581.º do Código Processo Civil, mas também à diretriz substantiva traçada no n.º 2 do artigo 580.º do mesmo Código, onde se afirma que a excepção de litispendência tem “por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior”.

 

DECISÃO ARBITRAL

Os árbitros Prof.ª Doutora Rita Correia da Cunha (Presidente), Prof. Doutor Jorge Bacelar Gouveia e Dra. Carla Alexandra Pacheco de Almeida Rocha da Cruz (árbitros adjuntos), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formarem o Tribunal Arbitral, acordam no seguinte:

  1. RELATÓRIO

A..., com o número de identificação fiscal..., com domicílio fiscal na ..., n.º..., ..., ..., Brasil (“a Requerente”), veio, em 08-02-2024, na sequência da formação da presunção de indeferimento tácito da reclamação graciosa n.º ...2023..., apresentada contra a liquidação oficiosa de Imposto sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis (“IMT”) respeitante à aquisição da letra “A” do prédio urbano sito na Rua..., na ..., inscrito na matriz predial urbana da freguesia da ..., município de Lisboa, sob o artigo matricial n.º ... (“Imóvel”), nos termos e para efeitos previstos no n.º 1 do artigo 41.º do Código do IMT, e nos termos do disposto na alínea a) do n.º 1 e n.º 2 do artigo 10.º do RJAT, requerer a constituição de tribunal arbitral coletivo e apresentar pedido de pronúncia arbitral (“PPA”), em que é requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (“AT” ou “Requerida”), com vista à declaração de ilegalidade e anulação do referido ato de indeferimento tácito de reclamação graciosa e da referida liquidação de IMT, com as necessárias consequências legais, nomeadamente, a devolução do imposto indevidamente pago, no montante de € 96.000,00, acrescido de juros indemnizatórios.

O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD em 12-02-2024 e automaticamente notificado à Requerida.

Em 01-04-2024, o Senhor Presidente do CAAD informou as Partes da designação dos Árbitros, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, os quais comunicaram a respetiva aceitação no prazo aplicável. As partes, notificadas dessa designação, não manifestaram vontade de a recusar.

Assim, em conformidade com o preceituado no n.º 8 do artigo 11.º do RJAT, decorrido o prazo previsto no n.º 1 do artigo 11.º do RJAT sem que as Partes nada viessem dizer, o Tribunal Arbitral Colectivo ficou constituído em 19-04-2024.

Na mesma data, em conformidade com o disposto no artigo 17.º, n.º 1, do RJAT, a Requerida foi notificada para, no prazo de 30 dias, apresentar resposta e, querendo, solicitar produção de prova adicional.

Em 22-05-2024, a Requerida apresentou a sua resposta, defendendo-se por impugnação e por exceção, e juntou o processo administrativo.

Em 02-06-2024, o Tribunal Arbitral proferiu o seguinte despacho:

“1. Notifique-se a Requerente para, no prazo de 10 dias, se pronunciar sobre as exceções suscitadas pela AT Requerida na resposta, e sobre uma eventual suspensão da instância.

2. Notifique-se a Requerente para, no mesmo prazo de 10 dias, indicar os factos sobre os quais incidiria a inquirição da testemunha que arrolou no pedido de pronúncia arbitral.”

Em 13-06-2024, a Requerente apresentou defesa contra as exceções e questões prévias suscitadas pela Requerida na sua resposta.

Em 11-09-2024, o Tribunal Arbitral proferiu o seguinte despacho:

“1. Ao abrigo do princípio da autonomia do Tribunal Arbitral na condução do processo e da livre determinação das diligências de prova necessárias (cf. artigo 16.º, alíneas c) e e), do RJAT), o Tribunal Arbitral:

a. Dispensa a realização da reunião do artigo 18.º do RJAT, considerando a inexistência de prova testemunhal por produzir, e que as partes não contendem quanto à matéria de facto relevante, 

b. Dispensa a apresentação de alegações escritas finais, dada a clareza da posição das partes vertida nos articulados apresentados, e por a Requerente ter já respondido, em requerimento autónomo, às exceções suscitadas pela AT Requerida na resposta.

2. Notifique-se a Requerente para, no prazo de 5 dias, informar o Tribunal Arbitral sobre a data em que foi intentada a ação administrativa que corre junto do Tribunal Tributário de Lisboa sob o n.º .../23.5BELRS, e se já foi proferida sentença.

3. Notifique-se a Requerente para, no mesmo prazo de 5 dias, proceder ao pagamento da taxa arbitral subsequente.

4. Notifique-se as partes de que a decisão arbitral será proferida até ao final do prazo do artigo 21.º, n.º 1, do RJAT.”

As partes nada vieram acrescentar, tendo a Requerente procedido ao pagamento da taxa arbitral subsequente em 20-09-2024.

 

  1.   SANEAMENTO

O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias (nos termos dos artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT, e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março) e estão devidamente representadas.

A Requerida invocou várias exceções que obstam ao conhecimento de mérito da causa e que cumpre conhecer antes de passarmos à apreciação do matéria de facto e de direito.

Da incompetência material absoluta do Tribunal Arbitral para apreciar atos praticados em sede de processo de execução fiscal

Alega a Requerida, na sua resposta, que o ato de liquidação impugnado pela Requerente é um ato de citação do processo executivo, não abrangido no âmbito da competência material do Tribunal Arbitral, nos termos do artigo 2.º do RJAT e da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.

Todavia, do PPA apresentado pela Requerente resulta que esta apresentou o mesmo contra a liquidação de IMT que sustenta o processo de execução fiscal n.º ...2023..., não havendo dúvidas quanto à competência material do Tribunal Arbitral para se pronunciar sobre o peticionado pela Requerente nos presentes autos.

Assim, improcede a primeira exceção invocada pela Requerida.

 

Da exceção de litispendência entre o processo arbitral e a ação administrativa  n.º .../23.5BELRS

A Requerida alega, na resposta, que a Requerente interpôs junto do Tribunal Tributário de Lisboa uma ação administrativa (à qual foi atribuído o n.º .../23.5BELRS), onde peticiona a anulação da decisão do Chefe de Finanças de Lisboa ..., de 30-01-2023, e que o presente Tribunal Arbitral encontra-se perante a possibilidade de ser colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão judicial.

A Requerente argumenta que não ocorre litispendência entre as duas ações, porquanto na ação administrativa está em causa a decisão de revogação do benefício fiscal (isenção em sede de IMT), enquanto na ação arbitral está em causa a legalidade da liquidação de IMT. Sendo os respetivos objetivos e os pedidos distintos, a exceção de litispendência deverá, no entender da Requerente, ser julgada como improcedente.

Neste contexto, interessa recordar o disposto no artigo 580.º do CPC:  

“1 – As exceções da litispendência e do caso julgado pressupõem a repetição de uma causa; se a causa se repete estando a anterior ainda em curso, há lugar à litispendência; se a repetição se verifica depois de a primeira causa ter sido decidida por sentença que já não admite recurso ordinário, há lugar à exceção do caso julgado.  

2 – Tanto a exceção da litispendência como a do caso julgado têm por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior. (…)”      

Nos termos do artigo 581.º, n.º 1, do CPC, os requisitos para a verificação das exceções da litispendência e do caso julgado são os seguintes:

“1 – Repete-se a causa quando se propõe uma ação idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir.  

2 – Há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica.  

3 – Há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico.  

4 – Há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico. Nas ações reais a causa de pedir é o facto jurídico de que deriva o direito real; nas ações constitutivas e de anulação é o facto concreto ou a nulidade específica que se invoca para obter o efeito pretendido.”

Com referência à matéria de facto relevante, dão-se como provados os seguintes factos:

  1. Em 26-05-2015, a AT emitiu, a pedido da Requerente, a liquidação de IMT n.º..., a zeros, com base na alínea g) do artigo 6.º do Código de IMT  (“aquisições de prédios individualmente classificados como de interesse nacional, de interesse público ou de interesse municipal”) (cf. Documento 4 junto ao PPA).
  2. Em 02-07-2015, a Requerente adquiriu o Imóvel (cf. Documento 3 junto ao PPA), beneficiando da referida isenção de IMT.
  3. A Requerente foi notificada do Ofício n.º ..., de 23-03-2022, do Serviço de Finanças de Lisboa ..., informando que deveria solicitar guias de IMT com referência à aquisição do Imóvel, por não se encontrarem verificados os pressupostos da isenção prevista na alínea g) do artigo 6.º do Código de IMT (cf. Documento 6 junto ao PPA).
  4. Após exercer o seu direito de audição prévia (cf. Documento 7 junto ao PPA), a Requerente foi notificada, pelo Ofício n.º 2023..., de 30-01-2023, da decisão de “caducidade do benefício”, na qual se pode ler: “Mais se informa que as guias para efeitos de regularização do IMT, deverão ser solicitadas no prazo de 15 dias após a receção da presente notificação (...), caso as mesmas não sejam solicitadas, procederá o serviço à sua liquidação adicional”, e à qual foi junta a seguinte informação:

 

 

(cf. Documento 8 junto ao PPA).

 

  1. Em 10-07-2023, a Requerente apresentou uma reclamação graciosa (que correu termos sob o n.º ...2023...) contra a liquidação de IMT emitida na sequência da referida decisão de caducidade do benefício (cf. Documento 2 junto ao PPA).
  2. A  Requerente interpôs no Tribunal Tributário de Lisboa uma ação administrativa de impugnação de ato administrativo (a correr termos sob o n.º .../23.5BELRS), peticionado a anulação da decisão de caducidade do benefício, notificada pelo Ofício n.º 2023..., de 30-01-2023, ou seja, a “anulação da decisão de revogação do benefício fiscal ora sindicada, com as devidas e legais consequências, designadamente, ser mantida na esfera jurídica dos Autores o reconhecimento da isenção de IMT em apreço” (cf. alegado no artigo 26.º da Resposta e petição inicial da ação administrativa junta ao processo administrativo).
  3. Em 08-02-2024, a Requerente apresentou o PPA que deu origem aos presentes autos, peticionando a declaração de ilegalidade e anulação da decisão tácita de indeferimento da reclamação graciosa n.º ...2023..., e da liquidação de IMT emitida na sequência da decisão de caducidade do benefício em apreço.
  4. Os fundamentos que sustentam a petição inicial que deu origem à acção administrativa n.º .../23.5BELRS e o PPA que deu origem aos presentes autos são os mesmos.

Temos que assiste razão à Requerida no sentido de que se encontram verificados os requisitos da litispendência entre o processo arbitral e a ação administrativa n.º .../23.5BELRS. Senão vejamos.

Não há dúvidas de que existe identidade de sujeitos, pois quer a Requerente quer a Requerida são as mesmas em ambos os litígios.

Quanto há identidade do pedido e da causa de pedir, importa salientar que a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo e dos Tribunal Arbitrais sustenta que poderá haver litispendência na ausência de identidade formal entre o pedido e a causa de pedir, desde que haja identidade substancial entre os mesmos, o que sucede quando o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou repetir uma decisão a proferir por outro tribunal numa ação pendente.

Conforme resulta do Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 22-02-2017, proferido no âmbito do processo n.º 087471: “Não obsta à verificação da exceção de litispendência que a impugnação deduzida em primeiro lugar seja formalmente dirigida ao acto de indeferimento de recurso hierárquico e a outra directamente dirigida ao acto de liquidação, se os pedidos e causa de pedir são substancialmente idênticos e nenhum vício próprio é imputado ao indeferimento”.

Note-se que, in casu, está em causa um ato de indeferimento tácito de reclamação graciosa, que, pela sua natureza, não sofre de qualquer vício próprio.

Cumpre também referir a Decisão Arbitral proferida em 24-01-2024, no processo n.º 384/2023-T, na qual o Tribunal Arbitral determinou a ocorrência de litispendência com base numa identidade substancial entre o pedido e a causa de pedir, por o sujeito passivo ter recorrido à ação administrativa para obter a anulação de uma decisão de indeferimento do reconhecimento de uma isenção de IMT, e ao pedido de pronúncia arbitral para obter a anulação da liquidação de IMT emitida com base na referida decisão de indeferimento do reconhecimento de uma isenção de IMT.

Interessa então apurar se o presente Tribunal Arbitral é colocado na alternativa de contradizer a decisão a proferir pelo Tribunal Tributário de Lisboa na ação administrativa de impugnação de ato administrativo com o n.º .../23.5BELRS?

Quanto a esta questão, a resposta não poderá deixar de ser afirmativa, porquanto (A) o presente Tribunal Arbitral poderia determinar que (i) o ato de indeferimento tácito da reclamação graciosa e a liquidação de IMT impugnados são ilegais, com um dos fundamentos invocados pela Requerente, designadamente, por a decisão de revogação de benefício fiscal ser ilegal, e que (ii) a liquidação de IMT não se poderia manter na ordem jurídica, e (B) o Tribunal Tributário de Lisboa poderia concluir que a mesma decisão de revogação de benefício fiscal é legal, sendo a consequência de tal decisão judicial que (ii) a liquidação de IMT em causa deveria manter-se na ordem jurídica (ou vice-versa).

Daqui se retira que, no caso sub judice, mostra-se verificada a tríplice identidade de autor, pedido e causa de pedir, de um ponto de vista substancial. De facto, embora formalmente não exista identidade formal dos pedidos, entende-se que, na acção administrativa e no pedido de pronúncia arbitral em apreço, o pedido e a causa de pedir são substancialmente os mesmos.

Perante o que vem dito e citado, não restam dúvidas quanto à verificação dos pressupostos da litispendência, o que se decide, ficando prejudicado o conhecimento do mérito da causa. Em consequência, o Tribunal Arbitral julga procedente a invocada excepção da litispendência, e absolve a Requerida da presente instância arbitral.

 

  1. DECISÃO

Termos em que, de harmonia com o exposto, decide-se neste Tribunal Arbitral julgar procedente a excepção da litispendência, e absolver a Requerida da presente instância arbitral.

 

  1. VALOR DA CAUSA

De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, no artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT (aplicáveis ex vi alíneas c) e e) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT) e no artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 96.000,00 indicado no PPA pela Requerente, sem oposição da Requerida.

 

  1. CUSTAS

Nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, do RJAT, 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, e da Tabela I anexa a esse Regulamento, fixa-se o montante das custas arbitrais em € 2.754,00, ficando as mesmas totalmente a cargo da Requerente, em razão do decaimento.

Notifique-se.

 

 

CAAD, 8 de outubro de 2024

 

O Tribunal Arbitral,

 

 

Rita Correia da Cunha

 

Jorge Bacelar Gouveia

 

 

Carla Alexandra Pacheco de Almeida Rocha da Cruz