Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 800/2024-T
Data da decisão: 2024-10-17  IRS  
Valor do pedido: € 260.101,63
Tema: IRS – Inutilidade Superveniente da Lide
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SUMÁRIO:

I – Nos termos da alínea e) do artigo 277.º do Código do Processo Civil (CPC), aplicável ex vi pela alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT, a instância extingue-se com a impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide.

II - O evento que torna inútil a apreciação do mérito da causa, verificou-se em data anterior à constituição do Tribunal Arbitral Coletivo.

III - A anulação que o Requerente visava com o processo arbitral encontra-se atingida, pelo que, não oferece dúvida que a Decisão Arbitral que normalmente seria proferida, conhecendo do mérito da pretensão deduzida, se afigura destituída de qualquer efeito útil, pelo que não se justifica a sua prolação.

 

DECISÃO ARBITRAL

Os Árbitros Maria Fernanda dos Santos Maças (presidente), Paulo Ferreira Alves e Clotilde Celorico Palma (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formarem o Tribunal Arbitral Coletivo, constituído em 2 de setembro de 2024, acordam no seguinte:

I - RELATÓRIO

A -PARTES

A..., titular do NIF..., residente na Rua..., ..., ..., ...-... Colares, doravante designado de Requerente ou Sujeito Passivo, peticiona a declaração de ilegalidade do ato tributário de liquidação em sede de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) n.º 2024 ..., referente ao exercício de 2020, no valor de € 368 396,88 (trezentos e sessenta e oito mil, trezentos e noventa e seis euros e oitenta e oito cêntimos) e a condenação da AT, na devolução ao Requerente do imposto pago, assim como dos juros de mora e custas processuais.

É Requerida a Autoridade Tributaria e Aduaneira, doravante designada por Requerida ou AT.

O pedido de constituição do Tribunal Arbitral, foi aceite pelo Presidente do CAAD, em 27 de junho de 2024 e automaticamente notificada a Autoridade Tributária e Aduaneira, no dia 28 de junho de 2024.

De acordo com o preceituado nos artigos 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a) e 11.º, n.º 1, alínea a), todos do RJAT, por decisão do Senhor Presidente do Conselho Deontológico, devidamente comunicada às partes nos prazos legalmente aplicáveis, as quais nada disseram, foram designados árbitros os signatários que comunicaram ao Conselho Deontológico e ao Centro de Arbitragem Administrativa a aceitação do encargo no prazo regularmente aplicável.

Em conformidade, com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66­B/2012, de 31 de dezembro, o Tribunal Arbitral Coletivo foi constituído em 2 de setembro de 2024.

Em 2 de julho de 2024, o Tribunal proferiu despacho tendo em vista a notificação do dirigente máximo do serviço da AT para, no prazo de 30 (trinta) dias, apresentar resposta e, querendo, solicitar a produção de prova adicional.

A Requerida, em 26 de setembro de 2024, juntou um requerimento, informando:

No entanto, porque se visa a tributação do rendimento real, face aos elementos carreados para os presentes autos e atento o principio da verdade material, parece dever o apuramento IRS do ano de 2020 ser corrigido em conformidade, aceitando-se o beneficio da exclusão tributação parcial do ganho decorrente da alienação da HPP do contribuinte e o reinvestimento numa outra com idêntico destino e, na determinação do rendimento sujeito, no que ao valor de aquisição respeita, a ponderação a titulo de despesa comprovados, conforme se encontra explicitado nos pontos antecedentes.

Assim, deve promover-se a correção na declaração:

- No anexo G, Quadro 4, no campo referente a despesas e encargos o valor de 73.457,98€.

- No anexo G, quadro 5 –A, campo 5005 (valor em divida do empréstimo à data alienação) o montante de 705.906,11€.

Mantendo-se em tudo o mais os valores declarados e vigentes, sublinhando-se que na mod 3/anexo G do ano de 2021 o requerente declarou ter concretizado reinvestimento de 1.521.800€.

lV - Conclusão.

Após apreciação do pedido de pronúncia arbitral, afigura-se-nos que deverá ser deferido parcialmente o pedido.

Em 3 de outubro 2024, o Requerente informou os autos que não pretende prosseguir com a presente impugnação por inutilidade superveniente da lide

II – SANEAMENTO

O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído é materialmente competente, nos termos dos art.ºs 2.º, n.º 1, alínea a), e 30.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e encontram-se legalmente representadas (art.ºs 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e art.º 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

O processo não enferma de vícios que o invalidem.

III – DO MÉRITO

III.1. MATÉRIA DE FACTO

III.1.1. Factos provados

  1. Com relevo para a decisão da causa consideram-se provados os seguintes factos:

a)  Em 28 de junho de 2024, a AT foi notificada, por e-mail, da apresentação do pedido de pronúncia arbitral;

b)  Em 2 de setembro  de 2024, o Tribunal Arbitral ficou constituído;

c)  Em 15 de setembro de 2024, foi revogado parcialmente o acto de liquidação objeto do presente processo por despacho proferido pela Subdiretora-geral;

d)  A AT deu conhecimento aos autos, em 26 de setembro de 2024, da revogação do parcial do ato tributário.

e) Em 3 de outubro de 2024, a Requerente pronunciou-se informando “ requerer que o douto Tribunal se digne decretar a inutilidade superveniente da lide por, com o despacho de revogação parcial do acto impugnado junto com o referido requerimento, se mostrarem reconhecidos, no essencial, os direitos que o requerente pretendia ver reconhecidos com o presente pedido arbitral.”

 

III.1.3. Fundamentação da fixação da matéria de facto

Ao Tribunal incumbe o dever de selecionar os factos que interessam à decisão e discriminar a matéria que julga provada e declarar a que considera não provada, não tendo de se pronunciar sobre todos os elementos da matéria de facto alegados pelas partes, tal como decorre da aplicação conjugada do artigo 123.º, n.º 2, do Código de Procedimento e Processo Tributário (“CPPT”) e do artigo 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis por força do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT. Assim sendo, os factos pertinentes para o julgamento da causa foram selecionados e conformados em função da sua relevância jurídica, a qual é determinada tendo em conta as várias soluções plausíveis das questões de direito para o objeto do litígio, conforme decorre da aplicação conjugada do artigo 596.º, n.º 1, do CPC, aplicável por força do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT. Nestes termos, tendo em conta as posições assumidas pelas partes e a prova documental junta aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.

 

III.2. MATÉRIA DE DIREITO

III.2.1. Da inutilidade superveniente da lide

Como atrás referido, o ato de liquidação de IRS objeto da ação arbitral foi anulado (parcialmente) pela Requerida, na pendência da instância, pelo que a sua finalidade se esgotou. 

Atendendo a anulação por parte da AT da liquidação em apreço, vejamos quais as consequências efeitos legais sobre os presentes autos.

Neste âmbito, importa compulsar o artigo 277.º, alínea e) do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT, que determina que a instância se extingue com “a impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide”.

A impossibilidade da lide ocorre quer em caso de morte ou extinção de uma das partes, quer por desaparecimento do objeto do processo ou extinção de um dos interesses em conflito.

A inutilidade superveniente da lide tem lugar quando, em virtude de novos factos ocorridos na pendência do processo, a decisão a proferir já não tenha qualquer efeito útil, ou porque não é possível dar satisfação à pretensão que o demandante pretende fazer valer no processo, ou porque o fim visado com a ação foi atingido por outro meio.

A pretensão formulada pelo Requerente, de anulação do ato tributário de liquidação de IRS, ficou prejudicada pela decisão administrativa de “revogação” daquele (artigo 79.º, n.º 1 da LGT), que produziu os seus efeitos já na pendência da instância arbitral. Estamos, desta forma, perante uma vicissitude superveniente que eliminou o objeto da pretensão impugnatória deduzida pelo Requerente.

Com efeito, com a anulação administrativa pela AT, os efeitos jurídicos dos atos tributários são destruídos com eficácia retroativa, de acordo com o disposto no artigo 171.º, n.º 3 do Código do Procedimento Administrativo (“CPA”), verificando-se uma impossibilidade superveniente da lide. Como refere a Decisão Arbitral de 4 de novembro de 2013, no processo n.º 31/2013-T, do CAAD, “torna-se impossível juridicamente anular o que já não existe”. Em consequência, deve extinguir-se a instância processual, por se encontrar desprovida de objeto, nos termos do disposto nos artigos 277.º, alínea e) e 611.º do CPC, aplicáveis por remissão do citado artigo 29.º, n.º 1 alínea e) do RJAT.

Poderia suscitar-se a dúvida sobre a tempestividade da anulação administrativa, atendendo a que já havia decorrido o prazo de 30 (trinta) dias, a contar do conhecimento do pedido de constituição do Tribunal Arbitral, estabelecido no artigo 13.º, n.º 1 do RJAT para a AT proceder à “revogação, ratificação, reforma ou conversão do ato tributário cuja ilegalidade foi suscitada, praticando, quando necessário, ato tributário substitutivo”,  estipulando o n.º 3 desta norma que, findo este prazo, “a administração tributária fica impossibilitada de praticar novo ato tributário relativamente ao mesmo sujeito passivo ou obrigado tributário, imposto e período de tributação, a não ser com fundamento em factos novos”.

O preceito em apreço deve ser interpretado no sentido de que, uma vez transcorrido o mencionado prazo de 30 (trinta) dias, a AT fica impedida de praticar um novo ato dispositivo que regule a relação jurídico-tributária, relativamente ao mesmo sujeito passivo, imposto e período de tributação, exceto com fundamento em factos novos. Porém, esta restrição não ocorre em caso de simples anulação administrativa do ato impugnado, desacompanhada de nova regulação da situação jurídica.

Nesta última hipótese, afigura-se não merecer tutela o princípio da estabilidade da instância  subjacente às limitações legais à atuação administrativa no decurso de pendência jurisdicional, uma vez que a Parte vem, simplesmente, reconhecer que à outra assiste razão, com fundamento material na lei, e, nessa medida, permitir a resolução antecipada do litígio e consequente extinção da instância, com economia processual e de meios. Deixou de existir razão para a subsistência do litígio, pois, ainda que em momento superveniente, foi gerado consenso suportado na convergência das partes quanto ao regime legal aplicável.

Esta interpretação foi acolhida pelo Supremo Tribunal Administrativo em relação ao processo de impugnação judicial, que é regido pelo artigo 112.º do CPPT, o qual estabelece uma disciplina similar à do artigo 13.º, n.ºs 1 e 3 do RJAT, este último aplicável à ação arbitral tributária. Constituindo o processo arbitral tributário um meio alternativo à impugnação judicial, é inegável a manifesta identidade de razões, a que acresce o facto de o CPA e as normas sobre organização e processo nos tribunais administrativos e tributários serem de aplicação subsidiária ao processo arbitral tributário, por remissão do artigo 29.º, n. º1, alíneas c) e d) do RJAT.

Sobre a aplicação do regime do CPA à “revogação” de atos administrativos em matéria tributária preconiza o Supremo Tribunal Administrativo, no Acórdão proferido em 15 de março de 2017, no processo n.º 449/14, que:

“A possibilidade legal de revogação dos atos administrativos em matéria tributária está prevista no art. 79º da LGT (a revogação é um ato que faz cessar ou elimina os efeitos de um ato anterior, com fundamento na sua inconveniência ou invalidade, estando o respetivo regime previsto nos arts. 138° a 146° do CPA).

Todavia, não constando da LGT nem do CPPT norma definidora do prazo para tal revogação, é incontroverso que hão-de acolher-se as regras constantes dos arts. 136º e ss. do CPA, que diretamente regulam a revogação dos atos administrativos [sendo que o CPA constitui legislação complementar e subsidiária ao direito tributário – arts. 2º, al. c), da LGT e 2º, al. d), do CPPT (Cfr., por todos, o ac. desta Secção do STA, de 15/5/2013, proc. nº 0566/12; bem como Leite Campos, Benjamim Rodrigues e Jorge de Sousa, Lei Geral Tributária Anotada e comentada, 4ª ed., 2012, anotação 1 ao art. 79º, p. 724 e Lima Guerreiro, Lei Geral Tributária, anotada, Editora Rei dos Livros, pág. 350, nota 7.)]. […]”

No mesmo sentido da aplicabilidade do regime da invalidade administrativa aos atos em matéria tributária voltou o Supremo Tribunal Administrativo a pronunciar-se no Acórdão de 17 de dezembro de 2014, relativo ao processo n.º 454/14.

Por outro lado, o artigo 168.º, n.º 3 do CPA determina que a anulação de atos que tenham sido objeto de impugnação jurisdicional, como é o caso, pode ter lugar até ao encerramento da discussão.

É, assim, de concluir pela tempestividade da anulação administrativa efetuada por despacho de 21 de agosto de 2024 que, retira à lide arbitral o seu objeto, pelo que se julga extinta a instância processual, em conformidade com o disposto nos artigos 277.º, alínea e) e 611.º do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1 alínea e) do RJAT.

Ora, conforme resulta da matéria de facto provada nos presentes autos, o ato tributário impugnado pela Requerente foi revogado pela AT na pendência da instância, o que implica a inutilidade e impossibilidade deste Tribunal se pronunciar sobre o pedido sujeito a apreciação, i.e., declarar a ilegalidade e determinar a consequente anulação de um ato que já se encontra suprimido da ordem jurídica.

Em face do exposto, entende este Tribunal que se verifica a inutilidade superveniente da lide, devendo ser julgada extinta a instância, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 277.º, alínea e), do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.

 

III.2.2. Dos Juros Indemnizatórios.

Peticiona, ainda, o Requerente o pagamento de juros indemnizatórios, sendo imputável à Requerida, por força da revogação parcial do ato, a inutilidade superveniente da lide.

Na verdade, estando demonstrado que o Requerente pagou o imposto impugnado na parte superior ao que é devido, por força do disposto nos art.ºs 61.º do CPPT e 43.º da LGT, tem o Requerente direito aos juros indemnizatórios devidos, juros esses a serem contados desde a data do pagamento do imposto indevido (anulado) até à data da emissão da respetiva nota de crédito, contando-se o prazo para esse pagamento do início do prazo para a execução espontânea da presente decisão (art.º 61.º, n.ºs 2.ºa 5, do CPPTRIB), tudo à taxa apurada de harmonia com o disposto no n.º 4.ºdo artigo 43.º da LGT.

Dá-se assim provimento ao pedido do Requerente.

 

IV Decisão

De harmonia com o supra exposto, acordam os árbitros deste Tribunal Arbitral em:

  1. Declarar extinta a presente instância arbitral, por inutilidade superveniente da lide.
  2. Condenar a Requerida ao pagamento de juros indemnizatórios já vencidos relativos ao período, a contar desde o pagamento do imposto nos termos dos n.ºs 2.º a 5.º do art.º 61.º do CPPT  à taxa apurada de harmonia com o disposto no n.º 4.º do art.º 43.º da LGT até integral e efetivo reembolso.
  3. Condenar a Requerida nas custas do processo, por ter dado causa à ação arbitral.

Fixa-se o valor do processo em € 260.101,63 (duzentos e sessenta mil cento e um euros e sessenta e três cêntimos) atendendo ao valor económico do processo aferido pelo valor das liquidações de imposto impugnadas, e em conformidade fixa-se as custas, no respetivo montante em 4.896,00€ (quatro mil oitocentos e noventa e seis euros), a cargo do Requerida de acordo com o artigo 12.º, n.º 2 do Regime de Arbitragem Tributária, do artigo 4.ºdo RCPAT e da Tabela I anexa a este último. –  n.º 10 do art.º 35º, e n.º 1, 4 e 5 do art.º 43º da LGT, art.ºs 5.º, n.º1, al. a) do RCPT, 97.º-A, n.º 1, al. a) do CPPT e 559.º do CPC).

Notifique-se.

Lisboa, 17 de outubro de 2024

 

Os árbitros,

 Fernanda Maças, Árbitra Presidente,

 

 

Paulo Ferreira Alves, Árbitro Vogal, Relator

 

 

Clotilde Celorico Palma, Árbitra Vogal